Revista Psicologia Organizações e Trabalho
ISSN 1984-6657
Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.15 no.2 Brasília jun. 2015
https://doi.org/10.17652/rpot/2015.2.511
O trabalho da gestão: notas sobre poder e subjetividade
The work of management: notes on power and subjectivity
El trabajo de la gestión: notas sobre poder y subjetividad
Cibele Vargas Machado MoroI,1; Fernanda Spanier AmadorII,2
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
Este artigo busca proceder a uma análise das condições de possibilidade que contribuíram à emergência do trabalho de gestão - também compreendido como gerenciamento - tal como o conhecemos no contemporâneo. Adotando como perspectiva o campo da Psicologia Social, focamos nossa atenção na estreita relação entre a constituição da gestão e as diferentes estratégias que articulam poder e subjetividade, especialmente no domínio do trabalho, através de diferentes práticas. A partir de uma revisão da literatura acerca das transformações do trabalho, especialmente nos dois últimos séculos, discutimos como foi se forjando o trabalho do gerente, voltado, inicialmente, para o disciplinamento e a docilização do trabalhador e, mais recentemente, para o controle de si e do outro por meio de uma permanente mobilização subjetiva em direção à constituição do sujeito empreendedor. Concluímos apontando questões que, desde a discussão empreendida, podem contribuir ao campo de pesquisa acerca da gestão, problematizando os modos de trabalhar no contemporâneo.
Palavras-chave: Gestão; trabalho; subjetividade; poder.
ABSTRACT
This paper aims to undertake an analysis of the possible conditions that contributed to the emergence of the job of administration - or management - as we know it today. Adopting the perspective of Social Psychology, we focus our attention on the strict relationship between the formation of management and the diverse strategies that articulate power and subjectivity, especially in the field of labor, through different practices. Based on a literature review regarding the changes in labor, especially in the last two centuries, we discuss how the manager's job was formed, aimed initially towards the disciplining and docilization of workers and, more recently, toward control of oneself and others through a permanent subjective mobilization towards the constitution of the entrepreneurial subject. We conclude by pointing out issues that, based on the discussion undertaken, can contribute to the field of research on management, discussing the modes of working in the current context.
Keywords: Management; work; subjectivity; power.
RESUMEN
Este artículo busca proceder con un análisis de las condiciones de posibilidad que contribuirían a la emergencia del trabajo de gestión - también comprendido como gerencia - tal como se conoce actualmente. Adoptando la perspectiva del campo de la Psicología Social, enfocamos la atención en la estrecha relación entre la constitución de la gestión y las diferentes estrategias que articulan poder y subjetividad, especialmente en el campo del trabajo, por medio de diferentes prácticas. Partiendo de una revisión de la literatura a respecto de las transformaciones del trabajo, especialmente en los dos últimos siglos, se discute como se forjó el trabajo de gerente, direccionado, inicialmente, a mejorar la disciplina y la docilidad del trabajador y, más recientemente, al control de sí y del otro por medio de una permanente movilización subjetiva en dirección a la constitución del sujeto emprendedor. Concluimos señalando cuestiones que, desde la discusión entablada, pueden contribuir al campo de la investigación, problematizando los modos de trabajar en la actualidad.
Palabras-clave: Gestión; trabajo; subjetividad; poder.
Este artigo3 tem por objetivo realizar uma análise acerca das condições de possibilidade para a emergência da gestão enquanto trabalho de gerenciamento desde as diferentes práticas que foram transversalizando e conformando a constituição deste fazer profissional. É importante destacar que a gestão à qual nos referimos, diz respeito ao lugar formalmente ocupado por pessoas no campo do trabalho, às quais, em geral, se atribui responsabilidades ligadas à coordenação da utilização de recursos variados e do trabalho de outras pessoas (seus subordinados) com vistas a garantir o alcance de resultados satisfatórios4 para a organização.
Propomos a realização desse exercício analítico a partir do campo da Psicologia Social, considerando a compreensão da subjetividade, conforme propõem Guattari e Rolnik (2011), como produção que se dá essencialmente no registro do social. Para esses autores, o modo como a subjetitividade é vivida pode oscilar entre dois extremos, quais sejam o de "uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indíduo se reapropria dos componentes da subjetividade" (p. 42), pela via de um processo de singularização por meio da constituição de tipos de referência próprios e não normatizados.
Michel Foucault também contribui fortemente à análise que buscamos empreender ao considerar a subjetividade em suas conexões com os jogos de saber, de poder e de verdade produzidos no social e que interfem nos modos como os sujeitos reconhecem a si próprios e experienciam a relação com o mundo. Nesse sentido, Foucault (1988) aponta que, por trás de todo conhecimento produzido há uma luta de poder, de modo que a conformação de regimes ordenados de saber são fortemente atravessados por relações de poder. Compreendendo que a noção de poder adotada nesse referencial se diferencia da ideia de dominação, uma vez que a primeira pressupõe a possibilidade de resistência, o poder é tomado como múltiplas correlações de força, que atravessam todo o corpo social e que, por serem por vezes desiguais, podem constituir estados de poder, sempre localizados, instáveis e móveis.
Na relação entre subjetividade e trabalho, conforme apontam Tittoni e Nardi (2011), é necessário buscar «compreender os modos como os sujeitos vivenciam e dão sentido às experiências de trabalho, assim como a forma que as relações e os contextos de trabalho produzem determinados modos de constituição dos sujeitos» (p. 375). Trata-se, assim, de compreender a subjetivação como produção que se dá, nessa relação, pela experiência que fazem de si os trabalhadores nos arranjos de saber-poder mediados pelo trabalho, em um permanente movimento de forças que podem remeter tanto à sujeição quanto à invenção.
