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Cadernos Brasileiros de Saúde Mental
versão On-line ISSN 1984-2147
Cad. Bras. Saúde Ment. vol.8 no.20 Florianópolis 2016
ARTIGOS
Saúde mental e percursos na cidade: a arte enquanto recurso de desinstitucionalização e produção de saúde
Mental health and routes in the city: art as deinstitutionalization resource and production health
Adriane do Socorro Costa Leite1,I; Marly Lobato Maciel2,II
IUniversidade do Estado do Pará
IIHospital de Clínicas Gaspar Vianna
RESUMO
A presente pesquisa nasceu do acompanhamento de vivências artísticas em contexto territorial. Busca compreender de que forma a arte atua enquanto recurso de desinstitucionalização, dialogando com as práticas de produção de saúde. A epistemologia empregada para sua construção foi a qualitativa, tendo como base a concepção fenomenológica de pesquisa. A coleta de dados foi realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) III - Grão Pará e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Amazônia, ambos em Belém. A pesquisa foi realizada com 6 usuários, sendo 3 do Centro de Atenção Psicossocial Grão Pará e 3 do Centro de Atenção Psicossocial Amazônia, que participam de grupos voltados à atividades artísticas realizadas em espaços públicos. A coleta de dados foi realizada através de uma entrevista semi-estruturada, contendo 1 0 perguntas. A análise dos dados foi feita de forma qualitativa por meio de Análise do Discurso, procurando compreender a subjetividade de cada sujeito dentro do processo proposto. Dessa maneira, foram construídas três categorias de análise, relacionando os discursos dos sujeitos da pesquisa à fundamentação teórica. A primeira categoria refere-se à percepção dos sujeitos a respeito das vivências artísticas no território e como, através disso, conseguiram vislumbrar novas formas de ser e estar no mundo. A segunda categoria busca pensar a produção de saúde pelo recurso das vivências artísticas. A terceira categoria discute os processos de formação de vínculos sociais, tendo o território enquanto lócus de produção. A partir dos resultados, entende-se que a arte é um potente recurso de desinstitucionalização, produção de saúde e autonomia.
Palavras-chave: Arte; Desinstitucionalização; Produção de saúde; Território.
ABSTRACT
This research sunrise monitoring of artistic experiences in territorial context. Seeks to understand how art acts as deinstitutionalization feature, talking with health production practices. Epistemology employed for its construction was qualitative, based on the phenomenological concept. Data collection was performed at the Center for Psychosocial Care Grão Pará and Psychosocial Care Center Amazônia, both in Belém. The survey was conducted with 6 members, 3 of the Psychosocial Care Center Grão Pará and 3 of Amazonia Psychosocial Care Center, participating groups focused on artistic activities in public spaces. Data collection was performed using a semistructured interview, containing 10 questions. Data analysis was done in a qualitative way through Discourse Analysis, trying to understand the subjectivity of each individual within the proposed process. In this way, it was built three categories of analysis, relating the speeches of the research subjects to the theoretical foundation. The first category refers to the perception of the subjects regarding artistic experiences in the territory and how, through this, they managed to envision new ways of being in the world. The second category seeks think the production of health by the use of artistic experiences. The third category discusses the social bonds formation processes, and the community and the territory as a production locus. From the results, it is understood that art is a powerful institutionalization of resource, health care production and autonomy.
Keywords: Art; Deinstitutionalization; Health Products; Territory.
1 INTRODUÇÃO
Após vivências nos dispositivos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), percurso compartilhado com muitos atores do cuidado, encontramos território para construir o caminho escolhido para esta pesquisa, na qual convidamos a pensar a arte enquanto possibilidade de desinstitucionalização e produção de saúde.
Também convidamos o leitor a olhar o processo de desinstitucionalização e Reforma Psiquiátrica com os olhos de quem trilha os caminhos da Saúde Mental pública, que se constrói graças a atuação de muitos protagonistas. Falar em processo é falar em algo que continua no tempo, que nos transcende. Dessa forma, pretendo tratar a desinstitucionalização enquanto processo social complexo, sob a ótica de Rotelli (2001), que diferencia a desinstitucionalização italiana da realizada na Europa e Estados Unidos, que, segundo ele, reduziu-se a uma desospitalização motivada pela racionalização financeira. Ele afirma:
A verdadeira desinstitucionalização em Psiquiatria tornou-se na Itália um processo social complexo que tende a mobilizar como atores os sujeitos sociais envolvidos, que tende a transformar as relações de poder entre os pacientes e as instituições, que tende a produzir estruturas de Saúde Mental que substituam inteiramente a internação no Hospital Psiquiátrico e que nascem da desmontagem e reconversão dos recursos humanos e materiais e humanos que estavam ali depositados (Rotelli, 2001, p. 18).
