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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia
versão On-line ISSN 1983-8220
Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.12 no.2 Belo Horizonte jul./dez. 2019
https://doi.org/10.36298/gerais2019120206
ARTIGOS
Vivência do tédio em jovens: uma análise sobre os modos de subjetivação contemporâneos
The experience of boredom in young adults: an analysis of contemporary modes of subjectivation
Ágatha Aila Amábili de Meneses GomesI; Selena Mesquita de Oliveira TeixeiraII
IUniversidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: agatha.aila@hotmail.com
IIUniversidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: selena.teixeira@hotmail.com
RESUMO
O estudo teve como objetivo analisar os modos de subjetivação contemporâneos e sua relação com o tédio vivido por jovens. Trata-se de uma pesquisa de natureza qualitativa, que realizou entrevista semiestruturada e o Teste de Associação Livre de Palavras com 15 estudantes universitários. Os resultados foram analisados com o apoio do software Iramuteq e a análise de conteúdo, em que se pode perceber uma urgência para que o tempo passe mais depressa, sendo o tempo livre interpretado como algo tedioso e sinônimo de inutilidade. Em face desse tempo, os jovens buscam preenchê-lo, em uma tentativa de fugir dos possíveis pensamentos advindos com esse tempo, entretanto, tais ocupações carecem de uma significação maior. A principal alternativa utilizada para ocupar esse tempo é o uso de recursos tecnológicos, sobretudo o celular, porém, seu uso exacerbado traz repercussões na maneira de ser desses jovens e na sua relação com o outro. O tédio surge, assim, não como um sintoma individual, mas um sintoma sociopsicológico, que denuncia um jeito de ser pós-moderno. Ao olhar para esse jovem contemporâneo, entende-se que a Psicologia deve ter consciência do contexto em que essas subjetividades são constituídas e do possível sofrimento psíquico advindo desses novos tempos.
Palavras-chave: Contemporaneidade. Tédio. Universitários.
ABSTRACT
This study aimed to analyze contemporary modes of subjectivation and their relation to the boredom experienced by young people. This is a qualitative research, which carried out semi-structured interviews and the Word Association Test with 15 undergraduate students. The results were analyzed with the support of the software Iramuteq and content analysis, in which one can perceive an urgency for the time to pass faster, being the free time interpreted as something tedious and synonymous of uselessness. In the experience of this time, young people seek to fill it, in an attempt to escape from the possible thoughts arising from that time, however, such fillings lack a greater significance. The main alternative used to occupy this time is the use of technological resources, especially the cell phone, however, its exacerbated use brings repercussions to the ways of being of these young people and their relationship with the other. Boredom arises, thus, not as an individual symptom, but as a socio-psychological symptom, which denounces a postmodern way of being. When looking at the contemporary youth, it is understood that Psychology must be aware of the context in which these subjectivities are constituted and of the possible psychic suffering arising from this new time.
Keywords: Contemporaneity. Boredom. Undergraduates.
Introdução
O mundo passou por mudanças significativas a partir da segunda metade do século XX, envolvendo a revolução tecnológica e expansão da informática, a globalização, o crescimento do consumo, além de alterações no plano econômico, político e cultural. Tais mudanças demarcaram um período que alguns autores denominam pós-modernidade, caracterizado tanto pela intensificação dos processos da modernidade quanto pelo surgimento de aspectos próprios desses novos tempos (Oliveira, 2014).
O grande marco tipificador da pós-modernidade consiste na incorporação e aceitação do fugaz, do inconstante, do transitório. Surge o que Bauman (2005) denomina de modernidade líquida, referindo-se à fluidez e efemeridade que compõem a condição humana na atualidade. Os grandes discursos totalizantes e as instituições duradouras, geradoras de um sentimento de segurança e estabilidade ao homem moderno, cedem espaço à incerteza. São tempos que se caracterizam pela velocidade, individualidade e fragilização dos vínculos sociais e afetivos.
Nesse contexto de constante transformação, a sociedade e sua organização repercute na subjetividade dos indivíduos que a constitui, ocasionado o surgimento de novas formas de subjetivação. O conceito de subjetivação remete a Foucault e suas reflexões acerca de como os sujeitos transformam-se e constituem-se em diferentes tempos e lugares. Assim, a cultura implica nas percepções, visões de mundo e formas de bem-estar e sofrimento psíquico dos sujeitos, de acordo com a cultura e a época em que estão inseridos (Bauman, 2001; Birman, 2007; Foucault, 1984; Verzoni & Lisboa, 2015).
A acepção da contemporaneidade como fluida traz significativas consequências ao modo de ser e estar da sociedade (Beriain, 2008). Gurgel (2011) aponta a fragilização do sujeito e o imediatismo como um desses efeitos. O indivíduo busca viver o aqui e o agora, visto que não há certeza quanto ao futuro, no entanto, essa pressa de viver faz com que vivencie um sentimento de angústia. Entende-se que a angústia é inerente ao ser humano, porém esta pode ser potencializada pelas condições socioeconômicas da atualidade (Silva, 2004).
Diferentemente de épocas anteriores, as condições sociais atuais levam o sujeito a um padecimento difuso, sendo que os sintomas não são facilmente identificáveis, mas relacionados a uma sensação generalizada de que as coisas não estão dando certo. É uma espécie de desorientação e insegurança diante das imposições do mundo pós-moderno, oriunda da falta de certeza e da perda de parâmetros (Silva, 2004).