Hardt e Negri (2006), denominando de Império o contexto do capitalismo neoliberal, referem que este busca dirigir diretamente a natureza humana, tendo como foco a vida social. Nessa direção, os autores destacam que a produção de subjetividades se dá de modo associado à produção de capital, tornando "cada vez mais difícil manter distinções entre trabalho produtivo, reprodutivo e improdutivo" (p. 426). A vida passa, assim, a ser produzida (e reproduzida) pelo trabalho e explorada pelo capital, tornando-se cada vez mais difícil separar os tempos de trabalho dos tempos de lazer. Como via de resistência a esses modos de subjetivação, os autores apontam a possibilidade de a multidão que sustenta o Império canalizar, de modo inventivo, seus processos a outros objetivos, subvertendo-os no próprio terreno imperial a partir de uma "organização política alternativa de fluxo e intercâmbios globais" (p. 15).
Tendo em vista o objetivo ao qual nos propomos nesta escrita, parece-nos fundamental, também, uma análise que coloque em pauta as próprias transformações do trabalho, considerando o cenário no qual ele vem se constituindo nos últimos anos até assumir os contornos a partir dos quais podemos apreendê-lo no presente, uma vez que os diversos elementos que compõem nossa existência conformam diferentes modos de viver e de trabalhar, específicos de cada tempo. Nesse sentido, como sugere Neves (2013), é fundamental tomar o trabalho como objeto histórico, no sentido de se "mapear as diferentes práticas que configuraram as atividades de produção e reprodução da existência humana, produzindo diferentes conceitos para essa prática" (p. 19). Assim, as múltiplas formas de produção e reprodução da existência são atravessadas por práticas particulares e pelos modos dos sujeitos se relacionarem com o mundo particulares de cada tempo. Conforme o autor, o trabalho, tal como o concebemos na atualidade, é produto de um tempo de consagração ao capital, sendo "a forma particular e historicamente determinada de produção e reprodução da existência que foi inventada no capitalismo" (p. 23).
A partir desses apontamentos, para pensar o trabalho no contemporâneo, propomos tomar como recorte de análise as metamorfoses do capitalismo ocorridas especialmente no último século, período cujas transformações foram conformando certas formas não apenas de trabalhar, mas também de viver além da esfera produtiva dos espaços de trabalho.
As Transformações do Trabalho
O nascimento das primeiras fábricas, ocorrido há mais de quatro séculos, correspondeu a uma significativa transformação das relações de produção, uma vez que, segundo Decca (1996), até então, os trabalhadores-artesãos detinham a apropriação sobre todo o processo de produção, desde a obtenção da matéria-prima até a etapa de comercialização do produto, o que acabou se inviabilizando com o forte controle sobre os meios de produção imputado pelos donos do capital. De acordo com esse autor, o surgimento do sistema de fábrica se deu muito mais para atender a demandas organizativas, de disciplina e controle dos trabalhadores e do que era produzido, do que propriamente por demandas técnicas, como o surgimento das primeiras máquinas. Tal configuração nos dá pistas sobre os contornos que, a partir desse momento, os modos de produção da existência passam a ganhar, especificamente, o lugar que o humano (agora compreendido como operário) vem ocupar para a manutenção do capital através de estratégias de disciplina e de docilização.
Se, por um lado, a reunião de trabalhadores na fábrica foi um importante movimento no sentido do disciplinamento e controle tanto dos trabalhadores quanto do processo produtivo, visando, além disto, à maximização da produção através do aumento do número de horas de trabalho, ritmo e velocidade da produção, por outro lado, parece ter sido com a implementação das ideias tayloristas que estes objetivos puderam ser consolidados. Ao propor o desenvolvimento de uma administração do trabalho de cunho «científico», Frederick Taylor define como princípio um controle sobre o trabalho muito mais intenso, chegando a estabelecer minuciosamente, por meio de estudos rigorosos, os tempos e movimentos necessários ao desenvolvimento de cada tarefa por parte do trabalhador. Esse modelo tinha como objetivo obter o máximo de produção possível, a qual era buscada por uma rígida divisão do trabalho, separando a concepção acerca do processo produtivo e a sua execução, cabendo ao administrador a definição da única maneira correta de executar o trabalho (aquela que ofereceria as melhores possibilidades de maximização dos resultados) e aos operários apenas a execução do trabalho da forma estritamente prescrita e sem objeções (Taylor, 1990). Essas considerações não deixam dúvidas quanto ao importante marco que o taylorismo representou na constituição do trabalhor moderno, ensejando profundas transformações na relação do homem com aquilo que produz (já que se estabelece um grande distanciamento em relação ao produto de seu trabalho), com os outros (uma vez que a organização do trabalho convoca os trabalhadores individualmente e as trocas se mostram menos possíveis e necessárias) e consigo próprio (desde que se conformam novos modos de os homens reconhecerem-se no mundo e, especificamente, como trabalhadores).
Na esteira das proposições e transformações de cunho taylorista, o fordismo implementou o sistema de trabalho em linhas de montagem, o que ofereceu uma importante base para a produção e o consumo em massa (Motta & Vasconcelos, 2006). Pode-se dizer que ali seguiam presentes os elementos fundamentais propostos por Taylor, com as marcas adicionais de um maior incremento maquínico dos processos e de uma divisão do trabalho ainda mais rígida e racional, na medida em que uma maior restrição se impunha aos trabalhadores a partir da fragmentação ainda mais severa do processo produtivo. Aqui, a concepção do trabalhador como alguém movido prioritariamente por interesses financeiros, forjava a estratégia do incentivo monetário de acordo com a produtividade como forma de obter maior empenho, o que, ao mesmo tempo, enfraquecia as práticas de solidariedade entre os trabalhadores.
É importante destacar, conforme aponta Nardi (2006), que tanto o taylorismo como o fordismo conformam não apenas os modos de trabalhar, mas também se constituem como formas de racionalização que definem um modo de vida, marcado pela disciplina, extrapolando o âmbito da fábrica e do sindicado e se estendendo para a família, a escola e até para o modelo de urbanização dos bairros operários.
Por volta dos anos 1970, contudo, o regime de acumulação intensiva do capital, solidificado sobre a produção e o consumo de massa, como apontam Alliez e Feher (1988), dá os primeiros sinais de um enfraquecimento relacionado à estratégia da massificação generalizada e do enrijecimento das relações sociais consequentes da rigorosa organização do trabalho. Tais aspectos contribuíram para a emergência da questão da expansão da produção e do consumo de massa a nível mundial e forjaram as condições para a nova a metamorfose do capitalismo, o qual passou a engajar-se em um novo regime de acumulação, dito flexível.
