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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versão On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.2 Belo Horizonte jul./dez. 2019
https://doi.org/10.36298/gerais2019120205
ARTIGOS
Memória coletiva e teoria das representações sociais: confluências teórico-conceituais
Collective memory and social representations theory: a theoretical-conceptual confluence
Janderson Carneiro de OliveiraI; Luci Mara BertoniII
IUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, BA, Brasil. E-mail: jancopsi@gmail.com
IIUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, BA, Brasil. E-mail: profaluci@uesb.edu.br
RESUMO
Este artigo objetiva apresentar os principais aspectos teóricos e conceituais de duas teorias: Memória Coletiva, termo cunhado por Maurice Halbwachs (1877-1945) e a Teoria das Representações Sociais, pensada pelo psicólogo Serge Moscovici (1928-2014), bem como de que maneira esses dois campos se confluem, tendo em vista a influência sociológica de Émile Durkheim (1858-1917). Esse estudo reúne elementos teórico-conceituais do pensamento durkheimiano, que pode ampliar a discussão acerca das articulações entre as duas perspectivas teóricas apresentadas. Sob esse enfoque epistemológico, a discussão entre Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais tem sido pouco enfatizada nas produções científicas que se propuseram a concatenar as duas teorias, o que imprime originalidade ao presente trabalho. É perceptível uma relação de similaridade entre o processo de ancoragem moscoviciano com os quadros sociais da memória, sendo que ambos dependem de processos relacionais para construção social das práticas cotidianas e da capacidade de teorização da realidade social.
Palavras-chave: Representações Sociais. Memória Coletiva. Quadro Sociais da Memória. Ancoragem.
ABSTRACT
This paper aims to present the main theoretical and conceptual aspects of two theories: Collective Memory, a term coined by Maurice Halbwachs (1877-1945) and Social Representations Theory, developed by the psychologist Serge Moscovici (1928-2014), and how both fields converge, considering the sociological influence of Emile Durkheim (1858-1917). This study brings together theoretical and conceptual elements of Durkheim´s thought, which can broaden the discussion about the connections between the theoretical perspectives presented. Under this epistemological approach, the discussion between Collective Memory and Social Representations Theory has been little emphasized in the scientific productions that have proposed to concatenate the two theories, which brings originality to the present work. It is noticeable the similarity between the anchoring process of Moscovici and the social frames of memory, both of which depend on relational processes for the social construction of daily practices and the ability to theorize social reality.
Keywords: Social Representations. Collective Memory. Social Frames of Memory. Anchoring.
Introdução
A proposta que sustenta a discussão abordada neste artigo consiste em apresentar os principais aspectos teóricos e conceituais de duas teorias oriundas de diferentes campos disciplinares: Memória Coletiva, termo cunhado pelo sociólogo Maurice Halbwachs (1877-1945) e a Teoria das Representações Sociais, pensada pelo psicólogo social romeno naturalizado francês Serge Moscovici (1928-2014), bem como de que maneira esses dois campos se confluem, tendo em vista a influência da produção sociológica de Émile Durkheim (1858-1917).
A partir de uma concepção epistemológica durkheimiana, tornou-se possível uma elaboração teórica em que Halbwachs problematizasse, na década de 1920, em que condições a memória se materializa e se infiltra nas práticas sociais e comunitárias, de modo que essa memória, que assume o estatuto da coletividade, não se deslegitime como tal, acomodando-se como uma categoria meramente individual e estática (Villas Bôas, 2015).
Dessa mesma perspectiva epistemológica, Moscovici (2000/2015) provoca a tal ponto a vertente psicológica de Psicologia Social que vigora em sua época que esse psicólogo propõe, mediante o resgate do conceito durkheimiano de representação, uma configuração sociológica da Psicologia Social, em que jamais se deve negligenciar, nem mesmo subestimar o potencial presente nos indivíduos e grupos de uma teorização do meio social em que eles estão inseridos.
Nesse sentido, convém explicitar que o objetivo deste artigo consiste circunscritamente em evidenciar as aproximações e confluências teórico-conceituais entre memória coletiva e teoria das representações sociais, tendo em vista que analisar cuidadosamente essas relações pode evidenciar que esses dois saberes se solidificam ainda mais ao "enriquecer-se mutuamente, com vistas a uma possível atualização ou adaptação como referenciais teóricos que permitam compreender o mundo desigualmente pós-moderno em que vivemos" (Alba, 2014, p. 522).
Este estudo, ao reunir elementos teórico-conceituais do pensamento durkheimiano, pode ampliar a discussão acerca das articulações entre as duas perspectivas teóricas apresentadas neste artigo. Isso se justifica, tendo em vista que sob esse enfoque epistemológico a discussão entre Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais tem sido pouco enfatizada nas produções científicas que se propuseram a concatenar as duas teorias, o que imprime originalidade ao presente trabalho. Ademais, este artigo pode embasar pesquisas que se fundamentam nos aportes teóricos aqui trabalhados, bem como contribuir para suprir possíveis lacunas na produção científica, quando esta não abordar as confluências teórico-conceituais entre os dois cenários de estudo.
Na tentativa de otimizar didaticamente o que pretendemos expor, organizamos esta discussão a partir da seguinte estrutura: apresentamos as contribuições da Sociologia durkheimiana para o desenvolvimento das duas teorias aqui estudadas; em seguida, abordamos o que Halbwachs (1950/2006) denomina de Memória Coletiva, e o que Moscovici (2000/2015) postulou com a Teoria das Representações Sociais. Por fim, apresentamos em quais pontos esses distintos campos teóricos se aproximam, apontando, dessa forma, suas possíveis convergências teórico-conceituais.
Contribuições da Sociologia durkheimiana
Os dois campos teóricos abordados, Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais, tomam como fundamento primário os pressupostos teóricos do sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917). A sociologia durkheimiana se preocupa com múltiplos fenômenos sociais (Durkheim, 1897/2000a; Durkheim, 1912/2000b; Durkheim, 1925/2008), entre esses cabe destacar as categorias religiosas, que foram analisadas a partir da elaboração conceitual que Durkheim denominou de Representações Coletivas (Oliveira, 2012).