Nesse cenário de múltiplas possibilidades e modos de ser, o sujeito pode vivenciar uma sensação de solidão e vazio que, por sua vez, pode culminar em um sentimento de tédio. O tédio é aqui compreendido como um tempo sem sentido, no qual o homem age rapidamente, sem parar para refletir e atribuir significado às suas ações (Svendsen, 2006). Com base nisso e na percepção dos valores contemporâneos, tais como a celeridade e a instantaneidade, o homem encontra-se em constante movimento, agindo rápido para obter resultados imediatos, culminando no tédio.
Martin Heidegger em sua obra Os conceitos fundamentais da metafísica concebe o homem como um Dasein, um ser-aí, isto é, um ente que existe e se desvela como possibilidade de ser no mundo, não podendo existir senão em relação com esse mundo. Partindo dessa concepção, o filósofo traz à tona o conceito de tonalidades afetivas, que consistem nas estruturas existenciais responsáveis pelo modo com que o homem se insere afetivamente no mundo (Heidegger, 2011).
Uma dessas estruturas fundantes retratada em Heidegger é o tédio profundo. De acordo com seu pensamento, o tédio surge como uma tonalidade afetiva característica do mundo da técnica. Esse mundo da técnica, tal como descrito por Heidegger, é compreendido no presente estudo como similar da sociedade contemporânea caracterizada por Bauman, ou seja, uma sociedade em que predomina o imediatismo, a eficiência e a rapidez (Bauman, 2001).
Feijoo e Dhein (2014) concebem o tédio como o efeito da técnica em sua constante movimentação, de modo que o homem encontra-se em um estado de compulsão permanente, sempre se lançando à frente, o que inviabiliza a articulação de sentido. Esse frequente lançar-se à frente, sem cessar, faz com que o sujeito não obtenha experiências de sentido. A fim de uma melhor compreensão do que se denomina como experiência de sentido, é necessária uma maior elucidação do conceito de experiência.
Experiência pode ser concebida como aquilo que toca verdadeiramente o sujeito, isto é, representa não os acontecimentos cotidianos em geral, mas as situações que tocam cada ser de forma particular. Não é o que se passa ou o que acontece, mas o que nos passa e nos acontece como seres únicos e de vivências subjetivas (Larrosa, 2002). Nesse sentido, a concepção de experiência difere da adotada no senso comum, na qual é vista como um conhecimento ou aprendizado obtido por meio da prática. A definição utilizada no presente estudo vai além dessa concepção, associando essa vivência a um modo particular do ser-no-mundo, à maneira singular que cada sujeito percebe e sente o que acontece em sua vida.
É aquilo que provoca e toca verdadeiramente o sujeito, ultrapassando o superficial e deixando marcas, tornando possível a transformação do ser. Quando o indivíduo se sente tocado e é sensibilizado por suas experiências, passa a olhar para si e refletir sobre si mesmo, abrindo as possibilidades de transformar sua própria existência e livrar-se do que lhe foi sutilmente imposto pelo meio em que vive (Sérvio, 2015).
Dessa forma, vivenciar experiências de sentido requer uma infinidade de atitudes que estão cada vez mais raras na contemporaneidade, que consistem em parar pra pensar e sentir, desacelerar, demorar-se nos detalhes, esvaziar-se de opiniões e juízos de valores, aprimorar a atenção e a lentidão, permitir o encontro genuíno com os acontecimentos do mundo, escutar os outros, ter paciência e dar-se tempo e espaço (Larrosa, 2002).
Acerca disso, La Taille (2009) afirma que se vive na atualidade em uma cultura do tédio. Defende que o homem pós-moderno está frequentemente procurando preencher lacunas de uma vida vazia; buscando notícias e informações, pois carece de perguntas referentes a si mesmo; dirigindo-se a objetos externos a fim de ocupar um espaço que na verdade está dentro de si; queixando-se da falta de tempo exatamente porque o desperdiça com a urgência de vê-lo passar.
Nesse contexto, Buchianeri (2012) argumenta ser comum na juventude o tédio tornar-se visível e infiltrar-se mais facilmente, pois os jovens, de modo geral, são os principais transmissores das tendências de uma cultura, de uma sociedade em um dado período. Assim sendo, estariam mais diretamente envolvidos nesses novos modos de ser contemporâneos, marcados pela aceleração e incerteza. Além disso, esse público destaca-se como principais atores desse mundo tecnológico, dispondo grande parte do seu tempo para fazer uso de aparelhos eletrônicos.
A partir dessas concepções contemporâneas, de um tempo acelerado e imerso pelo uso excessivo da tecnologia, tem-se uma menor dedicação do tempo para uso de reflexões pessoais. Com um tempo reduzido para refletir sobre si mesmo, o sujeito apresenta um menor tempo para atribuir sentido às suas vivências, o que pode repercutir nesse tempo sem sentido caracterizador do tédio. O tédio surge, assim, como um sintoma social, indicando não somente um estado individual comum no cotidiano dos jovens, mas como um sintoma presente na sociedade contemporânea (Buchianeri, 2012; Minayo, Teixeira & Martins, 2016). Nessa perspectiva, a presente pesquisa teve como objetivo analisar os modos de subjetivação contemporâneos e sua relação com o tédio vivido por jovens.
