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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.18 no.1 Brasília jan./mar. 2018

https://doi.org/10.17652/rpot/2018.1.13337 

Significados de trabalho, prazer e sofrimento no ofício de agentes funerários

 

Meanings of work, pleasure and suffering in the tasks of funeral agents

 

Significados del trabajo, satisfacción y sufrimiento en el oficio de los trabajadores funerarios

 

 

Veronica Dalla Costa Flores; Eliana Perez Gonçalves de Moura

Universidade Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo direcionou-se a trabalhadores funerários, objetivando a compreensão dos significados do trabalho e vivências de prazer e sofrimento presentes neste ofício. Participaram dez trabalhadores de três funerárias da região metropolitana de Porto Alegre/RS. A pesquisa, de caráter qualitativo exploratório e descritivo, amparou-se na Psicodinâmica do Trabalho. A coleta de dados se deu pela realização de entrevistas individuais, que continham dez questões semiestruturadas e dados sociodemográficos. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas pela técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), visando às seguintes categorias: significados do trabalho, vivências de prazer e sofrimento, organização do trabalho, estratégias defensivas e estatuto social da profissão. Constatou-se que os agentes funerários atribuem significados ao seu trabalho, mesmo diante das vivências de sofrimento e preconceitos, o que é possível por meio das estratégias defensivas e flexibilização da organização do trabalho. Esse processo possibilita que se mantenham engajados e sintam-se reconhecidos, fator importante para a saúde mental.

Palavras chave: Agentes funerários; Saúde mental do trabalhador; Psicodinâmica do trabalho.


ABSTRACT

This study was aimed at funeral workers, seeking to understand the experiences of pleasure, suffering, and meanings of this work. Ten workers from three funeral homes in the metropolitan region of Porto Alegre, RS participated. The research, qualitative exploratory, and descriptive in character, was based on the Psychodynamics of Work. Data collection was carried out via individual interviews, containing ten semi-structured questions and sociodemographic data. The interviews were recorded, transcribed, and analyzed using the Content Analysis technique (Bardin, 1977), aiming at the categories: work meanings, experiences of pleasure and suffering, work organization, defensive strategies, and social status of the profession. It was found that funeral agents attribute meanings to their work, even in the face of experiences of suffering and prejudice, which is possible through defensive strategies and flexible work organization. This process enables them to stay engaged and feel recognized, an important factor for mental health.

Keywords: Funeral agents; Work psychodynamics; Worker's health.


RESUMEN

Estudio con trabajadores funerarios para comprender los significados del trabajo y las vivencias de satisfacción y sufrimiento en este oficio. Participaron diez trabajadores de tres funerarias de la región metropolitana de Porto Alegre/RS. La investigación cualitativa exploratoria y descriptiva se amparó en la Psicodinámica del Trabajo. Los datos fueron recopilados a partir de entrevistas individuales, que presentaban diez cuestiones semiestructuradas y datos sociodemográficos. Las entrevistas fueron grabadas, transcritas y analizadas según la técnica de Análisis de Contenido de Bardin (1977). Se tuvieron cuenta las siguientes categorías: significados del trabajo, vivencias de satisfacción y sufrimiento, organización del trabajo, estrategias defensivas y reglamento social de la profesión. Se constató que los trabajadores funerarios atribuyen significados a su trabajo, incluso ante las vivencias de sufrimiento y prejuicios, lo que es posible por medio de las estrategias defensivas y flexibilización de la organización del trabajo. Este proceso posibilita que se mantengan comprometidos y se sientan reconocidos, factor importante para la salud mental.

Palabras clave: trabajadores de funerarias; Salud mental del trabajador; Psicodinámica del trabajo.


 

 

Falar sobre a morte geralmente implica desconforto, porque soa como se fosse um convite a pensarmos sobre nossa vida, quem somos, como nos constituímos. O fato de termos a consciência da finitude nos possibilita atribuir maior sentido à vida e ao tempo que ainda temos para aproveitá-la de forma plena. Porém, estar ciente desta condição pode ser muito angustiante e paralisar o sujeito diante da reflexão da sua própria existência (Câmara, 2011).

A morte é considerada o último estágio do desenvolvimento humano e pode ser entendida como um evento biológico que encerra uma vida. Porém, pensá-la apenas por esta perspectiva, a partir da cessação dos batimentos cardíacos, resulta obsoleto. A morte é muito mais do que um fato biológico - é um processo construído socialmente, que não se diferencia das outras dimensões das relações sociais. É um evento capaz de gerar nos seres humanos muito sofrimento, seja naquele que está à beira da morte, seja naqueles que estão à sua volta (Brêtas, Oliveira & Yamaguti, 2006).

De fato, a morte constitui um evento inevitável, sendo um tema pouco abordado e evitado. Contudo, sob o manto da invisibilidade, existem pessoas que, cotidianamente, lidam com a morte em razão de seu fazer profissional. Comumente, quando se fala em profissionais que lidam com a morte, costuma-se olhar diretamente a realidade hospitalar, em que, normalmente, profissionais da saúde, como médicos e enfermeiros, convivem com tal fato. Nesse sentido, percebe-se que há maior interesse científico com esses trabalhadores que lidam diretamente com a morte no hospital, questão que fica evidenciada diante do grande número de estudos existentes (Almeida & Cardozo, 2012; Bandeira, Cogo, Hildebrandt, & Bradke, 2014; Duarte, Almeida, & Popim, 2015; Kuster & Bisogno, 2010; Magalhães & Melo, 2015; Marques, Veronez, Sanches, & Higarashi, 2013; Medeiros, Azevedo, & Oliveira, 2014; Salimena, Ferreira, & Melo, 2015; Santos & Hormanez, 2013). Olhar para o profissional da saúde e para suas vivências cotidianas diante da morte e do morrer é extremamente necessário. Porém, ainda são poucos os estudos que direcionam o seu olhar ao profissional agente funerário, o trabalhador que não trabalha com a pessoa ainda em vida, mas se encarrega dos cuidados desta após a sua morte.