Esse percurso vem desenhar um lugar político e ideológico referente à nossa prática profissional e produção acadêmica, onde acreditamos na possibilidade de viver de forma mais autônoma, sendp sujeitos de nossos desejos e de nossa própria história; onde narrá-la pode ser uma boa estratégia para tal.
2 OBJETIVOS
2.1 Geral:
Analisar de que forma a arte atua como recurso de desinstitucionalização e produção de saúde, quando utilizada através de vivências em contexto territorial.
2.2 Específicos:
Compreender os significados das vivências artísticas para os usuários.
Identificar de que forma as novas formas de cuidar em saúde mental estão se inserindo nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).
Conhecer as implicações das vivências artísticas no cotidiano dos usuários, assim como em sua participação social.
3 PERCURSO METODOLÓGICO
Esta pesquisa foi desenvolvida de acordo com os preceitos do código de Nuremberg e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
A epistemologia empregada para sua construção foi a qualitativa, tendo como base a concepção fenomenológica de pesquisa, que busca desvelar os sentidos contidos nos discursos dos atores envolvidos. Dessa forma, buscou-se descrever os sentidos atribuídos pelos sujeitos ao processo vivenciado.
Turato (2005) descreve o método qualitativo como aquele que busca compreender como o objeto de estudo se manifesta. Segundo este mesmo autor, a pesquisa qualitativa busca compreender o processo pelo qual os sujeitos constroem os significados das coisas (fenômenos, manifestações, ocorrências, fatos, eventos, vivências, ideias, sentimentos, assuntos) e de que maneira descrevem esses significados
A pesquisa fenomenológica parte da compreensão do viver e não de definições ou conceitos, e é uma compreensão voltada para os significados do perceber, ou seja, "para expressões sobre as percepções que o sujeito tem daquilo que está sendo pesquisado, as quais se expressam pelo próprio sujeito que as percebe", segundo Martins e Bicudo (2002, p.93). Esta compreensão, que orienta a atenção para aquilo que se vai investigar, é advinda, segundo Masini (2000, p. 62) da "(...) volta ao mundo da vida, no confronto com o mundo dos valores, crenças, ações conjuntas, no qual o ser humano se reconhece como aquele que pensa a partir desse fundo anônimo que aí está e aí se visualiza como protagonista nesse mundo".
Para a realização da pesquisa foi feita revisão bibliográfica da produção referente à temática; anotações em diário de campo, oriundas de acompanhamento de vivências artísticas no território e pesquisa de campo, que foi desenvolvida durante dois meses, através de entrevista semi-estruturada, para análise e discussão.
A coleta de dados foi realizada no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) IIIGrão Pará e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Amazônia, ambos em Belém, que são considerados, dentro da rede de Saúde Mental os dispositivos substitutivos ao hospital psiquiátrico. Constituem instituições voltadas à assistência de usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), vinculados à Secretaria de Estado de Saúde Pública.
A pesquisa foi realizada com 6 usuários, sendo 3 do Centro de Atenção Psicossocial Grão Pará e 3 do Centro de Atenção Psicossocial Amazônia, que participam de grupos voltados a atividades artísticas realizadas em espaços públicos.
A coleta de dados foi realizada através de uma entrevista semi-estruturada (Apêndice b), contendo 1 0 perguntas. Foi elaborado um roteiro aberto para a entrevista, onde no decorrer de sua realização foi realizada a inclusão de novas perguntas, como objetivo de esclarecer respostasanteriormentereferidas.
A análise dos dados foi feita de forma qualitativa por meio de Análise do Discurso, procurando compreender a subjetividade de cada sujeito dentro do processo proposto, a partir da análise de suas falas. Segundo Rocha e Deusdará (2005, p. 315):
Um enfoque discursivo procura evitar a mera busca de uma realidade subjacente a determinadas produções de linguagem, ciente que toda atividade de pesquisa é uma interferência do pesquisador em uma dada realidade.