Método
Participantes
Participaram da pesquisa 15 jovens universitários de uma faculdade privada do Piauí, com idade entre 18 e 23 anos. A seleção dos participantes ocorreu em dois momentos: primeiramente, foram selecionadas aleatoriamente duas salas de aula, uma do curso de Psicologia e uma do curso de Direito, com uma média de 50 alunos cada uma, em que se aplicou um questionário com perguntas objetivas e focadas no comportamento do jovem diante das demandas contemporâneas. Tais perguntas relacionavam-se às atividades acadêmicas, uso do tempo livre e aparelhos tecnológicos. Em seguida, foi feita uma análise dos questionários, sendo escolhidos 15 sujeitos a partir de critérios de inclusão preestabelecidos. Os critérios de inclusão basearam-se em aspectos referentes às declarações dos indivíduos quanto ao tempo livre do atarefamento em excesso e uso exagerado de mídias virtuais e outras tecnologias.
Ao serem convidados a participar do estudo, os sujeitos foram informados sobre os objetivos e questões éticas que envolvem pesquisas com seres humanos, assinando o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE).
Instrumentos
Inicialmente, realizou-se o Teste de Associação Livre de Palavras (Talp), que consiste na reação do sujeito a uma palavra-estímulo com as primeiras palavras surgidas em sua mente (Tavares, Brito, Córdula, Silva & Neves, 2014). A palavra indutora foi "tédio". Posteriormente, deu-se início à entrevista semiestruturada, a qual foi registrada com o auxílio de um gravador, a fim de preservar o conteúdo dos relatos em sua forma original. Os conteúdos abordados referiam-se à utilização, percepção e significado do tempo dedicado às atividades acadêmicas, bem como do tempo livre do atarefamento.
Procedimentos
Optou-se por uma pesquisa de natureza qualitativa, a qual, segundo Deslandes e Minayo (2009), ocupa-se com um nível de realidade que não pode e nem deve ser quantificado, não sendo possível sua tradução em números e dados estatísticos. Dessa forma, trabalha com o universo da produção humana que envolve significados, motivos, crenças, valores e atitudes. Partindo dessa concepção, valoriza-se a subjetividade como inerente à realidade social, visto que o homem age, pensa e interpreta suas ações com base na realidade que vive.
A pesquisa obedeceu às normas do Conselho Nacional de Saúde e recebeu a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, sob a inscrição na Plataforma Brasil com o CAAE número 63218016.4.0000.5211.
Análise dos dados
Para apoiar a análise dos dados desta pesquisa, utilizou-se o software Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Esse software realiza cinco tipos de análises: estatísticas textuais clássicas; pesquisa de especificidades de grupos; classificação hierárquica descendente; análises de similitude e nuvem de palavras (Camargo & Justo, 2013). Neste estudo, utilizou-se a nuvem de palavras, responsável pela organização gráfica dos vocábulos, conforme a frequência com que são citados.
Utilizou-se ainda a análise de conteúdo, composta de três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados. De início, fez-se uma pré-análise, mediante a leitura e formulação de pressupostos, em que se definiram indicadores para a fundamentação e interpretação final; em seguida, explorou-se o material, definindo categorias, isto é, expressões ou palavras significativas em função das quais o conteúdo de uma fala é organizado; por fim, os resultados foram interpretados, buscando-se desvendar o conteúdo subjacente ao que foi manifestado (Minayo, 2007).
Resultados e discussão
Os 15 entrevistados, sendo 12 mulheres e três homens, são naturais do estado do Piauí, com idade entre 18 e 23 anos, solteiros, estando três em um relacionamento estável, e não têm filhos. Encontram-se no quarto período da faculdade, nos cursos de Psicologia (11) e Direito (4). Para preservar o anonimato dos entrevistados, no decorrer do estudo, os nomes foram substituídos por nomes fictícios.
Mediante a análise do conteúdo do material colhido, extraíram-se das transcrições os relatos mais representativos para o alcance dos objetivos desta pesquisa. Desse modo, os resultados e discussão deram-se mediante a relação do conteúdo dos discursos dos sujeitos com os referenciais teóricos que fundamentaram esta investigação. Assim, obtiveram-se as três categorias discutidas a seguir.
Tempo livre como um antivalor
Pensar o tempo livre na sociedade contemporânea perpassa pelo fenômeno da aceleração. Como explanado anteriormente, vive-se a época da velocidade, do imediatismo, da fugacidade, na qual as grandes instituições sólidas e esquemas histórico-filosóficos acerca da verdade, como a igreja, o trabalho e a família, cederam espaço para o efêmero (Lipovetsky, 2009). Há uma mudança de perspectiva, em que os sentimentos de pertencimento e segurança, valorizados na sociedade moderna, são substituídos pela incerteza e dinamicidade dos tempos atuais.
Tal perspectiva reflete na forma que os jovens percebem e utilizam seu tempo livre das tarefas acadêmicas e profissionais. Estar com tempo livre, como atividade somente contemplativa, de apreciar o tempo sem obrigações, é visto como intolerável. A consequência mais direta disso é a busca dos indivíduos por ocupar ao máximo os momentos ausentes das atividades obrigatórias, tentando preenchê-los com quaisquer atividades, por mais simples e casuais que sejam:
Não ter nada para fazer é tedioso, fico querendo que passe logo. Nada, nada, nada para fazer. Eu não gosto de ficar parada. Eu nunca fico totalmente parada, eu não consigo, se eu não estou entretida em alguma coisa, eu estou mexendo com o pé, mexendo no cabelo, tenho que estar fazendo alguma coisa. (Júlia, 20 anos)
Quando não tenho nada para fazer, me sinto entediada. Eu sempre tento ocupar por mais fútil que seja essa coisa, eu tento trazer para esse momento, para ocupar, para eu não ficar nesse ócio sem fazer nada e ficar pensando, pensando e acabar me sentindo triste. Então, eu procuro preencher esse tempo com alguma coisa. (Márcia, 21 anos)
Percebe-se nas falas alhures que a ocupação do tempo livre apresenta-se como um imperativo, uma necessidade, e que o "nada para fazer" mostra-se praticamente inexistente. Em uma das falas, um dos sujeitos afirma adotar esse comportamento para não ficar pensando e sentir-se triste. Dessa forma, o tempo sem a execução de atividades obrigatórias parece remeter os jovens a refletirem sobre suas próprias vidas, podendo mobilizar sentimentos negativos, como a tristeza.