Câmara (2011) ressalta que as profissões que lidam diretamente com a morte acabam por se tornar um grande tabu, pois denunciam o que não se quer ver, nem aceitar. Especialmente, o agente funerário constitui um ofício que impõe a este trabalhador tocar a morte em sua concretude, posto que seu principal objeto de trabalho é o corpo morto. Quando se trabalha com a morte como ofício, inevitavelmente, denunciam-se as formas mais variadas de sofrimento, histórias e dores que, em algum momento, podem se confundir com a história deste trabalhador.

O presente estudo aborda o ofício dos agentes funerários, trabalhadores estes conhecidos por lidarem diretamente com a morte. De acordo com o Cadastro Brasileiro de Ocupações (CBO), o agente funerário é um trabalhador cujas atribuições do cargo são a organização de funerais e o cuidado com todos os preparativos necessários para velórios, a responsabilidade pela burocracia que envolve registros de óbitos e demais documentos que se façam pertinentes, a liberação de corpos, bem como a remoção e o translado de cadáveres, os sepultamentos, a condução do cortejo fúnebre, a preparação de cadáveres em urnas e a ornamentação, a conservação de corpos por meio de técnicas de tanatopraxia1 ou embalsamento, e o embelezamento por meio da aplicação de cosméticos específicos, denominados necromaquiagens. Interessantemente, também são mencionadas competências pessoais necessárias ao exercício da profissão, como ser confiável e paciente, sem preconceitos, estabelecer real identificação com o ofício, saber negociar, ter controle emocional, ser ético, atualizado, ter boa postura profissional, demonstrar que possui conhecimentos técnicos e legais, e ter capacidade de manter sigilo (Ministério do Trabalho e Emprego - MTE, 2010).

Conforme já mencionado, os serviços dos agentes funerários como profissionais são direcionados especificamente ao corpo sem vida, questão que ainda é considerada um grande tabu para muitos que não conhecem este trabalho em sua totalidade. Costuma ser comum haver pessoas que enxergam esta profissão com muito preconceito. Geralmente, são pessoas que não entendem como esses trabalhadores podem suportar esse tipo de manuseio, como podem ser capazes de trabalhar diretamente com um cadáver. Apesar de ser uma prática muito importante e necessária para a sociedade, é ainda uma profissão pouco reconhecida no meio social.

Para Ruiz e Cavalcante (2007), responsabilizar-se pelo cuidado da morte e do corpo morto e ganhar dinheiro com tal atividade pode soar de extrema crueldade, principalmente porque, naquele momento, as pessoas estão vivenciando uma experiência dolorosa. Vivemos em uma sociedade na qual temos consciência de que devemos pagar pelos serviços que consumimos em nosso dia a dia. Contudo, pagar pelos serviços funerários costuma ser visto como não adequado porque consiste em um ato de mercantilização da morte. Entretanto, é preciso destacar que este tipo de serviço vem crescendo no mercado, buscando especialização, procurando oferecer novos produtos e inovações (Câmara, 2011).

Desse modo, o presente estudo apresenta os resultados de uma pesquisa desenvolvida junto a dez trabalhadores funerários vinculados a três funerárias de cidades da região metropolitana de Porto Alegre/RS. Assim, desenvolvemos uma pesquisa de caráter qualitativo exploratório e descritivo, tomando como referência as postulações teóricas da Psicodinâmica do Trabalho, visando a compreender os significados do trabalho para os agentes funerários, analisar as vivências de prazer e sofrimento presentes neste ofício e identificar possíveis dificuldades e motivações para o exercício da sua prática.

 

Sobre um trabalho que toca a morte

Quando se pensa o trabalho nos dias atuais, percebe-se o quanto esse passou a se relacionar com questões que vão além da busca salarial ou simplesmente do ato de trabalhar. Existe uma compensação social no trabalho que possibilita ao sujeito reconhecimento, gratificações, sentimento de pertencimento a grupos e a direitos sociais. O trabalho possui função psíquica, sendo considerado um dos grandes alicerces da constituição da identidade e subjetividade do sujeito, bem como sua rede de significados (Lancman & Ghirardi, 2002).

O psicanalista francês Christophe Dejours, ao longo de sua trajetória, sempre demonstrou interesse no estudo das relações homem e trabalho. Nos anos 1970, deu início à Psicodinâmica do Trabalho, uma disciplina teórica que engloba, ao mesmo tempo, a teoria social e a psicanálise, que se dedica a inscrever os resultados da investigação clínica da relação entre o trabalho e o sujeito (Dejours, 2004). Posteriormente, Dejours interessou-se mais especificamente pela dinâmica do sofrimento e do prazer diante do ofício, constatando que a organização do trabalho pode ser prejudicial para a saúde mental quando coloca obstáculos à elaboração do sofrimento e da sua transformação em prazer, sendo que podemos afirmar que não há neutralidade do trabalho diante da saúde mental (Molinier, 2004).

Os trabalhadores do segmento funerário, profissionais que protagonizam esta pesquisa, exercem o seu ofício tomando como seu principal objeto de trabalho a morte e o corpo sem vida. De acordo com Câmara (2011), a morte é considerada o último estágio do desenvolvimento humano, e é um acontecimento capaz de despertar muito sofrimento aos que ficam, mesmo nos tempos em que se falava sobre a morte, em que era comum "participar" do processo de morrer, estando junto com a pessoa até o momento de seu óbito.