Enquanto recurso metodológico, a análise do discurso considera o sujeito a partir de suas inscrições históricas, assim como suas condições de produção da linguagem.
As unidades de significação dividem-se em três e foram elaboradas a partir do material coletado nas entrevistas, de onde foram recortados trechos de discurso sobre os quais buscaremos refletir acerca de questões relacionadas à arte, saúde e desinstitucionalização. No decorrer da pesquisa os sujeitos serão identificados como "Personagem", que serão numerados de 1 a 6.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Adentrando as cenas das ruas: diálogos entre arte, território e construção de novas possibilidades.
Esta categoria de análise refere-se à percepção dos sujeitos a respeito das vivências artísticas no território e como, através disso, conseguiram vislumbrar novas formas de ser e estar no mundo.
De início, nos cabe refletir que muitas são as formas de manifestação e vivências artísticas que perpassam o cotidiano dos serviços em Saúde Mental, porém, ao integrarem a organização das instituições, essas propostas ficam em permanente risco de se institucionalizar, perdendo sua potência disruptiva e questionadora (LIMA, 2009). É nessa lógica que é possível perceber o traçar da arte e do território enquanto dispositivos que permitem a essas possibilidades manterem-se inventivas, com suas potencialidades de criação e vida.
O Personagem 1 ilustra afirmando: "Acho o trabalho fora do CAPS importante e necessário, porque os verdadeiros atores estão nas ruas e nas praças", e ainda prossegue: "A diferença do trabalho nas ruas é a sinceridade. Fora do CAPS temos mais liberdade para expressar".
Durante as vivências, as formas de expressão do corpo, da voz, dos olhares, dos silêncios, desenhavam as singularidades numa perspectiva de composição de outras formas de apropriar-se de suas potencialidades. O Personagem 3 vem nos contar: "O teatro pra mim representa um estado de satisfação em ver as pessoas sorrirem e, de fato, ver a alegria e felicidade no rosto de cada um. A arte mudou a minha vida pra melhor".
Para Melo (2007) nos últimos tempos, a arte vem fortalecendo e valorizando a identidade e a diversidade, dentro do paradigma da inclusão, por meio de diferentes linguagens e abordagens, e contribuindo para a desconstrução de preconceitos, para a produção de sentidos, para a ampliação de territórios de circulação, conhecimento e vida. A esse respeito encontramos as palavras do Personagem 2: "E eu não tenho problema nenhum de ir pra rua, é prazeroso, até mesmo pras pessoas verem o trabalho que tá acontecendo, né. Que o usuário pode voltar a vida dele social normal, sem problema nenhum. Ele pode se socializar".
Nas vivências fazia-se inegável o quão rígido é o corpo da cidade. No início, as cirandas, as danças e as cenas se davam em passos curtos. Posteriormente as manifestações ganhavam corpo, que se desenhava com a leveza que não se via no cotidiano das calçadas, como nos conta o Personagem 1: "O palhaço mudo, só de tu olhar, tu entende tudo o que o cara tá querendo falar, ou seja, o corpo, o teatro, ele faz isso com você, ensina a arte corporal, todo um processo de arte cênica (...) teatro ajuda muito. Evoé !".
Boal vem desenhar esse cenário em seu método do Teatro do Oprimido, quando afirma: "Penso que todos os grupos teatrais verdadeiramente revolucionários devem transferir ao povo os meios de produção teatral, para que o próprio povo os utilize, à sua maneira e para os seus fins. O teatro é uma arma e é o povo quem deve maneja-la!" (Boal, 2013, p.127). O Personagem 5 vem dialogar: "Eu transformo. Da feita que eu já começo a me ajeitar pra pintar o rosto, por exemplo, meu personagem já tá entranhado, já tá ali, já tá acontecendo. E vai rolando, é muito bom, é muito bom".
Nas experiências antimanicomiais, a cidade aparece como experiência. Reivindica-se a cidade porque é nela que as disputas de força deixam de ser instâncias individuais e instauram-se com toda a força no coletivo. Nessa perspectiva, o território deixa de ser um lugar confortável, nele todos são vulneráveis e tudo se torna imprevisível (MARTINS, 2009).