Refletir sobre si é notado pelos sujeitos como algo ruim e tal prática os leva a se deparar com realidades causadoras de angústia e mal-estar. Essa é uma perspectiva comum na contemporaneidade, que se relaciona à imposição de felicidade presente nos tempos atuais. Vive-se a sociedade do espetáculo, na qual tudo se torna publicável, exteriorizado, porém, é uma exteriorização supérflua, que passa a ideia de que os seres humanos são felizes e não há espaço para ficar triste (Dutra, 2012).
Somado a essa concepção de tempo livre como um instante que pode remeter à vivência de sentimentos tristes, o tempo fora das atividades acadêmicas ou profissionais mostrou-se também como representante de inutilidade. Embasados na lógica de que tempo útil é tempo produtivo, isto é, tempo dedicado ao trabalho, passam a perceber o tempo livre do atarefamento como um valor negativo, uma perda de tempo. E para ilustrar essa conclusão, expõem-se as falas referentes ao questionamento de como se sentiam quando não tinham algo para fazer:
Sou sempre mais ativa, sabe? Sempre quero estar fazendo alguma coisa. Eu sinto que o tempo está sempre passando e eu tenho que estar aproveitando aquele tempo, mesmo que eu não jogue os meus esforços para aproveitar melhor o tempo, mas eu não gosto desse tédio, é como se me sentisse meio inútil na vida. (Flávia, 22 anos)
Eu me sinto inútil. E uma das coisas que mais odeio é me sentir inútil. Porque eu penso que tenho tanta coisa para fazer, porque eu tenho que ficar sem fazer nada? Eu não quero ficar sem fazer nada, me irrita ficar sem fazer nada. (Júlia, 20 anos)
Indagados se consideram aproveitar bem o seu tempo livre, as respostas negativas sobressaíram-se às positivas. A maior parte dos entrevistados relataram não se valer bem desse tempo, pois acreditam que desperdiçam muitas horas com tarefas sem tanta utilidade, além de não realizarem tudo o que poderiam. Ao serem interrogados sobre o que gostariam de fazer caso tivessem mais tempo livre, as respostas dos entrevistados, salvo poucas exceções, enfatizaram dedicar-se mais aos estudos ou realizar alguma atividade relacionada a sua futura atuação profissional, como um estágio ou outro idioma.
Diante das perspectivas dos jovens quanto ao seu tempo livre do atarefamento acadêmico ou profissional, percebe-se, de modo geral, uma avaliação desfavorável, sendo este interpretado como indícios de desocupação, inutilidade, tristeza e momento de reflexão sobre assuntos que preferem evitar. Com o apoio do software Iramuteq, obteve-se a seguinte figura referente a como os participantes sentiam-se em relação a esse tempo livre:
A nuvem de palavras organiza os dados conforme os vocábulos que foram mais enunciados nas falas dos sujeitos. Ao analisar com mais profundidade determinadas palavras, evidencia-se essa percepção negativa do tempo livre. Desconsiderando os vocábulos "sentir" e "ficar", que se relacionam à formulação das frases para expressarem como se sentem, a palavra "coisa" aparece em destaque. Tal termo remete à ideia da existência de algo, algo concreto, que está presente, o que reporta à concepção de tempo livre como sinônimo de ocupação, da presença de algo, contrariando a ideia de um tempo livre de afazeres.
Tem-se ainda a ênfase na palavra "ocupar", que deixa evidente o desejo de preencher esse tempo, bem como "procurar" e "passar", que apontam para essa tentativa de procurar alguma coisa a fim de que esse tempo passe mais depressa. Além disso, destacam-se os verbetes "irritar", "tédio" e "inútil", ratificando o que já foi exposto anteriormente quanto ao incômodo diante da falta de alguma tarefa, causando tédio e sendo interpretado como sinônimo de inutilidade.
Pobreza de significados e raridade de experiências
Segundo Larrosa (2002), experiência associa-se à maneira particular com que cada sujeito percebe e sente o que acontece em sua vida, permitindo-se sentir e ser tocado pelo que lhe acomete e, dessa forma, transformar-se como sujeito único no mundo. Na sociedade contemporânea, o ritmo frenético e acelerado podem ainda levar a uma raridade de experiências, o que pode contribuir para a aparição do tédio, compreendido como o tempo desarticulado de sentido. Esse fenômeno fez-se presente nos discursos dos jovens entrevistados ao serem questionados como se sentem na maior parte do dia, cujas respostas envolveram, além de uma inconstância no humor, um sentimento de neutralidade e apatia diante da vida:
Meio nula, nem muito feliz, nem muito triste. É um estado de zero. Não sei definir exatamente o que eu sinto na maior parte do tempo, mas é como se eu estivesse nula. (Carla, 20 anos)
Me sinto entediada, parada, não sei. Nada. É como se não fosse nada. Como passo muito tempo dormindo, é como se dormir fosse uma estratégia de ficar desligada, de ficar off. (Camila, 19 anos)
Percebe-se nos discursos a presença de um sentimento de tédio, assim como outros fenômenos relacionados a esse estado, como a apatia e o vazio. Buchianeri (2012) destaca o tédio como essa recusa diante do apressamento dos tempos, no qual o sujeito paralisa-se e perde o interesse pelos acontecimentos mundanos, uma espécie de desaceleração do mundo subjetivo em face à aceleração do mundo objetivo. Essa desaceleração interna pode ser percebida na fala das estudantes ao relatarem sentir-se na maior parte do tempo em uma espécie de neutralidade e estagnação.