No que se refere à cultura funerária, percebe-se que passou por muitas mudanças, tornando-se um segmento cada vez mais caro e complexo. Começaram a surgir no mercado novos produtos e serviços, sendo esses acompanhados pelos avanços tecnológicos e industriais de uma cultura direcionada para o consumo. O profissional agente funerário também sentiu os efeitos dessas mudanças e ganhou tal denominação em função disso, em um contexto capitalista que mercantilizou os serviços funerários. Além disso, esse trabalhador também passa por muitas cobranças sociais e sofre diante da rejeição gerada pela natureza do seu trabalho. Para muitos, é preciso que sejam fortes e frios para lidar com esta realidade, caso contrário, não são considerados aptos para executar tal função (Câmara, 2011).

De acordo com Ruiz e Cavalcante (2007), os trabalhadores que convivem com a morte costumam ser alvo de piadas e preconceito. Apontam que a relação com os clientes pode tornar-se tensa em alguns momentos, pois o agente funerário é visto como a materialização da dor, da perda propriamente dita, sendo rotulados como profissionais que ganham às custas do sofrimento alheio.

 

Método

Este estudo possui caráter estritamente qualitativo, pois, conforme as especificidades do referencial teórico aqui assumido "Psicodinâmica do Trabalho", aborda um objeto de estudo cujos aspectos intrínsecos não podem ser quantificados, nem medidos. De acordo com Godoy (1995), a pesquisa qualitativa "Envolve a obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo." (p. 58)

A Psicodinâmica do Trabalho, por sua vez, é a principal inspiração para esta pesquisa, pois, por meio dessa abordagem, é possível falar em clínica do trabalho, questão que assume posição central quando o tema abordado é o trabalho humano. A clínica do trabalho, para Heloani e Lancman (2004), busca:

...desenvolver o campo da saúde mental e trabalho, partindo do trabalho de campo e se deslocando e retornando constantemente a ele. Visa intervir em situações concretas de trabalho, compreender os processos psíquicos envolvidos e formular avanços teóricos e metodológicos reproduzíveis a outros contextos. (p. 82)

Tratando-se da clínica do trabalho, convém destacar como o momento de entrevista assume importância central. De acordo com Mendes (2007):

Se deve considerar como princípio metodológico fundamental, a escuta e a interpretação da fala do entrevistado. Parte do pressuposto de que, pela palavra, o trabalhador pode tornar visível o invisível e, consequentemente, descobrir o oculto e o desconhecido sobre suas relações com o contexto de trabalho, no momento em que lhe é permitido pensar, junto com o pesquisador, as suas experiências. O pesquisador deve estar livre para escutar o que está fora da sua expectativa. As hipóteses devem acompanhar as questões, as quais não devem seguir um roteiro ritualístico. É importante a concentração e envolvimento emocional, não colocando o sujeito da pesquisa na condição de objeto. Desse modo, o pesquisador assume uma atitude clínica. Tal atitude implica priorizar a lógica do entrevistado, centrando-se na relação subjetiva do entrevistado com o objeto do discurso, no caso a organização do trabalho, o prazer-sofrimento, as mediações e o processo saúde-adoecimento. (p. 67-68)

Nesse sentido, também Minayo (1992) destaca o quanto a entrevista individual é um privilegiado instrumento de coleta de dados, pois torna a fala reveladora de condições estruturais, de valores, de símbolos, normas, trazendo representações de condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas do sujeito.

No que tange à presente pesquisa, convém ressaltar que, embora inspirada na Psicodinâmica do Trabalho, fez-se uso parcial do seu desenho metodológico, que pressupõe a criação de fóruns de discussões coletivas combinados ao uso das entrevistas individuais. Esta opção metodológica se justifica pelo caráter exploratório do estudo e, também, pelo fato dos agentes funerários serem vinculados a três diferentes locais de trabalho. Além disso, considerando a imprevisibilidade de sua tarefa que não lhes permite saber quando serão acionados a prestar seus serviços, em cada uma das empresas funerárias participantes deste estudo não encontramos oportunidade para reunir a categoria profissional para encontros de discussões grupais. Daí a realização das entrevistas individuais.

Assim, os participantes do presente estudo são vinculados a três agências funerárias, situadas na região metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul - RS. O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade Feevale e aprovado, conforme expresso no parecer Nº 1.708.245.

No que se refere à coleta de informações, estas foram obtidas mediante a realização de dez entrevistas individuais semiestruturadas. O critério de seleção dos participantes foi possuírem tempo mínimo de seis meses de experiência na função. Nos momentos iniciais de cada entrevista, os agentes funerários foram informados sobre os aspectos éticos envolvidos na pesquisa, bem como sobre o caráter voluntário de sua participação no estudo e, principalmente, sobre o contrato de sigilo. Após o conhecimento de todos os detalhes deste estudo, do esclarecimento de dúvidas e da concordância dos participantes, todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

As entrevistas individuais ocorreram de acordo com a disponibilidade de horário dos agentes funerários, dentro de seus locais de trabalho, tal como estava previamente acordado com a direção das empresas que fizeram parte do estudo, a partir de contato preliminar. A clínica do trabalho requer que os momentos de entrevista sejam gravados e transcritos na íntegra, considerando que é na fala do sujeito que se encontram os aspectos fundamentais para apreensão do objeto e para a interpretação dos dados (Mendes, 2007).

Finalmente, para a análise dos dados, utilizou-se a técnica de Análise de Conteúdo (Bardin, 1977), que propõe que o material, após transcrito, seja submetido à uma primeira leitura exploratória, seguido das fases de organização, sistematização e categorização. As entrevistas com os agentes funerários foram analisadas de forma subjetiva, observando as categorias temáticas definidas a priori: significados do trabalho, vivências de prazer e sofrimento, organização do trabalho e estratégias defensivas, e uma categoria emergida a posteriori, a qual denominamos estatuto social da profissão.

 

Resultados e Discussão

As entrevistas individuais foram divididas em dois níveis de informações. O primeiro nível visou a obter informações relativas a dados sociodemográficos. Assim, foi possível esboçar um perfil geral dos agentes funerários entrevistados, além de coletar informações acerca de acidentes de trabalho e eventual consumo de substâncias, tais como álcool, fumo e medicamentos controlados.