Essa reestruturação produtiva, ainda em curso, encontra no Neoliberalismo o suporte fundamental para seu desenvolvimento, a partir do enfraquecimento do Estado como árbitro e interventor direto nas esferas política, econômica e social, bem como a partir das premissas liberais relacionadas à evolução dos lucros do capital e à desproteção aos salários como forma de promover os investimentos produtivos (Alliez & Feher, 1988). Em nossa leitura, esse cenário ajudou a fomentar a competição entre os trabalhadores e a ideologia do "salve-se quem puder", na medida em que não há (e não deve haver) lugar para todos na esfera produtiva.
Outro aspecto fundamental na nova configuração produtiva diz respeito à especificidade das relações entre produção e consumo, que passam a ser perpassadas pela exigência de atendimento às demandas específicas do consumidor, muitas vezes atreladas à necessidade de customização de produtos e serviços. A própria emergência da figura do consumidor/cliente aponta as transformações em curso a partir desse momento, exigindo a possibilidade de adaptação constante da cadeia produtiva às demanas daí provenientes. Nesse sentido, a palavra de ordem passa a ser flexibilidade - seja dos modos de produção, das relações de trabalho, dos produtos ou mesmo dos próprios padrões de consumo -, aliada ao imperativo da inovação comercial, tecnológica, organizacional e - sobretudo - subjetiva.
A esse respeito, Gaulejac (2007) considera haver no mundo contemporâneo uma ideologia acerca da gestão que, em última análise, toma a vida humana como objeto a ser gerido para fins de rentabilização. Tal ideologia, também denominada de poder gerencialista, tem como principais características o primado dos objetivos financeiros, a produção da adesão e a mobilização psíquica, sendo estimulada a implicação subjetiva e afetiva das pessoas. Para esse autor, o que está colocado para cada um é a necessidade de ser um gestor de si mesmo, tomando a vida como uma empresa a ser gerida, fixada em objetivos, tendo seus desempenhos constantemente avaliados e seu tempo rentabilizado. Para tornar-se útil e empregável em uma sociedade igualmente gestionária, é necessário, enfim, tornar a vida produtiva.
Tais imperativos, se estão dirigidos às diversas instâncias da vida, parecem encontrar no trabalho um campo fértil para seu desenvolvimento através dos apelos à dedicação máxima, esta justificada como forma de «sobreviver» em um contexto econômico instável e de profunda competitividade: o sucesso da empresa é, enfim, vendido como o sucesso de cada um. A partir de estratégias discursivas variadas, geralmente assentadas sobre a liberdade individual e a importância da competitividade no mundo globalizado, a acumulação flexível tem convocado mais e mais o trabalhador a produzir-se como empreendedor e autônomo, capaz de tomar decisões e responsabilizar-se por elas. O trabalhador é convidado, assim, a sentir-se tão responsável pelo trabalho e por seus resultados como se fosse ele mesmo proprietário da empresa.
Nesse sentido, ao chamar a atenção para aspectos do capitalismo pós-industrial como a centralidade no tratamento da informação e o foco na comercialização e na financeirização mais do que na produção, Lazzarato e Negri (2001) apontam o caráter imaterial do trabalho contemporâneo, o qual trouxe consigo a valorização da dimensão comunicacional e relacional, colocando aos trabalhadores novos imperativos relacionados à adequada gestão destes aspectos. Nesse contexto, a revolução tecnológica - com a introdução e permanente expansão do uso de tecnologias da informação e da comunicação -, parece contribuir sobremaneira à consolidação da produção subjetiva do trabalhador autoempreendedor, compondo as condições de possibilidade de emergência desses novos modos de trabalhar e interferindo nos arranjos de saber-poder aí em jogo. O marco representando pelo advento da internet e a informatização de processos de trabalho em todos os âmbitos produtivos, trouxeram consigo, além do aumento do desemprego e do esvaziamento de inúmeras atividades laborais, o aumento da demanda por constantes requalificações dirigidas aos trabalhadores (atreladas ao incremento das competências requeridas) e a redução dos níveis hierárquicos, implicando os trabalhadores mais diretamente na necessidade de tomada de decisões, gestão da informação e (auto)controle. Para Gaulejac (2007), se o tempo e o espaço de trabalho já não eram mais tão regulamentados, passou-se a solicitar uma disponibilidade permanente (e livre) do trabalhador para que o máximo de tempo fosse dedicado à consecução dos resultados esperados pelas organizações. Dentro dessa ideia de um tempo integralmente rentável, o autor chama a atenção para o fato de não haver mais divisão entre tempo livre e tempo de trabalho, sendo necessário "poder trabalhar a qualquer momento e em qualquer lugar. O manager hipermoderno encontra-se obrigatoriamente plugado" (p. 111).
Borges (1992) chama a atenção, no entanto, para outros efeitos da inserção de tecnologias da informática e da microeletrônica no trabalho. Além do aumento da produtividade e da flexibilidade da produção, o autor destaca que, em certos segmentos produtivos (especialmente o industrial), a informatização significou, pela simplificação de processos, a perda do conteúdo da tarefa, sendo retirado dos trabalhadores o controle sobre seu trabalho, uma vez que, com a microeletrônica, a máquina comanda a produção. Além disso, aponta a intensificação dos ritmos de trabalho impostos pela automação, bem como o consequente aumento das dificuldades interpessoais nas fábricas e a fragilização da organização coletiva dos trabalhadores.
Em termos dos efeitos dessas transformações do trabalho sobre as relações de poder, tanto aqueles estudiosos que apontam para um processo de empobrecimento do conteúdo do trabalho como os que argumentam sobre uma transformação centrada na subjetividade dos trabalhadores concordam a respeito do forte incremento do controle possibilitado pela base microeletrônica. Assim, a vigilância, antes física, passa a ser comunicacional, baseada preferencialmente nos resultados do trabalho (Gaulejac, 2007), sendo as atribuições anteriores da chefia (de caráter mais repressor) assumidas pelos equipamentos informatizados, que passam a controlar a quantidade e a qualidade do trabalho realizado (Borges, 1992).