É nesse olhar que vemos nascerem novas formas de relações consigo mesmo; como nos fala o Personagem 2: "Me fez mudar (...) Esse teatro é muito importante e me fez mudar, me fez ser outra pessoa. Mudei muita coisa, o meu pensar também (...) tô me reencontrando", ainda dá sequência: "(...) o palhaço gera circo. E olha como é engraçado: o circo ele já é uma arquitetura de casa, onde nessa casa você vai encontrar um espaço democrático. Lá você vai encontrar negro, branco, pobre, rico (...), ou seja, o palhaço tem espaço, é muito louco isso".
Nas vivências em praças, teatro e outros espaços públicos o cenário era de todos que tivessem algo a trazer, para que não se estabelecessem formas hierarquizadas e cristalizadas de relações. Entendo que isso diz respeito, sobretudo, à produção de afecções, de encontros que aumentam a potência de vida, encontros alegres, produtores de "zonas de comunidade", como expõe Teixeira (2004), inspirado pelo pensamento de Espinosa. Zonas de comunidade que podem nos levar a uma relação distinta com o outro, uma relação a partir de suas singularidades.
4.2 Escrevendo sua própria narrativa: arte, saúde e construção de autonomia.
O conceito de saúde foi, por muito tempo, perpassado pelo reducionismo patológico, considerando a ausência total da subjetividade e das vivências dos sujeitos, onde saúde era apenas a ausência de doença. Para Martins (2009), é necessário que reinventemos as práticas em saúde que possam se constituir em dispositivos de subjetivação, definindo essa última como resistência que se faz biopoliticamente, através de uma estética da existência, que investe na capacidade de auto-organização da vida.
Nessa perspectiva, a estratégia política consiste em construir uma clínica convocada a criar e apostar nos processos de construção de si e do mundo, e na produção de uma outrasaúde, onde o lócus não esteja apenas no corpo biológico. O Personagem 1 vem nos ilustrar "Não é suficiente só vir pro CAPS e tomar remédio. Cuidar com a mentalidade, cuidar com o ser humano...nossa cabeça, não é só isso. Tem que usar o corpo, tem que usar a imaginação da pessoa".
Dessa forma, queremos nos aproximar da ideia defendida por Elizabeth Lima, que compreende saúde tomando a vida e não a ausência de doença como referência de valor. Esta autora considera que:
A saúde não pode ser pensada sem levarmos em consideração as trocas sociais, o acesso e a circulação pelo mundo da cultura como algo que pertence ao fundo comum da humanidade (...). A ideia de saúde aqui está relacionada à ampliação da capacidade de realizar conexões, de afetar e ser afetado, ampliar as potências do agir e do fazer, adquirir maior plasticidade, abrir os campos de possibilidades (LIMA, 2009, n/p).
A respeito de como as vivências afetaram sua saúde, o Personagem 3 vem nos dizer: "Se não tivesse melhorado minha saúde, não tinha me envolvido em nada nessa história, eu teria só ficado tomando remédio. Vinha pro CAPS, marcava presença e voltava pra casa, entendeu?"
Qualquer abordagem de um trabalho em saúde junto a um usuário produz-se através de um trabalho vivo em ato, que se configura em um processo de relações, produzindo um encontro entre as pessoas (MERHY, 2004).
Para Lima (2009), na construção dos processos de saúde deve-se buscar engendrar linhas de diferenciação que afirmam a vida naquilo que nela não se deixa aprisionar: sua qualidade de indeterminação, sua capacidade de reinventar-se e tomar novas formas; o que percebemos através da narrativa do Personagem 4: "Como eu falei, estou me renovando, tô me lapidando, tô surgindo. Até hoje fico agitado, não fico muito tempo parado. Justamente nisso o teatro me ajudou. Se eu sou agitado, então pronto, pulo, eu sorrio. O que tava guardado eu consigo botar pra fora, a raiva... eu esqueço do mundo. Eu entro num mundo de fantasia, uma fantasia gostosa, que eu mesmo já montei tudo, e as pessoas contribuem com todo esse contexto".