Um dos primeiros trabalhos de Durkheim foi publicado em 1893, intitulado Da divisão do trabalho social, no qual esse sociólogo já fazia alusão ao termo representação, emergindo do conceito de consciência coletiva, que ao não usá-lo gratuitamente foi determinante para a cristalização do conceito de Representação Coletiva. De acordo com Durkheim (1893/1999), entende-se por consciência coletiva ou consciência comum "o conjunto das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade" (Durkheim, 1893/1999, p. 50), que pode constituir-se em um sistema capaz de autossustentar-se e autogerir-se, cuja dinamicidade se mantém com suas próprias forças vitais. Ademais, a consciência coletiva se difere da consciência particular ou individual. A primeira não depende da situação em que a segunda se encontra, isto é, em quais condições os indivíduos estejam, uma vez que estes são intermitentes, contrariamente à consciência coletiva que apresenta um potencial de duração capaz de se perpetuar inalteravelmente pelas gerações, transmitindo umas às outras (Durkheim, 1893/1999).
Não é fácil ceder ao enfraquecimento daquilo de que se está conscientemente seguro. Não se pode negar a existência de um iminente sofrimento quando o estado de consciência de alguém se encontra ameaçado, o que não é de se estranhar quando esse alguém reage de modo contundente na defesa do que acredita comodamente em um sólido estado de consciência. Desse modo, a representação surge como uma das principais manifestações de resistência quando um determinado modo de pensar é refutado em vez de corroborado. A representação não se configura meramente como um instrumento por meio do qual enxergamos uma simples imagem da realidade, mas o ato de representar se complexifica, na medida em que se apropria de fenômenos, sejam estes de natureza orgânica e/ou mesmo psíquica (Durkheim, 1893/1999). Nesse sentido,
Do mesmo modo que estados de consciência contrários se enfraquecem reciprocamente, estados de consciência idênticos, intercambiando-se, fortalecem-se uns aos outros. Enquanto os primeiros se subtraem, os segundos se adicionam. Se alguém exprime diante de nós uma idéia que já era nossa, a representação que fazemos dela vem se somar à nossa própria ideia, superpor-se a ela, confundir-se com ela, comunica-lhe o que ela própria tem de vitalidade; dessa fusão sai uma nova ideia, que absorve as precedentes e, em consequência, é mais viva do que cada uma delas consideradas isoladamente. (Durkheim, 1893/1999, p. 71)
Não é difícil perceber nessa discussão entre estados de consciência comum e consciência particular a dimensão coletiva da representação. Em uma concepção durkheimiana, "representações coletivas e consciência coletiva são termos intercambiáveis" (Oliveira, 2012, p. 73), que se apresentam sem nenhum prejuízo semântico. O que esse teórico problematiza é a relação da consciência particular e representação individual, bem como da consciência comum em sintonia com as representações coletivas. Assim sendo, o clássico Representações Individuais e Representações Coletivas (1924/1970) consiste em um texto-base para se investigar questões teórico-conceituais das teorias aqui apresentadas.
Destarte, tanto a vida mental quanto a vida coletiva do indivíduo são constituídas por representações. Não é de se estranhar, portanto, que representações coletivas e representações individuais sejam conceitos até um determinado ponto comparáveis, sem esquecer, no entanto, que não se pode reduzir o conhecimento sociológico como um simples desdobramento ou mera implicação da psicologia individual, mas sim que esses dois campos disciplinares se sustentam e se mantêm independentes enquanto distintos saberes científicos (Durkheim, 1924/1970). Diante disso, convém explicitar que Representações Coletivas, em uma abordagem durkheimiana, consistem em:
Com efeito, o que as representações coletivas traduzem é o modo como o grupo se pensa em suas relações com os objetos que o afetam. Ora, o grupo não é constituído da mesma maneira que o indivíduo, e as coisas que o afetam são de outra natureza. Representações que não exprimem nem os mesmos sujeitos, nem os mesmos objetos, não poderiam depender das mesmas causas. Para compreender a maneira como a sociedade representa a si mesma e o mundo que a cerca, é a natureza da sociedade, e não a dos particulares, que se deve considerar. (Durkheim, 1895/2007, p. XXIII)
Além disso, as representações coletivas também podem ser oriundas de processos mnemônicos, ou seja, a memória pode se configurar como uma fonte de representações.
Quanto a isso, Durkheim (1924/1970) explicita que, tradicionalmente, se atribuiu à memória um restrito critério orgânico, e não psíquico. A partir desse raciocínio, a representação não é capaz nem de se conservar e muito menos fazer durar imagens, ideias e sensações, uma vez que estas não mais existem por não serem conservadas. Nesse contexto, contrário a esse argumento, Durkheim (1924/1970) defende que a memória não pode ser concebida como um algo meramente biológico, mas como um fenômeno que se alia, portanto, à dimensão do vivido e com as experiências vividas.
Desse modo, inserido na corrente sociológica do pensamento de Durkheim, o que chamou atenção de Maurice Halbwachs foi justamente a possibilidade da elaboração de um conceito de memória que potencializasse a condição do fenômeno coletivo. Ao se preocupar com o modo pelo qual a experiência passada se reverbera nos espaços grupais - famílias, instituições, classes sociais, grupos religiosos -, Halbwachs introduz no campo das ciências sociais o conceito de Memória Coletiva (Peralta, 2007).
Memória Coletiva: a constituição da memória grupal ancorada em uma concreticidade
Na condição de discípulo de Durkheim, Maurice Halbwachs destaca-se como um dos mais autênticos durkheimiano. No entanto, apesar de demonstrar interesse pelas categorias trabalhadas na produção sociológica de Durkheim, a exemplo do suicídio e das classes sociais, o pensamento halbwachiano problematiza elementos de natureza sociológica, não ocupando um lugar central na sociologia durkheimiana. Foi por meio da ideia de consciência coletiva, condição imprescindível para que esses elementos fossem evocados e problematizados por Halbwachs, que este pensa a memória a partir dos quadros ou contextos sociais de referências, que denominou de Memória Coletiva (Duvignaud, 2006).