A partir desses apontamentos, percebe-se que aspectos do modelo taylorista-fordista ainda se fazem presentes nos modos de trabalhar atuais, metamorfoseando-se com aspectos da acumulação flexível, produzindo, por vezes, modos de trabalhar com aspectos paradoxais. Contudo, em todo caso, parece-nos haver um plano de fundo comum, qual seja a convocação subjetiva do trabalhador aos preceitos e ideais do capital.
A Produção da Gestão e a Gestão da Produção
O advento da gestão parece-nos estreitamente relacionado à noção de trabalho enquanto produção moderna, no bojo de uma constituição estritamente capitalista e transversalizada por um campo de saberes, poderes e verdades a ela relacionados.
Embora a instituição das fábricas tenha significado um importante movimento no que diz respeito ao controle e disciplinamento da produção, não é possível afirmar que o gerenciamento sobre o trabalho somente tenha surgido neste momento. Antes disso, a produção realizada individualmente pelos pequenos artesãos e nas corporações de ofício através do trabalho cooperativo, já envolvia uma coordenação dos processos de trabalho, a qual poderíamos pensar como uma gerência de forma rudimentar (Braverman, 1987). Contudo, nessas situações, bem como mais tarde, nos sistemas de empreitada ou subcontratação, nas primeiras fábricas ainda era bastante presente o saber encarnado e a perícia do artesão sobre seu ofício, o que fazia com que coubesse a ele próprio, em grande parte, a decisão sobre como realizar seu trabalho. Além disso, mesmo tendo perdido a propriedade dos instrumentos de produção, o trabalhador ainda conservava, em parte, a independência e a autonomia características do sistema de ofícios, resistindo à autoridade racional e burocrática que ameaçava o controle que detinha sobre o processo de produção (Motta & Vasconcelos, 2006).
Na medida em que o capitalista assume a função de direção do capitalismo industrial e o controle sobre o processo produtivo e que ocorre o incremento da racionalização técnica e das relações de trabalho assalariadas, a figura da gerência surge atrelada à necessidade de maior controle sobre a produção e sobre os trabalhadores, agora reunidos em número muito maior. Para Braverman (1987), esse cenário encejou o advento de uma "arte" inteiramente nova de administrar, "muito mais completa, autoconsciente, esmerada e calculista do que qualquer coisa anterior" (p. 66). Para ele, tratava-se de formas essencialmente rígidas e despóticas, que utilizavam métodos coercitivos para habituar os trabalhadores às tarefas e mantê-los trabalhando por muitos anos. Seja através do oferecimento de recompensa monetária ou, mais comumente, da força e do medo traduzidos na possibilidade da aplicação de castigos, a gestão hierárquica do trabalho em sua forma primitiva estava estreitamente associada a um modo de controle baseado na "total dominação econômica, espiritual, moral e física" (p. 67).
Com a consolidação do processo de trabalho taylorista, a gerência passa a ser foco de formulações teóricas mais aprofundadas, as quais, ao adotar como centralidade o interesse na organização e no controle dos processos de trabalho, apontam a necessidade de um "gerenciamento científico", voltado à análise do trabalho em seus elementos mais simples e à melhoria sistemática do desempenho do trabalhador. Além da adaptação do trabalho às necessidades do capital, o lugar da gerência estava relacionada, em seus primórdios, à rígida dermarcação da divisão das relações sociais estruturantes do processo produtivo.
Considerando o forte controle sobre o trabalho, buscando a simplificação do processo e o incremento dos resultados, o gerente "cientista" deve ser aquele capaz de selecionar os melhores gestos, ensiná-los e, por fim, supervisionar sua execução. Assim, como aponta Taylor (1990), a seleção de pessoal "científica" desempenha um papel fundamental, na medida em que o gerente, como o trabalhador, deve ser escolhido a partir de suas habilidades pessoais, as quais o diferenciam dos demais. Contudo, enquanto o gerente deve ser alguém capaz de, além de executar, propor melhorias e supervisionar o processo produtivo, o operário aproxima-se mais da imagem do "homem tipo bovino" (p. 55), centrado nas ordens recebidas, capaz de seguir estritamente os tempos e movimentos normatizados sem elaborar qualquer questionamento.
Tendo em vista o papel de destaque dos gerentes quanto ao planejamento exaustivo e controle das tarefas, o sistema taylorista implementou o aumento significativo dos postos de gerenciamento, com o intuito de não deixar aos trabalhadores nenhuma margem de iniciativa. Aqui, percebemos a dimensão do poder que atravessa as concepções tayloristas no sentido de que reconhecer o saber dos trabalhadores acerca de seu ofício significaria, por um lado, aumentar sua autonomia diante de seu fazer e, por outro, arriscar desequilibrar, pela diminuição da obediência, as forças entre os trabalhadores e o capital.
Desse modo, parece-nos que as estratégias aqui adotadas, ao fomentarem um modo de trabalho alienante, negando a possibilidade de criação e apropriação do trabalhador sobre o seu fazer - e utilizando a figura do gerente como instrumento -, inaugura a produção de uma certa relação entre saberes, poderes e verdades, a qual, baseada em uma rede discursiva racional, dita científica, busca definir quem sabe (ou pode saber) sobre o trabalho, quem pode trabalhar e de que maneira e quem é capacitado a definir como se trabalha. Instaura-se, assim, uma certa forma de governo5 intimamente associada à modalidade de aplicação do poder surgida entre o final do século XIX e início do século XX, denominada por Foucault (2013) de regime disciplinar.