Nesse sentido, o grupo de participantes da pesquisa caracteriza-se por ser predominantemente do sexo masculino; casado; possuir idade na faixa etária situada entre 30 e 56 anos; Ensino Médio completo e possuir um credo religioso. O tempo de experiência na função é variado, mas destaca-se a presença de entrevistados que possuem 30 anos de experiência como agentes funerários.

Quanto à ocorrência de acidentes de trabalho, constatou-se que a maioria dos participantes da pesquisa (80%) informou não ter sofrido acidentes durante o exercício de seu ofício. Este dado resulta significativo, considerando que a remoção de corpos faz parte das atribuições do agente funerário e que acidentes de trânsito, quando ocorrem no cumprimento do ofício, são considerados acidentes de trabalho.

Finalmente, quanto ao consumo de substâncias lícitas, mais da metade do grupo (60%) afirmou consumir algum tipo de substância, seja álcool, fumo ou medicamentos controlados. Se considerarmos aqueles que atualmente não consomem, mas admitem que já consumiram (30%), poderemos afirmar que o grupo investigado se caracteriza por consumir algum tipo de substância lícita.

No segundo nível da entrevista, os trabalhadores investigados foram convidados a responder a um roteiro semiestruturado, contendo dez questões de caráter exploratório que, posteriormente, foram analisados à luz do referencial da Psicodinâmica do Trabalho. A fim de preservar o anonimato dos agentes funerários, passaremos a identificá-los pela letra E (entrevistado), seguida do número que expressa a ordem de realização das entrevistas individuais, por exemplo: E1 será a sigla usada para designar o Entrevistado nº 1 e assim por diante, até E10 para designar o Entrevistado nº 10.

Organização do trabalho

A organização do trabalho e a realidade da atividade passam por uma construção social. De acordo com Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994), a organização do trabalho pode ser considerada uma relação social que passa por compromissos e negociações, sendo fundamentalmente evolutiva, ou seja, é sobredeterminada pela qualidade da comunicação intersubjetiva, que ultrapassa os imperativos da divisão técnica do trabalho. Se, por um lado, as condições de trabalho atuam no nível do corpo, a organização do trabalho relaciona-se, especificamente, ao funcionamento psíquico.

A organização do trabalho dos agentes funerários se dá, de modo geral, diante de cinco grandes tarefas: (a) o atendimento às famílias, (b) remoção de corpos, (C) preparação de corpos, (d) organização de velórios e (e) os sepultamentos. Em cada uma dessas etapas, existem algumas especificidades a serem abordadas.

Primeiramente, no que se refere ao atendimento às famílias, esses profissionais desenvolvem o trabalho de conforto aos familiares e também lidam com questões burocráticas envolvidas no processo de óbito. Esse conforto se dá por meio dos primeiros contatos, em que os agentes funerários acolhem as famílias que perderam seus entes queridos, procurando ouvi-los, colocando-se em uma posição empática e de auxílio, pois, muitas vezes, é a primeira vez que as famílias passam por situações como essa e, talvez, por esse motivo, apresentam dificuldades quanto ao modo como devem conduzir. Para os agentes funerários, o conforto às famílias também pode ser manifestado por meio do trabalho feito com o corpo, pelo qual esse profissional busca "amenizar as feições da morte", logrando que a pessoa falecida fique com a aparência mais natural possível, o que, segundo o trabalhador E10, também é confortante aos familiares: "Quando eu boto um corpo a velar, tipo, a pessoa vem debilitada, branquinha, com marca do soro no rosto, aí assim, eu vou colocar numa capela, como eu vou amenizar um pouquinho daquela tristeza? É deixando aquele corpo bonito, arrumado. Tem pessoas que dizem "Bah, ela era tão bonita, ela nunca se arrumava assim", então, aquilo ameniza um pouco a dor" (E10).

A remoção dos corpos é o momento no qual os agentes funerários são acionados para comparecer ao local do óbito e fazer o recolhimento do cadáver. Praticamente todas as funerárias da região estudada fazem parte da chamada Central de Recolhimento. Todas as empresas do ramo prestam o serviço de remoção aleatoriamente, na forma de rodízio. Após esse processo, o corpo é levado para determinados locais, dependendo das especificidades do ocorrido, por exemplo, ao IML, em caso de morte violenta, ou para o hospital, onde o médico registra o óbito, caso a pessoa tenha falecido em casa.

A etapa da preparação do corpo2 exige do agente funerário um manuseio bastante direto com o seu objeto de trabalho: o corpo morto. Todos os trabalhadores que exercem essa prática devem utilizar equipamentos de proteção individual adequados. O processo de preparação ocorre a partir do momento em que a pessoa falecida chega à funerária. Primeiramente, o corpo é colocado sob uma mesa de material inoxidável, onde os agentes funerários fazem a higienização externa, dando o banho com jatos de duchas, secando o corpo e os cabelos. O passo seguinte é direcionado para a execução de um procedimento mais técnico no processo de preparação, através da técnica de tanatopraxia, sendo este um conhecimento bem específico obtido por meio de uma formação técnica voltada aos profissionais que a executam. A tanatopraxia é uma técnica de higienização interna por meio da qual é feita a troca dos fluídos corpóreos, conforme explicação do trabalhador E3: "A gente faz uma incisão na artéria, na femoral, e um dreno na veia, aí injeta o produto pela artéria e drena o sangue pela veia. Aí enquanto vai entrando, tu faz uma massagem suave no corpo, vamos dizer assim, pra tentar ativar a circulação para o produto que está sendo injetado atingir os vasos capilares. O sangue é descartado, evacuado (sic) o corpo fica com um aspecto bem mais natural e evita a eliminação de odores que podem ser desagradáveis" (E3).