De acordo com Peralta (2007), o conceito de Memória Coletiva foi cunhado por Halbwachs a partir de suas principais obras: a) Os quadros sociais da memória (1925) [Les Cadres Sociaux de la Memóire], quando organiza toda sua teoria de memória coletiva; b) Topografia legendária dos Evangelhos na Terra Santa (1941) [La Topographie Légendaire dês Évangiles en Terre Sainte: Étude de Mémoire Colective], cujo estudo se preocupou em saber como os cristãos por meio das memórias de formação religiosa conseguem situar os espaços sagrados em Jerusalém; e c) A memória coletiva (1950) [La Mémoire Collective], obra publicada postumamente, na qual Halbwachs aplica analiticamente sua teoria da memória coletiva em objetos sociais, como a memória da infância, e sua percepção relacionada ao tempo e ao espaço.
O ato de recordar se configura como um ato, sobretudo, de natureza pertencente ao indivíduo, o que durante muito tempo fez da memória uma categoria exclusivamente individual. Destaca-se, nesse contexto, as produções no âmbito da Filosofia, como se percebe nos escritos de Henri-Louis Bergson (1859-1941), de quem Halbwachs foi aluno, e cujo filósofo se configura como um dos pioneiros a questionar uma concepção sumária de memória concebida meramente como uma função mecanicista do cérebro e do sistema nervoso, fornecendo dados para que Halbwachs desenvolvesse o conceito de quadros sociais da memória (Santos, 2003/2012), bem como, no âmbito da Psicologia nas obras de Sigmund Freud (1856-1939), sendo que ambas, nem a Filosofia bergsoniana nem a teoria psicanalítica freudiana deram ênfase à dimensão social da memória. No entanto, ainda a partir do século XX, entre os anos 1920 e 1930, o estudo da memória começa ganhar um estatuto que lhe confere uma base social, principalmente advindo de Halbwachs, com a já referida Teoria da Memória Coletiva, e do psicólogo social britânico Frederic Charles Bartlett (1886-1969), que inspirado na obra halbwachiana, investiga o fenômeno da memória inserido em um microcosmo social no conhecimento da vida cotidiana (Peralta, 2007; Sá, 2007; Farr, 1996/2002). Esse último, porém, não será aqui discutido, limitando-nos apresentar a Teoria da Memória de Halbwachs, que desenvolve um conceito de memória em uma perspectiva coletiva.
Desse modo, na concepção halbwachiana, a memória carece do lastro de materialidade, não uma materialidade pura, individual, tal como pensou a Filosofia bergsoniana, mas sim uma materialidade relacionada a um determinado contexto social, uma vez que recordar remete sempre a uma relação com algo ou alguém, seja este o outro, o espaço, o tempo etc. (Santos, 2003/2012). A memória, para Halbwachs (1950/2006), necessita dessa materialidade, que por sinal é construída socialmente, ao passo que a recordação, nessa perspectiva, sempre nos leva a uma dimensão relacional com um determinado espaço e um determinado tempo. Não é difícil compreender que algumas relações estabelecidas durante a infância, por exemplo, permaneçam até hoje em nossas memórias e que, não obstante o passar do tempo, essa memória relacional e afetuosa não desapareceu, ao contrário, se conservou. O próprio Halbwachs (1950/2006) explica isso quando afirma:
Assim, quando voltamos a uma cidade em que já havíamos estado, o que percebemos nos ajuda a reconstituir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Se o que vemos hoje toma como lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente. É como se estivéssemos diante de muitos testemunhos. Podemos reconstruir um conjunto de lembranças de maneira a reconhecê-lo porque eles concordam no essencial, apesar de certas divergências (Halbwachs, 1950/2006, p. 26)
Halbwachs (1950/2006) compreende que a memória pode ser desencadeada na relação com outras pessoas, tendo em vista que estas também estão inseridas no meio social, em que os fatos e os acontecimentos ocorrem, à medida que essa relação com outro e com os fatos potencializa a reconstituição ou a reconstrução da recordação. Desse modo, esse teórico ilustra seu raciocínio com o exemplo1 de uma relação estabelecida entre professor-aluno justamente para destacar que essa modalidade de memória pensada por Halbwachs (1950/2006) - memória coletiva - depende dos grupos e dos contextos sociais em que se vive, bem como do tempo e do espaço em que as relações se desenrolam.
Vale dizer que nesse caso ilustrado por Halbwachs (1950/2006) fica explícito que a memória do aluno se conservou de uma maneira mais sólida se comparada com a memória do professor, exatamente porque as relações estabelecidas entre este e a turma pode se configurar como pouco duradoura do que a relação do aluno com seus próprios pares, grupos e colegas de classe. Assim, nota-se que a memória coletiva reporta sempre a um componente afetivo e relacional às vivências, de modo que "esquecer um período da vida é perder o contato com os que então nos rodeavam" (Halbwachs, 1950/2006, p. 37).
A tessitura conferida à memória por Halbwachs perpassa pelas relações estabelecidas socialmente. Magalhães e Almeida (2011), em consonância com o pensamento halbwachiano, explicitam que a memória advém não de indivíduos isoladamente, mas sim dos quadros sociais de uma dada sociedade, quando os indivíduos estão inseridos em seus grupos, interagindo com estes e ocupando um determinado lugar nesses grupos sociais. Nesse sentido, mesmo a memória individual, não pode ser despida da qualidade de memória coletiva, na medida em que "cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes" (Halbwachs, 1950/2006, p. 69).
Desse modo, convém enfatizar que a dimensão espacial se configura como um elemento importante na constituição da Teoria da Memória Coletiva. Isso se justifica, haja vista que as práticas materializadas nas relações grupais são revestidas por um ordenamento espacial, que nos autoriza pensar que sendo as ações grupais traduzidas espacialmente, os lugares assumidos pelos grupos podem ser entendidos como um espaço imanente e de convergência da totalidade grupal, ou seja, o espaço afeta o grupo e, este, é afetado pela disposição espacial, de modo que dialeticamente se concretiza a (re)construção de uma determinada memória coletiva (Halbwachs, 1950/2006).