Por regime ou sociedade disciplinar, compreende-se "o conjunto de técnicas de coerção que se exercem segundo um esquadrinhamento sistemático do tempo, do espaço e do movimento dos indivíduos" (Revel, 2011, p. 36), centrando-se nos corpos individuais e no imperativo de cumprimento às normas, estas tomadas como naturais. Ao contrário do que se pode pensar, a disciplina não visa, em última análise, apenas a repressão, a extinção de comportamentos: antes, busca o incremento das aptidões, a multiplicação das capacidades dos corpos, tornando íntima a associação entre utilidade e obediência. A apreensão do corpo como força a domesticar para melhor aproveitamento se dá no bojo de uma relação de estrita sujeição, na qual se produzem indivíduos treinados, exercitados, submissos e, por fim, dóceis. Como aponta Foucault (2013), "a disciplina é uma anatomia política do detalhe" (p. 134), dentro de uma estratégia geral de controle que, se visa a cada um tomado individualmente, também reporta ao controle simultâneo de todos.
O gerenciamento, nesse contexto, parece-nos configurar-se como instrumento do poder disciplinar no campo do trabalho, sendo o gerente taylorista demandado a efetivar os principais pressupostos da disciplina: vigilância acirrada sobre os trabalhadores e o processo de trabalho, controle dos tempos e movimentos, organização do espaço, aplicação de penalidades, apropriação do conhecimento dos trabalhadores acerca da melhor maneira de desenvolver uma tarefa, padronização do trabalho. A vigilância hierarquizada, vinculada ao papel gerencial, parece central aqui, pois, como o próprio Foucault (2013) aponta, "se torna um operador econômico decisivo, na medida em que é ao mesmo tempo uma peça interna no aparelho de produção e uma engrenagem específica do poder disciplinar" (p. 169).
Contudo, se é possível tomarmos o gerente como instrumento disciplinar nas formas de trabalhado tayloristas, pensamos ser imprescindível fazer uma análise de seu lugar também como objeto - assim como os demais trabalhadores - daquilo que ajuda a operar. Assim, se ele contribui para a dissociação entre a prática do trabalhador e seus conhecimentos antecedentes, oriundos da experiência, ele próprio acaba restrito em seu fazer a uma rede de prescrições a cumprir, limitando suas possibilidades de invenção, uma vez que também está sujeito a políticas gerenciais mais amplas, estabelecidas desde os imperativos do mercado e do capital. A esse respeito, Braverman (1987), lembrando o que Taylor aponta, em sua obra intitulada Shop Management, acerca da necessidade de que mesmo os trabalhadores "cerebrais" sejam mantidos suficientemente ocupados, refere que jamais devemos nos esquecer de que nenhuma forma de trabalho capitalista está isenta dos métodos aplicados primeiro aos trabalhadores "da ponta".
A produção discursiva acerca da importância do gerenciamento, vinculado ao controle e à vigilância, foi tomando outros contornos na medida em que a Administração enquanto campo teórico-prático foi reivindicando o status de ciência. Nesse movimento, os estudos de Henry Fayol ajudaram a reforçar as premissas já expressas por Taylor, focando-se, contudo, especialmente no papel e nas atribuições do gerente. Para Fayol (1984), o gerenciamento deveria envolver necessariamente as funções de previsão, organização, comando, coordenação e controle - o que remete intimamente ao terreno disciplinar. Além disso, Fayol atribui grande importância às características pessoais do gerente para uma verdadeira "arte de comandar", ou seja, para "tirar o melhor proveito dos agentes que compõem sua unidade" (p. 128). Assim, aqui se delineiam as primeiras nuances de um movimento que vai buscar cada vez mais a aproximação do gerente à mobilização subjetiva de seus subordinados, instruindo-os não mais apenas sobre como agir, mas também sobre o que pensar e sentir.
Em certa medida, essa análise permite uma aproximação, conforme propõem Walter, Winkler e Crubellate (2013), entre a figura do gerente, nas proposições de Taylor e de Fayol, e a figura do pastor, apresentada por Michel Foucault, em uma espécie de acoplamento entre poder disciplinar e poder pastoral. Partindo da compreensão de que o poder pastoral remete a uma intervenção permanente sobre a vida dos indivíduos, implicando o sentido de uma renúncia ao eu em prol da obediência ao outro e sendo perpassado pela extração e produção de verdades sobre os indivíduos (Foucault, 2008b), a figura do gerente-pastor contribui para a emergência de novos modos de produção subjetiva no trabalho, associados a uma proposta de mudança de mentalidade dos trabalhadores, os quais passariam a ser direcionados em suas ações, desejos, percepções pelos ideais do capital traduzidos pela chefia.
A noção de uma espécie de pastorado no campo do trabalho permaneceu como plano de fundo a outros estudos e práticas posteriores, como aqueles desenvolvidos pelo grupo que ficou conhecido como Escola de Relações Humanas. Esses estudos deslocaram o interesse da padronização do processo produtivo e da previsibilidade dos comportamentos, focando-se nos fatores intersubjetivos que conduziriam os trabalhadores a determinados comportamentos. Inaugurando os estudos sobre motivação e liderança, essa Escola apostou em estratégias que levassem o trabalhador a contribuir com o atingimento dos objetivos organizacionais e, para isso, apontou como fundamental o papel do gerente como motivador de seus subordinados, voltado ao atendimento de suas necessidades afetivas. Desse modo, a vigilância e o disciplinamento acirrados sobre o trabalhador e o processo produtivo são gradualmente substituídos por novas diretrizes de coordenação do trabalho associadas à mobilização subjetiva das pessoas: no lugar do uso exacerbado da coerção e da vigilância, o controle pelo convencimento à consecução de resultados, convocando os trabalhadores à participação e tomando-os como recurso a gerir.