Ao final do processo da tanatopraxia, são feitos os tamponamentos, onde é preciso obstruir todos os orifícios do corpo com o intuito de evitar a saída de fluidos ou gases.

Também existe um cuidado com a parte estética, em que utilizam maquiagens específicas para cadáveres, as chamadas necromaquiagens. Também pintam as unhas, arrumam os cabelos, perfumam, etc. Os agentes funerários trabalham também com produtos específicos para a reconstrução de determinadas partes do corpo, dependendo do seu estado. Comumente, a reconstrução é direcionada à face e às mãos, que são as partes mais expostas durante o velório. Tratando-se das vestimentas, os agentes funerários sugerem que os familiares tragam roupas que não deixem a pessoa falecida muito exposta, sendo esta uma medida importante caso esteja muito machucada, ou com curativos. Por fim, é feito o processo de ornamentação com o corpo já dentro do caixão, onde colocam flores, almofadas, véus, deixando tudo pronto para levar à capela.

O momento seguinte é o processo de ritualização, o velório. Os profissionais levam o corpo dentro de carros fúnebres, normalmente carros que possuem um vasto espaço, onde cabem caixões de todos os tamanhos, sendo transladados diretamente para o local escolhido pela família para velar seu familiar, independente da distância. Chegando ao local do velório, o caixão é retirado do carro e é colocado no local indicado na capela. Existem funerárias que oferecem alguns serviços complementares às famílias para o momento de despedida, por exemplo, os cerimoniais, que caracterizam como momentos de última homenagem à pessoa falecida.

Por fim, caracterizada como a última grande área, ocorre o momento do sepultamento. Os agentes funerários retiram o corpo da capela, conduzem o cortejo fúnebre, encaminham o sepultamento, levam até o cemitério e puxam o enterro. Assim como para o velório, o corpo também deve ser levado até o local onde a família tem o desejo de enterrá-lo. Algumas famílias preferem optar pela cremação do seu familiar.

Observando todas as especificidades que envolvem o ofício do agente funerário, percebe-se que sua rotina de trabalho é permeada pela apropriação de muitos saberes, muitas vezes, além do que está necessariamente prescrito, sendo estes construídos pelo próprio trabalhador, que precisa estar por dentro de questões burocráticas, elaborar os rituais, trabalhar com o cuidado do outro. É importante ressaltar que, durante as entrevistas, muitos trabalhadores afirmaram: "eu faço um pouco de tudo" (E1, E3, E4, E7, E8, E9, E10). Embora em alguns estabelecimentos exista uma tentativa de separar a equipe por funções, pela natureza da atividade que é sempre imprevisível, a maioria acaba envolvendo-se com todas as grandes áreas.

Nesse sentido, esta imprevisibilidade que obriga os agentes funerários a fazerem "um pouco de tudo" pode constituir algo interessante para seus interesses de saúde mental. Vale lembrar que, de acordo com Dejours et al. (1994), é preciso flexibilizar a organização de trabalho a fim de transformar um trabalho fatigante em equilibrante. Essa flexibilidade requer deixar maior liberdade ao trabalhador para que este rearranje seu modo operatório, encontrando gestos capazes de lhe fornecer prazer diante de seu ofício. Isto é possível por meio da expansão ou diminuição de sua carga psíquica de trabalho, porém, caso não exista a possibilidade de liberalizar a organização do trabalho, o trabalhador precisa encarar um processo de reorientação profissional que vá ao encontro com as suas aptidões e com as necessidades de sua economia psicossomática.

Significados do trabalho

A maioria das pessoas, mesmo que tenha a possibilidade de viver até o fim de suas vidas confortavelmente, com plenas condições financeiras, não deixariam de exercer atividades laborais, pois o trabalho é muito mais do que uma fonte de sustento, é um meio de relacionar-se, sentir-se parte de um grupo, da sociedade, de atingir objetivos de vida (Morin, 2001). Se o homem reconhecer o trabalho somente como algo obrigatório e necessário à sobrevivência e aquisições, deixa de perceber esse mesmo trabalho como a categoria integradora, pela qual pode criar e reconhecer-se enquanto indivíduo e agente social. O homem, alienado, torna-se apenas um produtor e consumidor de capital, deixando de buscar sua identidade e atribuir significado as atividades que executa (Tolfo & Piccinini, 2007).

Para os agentes funerários, o significado do seu trabalho se constitui em torno das especificidades do seu ofício. Os agentes funerários afirmam seu trabalho como um fazer muito necessário e importante, que exige grande responsabilidade pelo cuidado do outro. Os trabalhadores ressaltam em suas falas: "Hoje, sinceramente, não me vejo fazendo outra coisa, a gente faz um trabalho muito importante" (E3); "Eu acho a minha profissão magnífica" (E4); "Eu acho uma profissão muito interessante" (E5); "É uma profissão bonita" (E9).

Para Dejours et al. (1994), o trabalho não é apenas um teatro aberto ao investimento subjetivo, ele é também um espaço de construção do sentido, em que o trabalhador conquista a sua identidade, um espaço de continuidade, da historicização do sujeito.

Vivências de prazer e sofrimento

As vivências de prazer e sofrimento no trabalho são subjetivas, portanto, não se dão da mesma forma para nenhum outro sujeito. Essas vivências implicam um ser de carne e osso, porém, portador de uma história, um sujeito absolutamente singular. O trabalho pode vir a tornar-se perigoso à saúde mental quando se opõe a sua livre atividade. No entanto, quando o sofrimento pode ser transformado em criatividade, traz consigo uma contribuição capaz de beneficiar a identidade do trabalhador, o que aumenta a possibilidade de o sujeito resistir ao risco de desestabilização somática e psíquica. O bem estar no trabalho surge a partir de um livre funcionamento, articulado dialeticamente com as atribuições da tarefa e o seu fazer propriamente dito. O prazer na atividade laboral corresponde a uma diminuição da carga psíquica do trabalho, questão que se torna um instrumento de equilíbrio para o trabalhador (Dejours et al., 1994).