Por conseguinte, o espaço em que habitamos, orquestrado com nossas experiências, sentimentos e percepções, e com o qual estabelecemos uma sólida relação de afetividade, se evidencia ainda mais, na medida em que esse laço de afeto cristalizado se transparece, operacionalizando-se em nossos hábitos e no ambiente material que nos circunda. Nesse ínterim, Halbwachs (1950/2006) explicita que
Não é apenas uma questão do aborrecimento que temos em mudar nossos hábitos motores. Por que nos apegamos aos objetos? Porque desejamos que eles não mudem e continuem em nossa companhia? Destacamos quaisquer idéias de comodidade e estética. Nosso ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que vivemos, nos lembram nossa família e os amigos que vemos com freqüência nesse contexto. (Halbwachs, 1950/2006, p. 157)
O que talvez apareça como uma inquietação aos interessados em estudar a dimensão coletiva da memória consiste na intrigante tentativa em compreender o que faz uma memória individual se transformar em uma memória coletiva. Nessa discussão, deve-se considerar que as recordações compartilhadas socialmente com familiares, amigos de trabalho, grupos religiosos etc., são justamente aquelas recordações consideradas relevantes para esses grupos, que se apresentam com um maior potencial de duração. No entanto, esse pensamento não se restringe somente a esses grupos caracterizados por relações duradouras, mas, também, se aplica aos grupos de relações intermitentes ou definidos por configurações efêmeras (Fentress & Wickham, 1992).
A constituição do que Halbwachs (1950/2006) entende por Memória Coletiva se materializa na medida em que os indivíduos inseridos em seus grupos sociais são capazes de suspenderem os aspectos mnemônicos divergentes nessas relações grupais, ao mesmo tempo em que potencializam os elementos que os fortalecem em uma memória coletiva e os unificam, como membros desses determinados grupos. Assim, a concreticidade do conceito de memória coletiva se dá no momento em que componentes unificadores desses grupos se confluem de tal forma que são capazes de superar as próprias divergências, ao passo que isso mesmo revela uma identidade grupal, embora se perceba a existência de diversos grupos. Por conseguinte, pode-se afirmar que a memória coletiva se configura em uma relação consensual, ou ainda mais, uma relação em que o uno se manifesta no diverso. Halbwachs (1950/2006) deslinda esse argumento quando afirma:
Assim, quando tentamos encontrar no céu duas estrelas que fazem parte de duas constelações diferentes, satisfeitos por termos traçado uma linha imaginária de uma a outra, de bom grado acreditamos que o simples fato de alinhá-las dessa maneira confere a seu conjunto uma espécie de unidade; contudo, cada uma é apenas um elemento compreendido num grupo e, se foi possível encontrá-las, é porque naquele momento nenhuma das constelações estava oculta por uma nuvem. Da mesma forma, pelo fato de dois pensamentos, uma vez comparados, parecerem reforçar um ao outro por contrastarem entre si e acreditarmos formarem um todo que existe por si, independentemente dos conjuntos de onde são tirados, não percebemos que na realidade estamos levando em conta os dois grupos ao mesmo tempo - mas cada uma do ponto de vista do outro. (Halbwachs, 1950/2006, p. 49)
Nessa perspectiva, memória coletiva não se configura como uma mera expressão do passado, mas uma (re)construção coletiva desse passado elaborado por indivíduos inseridos em uma coletividade. Esse processo se concretiza por meio de processos de seleção, nos quais eventos passados, possivelmente ocorridos em determinados grupos, mais duradouros, são conservados, ao passo que eventos que aconteceram em grupos com poucos laços afetivos podem se perder com o decorrer do tempo. Este, por sua vez, consoante ao pensamento do discípulo durkheimiano, se caracteriza por uma dimensão temporal que se encontra nos quadros sociais da memória, pensados por Halbwachs como objetos sociais, instituições, imagens etc., ao enfatizar a natureza dessas construções em diversos grupos sociais, a exemplo das famílias e da religião (Santos, 2013). Em consonância com o pensamento halbwachiano em relação a esses quadros sociais da memória, Sá (2007) afirma:
O que os quadros sociais identificados por Halbwachs [...] proporcionam ao processo de construção social da memória é sempre uma forma de conhecimento: de fatos, de cronologias, de instituições, de costumes, de leis, da linguagem, ou seja, toda uma gama de recursos de contextualização e significação das experiências pessoais e grupais. (Sá, 2007, p. 291)
Diante do que foi apresentado e de acordo com a perspectiva de Maurice Halbwachs (1950/2006), toda memória individual se ancora em uma memória coletiva, levando em conta que o ato de recordar é relacional às vivências que o indivíduo estabelece nos próprios grupos de referências, situados em um tempo e espaço determinados. Cabe aqui considerar que o ato de recordar, para Halbwachs, reporta sempre a um esforço de recompor e recuperar uma experiência passada, que uma vez lembrada se perpetua no presente por meio dos grupos sociais dos quais os indivíduos fazem parte.
Não obstante algumas críticas direcionadas a Halbwachs, tal como fizeram Fentress e Wickham (1992), ao questionarem a ênfase coletiva que o sociólogo durkheimiano confere à memória, ao mesmo tempo que relega seu aspecto individual, e por Peralta (2007), quando percebe a ausência da discussão política da memória, apesar do tensionado contexto histórico vivido por Halbwachs2, o que nos interessa neste trabalho é justamente perceber alguns possíveis pontos confluentes entre a teoria da memória coletiva halbwachiana e a Teoria das Representações Sociais de Moscovici, tendo em vista que alguns teóricos da Psicologia Social, a exemplo de Roberto Farr (1996/2002), concebem esse último campo teórico, isto é, o da Teoria das Representações Sociais, como uma vertente sociológica de Psicologia Social.