A fim de uma maior compreensão do significado que atribuíam as suas realizações como seres únicos no mundo, indagou-se quanto ao sentido dado paras as atividades que executavam no tempo livre do atarefamento, bem como às tarefas acadêmicas. Reportando-se primeiramente ao significado das tarefas da universidade, com o apoio do software Iramuteq, obteve-se a seguinte Figura 2:
Na análise do gráfico, destaca-se o verbete "futuro", que indica o principal sentido atribuído pelos jovens para suas atividades acadêmicas, que traz à tona o significado da sua futura profissão. Nota-se o valor que tais ações apresentam, com ênfase na palavra "importante", que, para tanto, exige determinados comportamentos desses sujeitos, tais como, "querer", "dedicar" e "estudar". Outro aspecto apontado na figura remete à conotação financeira que a futura profissão proporcionará, mediante o vocábulo "dinheiro", demarcando um dos sentidos que as atividades acadêmicas apresentam para esses jovens.
Em relação ao significado das atividades que executam no seu tempo livre do atarefamento, obteve-se a Figura 3:
Algumas palavras no gráfico remetem às atividades que executam no tempo livre, como pensar, assistir série, ler um livro ou fazer algo relacionado ao curso de graduação. Ademais, determinados vocábulos merecem uma discussão mais detalhada. O primeiro deles é a palavra "lazer", destacada por muitos dos participantes como o sentido que atribuíam ao seu tempo livre. Tal verbete comumente vinha acompanhada de noções como divertir, relaxar e descansar, mostrando-se como um momento prazeroso, contrário à rotina árdua do trabalho.
Vale salientar que essa concepção do lúdico oposta ao trabalho adveio com a industrialização, pois antes não havia essa percepção do lazer como atividade praticada apenas no tempo livre. Nas sociedades pré-industriais, o tempo do trabalho estava intrinsecamente relacionado ao tempo subjetivo, sendo as atividades laborais dotadas de ludicidade e criatividade (Martins, 2013). Ao contrário dessas sociedades, percebe-se na fala dos jovens contemporâneos que as atividades acadêmicas apresentam-se como cansativas, levando à significação do tempo livre como um momento para o descanso, interpretado como uma simples liberação do tempo do trabalho.
Outro vocábulo que é enfatizado no gráfico refere-se à palavra "fuga", que aponta para esse desejo de evasão dos jovens. Mas que fuga seria essa? Em suas próprias falas, os entrevistados indicam essas respostas:
Fuga da minha cabeça, de mim, sei lá, de não ficar naquela de voltando para mim o tempo todo. Então o tempo livre para mim é fuga disso, porque minha visão de mim mesma é muito distorcida em relação aos outros, e eu acho que eu não estou totalmente preparada para pensar direito em mim. (Patrícia, 21 anos)
Uma fuga, para não sentir uma falta, para suprir essa falta, entende? [...] É uma falta minha mesmo, uma falta de não sentir um vazio, não me sentir só, essa falta de ter alguém próximo a mim o tempo todo. (Caroline, 19 anos)
Nota-se que o significado que alguns dos jovens atribuem ao seu tempo livre remete a uma fuga, que, na verdade, representa uma fuga de si mesmo. É uma evasão do próprio tempo, do tempo que poderia ser dedicado ao cultivo de valores pessoais, mas que passa a ser ocupado a qualquer custo. Relatam não se sentirem preparados para pensar sobre si e manter as consequências desses pensamentos. Fogem do vazio, da solidão, dos próprios devaneios. Esvaem-se de si mesmos.
Acerca disso, La Taille (2009) relata que os sujeitos contemporâneos são ocupados, queixam-se constantemente da falta de tempo, enquanto o desperdiçam com a pressa de vê-lo passar. Buscam a todo instante preencher lacunas de suas vidas, com o intuito de ocupar um espaço que na verdade pode estar dentro deles mesmo. Nessa fuga de si e do tempo, os jovens completam o seu tempo livre com atividades sem propósitos bem definidos, apenas servindo como um passatempo, o qual também foi apontado como um sentido desse tempo sem afazeres acadêmicos:
[...] Só para passar o tempo. [...]. Não é algo com propósito, algo específico, é mais alguma coisa de pensar só para repensar o que eu vou fazer, é mais organizar as coisas do que fazer alguma coisa de útil. (Eduardo, 20 anos)
Só pra passar tempo mesmo. Assim, eu gosto, mas não tem aquilo de "vou fazer isso e vai ter esse significado". [...] É no que é mais simples, eu só deito, sento e pego meu celular e já tá tudo ali ao meu alcance, é meio que automático, eu não penso "vou fazer isso no meu tempo livre". (Paula, 20 anos)
A partir das falas anteriores acerca dos sentidos que atribuem às atividades acadêmicas e ao seu tempo livre, evidencia-se que há uma maior valorização das primeiras em relação às últimas, sendo as acadêmicas consideradas mais importantes e representativas, enquanto as de tempo livre carecem de uma significação mais expressiva. Com exceção da concepção de lazer, que indica um momento prazeroso para o sujeito, embora remeta à ideia do trabalho como algo enfadonho, tem-se um sentido do tempo livre como uma evasão. Evitam-se reflexões sobre os acontecimentos da sua própria vida, mediante o preenchimento do tempo com coisas de fácil acesso, sem propósitos claros, o que pode denotar em uma desarticulação de sentido e na raridade de experiências, enquanto encontros plenos do homem com o mundo.