No caminho que se traçava, nossos atores iam exercendo sua autonomia, suas possibilidades de desassujeitar-se em relação aos mecanismos institucionais. Caminhávamos vendo nascer essas possibilidades e percebendo o quanto o novo se fazia presente em cada processo ali vivenciado. O personagem 3 nos revela: "A gente tem um projeto na frente, até mesmo de gravar um cd. Na verdade a gente não compõe, mas a gente é interprete. Então sempre que a gente canta em shopping, sempre identificam a gente. Foi uma somatória muito legal e até mesmo de colocar a gente enquanto protagonista. E até mesmo reafirmar aquilo que a gente tá fazendo".
Nossos atores foram desvendando um emaranhado de possibilidades que aos poucos se efetivaram para o território do acontecimento, inaugurando novos começos. De certa forma, foram construindo sua desbiografia, termo utilizado por Manoel de Barros, para dizer que só se é dono daquilo que se inventa. Puderam transitaram também pela imperceptibilidade. É importante destacar que ser imperceptível não é ser invisível. A imperceptibilidade é a maneira de ser daqueles que, como nos traz Deleuze (2011), emprestam seus nomes para assinar acontecimentos, ideias, sensações.
Sobre a possibilidade de construção de outras propostas, o Personagem 1 nos diz: "Eu sou um formador de opinião (...). Como eu digo 'eu sou doido ? sou', mas tem os outros que são normais, eles, sim, que são doidos. Porque eu nunca vi, tem que mexer, tem que usar o corpo da pessoa. Fazer brincar e tudo. Às vezes eu mesmo faço papel, parece que eu sou um trabalhador aqui". Sobre novos objetivos de vida, o Personagem 3 nos conta: "Eu passei a ter vontade de estudar, que eu não tinha. Eu tô achando bom, que eu tô estudando, eu tô querendo fazer meu futuro. Fazer um curso, esse que é o meu objetivo".
Ao lançar o olhar às práticas coletivas, não se pretende desconsiderar a singularidade de cada sujeito, assim como seu processo de formação subjetiva, mas busca-se fazer o diálogo das instâncias individuais com as coletivas, procurado fazê-las emergir como território existencial.
4.3 Ciranda de muitos atores: a formação de vínculos sociais
Na perspectiva de pensar saúde como bem coletivo e direito, configura-se um processo de embate de concepções por uma ruptura das desigualdades das relações sociais, vislumbrando uma perspectiva emancipatória. Tomando como prioridade as diferentes formas de cultura e formas de cuidado, passa-se a construir saúde numa rede que envolve o sujeito, família, comunidade e cultura. Para Melman (2001), é nesse contexto de mudança de paradigmas, que compreende a formação de vínculos e redes sociais, que a Saúde Mental passa a se inserir.
O Personagem 4 vem nos contar sobre seu processo: "E eu gosto disso, normalmente isso é meu, de ter contato com a pessoa, de conversar. Como sexta feira que vem nós vamos lá pro Ver o Peso, né, que é o Baile do Completo. Então isso é muito bacana, já me identifiquei com aquilo ali".
O Baile do Completo é uma ação promovida pelo Consultório na Rua, que busca, através de música, dança e teatro de rua, integrar usuários da rede de Saúde Mental, profissionais, artistas, pessoas em situação de rua, população da feira do Ver -o -Peso e todos que quiserem adentrar. O Personagem em questão teve muita participação na realização dessa ação, onde sempre estava vestindo o figurino de palhaço e assumindo o protagonismo. Ainda vem nos dizer: "O baile do completo é muito bacana, você ter o contato, você busca, as pessoas dançam, as pessoas riem, conta piada, põe alguma coisa na cabeça. O contato com a pessoa sai desse marasmo de tá trancado num negócio, pra usar o corpo, usar o que tu tem de bacana, que é a tua cabeça, o teu pensar (...) E lá é muito bacana, por isso me identifiquei muito nesse aspecto"
Os contínuos fluxos de relacionamento de sujeitos inseridos em grupos ou populações caracterizam as redes sociais, cuja percepção nos mostra a potencialidade que essas estruturas podem apresentar através da construção de vínculos entre indivíduos, gerando sensação de pertencimento e apoio, que podem ser utilizados para a promoção do cuidado (MELMAN, 2001).