Teoria das Representações Sociais: um campo emergente no contexto da Psicologia Social Moderna
O campo da Teoria das Representações Sociais surge como resultado da tese de doutorado de Moscovici (1961/2012) publicada originalmente em 1961 e intitulada Psychanalyse: Son image et son public. Esse texto foi parcialmente traduzido para o português em 1975 (Guareschi, 2012a) e apenas em 2012 foi publicado na íntegra com o título: Psicanálise, sua imagem e seu público. Como o próprio título da tese sinaliza, o objeto dessa pesquisa de Moscovici consiste em saber como a difusão da Psicanálise penetra o conhecimento popular dos franceses (Duveen, 2015).
Antes de adentrarmos propriamente nesse vasto campo das Representações Sociais, convém situarmos brevemente o contexto científico da Psicologia Social em que a teoria moscoviciana emerge. Assim, apresentamos as principais características de duas contrastantes tradições de pesquisa na Psicologia Social Moderna: a tradição norte-americana e a tradição europeia. A primeira tradição pode ser bem representada pelo psicólogo Gordon Willard Allport (1897-1967), que escolheu Auguste Comte (1798-1857) como fundador da Psicologia Social moderna, ao se atentar para o fato de que Comte também é posto como o fundador do positivismo3 e por isso na concepção de Allport nada mais justo o motivo de tal escolha. Ao eleger Comte como um ancestral da Psicologia Social moderna, buscava-se legitimar esse campo disciplinar como uma ciência positivista, e consequentemente promover uma descontinuidade temporal entre presente e passado, uma vez que desconsidera toda a história da Psicologia Social, como parte do pensamento ocidental, e a percebe como uma ciência experimental em contexto norte-americano (Farr, 1995). A descontinuidade temporal feita por Allport contraria o argumento de que a Psicologia surge com Wilhelm Wundt (1832-1920) e de que se deve considerar que a Psicologia Social também daí emerge como um desdobramento dessa Psicologia, e que aquela se configura como caudatário desta. (Guareschi, 2012b). Além disso, a principal dificuldade para a emergência de uma psicologia científica em uma concepção comtiana era justamente pela inobservância do seu objeto de estudo, isto é, a psiquê, a mente, que escapando da possibilidade de observação, não preenchia os critérios positivistas, ou seja, não era nem observável, nem mensurável (Figueiredo & Santi, 2010).
Por outro lado, contrariamente à postura de Allport e de Edward E. Jones (1926-1993), estava Moscovici, que pode ser considerado um dos representantes da tradição europeia de pesquisa na Psicologia Social moderna. Ambos iniciaram seus respectivos trabalhos na mesma época, ou seja, a partir da década de 1950. Moscovici buscou um ancestral, Émile Durkheim (1858-1917), para fundamentar suas pesquisas, a começar pelo problema abordado em sua tese de doutorado. No entanto, ao resgatar o conceito durkheimiano de representações coletivas, Moscovici confere uma continuidade entre passado e presente, pois ao pensar o que denominou de Teoria das Representações Sociais, esta pode ser entendida como uma perspectiva sociológica de Psicologia Social, contrariando a tradição norte-americana, que privilegia uma visão psicológica desse saber disciplinar. Moscovici estava modernizando a ciência social quando parte do conceito durkheimiano e o substitui em representações sociais, na tentativa de aproximar a ciência social ao mundo moderno e adequá-la a este (Farr, 1995).
Moscovici (2000/2015) admite que utiliza o termo "social" em detrimento do "coletivo", em virtude do caráter plástico e dinâmico que envolve as representações sociais, contrariando a ideia proposta pela teoria durkheimiana, que entende as representações coletivas como estruturas estáticas e rígidas, que foram sedimentadas em tradições imutáveis. Nessa direção, Moscovici (2000/2015) evidencia que:
[...] se, no sentido clássico, as representações coletivas se constituem em um instrumento explanatório e se referem a uma classe geral de ideias e crenças (ciência, mito, religião, etc.), para nós, são fenômenos que necessitam ser descritos e explicados. São fenômenos que estão relacionados com um modo particular de compreender e de se comunicar - um modo que cria tanto a realidade como o senso comum. É para enfatizar essa distinção que eu uso o termo "social" em vez de "coletivo". (Moscovici, 2000/2015, p. 49)
As representações são encontradas tanto na "mente" dos indivíduos quanto no "mundo" destes, e por isso mesmo apenas convém estudar as representações sociais, quando estas se configuram espalhadas e cristalizadas na cultura na qual se realiza o estudo (Farr, 1995). A partir disso, faz-se mister apresentar o que se pode denominar de uma teoria matriz moscoviciana, quer dizer, a Teoria das Representações Sociais com seus principais conceitos e características.
Ao considerar que os indivíduos são capazes de construir significados sociais e teorizar a realidade social, não se limitando ao mero recebimento e processamento da informação, isso faz surgir na Psicologia, seja esta em uma abordagem cognitiva ou social cognitiva, seja no campo da Psicologia Social de representações sociais, uma preocupação em responder questões dessa natureza, mesmo que percorram para isso diferentes caminhos teóricos e metodológicos (Vala, 2000).