Larrosa (2002) afirma que vivenciar experiências de sentido requer determinas atitudes que são raras na contemporaneidade, tais como desacelerar, parar para pensar e sentir, demorar-se nos detalhes e permitir o encontro verdadeiro com os acontecimentos, abrindo as possibilidades de transformação da própria existência. Essa menor possibilidade de ser tocado e transformado pelas experiências podem refletir também nos modos de pensar dos sujeitos, que se esvaem do momento presente em projeção ao futuro. Os entrevistados relataram pensar sobre sua vida, mas predominando pensamentos voltados para o futuro:
Penso muito. Eu costumo pensar em planos para o futuro, o que eu tenho que fazer, como tenho que me sobressair em algo, o que tenho que estudar, como tenho que trabalhar. Vivo fazendo planos pro meu futuro. (Daniela, 20 anos)
Penso muito. Penso onde eu poderia estar. Eu sempre penso mais no futuro do que no presente, penso mais onde eu poderia estar em longo prazo e não no agora, no que estou fazendo agora e me dedicar no que estou fazendo agora. Geralmente eu costumo pensar mais na frente. (Patrícia, 21 anos)
Lipovestky (2004) discorre sobre essas novas noções de temporalidade atuais, argumentando que embora haja uma valorização do imediatismo e do aqui-agora, o que se vive de fato é um pseudopresentismo, no qual os sujeitos vivenciam o momento presente de forma superficial, com prazeres descartáveis, enquanto almejam uma realização em um futuro que ainda é incerto. Com o declínio das metanarrativas, a sociedade passou a apreciar o dinamismo e a instantaneidade, vivenciando uma espécie de "neofilia". Houve o surgimento de uma cultura hedonista, que incentivava a satisfação imediata. No entanto, o autor destaca que diante da fluidez dos novos tempos esse clima otimista e esperançoso quanto ao novo foi gradativamente substituído por uma sensação generalizada de insegurança e desconfiança.
As falas revelam dúvidas e anseios quanto ao futuro, sobretudo profissional, em detrimento do momento presente, sendo que, embora questionem sobre suas ações atuais, tais preocupações reportam-se para as consequências posteriores. Dessa forma, percebe-se nos discursos dos jovens uma supervalorização da carreira profissional, ao passo que o tempo fora do trabalho perde o valor, não tendo um propósito definido, servindo principalmente como uma fuga do labor. No entanto, nessa fuga do trabalho, também fogem do próprio tempo e de si mesmos, tornando o tempo que poderia ser livre e dedicado ao cultivo de valores pessoais preenchido com coisas sobejas, que carecem de uma significação maior.
Sentidos substitutos diante do tédio
Como salientado anteriormente, quando o sujeito age sem atribuir significado às suas ações, instaura-se o tédio. Neste, o indivíduo entende sua própria subjetividade e o mundo ao seu redor estagnado e vazio de conteúdo, comportando-se de modo automático e mecânico. O tempo tedioso fez-se notório nas falas já expostas no presente estudo, podendo ser ainda percebido na descrição dos jovens acerca das suas rotinas:
Eu acordo de manhã, como alguma coisa, estudo um pouco, mexo no celular, vou para faculdade, volto para casa e de noite é a mesma coisa, fico mexendo no meu celular até dormir. (Márcia, 21 anos)
Eu passo muito tempo dormindo. Eu costumo acordar 8 ou 9, aí normalmente de manhã eu não sirvo para nada, não consigo fazer nada, só se eu estiver alguma coisa para fazer, mas normalmente eu não faço nada, fico só no celular de manhã. À tarde venho pra faculdade, depois volto e realmente fico só no celular ou leio alguma coisa. Não tem nada, é só isso. (Amanda, 19 anos)
Nota-se que quando não estão na faculdade ou fazendo alguma tarefa relativa ao contexto acadêmico, retirando o tempo dedicado à satisfação de necessidades fisiológicas, tais como dormir ou comer, o restante do dia é ocupado sobretudo por aparelhos tecnológicos, como o celular. Acerca disso, Svendsen (2006) afirma que o homem pós-moderno é produtor nas suas horas de trabalho e consumidor em seu tempo livre. O consumismo é aqui compreendido pelo uso de aparelhos tecnológicos em excesso.
O consumismo mostra-se como uma possibilidade de sentido diante da ausência de significados, tal qual salientado por Oliveira e Justo (2011), ao afirmarem que o sujeito recorre ao consumo a fim de que este supra essa falta e lhe proporcione uma identidade pessoal. No entanto, alertam que o problema é que cada vez mais a tecnologia torna o homem um consumidor e observador passivo, carente de uma participação ativa, o que gera o efeito inverso, corroborando com esse deficit de significado. A fim de tornar mais clara essa presença da tecnologia no tempo livre dos jovens, expõe-se a figura obtida a partir das respostas sobre o que costumam fazer nas horas fora do atarefamento:
Com a análise da Figura 4, destacam-se determinadas atividades que não se relacionam diretamente à tecnologia, como leitura, mediante o verbete "ler", e encontros sociais, representados por "social", "amigo" e "sair". No entanto, é perceptível a presença significativa do vocábulo "celular", representante do principal meio tecnológico da pós-modernidade, bem como das palavras "série", "assistir" e "ver", que também implicam aparatos tecnológicos, como a televisão ou computador.