O Personagem 1 nos narra: "Tento conviver com pessoas também legais e tudo isso você vai aprender um pouquinho de cada (...) sou formador de opinião, né. Justamente por esse contato com as pessoas que eu tento me informar também", e prossegue: "Quando eu não vou as pessoas 'ah, por que você não veio ?'. Muito bacana as pessoas saberem que eu tenho alguma coisa interessante a proporcionar, entendeu? Troca de informações, de atitude".
Para Deleuze (2011 ), produzir e criar é apropriar-se de outro pensamento, pois ninguém cria a partir do nada. O Personagem 2 nos fala: "Às vezes quando eu tô chegando lá na Praça da República já desço me montando. No baile do completo também as pessoas já me conhecem, os feirantes, já me chamam: 'ei, palhaço, vem cá !'. Quando vou fazer alguma coisa no centro, sempre encontro pessoas que já se tornaram amigas, já conhecem o nosso trabalho".
Como resultado de processos macrossociais das sociedades modernas, a perda da força e do significado dos contextos locais estaria criando, nos indivíduos, uma sensação de estarem fora da rede social e, consequentemente, de estarem alheios dos processos decisórios. A percepção mais imediata seria a do esvaziamento das relações afetivas entre as pessoas e, no plano político, do enfraquecimento da cidadania (GIDDENS, 1998).
A formação de vínculos e redes sociais contribui para a mudança desse cenário. Uma das maneiras pelas quais podem ser compreendidas as influências positivas da rede social na saúde é a constatação de que a convivência entre as pessoas favorece o apoio e as trocas, onde se pode chamar a atenção do outro para mudanças visíveis, além de incentivar a adesão (ANDRADE; VAITSMAN, 2002). O Personagem 4 fala: "Bom, porque também eu não venho só pra terapia, eu consigo também absorver outras coisas de outras pessoas. Também temos problemas, as outras pessoas compartilham com a gente e crescem junto com a gente, e a gente pode ajudar de alguma forma. Eu sou uma pessoa muito solícita assim em ajudar, e eu procuro ajudar de alguma forma quando eu vejo que a pessoa não tá cantando, eu incentivo, eu digo: 'Vai, vamo cantar. Vamo apender!', e isso é importante"
Nos novos caminhos traçados após a Reforma Psiquiátrica, o suporte social é instrumento indispensável para proporcionar ao usuário a possibilidade da autonomia em relação à sua saúde e comunidade. O suporte social, de uma forma geral, pode ser avaliado pela integração social de um indivíduo no seu meio, além da rede de serviços pessoas que lhes estão acessíveis – serviços de saúde, percepção que o indivíduo tem das pessoas e serviços na comunidade (BAPTISTA; TORRES, 2006).
O apoio social que as redes proporcionam remete ao dispositivo de ajuda mútua, potencializado quando uma rede social é forte e integrada. Deve-se ressaltar os aspectos positivos das relações sociais, como o compartilhar informações e o auxílio em momentos de crise. Um envolvimento comunitário, por exemplo, pode ser significativo fator psicossocial no aumento da confiança pessoal, da satisfação com a vida e da capacidade de enfrentar problemas (ANDRADE, 2001). O Personagem 3 diz: "É... com a nossa própria experiência, estando bem, que a gente pode ajudar as outras pessoas, entendeste ? Pode ser que seja servir de exemplo ? Pode ser que sim. Então, se for pra somar pra vida de alguém é legal. É legal você se sentir útil, né. Você se sentir útil pra alguém, isso é importante".
O usuário em questão estava presente em várias vivências no território. Seja nas praças ou na feira do Ver -o -Peso, nosso ator passou a ser reconhecido pelo personagem que empreendia, sendo um dos participantes que mais dinamizavam as atividades. Seu inegável protagonismo era embalado pelo reconhecimento dos que se juntavam às cirandas, encenações e danças. Ele nos conta: "Quando eu, por algum motivo, eu não possa ir, aí perguntam por mim: 'Cadê o palhaço ?', e prossegue: "No cortejo eu me senti parece que eu não tava nem aqui em Belém, eu tava em outro lugar, eu não sei aonde, mas em Belém eu não tava, muito bacana. Tanto que as pessoas até hoje me abordam: 'Eu te vi'. O cortejo em questão foi realizado em comemoração ao dia da Luta Antimanicomial. Reuniu usuários, familiares, serviços da Rede e artistas numa manifestação teatral, lúdica e política.