Analisando o contexto de trabalho dos agentes funerários, pode-se ressaltar que suas vivências de prazer são fortemente relacionadas ao processo de preparação do corpo e ao atendimento dos familiares. Ambas as atribuições evidenciam aquilo que se pode considerar a verdadeira essência do ofício deste profissional, um fazer que envolve o cuidado com o outro. De acordo com os relatos dos agentes funerários, são os seguintes fatores principais que possibilitam o recebimento do reconhecimento que almejam em seu trabalho: "Sabe, tem pessoas que vêm aqui depois... eles vêm nos agradecer pelo atendimento e tal, então, é uma parte assim, gratificante sabe, que tu se sente bem e tu faz a pessoa se sentir bem" (E4). "O que eu ouço das famílias, assim, que pra mim não tem preço, "parece que tá dormindo", isso mostra que foi bem feito, a gente se sente bem né, atingiu o que a família tá esperando. É um reconhecimento, e eu acho isso importante" (E7). "De tratar assim com a família eu gosto... principalmente daquela que eu faço todo o atendimento assim, desde que eles chegaram, até preparar o corpo, tudo, levar na capela. Aquele "bah, muito obrigado", aquele "eu não sei o que eu ia fazer se não fosse tu" ou algo assim do gênero sabe, eu acho isso bem gratificante" (E9).

Em relação às questões que se referem às vivências de prazer que levam o sujeito a uma condição de saúde mental no contexto de trabalho, Merlo (2014) ressalta que:

O que as pessoas esperam, acima de tudo, é uma retribuição moral. É a dimensão moral e simbólica que conta. O que as pessoas esperam é que se reconheça a qualidade do trabalho. A qualidade da sua contribuição. Essa contribuição pode passar, eventualmente, por uma forma material, seja de prêmios, adiantamentos, ou do próprio salário. Mas, mesmo com o impacto de prêmios, adiantamentos ou salário, o verdadeiro impacto psicológico está ligado à dimensão simbólica. Este é o verdadeiro reconhecimento qualitativo pelo serviço prestado. As pessoas trabalham por esse reconhecimento. (p. 18)

Contudo, pensando nas questões relacionadas ao sofrimento, Dejours et al. (1994) afirmam que o sofrimento é considerado o campo que separa a doença da saúde. Entre o homem e a organização prescrita do trabalho existe, em alguns momentos, um espaço de liberdade que autoriza a criação e/ou a negociação com essa organização para que ela venha a tornar-se mais adaptada às suas necessidades como trabalhador, para torná-la mais congruente com o seu desejo. Porém, quando essa negociação é conduzida até o seu limite final, essa questão bloqueia a relação do trabalhador com a organização do trabalho, o que origina o sofrimento. Essa luta contra o sofrimento pode conduzir ao ocultamento da situação, à sua identificação sob forma de patologia, ou também ao enfrentamento da causa do sofrimento enraizada nas situações de trabalho. A carga psíquica do trabalho resulta da confrontação da injunção do empregador ao desejo do trabalhador e pode vir a aumentar quando a liberdade da organização do trabalho diminui.

As vivências de sofrimento evidenciadas na fala dos agentes funerários, diante de sua realidade de trabalho, são relacionadas às dificuldades em atendimentos de óbitos que envolvam situações que os remetam a algo de suas experiências pessoais, por exemplo, o atendimento de crianças, questão que fica evidenciada na fala de alguns trabalhadores: "Uma das partes mais doloridas hoje, pra mim, é bebê e crianças" (E4); "Se eu pudesse escolher não pegar um serviço, assim, seria criança" (E10).

O trabalhador E7 especifica uma situação: "Teve agora uma criança... faleceu ali no hospital, teve um AVC (sic) bah, se eu não estiver tranquilo, não vou fazer, eu vou chorar quando olhar a criança. Quando fomos levar ela pro velório, e daí, bah, a mãe quando entrou na sala de velório se ajoelhou e começou a gritar 'te levanta, filha! Levanta! Por que Deus fez isso comigo?' (sic) eu não vivi aquele momento, eu saí da volta, porque já absorvi um monte... é muito sofrimento, eu já tive que absorver lá pra preparar ela né?" (E7).

Além do atendimento às crianças, existem também outras situações no contexto de trabalho dos agentes funerários que os mobilizam, em função de remeterem às suas próprias histórias: "Eu me envolvo demais com as famílias, eu me envolvo com a dor deles, às vezes isso fica comigo. Eu atendi uma família uma vez, e eles eram entre cinco irmãos, como eu, eu e meus quatro irmãos né, e morreu a mãe deles com cinquenta e quatro anos, mesma idade da minha... então aquilo me envolveu muito porque é muito parecido com a minha história sabe, então, nossa, te choca sabe" (E2). "Nós perdemos um colega... bah, foi muito triste. Eu também tive que arrumar o patrão né, que faleceu, e são experiências que, bah... na hora de fechar o caixão eu até pensei em largar essa profissão, porque a gente tem que arrumar as pessoas que tu gosta (sic)" (E7).