A tecnologia, sobretudo o aparelho celular e as redes sociais, mostra-se como uma das principais alternativas face ao tempo livre dos jovens entrevistados. Como destacado por Svendsen (2006), diante de um tempo desprovido de um significado pessoal, o homem contemporâneo busca significados à sua volta, absorvidos do mundo externo, em que variadas formas de diversão surgem como um significado substituto.
Pelos discursos analisados, evidencia-se que os jovens estão cada vez mais presos nesses ideais externos, utilizando palavras como "refém" e "vício" para referir a como se sentem diante da tecnologia. Embora reconheçam os benefícios desta, relatam o lado prejudicial do seu uso em excesso, que incluem o desvio de atenção e o afastamento de pessoas e de tarefas que possam acrescentar algo para suas vidas:
É algo muito bom, facilita bastante a vida de todos nós, mas é algo que está sendo usado em excesso, às vezes eu percebo que eu gastei um tempo absurdo fazendo nada, olhando algo que não vai me acrescentar em nada, mas que eu não consigo me desligar daquilo, que a gente fica refém, a gente não sabe usar a nosso favor. (Caroline, 19 anos)
Ao mesmo tempo que é muito boa, eu acho que ao invés de aproximar as pessoas, ela afasta. Então eu só acho que a gente tá muito sobrecarregada de tecnologia, que estamos esquecendo coisas mais simples, que melhor que tirar uma foto do pôr do sol, é observar o pôr do sol. Então tenho que ficar me controlando, me policiando, porque sou viciada em tecnologia. (Patrícia, 21 anos)
Percebe-se que a tecnologia mostra-se como algo atraente e que provoca uma forma de dependência nos indivíduos, em que embora identifiquem os aspectos benéficos que traz para facilitar o dia a dia, admitem que dispendiam horas exacerbadas em seu uso. Um ponto que se destaca referente aos malefícios pelo uso exagerado da tecnologia consiste no distanciamento que esta acarreta de pessoas próximas, fazendo com que o sujeito dedique mais tempo a coisas que "não acrescentam nada", como salientado em uma das falas. Corroborando com essa visão, um dos jovens faz uma reflexão sobre a forma como as pessoas vivem na sociedade atual:
As pessoas vivem muito efêmeras, muito passageiras, as coisas estão muito passageiras. Um celular dura mais que as relações entre as pessoas. E as pessoas não se importam mais com o outro, com o que o outro sente, e elas seguem um fluxo de uma rede social, porque na rede social é muito fácil você só ir lá e excluir uma pessoa. Não tem mais aquela ligação. Você pode se conectar com várias pessoas, mas pode se desconectar ao mesmo tempo, e você vive num mundo isolado. É uma conexão fraca, não é uma conexão sólida. (Caroline, 19 anos)
A fala da jovem traz referências à sociedade líquida de Bauman (2001), que reflete na efemeridade dos tempos e das relações, na qual tudo passa muito depressa, não dando possibilidades para que o sujeito vivencie suas experiências de forma plena. Um dos fatores que favorece essa instantaneidade dos acontecimentos consiste na tecnologia, que propicia a conexão com diversas pessoas em diferentes partes do mundo em frações de segundos, no entanto, trata-se de uma "conexão fraca", que pode se romper na mesma rapidez com que se forma.
Tal característica da tecnologia, de viabilizar o estabelecimento e o rompimento das relações interpessoais com apenas um clique, dificulta a formação de vínculos mais sólidos e significativos. Trata-se do amor líquido, conforme proposto por Bauman (2004), no qual os indivíduos mantêm "relações de bolso", isto é, laços afetivos frágeis e descartáveis, a fim de proteger-se de um possível sofrimento. Nesse sentido, há um recomeço constante, em que os vínculos sociais e afetivos assumem um caráter passageiro e frágil, o que provoca certa indiferença diante do outro.
Tem-se dessa forma um círculo vicioso. A sociedade pós-moderna é efêmera, de modo que não há tempo para que o sujeito reflita e assimile suas experiências, o que repercute em uma carência de sentido. Diante desse tempo sem sentido, o sujeito vivencia o tédio. A fim de escapar do fastio ocasionado por esse tempo enfadonho, o sujeito busca sentidos substitutos, sobretudo a tecnologia. No entanto, esta leva ao estabelecimento de vínculos interpessoais frágeis, que reverbera em um individualismo e desinteresse perante o outro.
A fim de clarificar a relação desse tempo sem sentido, o tédio, e o uso da tecnologia, no Teste da Associação Livre de Palavras (Talp) pediu-se que os participantes falassem as primeiras palavras que viessem a sua mente quando ouviam a palavra "tédio" e obteve-se o seguinte resultado:
A palavra que foi mais vezes anunciada pelos sujeitos em relação ao tédio foi o vocábulo "nada". "Nada" é um conceito usado normalmente para definir a ausência de qualquer coisa, a falta de algo. Essa palavra denota os sentimentos associados ao fenômeno do tédio, tais quais a nulidade e o vazio diante da vida. Traz referências a esse tempo esvaziado de conteúdo, à ausência de sentido, a uma lacuna na existência, que repercute na indiferença e fastio.