Atravessados por essas vivências, nossos atores encerram o percurso de suas narrativas, deixando não só suas histórias, mas fazendo ouvir o que fala as ruas e a cidade, antes territórios inauditos, e que agora ressoam nas vozes dos personagens que aqui se fizeram presentes.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É bastante perceptível que na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) algumas vezes estamos ainda muito restritos às paredes das instituições, com pouco vínculo com a comunidade e com o território, espaço de convivência. Giovanella e Amarante (2002, p. 144), afirmam:
O território é uma força viva de relações concretas e imaginárias que as pessoas estabelecem entre si, com os objetos, com a cultura, com as relações que se dinamizam e se transformam. O trabalho no território não é a mesma coisa que estabelecer um plano psiquiátrico, ou de saúde mental, para a comunidade, mas trabalhar com as forças concretas para a construção de objetos comuns, que não são os objetos definidos pela psiquiatria.
Depois de finalizado o percurso dessa pesquisa, entendemos que, em Saúde Mental, os espaços de produção de convivência não podem ser coadjuvantes em uma prática que se propõe falar pela voz da Reforma Psiquiátrica. No contato que tive com vários usuários, além dos 'atores' (sujeitos da pesquisa) que compõem as cenas deste trabalho, pude compreender o quão estão disponíveis a pensar e construir as propostas para além dos muros institucionais.
Em nossa participação nas vivências, juntamente com nossos 'atores', pudemos ver o quanto o processo de produção de saúde, de cuidado, não está desvinculado do contato com o outro, da possibilidade de afetar e ser afetado e da construção de cidadania. Durante esse trajeto, entendi que lidar com a multiplicidade é tão delicado quanto lidar com a singularidade, e, por isso, precisamos de uma construção coletiva, que se efetiva com muitas mãos, muitos gestos e muitos olhares. O cuidado não é ciranda de um só, é ciranda dançada por muitos.
Temos inúmeros problemas nos serviços de Saúde Mental que dificultam a efetivação dessas práticas e de outros processos políticos, mas temos também, por parte dos usuários, o desejo de realizá-las. A fala de Gramsci utilizada por Basaglia para pensar a Reforma Psiquiátrica, nos diz muito: "Contra o pessimismo da razão, o otimismo da vontade".
Não há como produzir cuidado de forma legítima sem a participação dos que mais têm a nos dizer sobre como fazê-lo: os usuários. Estamos adaptados a construir coisas para eles, mas, do alto de nossa consideração pela hierarquia (essa que muitas vezes herdamos de nossa formação acadêmica), não nos acostumamos ainda a construir coisas com eles.
Quanto aos sujeitos criadores – que produzem suas invenções em maior ou menor proximidade com os abismos da loucura –, eles continuam escavando saídas, criando possibilidades, buscando construir linhas de fuga (Deleuze, 2011) que, por fim, servem para todos nós.
À luz da Reforma Psiquiátrica, devemos estar comprometidos de que não podemos substituir manicômios por formas mais brandas do mesmo manicômio e sim negar o manicômio, não apenas como construção concreta, mas também subjetiva. Durante a construção da Reforma Psiquiátrica, ao negar a psiquiatria como ideologia dominante, Amarante (1996, p. 99) diz:
A negação da ciência psiquiátrica como ideologia inscreve o saber-fazer sobre a loucura e o processo saúde-enfermidade mental em um campo eminentemente ético, que resgata a dimensão da relação entre os homens, que problematiza a função social e política das tecnociências e dos técnicos, que devolve à loucura a possibilidade de uma dimensão plural.
A partir do entendimento dessa "dimensão plural", deixamos, por fim, o desejo de que essas práticas se tornem maiores, não só em números, mas na capacidade de entender as pessoas enquanto sujeitos de sua própria história.
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Endereço para correspondência
Adriane do Socorro Costa Leite
E-mail: adrianec.leite@gmail.com
Marly Lobato Maciel
E-mail: marlylobato@gmail.com
Artigo encaminhado: 30/03/2016
Aceito para publicação: 01/12/2016
1 Terapeuta Ocupacional. Residente em Saúde Mental pela Universidade do Estado do Pará.
2 Terapeuta Ocupacional do Hospital de Clínicas Gaspar Vianna. Mestre em Desenvolvimento e Meio ambiente Urbano.