Como referem Motta e Vasconcelos (2006), esses novos pressupostos envolveram a concepção do gerente como alguém muito mais ligado à coordenação do processo produtivo do que propriamente ao comando ou à centralização do poder. Sendo tomado a partir de agora como gestor - dentro de uma suposta autonomia que ultrapassava o controle que tradicionalmente lhe foi atribuído -, caberia a ele dar condições à realização e autodesenvolvimento dos indivíduos com vistas ao atingimento dos objetivos organizacionais. A partir daí, o apelo ao desenvolvimento de características pessoais no gerente-gestor ganha cada vez mais ênfase, sendo que aspectos como saber ouvir seus subordinados, comunicar-se bem e ser habilidoso nas relações interpessoais passam a ser associados ao necessário esforço do gerente para constitui-se como um líder para seus subordinados. A noção de liderança aparece, então, estreitamente relacionada à dimensão interpessoal, à capacidade de levar o outro a determinada ação a partir de sua mobilização afetiva. Nesse sentido, o líder é tomado como alguém diferenciado dos demais, detentor de certos conhecimentos, habilidades e atitudes que o credenciam a conduzir seus "liderados". Pensamos tratar-se, desse modo, de um processo de homogeneização e individualização subjetiva que acaba por tomar como objeto não apenas os demais trabalhadores, mas também o próprio gerente, uma vez que este se constrói como líder a partir de inúmeras prescrições sobre o que saber, o que fazer e, especialmente, o que ser, para colocar em funcionamento junto aos seus subordinados os mesmos mecanismos pelos quais é subjetivado.
A partir do diálogo que vimos buscando manter com o pensamento de Michel Foucault, propomos pensar o trabalho taylorista, de viés disciplinar, bem como o trabalho tomado desde as abordagens motivacionais, de modo relacionado à tecnologia do biopoder. Foucault (1988) aponta o biopoder como poder centrado na vida e destinado muito mais a produzir e multiplicar forças do que limitá-las, tendo se desenvolvido a partir do século XVII por meio de duas formas principais. Uma primeira forma centrava-se no corpo como máquina através dos ideais de adestramento e ampliação de suas aptidões, bem como no incremento de sua utilidade e docilidade, com vistas à garantia de sua eficácia produtiva - tal como caracterizamos os procedimentos de poder da disciplina mais acima. Uma segunda forma (denominada biopolítica), surgida no século XVIII, centrava-se no corpo como espécie, havendo maior interesse nos processos biológicos, tomados agora como objetos de intervenção e controle no nível da população. Trata-se, assim, em ambos os casos, de um poder sobre a vida, que busca gestioná-la, organizá-la, torná-la mais produtiva, seja no nível do indivíduo ou da população. No que diz respeito especificamente ao campo do trabalho, desenvolvem-se estratégias (ou pela docilização ou pela convocação subjetiva) centradas na garantia da existência de indivíduos hábeis e eficazes, em um movimento que visa, a um só tempo, maximizar as forças produtivas e controlá-las, havendo, conforme aponta Foucault (1988), uma íntima associação entre essa modalidade de aplicação do poder e os processos econômicos.
Considerando esses apontamentos, propomos pensar o trabalho de gestão, nesse contexto, como uma importante tecnologia do biopoder, na medida em que a configuração assumida pelo trabalho, refletindo o que se passava também em outras esferas, o colocava como instrumento-chave para fazer operar o imperativo de adaptação, normatização e controle subjacente a essa tecnologia, seja determinando gestos e movimentos ou induzindo percepções e afetos.
As condições de emergência desse poder que toma a vida como objeto, buscando maximizar seus efeitos e baseando-se no modelo de produção industrial (Revel, 2011), são discutidas em profundidade por Foucault (2008a) no livro Nascimento da Biopolítica. Nessa obra, ele situa o advento do Liberalismo como elemento essencial à biopolítica, na medida em que expõe uma incompatibilidade entre, de um lado, os sujeitos de interesse/sujeitos econômicos e, de outro, a unidade totalizante do poder soberano jurídico, em um movimento que conduziu ao questionamento radical da razão governamental. Colocando o Homo economicus - ou seja, aquele que obedece prioritariamente a seus próprios interesses - como ponto de referência à política econômica, o Liberalismo propõe o deslocamento do interesse político e econonômico sobre o bem coletivo em direção aos interesses individuais e compreende que o governo não deveria intervir sobre os processos econômicos.
Desse modo, a noção de governamentalidade, associada à dimensão econômica, surge ligada também à emergência da ideia de população, como conjunto a ser governado, em última análise, para a produção de efeitos econômicos específicos (Foucault, 2010). Tendo como foco, então, o sujeito econômico, inaugura-se a "arte liberal de governar" (Foucault, 2008a, p. 402), a partir da biopolítica, da gestão da população, no bojo do controle dos processos sociais, considerando, além dos aspectos econômicos, também os aspectos jurídicos. Contudo, Foucault (2010) ressalta: trata-se de uma gestão em profundidade, nos detalhes, e, nesse sentido, a disciplina nunca foi tão importante quanto no momento em que se procurou gerir a população. No lastro dessa mesma observação, Revel (2011) compreende que a biopolítica, como conjunto de biopoderes e buscando assegurar uma melhor gestão da força de trabalho, envolve também o controle no nível individual, a partir das estratégias que os indivíduos podem ter em relação a si mesmos, bem como uns em relação aos outros, o que remete à governamentalidade também ao governo de si e dos outros. O indivíduo biopolítico é, em última análise, aquele que vai se constituindo como mais "preparado" para bem produzir e mais consumir ou, no campo do trabalho, vai se constituir como produtor para voltar a investir em si como consumidor.
Todos esses aspectos compõem o cenário para pensarmos a constituição do ofício de gestão na passagem do trabalho moderno ao contemporâneo, no seio do qual a dimensão do controle acaba por assumir novos contornos. Se, como Foucault (2010) nos aponta, os novos modos de subjetivação não suprimem aqueles centrados nas estratégias disciplinares e de vigilância, é certo que as técnicas de controle se transmutam e atravessam a produção da vida através de novos e diferenciados modos. Deleuze (1992), partindo de contribuições foucaultianas, propõe tomarmos a sociedade contemporânea como uma sociedade de controle, não mais centrada nos espaços de confinamento, mas operando por um controle contínuo e mais diluído, modulável, automodificando-se continuamente. No campo do trabalho, ele aponta que a empresa, ao substituir os modos de funcionamento da fábrica, se esforça por impor modulações constantes (seja dos salários, das exigências, dos desafios colocados aos trabalhadores), introduzindo o tempo todo uma rivalidade que contrapõe os indivíduos entre si ao mesmo tempo em que divide cada um em si mesmo. Nesse ponto, parece residir um aspecto central dos modos de trabalhar contemporâneos, já que trabalhar gerenciando (a si e aos outros) parece ser um imperativo colocado a todos os trabalhadores, uma vez que, como estratégia biopolítica, o controle é internalizado por cada um de nós.