Nesse sentido, Moscovici (2000/2015) questiona a Psicologia Social de vertente cognitivista, que em busca do estatuto da cientificidade propõe estudar o sistema cognitivo a partir de dois pressupostos: 1. O de que todas as pessoas, cientistas ou não, respondem aos fenômenos de uma única maneira; e 2. Que o ato de compreender se restringe em processar informações. Dessa maneira, os indivíduos percebem o mundo como de fato é, e suas percepções são reflexos dos estímulos oriundos do ambiente em que se vive. Contrariamente a isso, Moscovici (2000/2015) mostra que alguns elementos fatuais comuns podem subverter esses dois postulados da Psicologia Social alinhada à vertente cognitivista, também denominada de psicológica: o primeiro consiste em não perceber conscientemente, apesar de certa familiaridade, alguns fenômenos, situações e acontecimentos que não deveriam se apresentar tão obscuros, dado que se tratam de situações óbvias e que transitam na esfera do senso comum; o segundo elemento refere-se ao processo que não raras vezes aceitamos, sem refutar, nem questionar, alguns fatos que podem se cristalizar solidamente em nosso sistema de categorias, quando se absorve como verdade o que certamente não existe ou nunca existiu; por fim, o terceiro elemento se sustenta à medida que os indivíduos reagem condicionados às regras, costumes e cultura das quais estes fazem parte. Em seguida, Moscovici (2000/2015) evidencia que:
Em cada um desses casos, notamos a intervenção de representações que tanto nos orientam em direção ao que é visível como àquilo a que nós temos de responder; ou que relacionam a aparência à realidade; ou de novo àquilo que define essa realidade. Eu não quero dizer que tais representações não correspondem a algo que nós chamamos o mundo externo. Eu simplesmente percebo que, no que se refere à realidade, essas representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados. (Moscovici, 2000/2015, pp. 31-32)
Para Moscovici (2000/2015), pode-se dizer que as representações têm basicamente duas funções: a primeira consiste em uma convencionalização dos fenômenos, objetos, pessoas e acontecimentos, que se materializam por meio das representações. Ao mesmo tempo em que essas representações desenham definitivamente tais fenômenos, podem também localizá-las em determinadas categorias, colocando-as em um modelo passível de ser compartilhado por um grupo de pessoas. A segunda função atribuída às representações consiste na característica prescritiva das representações, de modo que "elas se impõem sobre nós com uma força irresistível" (Moscovici, 2000/2015, p. 36). Sem dúvidas, essa força coercitiva, que Moscovici se apropria da Sociologia durkheimiana, se constitui a partir de elementos que organizados e sedimentados, antes mesmo de se começar a pensar, mediante a uma tradição que impõe aquilo que os indivíduos devem expressar e representar (Moscovici, 2000/2015).
O conceito psicossociológico moscoviciano conferido às Representações Sociais perpassa pela ideia de que pessoas e grupos criam suas próprias representações a partir de elementos provenientes tanto dos processos comunicacionais quanto operacionais, e que uma vez criadas essas representações, sob âncora da dimensão coletiva, adquirem vida própria, transitam o tempo todo, se atraindo e se repelindo, de modo que enquanto novas representações nascem, outras, bem mais antigas, morrem. Assim, tendo em vista compreender uma determinada representação, faz-se necessário entender as representações que a originaram, o que não significa dizer que se devem considerar aspectos pontuais e determinantes como condição suficiente para se entender essas representações, uma vez que esses aspectos, a exemplo da estrutura social, podem até mesmo ser condicionados por essas representações, ratificando-as, e que sendo compartilhada social e tradicionalmente se enraízam como realidade social (Moscovici, 2000/2015).
Por conseguinte, Moscovici (2000/2015, p. 41 grifos do autor) assim enfatiza ao se referir às origens das representações:
Quanto mais sua origem é esquecida e sua natureza convencional é ignorada, mais fossilizada ela se torna. O que é ideal, gradativamente torna-se materializado. Cessa de ser efêmero, mutável e mortal e torna-se, em vez disso, duradouro, permanente, quase imortal. Ao criar representações, nós somos como o artista, que se inclina diante da estátua que ele esculpiu e a adora como se fosse um deus.
Apesar de ser alvo de críticas quanto ao seu rigor científico por trabalhar com elementos constitutivos do senso comum, o que chama atenção das pessoas que se propõem a estudar a teoria moscoviciana, consiste justamente no fato dessa teoria fazer emergir, como objeto de estudo científico, os elementos que permeiam o tecido social das práticas cotidianas que transitam as nossas relações sociais (Bertoni, 2015).
Dessa forma, Bertoni (2015), referendando Moscovici, explicita que as representações sociais, em uma perspectiva moscoviciana, constituem como categorias de conhecimentos que permeiam e se infiltram cotidianamente em nossa maneira de pensar, a exemplo das relações entre os indivíduos e em seus grupos, de modo que ao se relacionar com os demais, origina-se a necessidade de nomear e materializar o que não se configura ainda como familiar. Não se trata de uma tarefa fácil, nem definir, nem caracterizar as representações sociais. No entanto, Wagner (1998), na tentativa de caracterizá-las, elenca alguns elementos que ele mesmo denominou de "atributos funcionais e estruturais" (Wagner, 1998, p. 16) caracterizadores das representações sociais: a formação do núcleo central e seus elementos periféricos; uma dimensão metafórica das representações e vinculada ao que se entende por esquema figurativo; configurando, assim, o processo de objetivação; outro elemento consiste no processo de ancoragem; e o seu potencial para se compartilhar as experiências coletivamente. Dentre as características levantadas por Wagner (1998), Moscovici (2000/2015) já destacava dois principais processos e os legitimam como processos geradores das representações sociais: a ancoragem e a objetivação, que o próprio Moscovici (2000/2015) explica:
- Ancoragem - Esse é um processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos ser apropriada. [...]. Ancorar é, pois, classificar e dar nome a alguma coisa. Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras. (Moscovici, 2000/2015, p. 61)
- Objetivação - Une a ideia de não familiaridade com a realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade. [...]. Objetivar é descobrir a qualidade icônica de uma ideia, ou ser impreciso; é reproduzir um conceito em uma imagem. (Moscovici, 2000/2015, p. 71)
Por fim, não se pode esquecer a relação entre dimensão consensual e dimensão reificada que Moscovici (2000/2015) atribui às representações sociais. Ciência e representações sociais se diferenciam e se complementam simultaneamente, de modo que seria um erro minimizar essas duas formas de conhecimento. Assim, "a ciência era antes baseada no senso comum e fazia o senso comum menos comum; mas agora senso comum é a ciência tornada comum", afirma Moscovici (2000/2015, p. 61).