Tem-se ainda em destaque a palavra "casa", que possivelmente faz alusão ao espaço onde comumente vivenciam esse tédio: suas próprias residências. Tal verbete traz à tona a ideia do tédio como correlacionada ao tempo livre do atarefamento, visto que indica a vivência desse fenômeno em um espaço fora do ambiente profissional ou universitário. Dessa forma, o Talp ratifica os discursos dos sujeitos quanto à carência de sentido diante do tempo livre das atividades acadêmicas.
Por fim, tem-se o vocábulo "celular". Tal palavra demonstra a presença da tecnologia nos momentos de tédio, corroborando com o exposto acerca dos sentidos substitutos. A tecnologia mostra-se como uma das principais opções diante do tempo tedioso dos jovens, como uma tentativa de fuga desse tédio. Surge, assim, como um sentido alternativo a esse tempo desprovido de um significado pessoal, mostrando-se como uma possibilidade de suprir essa escassez de sentido próprio.
Considerações finais
Com o intuito de analisar os modos de subjetivação contemporâneos e sua relação com o tédio vivido por jovens, verificou-se que os universitários entrevistados percebem seu tempo livre como algo enfadonho e tedioso, que os remete à vivência de sentimentos tristes e angustiantes. Além disso, baseados na lógica de que tempo útil é tempo dedicado ao trabalho, o tempo livre mostrou-se também como sinônimo de inutilidade. Dessa forma, nota-se de modo geral uma avaliação desfavorável desse tempo, sendo este interpretado como indícios de desocupação, tristeza e momento de reflexão sobre assuntos que não querem lidar.
Com exceção da concepção de lazer, que indica um momento prazeroso para o sujeito, embora remeta à ideia do trabalho como algo tedioso, tem-se um sentido do tempo livre como uma evasão ou um passatempo. Evitam-se reflexões sobre os acontecimentos da sua própria vida, mediante o preenchimento do tempo com coisas de fácil acesso. Diante disso, ocupam-se com atividades a fim de esvaírem-se desse tempo. Contraditoriamente, o que se nota é o preenchimento desse tempo com atividades carentes de uma significação mais expressiva e sem propósitos definidos, o que pode levar a uma desarticulação de sentido e ao aparecimento do tédio. A principal alternativa citada pelos participantes para ocupar esse tempo tedioso é o uso de recursos tecnológicos, sobretudo o aparelho celular.
Nessa perspectiva, o tempo carente de sentido vivenciado no tédio é preenchido pela tecnologia, o que leva ao surgimento desta como um sentido substituto diante desse tédio. A tecnologia passa a significar uma fuga, que se mostra em uma relação ambígua, na qual o jovem ocupa-se para não se entediar, mas se entedia diante de tantas ocupações. Tem-se assim o preenchimento do tempo para evitar o tédio, mas a falta de propósito na seleção das atividades de tempo livre faz com que os estudantes continuem a se sentir entediados.
Dessa forma, o uso excessivo da tecnologia sem objetivos maiores, apenas com a funcionalidade de ocupar e passar o tempo, pode levar a uma carência de experiências verdadeiras, como encontros que possibilitam reflexões e mudanças. Diante dos ritmos acelerados da sociedade contemporânea e do preenchimento do tempo fora do atarefamento, os participantes relataram sobrar pouco tempo para pensar sobre o que acontece em suas próprias vidas, restringindo-se a indagações quanto ao futuro. Tem-se assim um tempo reduzido para refletir sobre si mesmo, o que diminui a possibilidade de um maior autoconhecimento e transformação pessoal.
Nessa perspectiva, verifica-se que o fenômeno do tédio faz-se presente no cotidiano dos jovens entrevistados e repercute em um tempo enfadonho e sem sentido, que gera desassossego e mal-estar. Porém, ao fugir desse tempo tedioso, o jovem foge de si mesmo, numa tentativa de não pensar sobre sua própria vida e sobre as angústias e anseios que integram a natureza humana. Nessa evasão de si mesmo, mediante o uso exacerbado de meios tecnológicos e uma vivência acelerada do tempo, o sujeito priva-se de reflexões sobre sua existência e da possibilidade de transformá-la.
O tédio surge de tal modo não como um sintoma individual, mas um sintoma sociopsicológico, que denuncia um modo de ser pós-moderno. Dessa forma, ao olhar para esse jovem contemporâneo, a Psicologia deve ter consciência do contexto em que essas subjetividades são constituídas e do possível sofrimento psíquico advindo desses novos tempos, a fim de contribuir para que esse jovem reflita criticamente sobre as influências dos referenciais externos em sua vida e possa vivenciar sua subjetividade de acordo com seus próprios valores.
A partir do exposto no presente estudo, surgem novos questionamentos: quais as implicações dessa falta de reflexão e cultivo de valores pessoais na vida desses jovens? Que repercussões podem acarretar na relação com seu entorno? Como a tecnologia e suas conexões frágeis afetam a tolerância do jovem diante do outro e das possíveis frustrações da vida? Ademais, a problemática abordada não se encerra com esta pesquisa, pelo que se sugere a realização de novas investigações e aprofundamentos acerca do tema. Reconhece-se a necessidade do desenvolvimento de estudos com enfoque a partir das implicações que essa evasão de si pode acarretar na relação com o outro e com sua própria existência.
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Recebido em: 23/07/2017
Aprovado em: 31/07/2017