Algumas situações relatadas como difíceis pelos agentes funerários referem-se ao relacionamento com familiares, que pode tornar-se bastante tenso, dependendo da situação. De acordo com Ruiz e Cavalcante (2007), a relação entre familiares e os agentes funerários pode vir a se tornar tensa, não somente porque este trabalhador personifica a dimensão trágica da vida que é a morte, mas também porque ele é a expressão de relações econômicas capitalistas em um momento doloroso: "Nunca se deve dizer para as pessoas, 'calma' porque, já estão nervosos, e dizer 'não, calma', vão te perguntar 'calma porquê? Não é contigo que tá acontecendo!' ...então a gente tem que ter esse cuidado de como conversar com as famílias, porque às vezes se tu vai falar alguma coisa, podem se ofender né" (E4). "Tem casos que tu chega lá no velório com o corpo, a família já olha torto pra ti, porque nem querem que tu fique ali. Às vezes tu é chamado pra fazer um recolhimento na rua tal, aí tu chega e já te dizem, 'não chegou nem a perícia, mas o que é que tu já tá fazendo aqui?', aí até tu explicar né, que tu é da central de recolhimento, que tá ali pra prestar um serviço (sic) é complicado" (E9).

Estratégias defensivas

O sofrimento no trabalho suscita a elaboração de estratégias defensivas, sendo estas organizadas, construídas e gerenciadas coletivamente. As defesas coletivas utilizadas pelos trabalhadores promovem a eufemização da percepção acerca da realidade que os coloca em sofrimento. Algumas pressões organizacionais mostram-se, em alguns momentos, de forma bastante irredutíveis no contexto de trabalho e, diante disso, graças às defesas coletivas, os trabalhadores conseguem contornar tal rigidez, minimizando e até transformando sua forma de ver e lidar com tais pressões. Esta operação ocorre estritamente pela via psíquica, o que, geralmente, não modifica a realidade, mas faz com que os trabalhadores consigam sair da posição de vítimas passivas, colocando-se como agentes ativos de uma atitude provocadora, de um desafio (Dejours et al., 1994).

No âmbito desta pesquisa, do total de dez agentes funerários que participaram do estudo, pelo menos nove afirmaram seguir doutrinas cristãs. Trata-se de dado relevante, posto que, diante das especificidades do ofício destes trabalhadores, nos permite suspeitar que a religião opere como uma das principais estratégias coletivas de defesa. Essa questão evidencia que, mesmo diante das dificuldades existentes na rotina do agente funerário, a estratégia defensiva caracterizada como a fé em um "ser superior" torna seu fazer uma condição estruturante, capaz de transformar as vivências de sofrimento em prazer no trabalho. O trabalhador E3, por exemplo, afirma: "encontrei assim, no lado espiritual, bastante ajuda, eu sou evangélico há mais ou menos uns cinco anos". Os entrevistados E4 e E7 também ressaltam questões semelhantes: "Se a gente não tiver Deus, não tem como. No meu caso, eu sou pai, tá? O meu primeiro serviço sabe qual foi? Uma remoção no IML de um gurizinho de onze anos atropelado. Sempre tive medo, e já dá de cara um serviço com uma criança (sic) o que eu fiz? 'Deus, me dê força pra isso, eu sozinho não consigo', e fui (E4)."Entrego na mão de Deus, faço minhas orações até pra eu me manter tranquilo (sic) quando eu precisei preparar aquela menininha, eu pedi pra me deixarem sozinho uns minutos com ela, aí eu fiz a minha oração né, botei ela na mesa, fiquei tranquilo e sereno, graças a Deus deu tudo certo"(E7).

Em uma das equipes de agentes funerários, também podem-se identificar algumas falas que sugerem determinadas formas de funcionamento que parecem operar como estratégias de defesa coletiva. Nota-se que esse grupo criou um movimento de "apoio mútuo" para que se evite e/ou sejam amenizadas situações de sofrimento no contexto de trabalho: "Aqui, a gente evita de um colega levar situações pro outro, tu acaba pesando no outro né (sic) então, a gente não se conversa sobre, mas a gente se abraça, se ajuda" (E2).

É importante ressaltar que existem diferenças entre os mecanismos de defesa individual e as estratégias defensivas elaboradas coletivamente. De acordo com Dejours et al. (1994), o mecanismo de defesa, no sentido psicanalítico, está interiorizado no sujeito, persistindo mesmo sem a presença de outros. Já as estratégias defensivas decorrem de condições externas, não se sustentam a não ser pela ordem coletiva. Essas questões podem ser percebidas no contexto dos agentes funerários, que para dar conta da realidade do seu ofício, que em alguns momentos traz à tona vivências de sofrimento, conseguem elaborar coletivamente estratégias de defesa por meio de "consensos silenciosos".

Estatuto social da profissão

A presente categoria, definida a posteriori e caracterizada como a visão social do ofício de agente funerário, não foi pré-definida para este estudo. As importantes considerações acerca do estatuto social da profissão surgiram nos momentos de entrevista com os trabalhadores, que colocaram constantemente a maneira como se sentem diante da forma como são vistos socialmente. Câmara (2011) ressalta que esta sociedade que procura camuflar e até esconder a morte, necessita de profissionais que amenizem as feições daquela que não deveria se fazer presente, que deveria ser silenciada. Porém, é intrigante observar que esta mesma sociedade apresenta grandes dificuldades para valorizar tais profissionais como importantes.

Alguns agentes funerários ressaltam que a visão negativa que permeia o seu fazer origina-se da falta de ética de alguns profissionais do ramo, que se aproveitam da fragilidade das famílias. Os trabalhadores comentam: "Tu pega muita 'falcatruagem' nesse meio aí (sic) então tu tem que passar para as pessoas uma imagem, entendeu... têm pessoas que se aproveitam, infelizmente" (E1)."Tem gente que acha que pessoas de funerária são 'ah, tão só esperando morrer', porque tem muitas 'funerariazinhas', né, que tão em volta do hospital, que tão ali, tu entra com teu familiar doente eles já tão ali querendo saber o que é né" (E2)."A sociedade vê muito errado, tipo, se eu tô no hospital e tenho um parente baixado lá, já podem pensar que eu já tô vendo se alguém tá morrendo, e não é assim" (E10).