Convergências teórico-conceituais entre Teoria das Representações Sociais e Memória Coletiva
A partir do que foi apresentado anteriormente, pode-se perceber que há um fio condutor epistemológico em comum que une a Teoria das Representações Sociais e a da Memória Coletiva, que consiste no conceito de representações coletivas, de Émile Durkheim. Embora esse conceito se legitime originalmente no saber disciplinar da Sociologia, a noção de representação coletiva perpassa os limites dos saberes sociológicos, chegando até os aportes teóricos da Psicologia Social por meio de Moscovici, com a noção de representação social, que sem dúvidas contribuiu para consolidar o campo psicossociológico de produção de conhecimento. Além desse ponto confluente entre Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais, preocupamos em discutir alguns aspectos teórico-conceituais que aproximam essas duas teorias. No entanto, isso não significa dizer que ambos saberes teóricos não apresentem possíveis e necessárias divergências teóricas e conceituais.
De acordo com Alba (2014), a própria noção de representação pensada por Halbwachs se vincula à dimensão psicológica, capaz de auxiliar na recomposição da memória, e que se afina principalmente com o conceito de representação social moscoviciano, se comparada ao conceito de representação pensado por Durkheim. Isso se justifica, sem dúvidas, pelo fato de que sendo a memória um fenômeno socialmente construído, no qual as representações sociais exercem uma função fundamental, uma vez que tais representações "dotam o sujeito de insumos para ter uma visão do passado que faça sentido para ele e para os grupos em que participa. A memória não se conserva intacta, mas é reconstruída a partir do presente" (Alba, 2014, pp. 554-55). Pode-se dizer, portanto, que as representações sociais se configuram como matérias-primas para a constituição da memória coletiva.
Como apresentado anteriormente, para Halbwachs (1950/2006), o ato de lembrar está condicionado às relações grupais que o sujeito estabelece, de modo que as memórias individuais se configuram como um ponto de vista sobre a memória coletiva, e que de acordo com as posições e lugares que esses sujeitos ocupam, esse mesmo ponto de vista pode sofrer alterações, visto que se trata de uma dimensão relacional ao tempo, ao espaço e aos grupos em que se está inserido. Nesse sentido, convém salientar que o sujeito, na condição de ser social, se configura como uma questão de pré-requisito para a existência da recordação. O ato de rememorar está, portanto, condicionado ao próprio tecido social dos indivíduos (Alba, 2014), ratificando o pensamento do próprio Halbwachs (1950/2006), quando afirma que:
É difícil encontrar lembranças que nos levem a um momento em que nossas sensações eram apenas reflexos dos objetos exteriores, em que não misturássemos nenhuma das imagens, nenhum dos pensamentos que nos ligavam a outras pessoas e aos grupos que nos rodeavam. Não nos lembramos de nossa primeira infância porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não nos tornamos um ser social. (Halbwachs, 1950/2006, p. 43)
Assim, tal como a dimensão social dos sujeitos se configura como uma condição essencial para a composição da memória coletiva de um determinado grupo, também para a Teoria das Representações Sociais a construção das representações dependem desse caráter social e relacional, que se materializa mediante dois processos: ancoragem e objetivação, já apresentados anteriormente (Alba, 2014). As representações sociais perpassam pelas relações humanas, quer seja uma relação interpessoal ou uma experiência vivenciada em um setting grupal, haja vista que o processo de criação das representações requer um componente coletivo, sustentando a ideia de que um indivíduo isolado não institui representações, mas carece do lastro da coletividade para que essas representações surjam e circulem em nosso tecido social (Moscovici, 2000/2015). Nesse ponto, particularmente, interessa-nos o primeiro processo, a ancoragem, tendo em vista a possibilidade de relacionar esse processo criador das representações sociais com o que o pensamento halbwachiano denominou de quadros sociais da memória (Alba, 2014).
O que Moscovici (2000/2015) define por ancoragem se sustenta na ideia de que o ato de classificar, nomear e categorizar um determinado objeto ou fenômeno envolve as categorias preexistentes em nosso sistema de categorias, provenientes da própria sociedade e de seus grupos, sendo estes imbuídos com seus aspectos culturais e valorativos. Esse processo, gerador das representações sociais, como o próprio termo já sinaliza, se caracteriza como responsável pela ancoragem e pelo enraizamento social da representação, bem como do objeto a ser representado (Sá, 1993). Nesse sentido, evidencia-se a estrita relação do pensamento moscoviciano com a memória, na medida em que Moscovici (2000/2015, p. 63) deixa claro que: "categorizar alguém ou alguma coisa significa escolher um dos paradigmas estocados em nossa memória e estabelecer uma relação positiva ou negativa com ele". Nesse sentido, Alba (2014) estabelece uma relação entre memória e representação social ao dizer que:
As representações sociais criadas, a partir do presente, vão modificando a bagagem do passado no curso das dinâmicas sociais e do próprio desenvolvimento da sociedade em geral (modernidade, tecnologização da vida cotidiana, consumo etc.). A bagagem de conhecimentos em que a representação social se "ancora" é a memória social: por meio do processo de ancoragem, o passado se faz presente. (Alba, 2014, p. 560)
Desse modo, se insere nessa discussão aquilo que o pensamento halbwachiano, com sua teoria da memória, denominou de quadros sociais da memória. De acordo com Santos (1998), o processo de construção social da memória está condicionado à nossa participação em grupos sociais, que inseridos nessas relações grupais são coercitivamente impulsionados a absorver as convenções socialmente produzidas. Isso, no entanto, por si só ainda não faz emergir o ato de recordar, uma vez que esse ato somente se materializa mediante as lembranças de outras pessoas, situadas em um tempo e um espaço determinado, ou seja, em determinados contextos ou quadros sociais, a exemplo da família, escola, igreja etc., perpassando, pois, por elementos culturais e sociais, capazes de potencializar os significados das experiências individuais e coletivas (Santos, 1998).
É notório, portanto, que o aspecto grupal se apresenta como um importante critério de convergência para a consolidação das teorias analisadas, uma vez que a formação de memórias coletivas e a emergência de representações sociais estão perpassadas por realidades compartilhadas, ancoradas em crenças e ideologias, coletivamente constituídas. Aliada a essa questão, a conexão entre presente e passado também figura como um ponto de confluência entre as duas teorias em análise. A produção de representações sociais e a cristalização do conteúdo mnemônico aglutinado em uma memória coletiva se materializam como resultado das experiências e vivências passadas, que se atualizam nas relações do tempo presente.