O controle passa a se exercer, assim, prioritariamente sobre a subjetividade, sendo que os discursos assumem uma importância fundamental na constituição de identidades - estas sempre múltiplas e mutáveis. Em um movimento perpassado pela comunicação instantânea e pelas novas tecnologias da informação e da comunicação, a tônica discursiva é colocada como nunca sobre a capacidade de inovação (especialmente de si próprio, reiventando-se continuamente), iniciativa e agilidade, atendendo às mudanças de um contexto cuja regra é a constante transformação. Assim, os discursos vigentes remetem a uma permanente "insuficiência" dos modos de ser e de trabalhar atrelada à exigência de flexibilidade e prontidão para conhecer, fazer e ser sempre outra coisa, de forma mais e mais alinhada às necessidades da empresa e do mercado, estas em constante mudança.
É nesse cenário que vemos se constituir o gerente contemporâneo, exigido a dar conta de um campo fortemente prescritivo em termos de normativas operacionais e sociais. Por normativas operacionais nos referimos, por exemplo, ao controle de metas e resultados a serem alcançados e à utilização, para tanto, de ferramentas tecnológicas de qualidade e de produtividade, que servem como instrumentos para a mensuração, o acompanhamento e a avaliação do desempenho do grupo de trabalho e do próprio gestor. De modo associado as primeiras, as normativas sociais dão conta de uma exigência sistemática, atualizada em discursos e práticas em relação à produção do gestor como alguém que deve ser criativo6, inovador, polivalente, empreendedor, e que deve saber reconhecer e aproveitar oportunidades de incremento produtivo, entre tantas outras características que não apenas deve possuir ou desenvolver, mas ser capaz de mobilizar entre seus subordinados - estes agora chamados de colaboradores ou de equipe.
Há, nesse ponto, uma certa ultrapassagem em relação à noção tradicional de liderança vinculada ao trabalho do gestor. Se antes o líder era tomado como alguém portador de características especiais, diferenciado dos demais e, por isso, colocando-se à frente dos subordinados, agora o gestor é tomado como um empreendedor, o qual se caracteriza essencialmente pela capacidade de suscitar o empreendedorismo também nos demais, mobilizando-se e mobilizando-os (ou mobilizando-se para mobilizá-los) para um incessamente autoinvestimento. Assim, as relações aqui entre poder, saber e verdade, perpassadas pelo controle disciplinar, remetem necessariamente ao governo de si e do outro em uma associação direta com o poder gerencialista, ou seja, com aquilo que Gaulejac (2007) refere como a produção de um autogerenciamento para a busca de alto desempenho e de competitividade, como uma certa produção subjetiva alinhada prioritariamente às necessidades econômicas do mundo globalizado.
Se, por um lado, essa demanda de produção subjetiva é dirigida hoje indiscriminadamente a todos os trabalhadores, por outro, parece encontrar um campo fértil junto àqueles que ocupam formalmente o lugar de gestores. Em relação a esses, parece haver, no seio das empresas, fortes expectativas e mesmo grandes esforços no sentido de desenvolvê-los a partir de uma concepção de "homem de negócios"/"homem de sucesso", flexíveis e motivados o bastante diante dos desafios e das dificuldades que o trabalho lhes apresenta. A capacidade de mobilização psíquica constante (de si e dos outros) coloca-se como parte do trabalho do gestor, fazendo-se necessário o estabelecimento de estratégias de produção do empreendedor também entre seus «liderados», o que, paradoxalmente, o coloca na posição de produtor de subjetividades-empreendedoras, contribuindo para a geração de um processo de homogeneização e individualização subjetiva.
Lembrando o que Lazzarato e Negri (2001) apontam acerca do trabalho imaterial, centrado especialmente na produção da subjetividade a partir da íntima relação entre trabalho e consumo, percebe-se que, ao fim e ao cabo, o que está em jogo é a tentativa de captura das singularidades, muitas vezes, submetendo-as a uma determinada imagem-identidade a ser seguida (a do empreendedor) como condição não apenas para o sucesso, mas, minimamente, para inclusão e manutenção do emprego. Apesar de a flexibilidade à mudança ser a expressão de ordem no contemporâneo, fica claro que essa abertura - que, mais que incentivada, é exigida -, só deve ocorrer dentro de certos limites, quais sejam: aqueles demarcados pelos interesses do capital. Assim, se há uma demanda pelo trabalhador criativo e pró-ativo, fica-nos claro que essa criatividade e iniciativa só podem se manter enquanto ajudem a incrementar os resultados organizacionais, sem problematizar as estratégias de dominação vigentes.
Os modos de trabalho toyotistas, amplamente difundidos nas últimas décadas, são um exemplo do que acabamos de apontar. Ao difundir como um de seus pressupostos a gestão participativa, através dos círculos de qualidade, percebe-se que a participação em questão aqui é voltada estritamente ao aprimoramento do processo produtivo e aumento da receita. Como referem Motta e Vasconcelos (2006), a participação do trabalhador na melhoria dos processos é uma forma de apropriação de seu saber e, além disto, de obter um maior envolvimento de sua parte, já que haveria uma tendência a se comprometer com o cumprimento e com o controle de algo que ele próprio ajudou a definir. Tratar-se-ia, assim, de uma participação restrita, uma estratégia de cooptação e subordinação que não permitiria qualquer crítica às relações ou à organização mais ampla do trabalho, mas, antes, serviria para docilizar e envolver os trabalhadores subjetivamente, convocando-os a produzir mais e a intensificar o controle de si e do outro. Nesse quadro, a proposição é de uma forma de gestão hierárquica "democrática", que incite os trabalhadores à "participação" e que, além disto, esteja capacitada a ouvir diferentes opiniões, promover o debate e gerir conflitos e relações interpessoais, obtendo a coesão e a soluções negociadas entre os grupos de trabalho e a administração da empresa (Motta & Vasconcelos, 2006), o que denota o papel político atribuído ao gerente contemporâneo.
Convém destacar que, nesse processo, as diversas prescrições que são dirigidas ao gerente, por fim, colocam em funcionamento junto aos grupos de trabalho os mesmos mecanismos pelos quais ele próprio é subjetivado. Com isso, afirmamos a concepção de que o gerente não se situa em um lugar necessariamente privilegiado em relação aos demais trabalhadores no que diz respeito a estar mais imune às estratégias de dominação do/no trabalho. Compreendemos que todas as dimensões que ele ajuda a colocar em funcionamento, dado o lugar que ocupa, incidem também sobre ele, por vezes, de formas diferentes - por exemplo, ele está tão sujeito aos instrumentos de avaliação da produtividade, os quais deve operar, quanto seus subordinados.
Em relação, especificamente, ao trabalho do gestor, Gaulejac (2007) refere que ele interioriza, mais do que qualquer outra pessoa, as contradições entre capital e trabalho, uma vez que, de um lado, é convocado a identificar-se com os interesses da empresa, interiorizar a lógica do lucro e aderir às normas e valores do sistema capitalista e, de outro, está submetido às imprevisibilidades da carreira, à pressão do trabalho e a uma forte competição. Poderíamos acrescentar a isso o paradoxo vivenciado pela posição de gestão que, sendo demandada a exercer o controle sobre o trabalho e sobre os coletivos, tem como primeiro compromisso o autocontrole, a produção de si própria. Além de atender a todo um universo prescritivo do ponto de vista do domínio de procedimentos, tem de responder também a fortes prescrições relacionadas à construção de uma carreira de sucesso, reunindo as competências necessárias para o exercício da liderança e do empreendedorismo, motivando os grupos de trabalho em relação ao alcance dos objetivos organizacionais. Assim, cabe uma vez mais destacar: nesse contexto, tomando a produção discursiva acerca dos modos de trabalhar e viver, o gerente parece se constituir tanto como instrumento, quanto objeto de tais produções que buscam subjugar os sujeitos, uma vez que está submetido às mesmas regras do jogo que ajuda a operar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando os diversos elementos envolvidos na produção dos modos de gestão contemporâneos, algumas importantes questões se colocam às pesquisas no âmbito da gestão. Considerando-se o poder gerencialista tal como descrito por Vincent de Gaulejac em sua associação com as estratégias neoliberais, perguntamo-nos sobre seus efeitos engendrados no plano da subjetividade dos trabalhadores. Considerando, ainda, o trabalho de gestão, compreendemos que é necessário fazer questão à experiência dos gestores em relação aos ideais prescritivos do trabalho contemporâneo. E mais: aos modos como tais ideais se imiscuem por entre táticas de disciplina e controle.
Para finalizar, entre tantos apontamentos a respeito das estratégias de dominação no trabalho contemporâneo, afirmamos a permanente possibilidade de resistência - colocada, inclusive, para aqueles que, em tese, têm seu fazer conectado de modo mais direto aos interesses da organização. Nesse sentido, como Ferigato e Carvalho (2009) afirmam, as técnicas de gestão, ao mesmo tempo em que escancaram técnicas particulares de governo, "produzem e reconstroem regras e práticas particulares que podem promover a manutenção da lógica social instituída ou transformá-la" (p. 62). Concordamos com os autores que, por mais capturados que estejam os trabalhadores, sempre haverá brechas a fluxos insuspeitos capazes de fazer questão aos modelos de gestão, em princípio tão sólidos em seus pressupostos.
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Recebido em: 03.06.2014
Primeira decisão editorial em: 04.12.2014
Versão final em: 28.12.2014
Aceito em: 30.01.2015
1 Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Rua Otávio Francisco Caruso da Rocha, 300, Praia de Belas. CEP: 90010395 - Porto Alegre, RS - Brasil. Telefone: (51) 32133370. E-mail: cibelevm@yahoo.com.br.
2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia. Ramiro Barcelos, 2600, Santana. CEP: 90035003 - Porto Alegre, RS - Brasil. Telefone: (51) 33085066.
3 Este artigo é parte de nossa pesquisa de Mestrado em andamento, bem como do projeto de pesquisa intitulado Trabalho, Subjetivação e Clínica - análises nos setores da assistência social, justiça e comunicações, o qual conta com financiamento CNPq Universal 14/2014 e está inserida no Núcleo de Pesquisas Instituições, Subjetivação e Trabalho em Análise(s) - (N-PISTAS) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
4 Aqui, incluímos um nó problemático referente aos modos de trabalhar no contemporâneo: podemos pensar que os «resultados satisfatórios» aqui mencionados não remetem, de fato, a um mínimo a ser produzido, índice que poderia balizar o investimento afetivo, cognitivo e biológico do sujeito no trabalho; antes, os resultados esperados pelas organizações parecem remeter a um máximo possível, convocando os trabalhadores a uma permanente e nunca suficiente mobilização de si para o trabalho, na busca por um «sempre mais». Assim, o que satisfaz, do ponto de vista dos resultados esperados, parece sempre se afastar na medida de cada passo do trabalhador para alcançá-lo.
5 O termo governo associa-se aqui, conforme leituras foucaultianas, ao intento de condução da conduta dos demais, atravessado pelos jogos de poder e saber, remetendo também, em última análise, ao governo de si mesmo.
6 É fundamental destacar aqui a importante diferença entre os termos «criatividade» e «criação». Enquanto a criação está em consonância com as forças em circulação, com a virtualidade do mundo e com a singularidade, a criatividade, tal como a abordamos, refere-se à produção de um novo que se dá sempre dentro de certos limites, comprometido com uma ordem dominante. Tomando especificamente o campo do trabalho, podemos pensar que as exigências acerca da criatividade, amplamente difundidas na atualidade, se constituem mesmo como uma perversa estratégia de dominação, na medida em que capturam a subjetividade justamente através da promessa de uma maior autonomia e uso das potencialidades do sujeito.