Assim, as similaridades entre os quadros de referência da memória e o processo de ancoragem se sustentam, na medida em que ambos compartilham a necessidade da interação social para a construção das memórias coletivas e das representações sociais, respectivamente. Ademais, na perspectiva moscoviciana, as representações sociais são recriadas e difundidas mediante a materialização das práticas cotidianas, ao mesmo tempo em que a memória coletiva consiste em uma recomposição do passado que se dá a partir da relação com os outros, em seu tempo e espaço, o que denota uma relação dialética entre as duas teorias (Alba, 2014).
Considerações finais
Preocupamos, portanto, em evidenciar neste artigo uma relação de confluência teórico-conceitual entre Memória Coletiva e Teoria das Representações Sociais como distintos saberes disciplinares, que não obstante suas diferenças, ambos confluem epistemologicamente em direção aos seus respectivos campos de conhecimento, de modo a contribuírem para a constituição de um saber psicossociológico.
Neste texto, foi necessário apresentar sucintamente alguns pressupostos teóricos da Sociologia de Émile Durkheim, principalmente o conceito de Representações Coletivas, haja vista que este se consagra como um termo-base para o desenvolvimento das duas teorias aqui apresentadas e inter-relacionadas. Por meio desse conceito, a produção sociológica de Durkheim se apresentou como um campo sólido e fértil para a imbricação teórica entre a Sociologia e a Psicologia Social, dado que ao representar um fenômeno coletivamente este perpassa pelas ideias e categorias produzidas socialmente, e não pelas categorias de natureza individual, isoladas do seu tempo, do espaço e seu contexto social com suas complexidades e peculiaridades.
Percebemos, no decorrer deste texto, que a Teoria da Memória elaborada por Maurice Halbwachs, originada pelos quadros sociais da memória, por sua vez, se sustentam por uma dimensão relacional aos grupos e instituições, que os indivíduos estabelecem em um tempo e um espaço determinados. Um ponto elementar para se compreender o que Halbwachs denomina como uma Teoria da Memória Coletiva consiste que o fato de recordar se alia sempre à dimensão do vivido e a um critério relacional. As nossas recordações estão também condicionadas ao potencial recordativo de outras pessoas, de modo que as lembranças desse determinado grupo de indivíduos se reconheçam como constitutivos de uma memória coletiva pela capacidade de confluência e duração de suas recordações.
Ademais, foi apresentada a emergência da Teoria das Representações Sociais, de Serge Moscovici, na Psicologia Social moderna, como uma alternativa à tradição norte-americana de Psicologia, de vertente cognitivista, se configurando, portanto, como uma dimensão sociológica da Psicologia Social no mundo ocidental, expandindo seu olhar para um campo disciplinar além das categorias psicológicas.
Nesse sentido, foram apresentados, ainda, as principais características e conceitos teóricos da Teoria das Representações Sociais, a exemplo dos processos de objetivação e ancoragem, que ocorrem simultaneamente ao gerar as representações sociais. Nota-se que o primeiro processo visa transformar algo abstrato, uma ideia, em algo concreto; ao passo que o segundo busca categorizar e classificar algo, de acordo com as nossas categorias pré-definidas em nosso próprio sistema de categorias, que se ancoram nas relações que estabelecemos cotidianamente em nossas práticas culturais e sociais.
É perceptível, então, que além da confluência epistemológica, mediante os pressupostos de Durkheim, há uma nítida relação entre memória coletiva e representações sociais, uma vez que ambos se materializam a partir dos elementos advindos e formados social e culturalmente, ao ponto de se concordarem que a memória, tal como apresentada aqui, pode se configurar como uma fonte e perpetuação de representações sociais (Alba, 2014).
Outrossim, é notória, também, uma relação de similaridade entre o processo de ancoragem moscoviciano com os quadros sociais da memória da Teoria da Memória de Halbwachs, tendo em vista que ambos dependem de processos interacionais e relacionais, envolvendo ao mesmo tempo categorias e construções sociais, que nos afetam diariamente.
Por fim, convém ressaltar que neste artigo não se teve a pretensão de esgotar todas as aproximações teóricas e conceituais existentes entre a Teoria das Representações Sociais e Memória Coletiva, a exemplo do conceito de objetivação trabalhado por Moscovici, que não foi discutido diretamente com o pensamento halbwachiano neste estudo, nem mesmo se teve a presunção de chegar à ingênua conclusão da inexistência de aspectos divergentes entre esses dois campos, o que pode ser melhor investido em estudos que poderão ser realizados posteriormente.
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Recebido em: 16/07/2017
Aprovado em: 27/08/2018
1 O exemplo citado por Halbwachs (1950/2006) para ilustrar seu pensamento consiste na relação entre um aluno e seu ex-professor, que deu aula durante muito tempo, cerca de uma década ou mais, na escola que esse aluno estudou. Ao se reencontrarem, o professor é imediatamente reconhecido pelo aluno, ao passo que este não é recordado pelo professor. Assim, o aluno o tempo todo descreve as características de sua turma, os fatos marcantes que aconteceram naquele ano e comenta sobre seus amigos, mas o professor não consegue lembrar e nem mesmo reconhecê-lo.
2 Halbwachs foi assassinado em 1945 no campo de concentração nazista de Buchenwald (Bosi, 1993), após as tropas nazistas ocuparem Paris.
3 O positivismo se baseia, segundo Santos (1989), em uma concepção sustentada pelos seguintes pressupostos: "a 'realidade' enquanto dotada de exterioridade; o conhecimento como representação do real; a aversão à metafísica e o caráter parasitário da filosofia em relação à ciência; a dualidade entre factos e valores com a implicação de que o conhecimento empírico é logicamente discrepante da prossecução de objetos morais ou da observação de regras éticas; a noção de 'unidade da ciência', nos termos da qual as ciências sociais e as ciências naturais partilham a mesma fundamentação lógica e até metodológica".