Uma questão interessante é o fato da prática de serviços funerários ter sido considerada de grande reconhecimento e valorização social antes de se configurar como profissão e, portanto, passar a incorporar aspectos financeiros (Câmara, 2011). Para muitos, pode parecer estranho e até mesmo injusto "mercantilizar" o acontecimento da morte, o que pode ser uma das hipóteses para tanta discriminação sofrida pelos agentes funerários. O desrespeito do qual são alvo, muitas vezes, se expressa na forma de piadas, xingamentos pejorativos, olhares curiosos, de desprezo, enfim, são manifestações do estigma social com aqueles que trabalham diretamente com a morte: "A gente é muito discriminado, já fui taxado de urubu, corvo, e isso me incomoda (sic) as pessoas acham que a gente fica torcendo pras pessoas morrerem" (E3)."Acho minha profissão pouco vista, digamos assim, as pessoas tem receio, por exemplo, 'ah, tu trabalha com morto?', aí tu vai cumprimentar o homem, 'ah, tu botou a mão no morto hoje?' Senão não vou te cumprimentar" (E4).

Alguns dizem: "'vai lá buscar um presunto' ou 'urubu'. Dizem pra minha mulher, 'bah, como é que tu consegue dormir do lado de um agente funerário?'" (E7). "Tu fala com as pessoas parece que tu lida com um monstro, 'Tu consegue dormir? Ai, Deus me livre, não quero nem ver!'. A minha sociedade me vê como um 'bicho papão'" (E10).

Percebe-se que o cotidiano de trabalho do agente funerário está permeado por questões culturais, mitos, lendas que foram construídas ao longo dos tempos e que, em alguns momentos, inclusive, fez parte de suas próprias histórias de vida, principalmente, antes de ingressarem no segmento funerário. Esses estigmas sociais ainda se mostram fortemente, são paradigmas que ainda levarão tempo para serem quebrados. Alguns trabalhadores trazem exemplos se tratando desta questão: "Antes daqui eu nunca trabalhei com isso, eu tinha um pouco de receio, sempre tinha alguma lenda que se escuta por aí, que acaba te deixando um pouco receoso" (E3); "As pessoas passam aqui na frente e fazem o sinal da cruz, como se fosse algo de outro mundo" (E9); "Se tu chegar de carro funerário em qualquer lugar, Deus o livre! Nossos carros são benzidos!" (E10).

Souza e Boemer (1998), ao pesquisarem trabalhadores do segmento funerário, constataram através de entrevistas que esses profissionais verbalizavam em muitos momentos que o seu trabalho era como "outro qualquer", desejando equipará-lo a outros, sendo que alguns até chegavam a nominar outras profissões de forma a comparar a sua ocupação àquelas consideradas "normais" para a sociedade, como, por exemplo, bombeiro, enfermeiro, guarda, etc. Nos momentos de entrevista com os agentes funerários que participaram deste estudo, foi possível perceber que faziam muitas comparações da sua profissão com outros ofícios, áreas ou situações. Essa constatação corrobora os estudos acima referidos, evidenciando o esforço desse trabalhador em equiparar sua ocupação com outras "socialmente aceitas".

Mais do que mostrar que o trabalho do agente funerário é tão importante quanto os demais, que pode ser visto até mesmo de maneira mais positiva do que outros, somos levados a suspeitar que se trata de uma forma lograr que a sociedade não "se espante" com o que ele vivencia cotidianamente: "Têm dias aqui que o ambiente fica pesado? Fica! Como em muitos lugares. Tu pode trabalhar numa escola, lá tem dias que o clima lá tá pesado, e não morreu ninguém" (E3)."Se eu tivesse que trabalhar como um enfermeiro eu não teria coragem sabe, bah tu ter que ficar ali com uma pessoa gritando de dor sabe. Deuslivre!" (E5). "Quando tu chega num lugar e tu diz que tu trabalha com funerária já dizem 'ai meu Deus!'. E uma enfermeira? E um médico? É bem diferente essa profissão tratada das outras (sic) Se tu chegar com um carro funerário, Deus o livre, tem gente que não entra no carro funerário, pra mim é como outro qualquer, é como uma ambulância, um táxi. O táxi a gente também coloca pessoa doente dentro" (E10).

Kovács, Vaiciunas e Alves (2014), afirmam que os trabalhadores de contextos funerários, que lidam cotidianamente com a morte, têm as representações sobre ela muito relacionadas às suas próprias histórias de vida. A sociedade, ao representar socialmente este profissional, não espera que ele manifeste emoções e/ou sentimentos no seu trabalho, mesmo se, por algum motivo, sentirem-se tocados com a situação. Para este trabalhador, há uma delicada fronteira entre cuidado, envolvimento e distanciamento para que consigam dar conta de suas atribuições sem que se leve os sentimentos para o lado pessoal.

Nesse sentido, o estatuto social da profissão mostra-se muito atrelado ao fato de que esses profissionais são diferentes dos demais, que por lidarem com a morte tornaram-se frios, sem sentimentos e, em função disso, desejam que a morte aconteça, mesmo que seja "às custas do sofrimento alheio". Porém, essa visão social, muitas vezes, coloca esse trabalhador em uma posição de marginalização perante a sociedade, exigindo-lhes grandiosos es-forços para desconstruírem esses tabus e, finalmente, receberem devido reconhecimento social pelo seu trabalho, o que é muito importante e necessário à saúde mental.

Considerações finais

Diante das questões evidenciadas neste estudo, pode-se afirmar que os agentes funerários são trabalhadores que lidam com efeitos das distorções sociais que são produzidas sobre seu ofício, carregando grandes estigmas e mitos em relação ao seu objeto de trabalho: o corpo morto. As dificuldades são decorrentes de aspectos culturais que, ao longo da história, tornaram cada vez mais difícil, em nossa sociedade, falar sobre a morte, ou estar próximo a ela. Com efeito, cada vez mais passamos a terceirizar o processo de cuidado com o corpo morto, delegando essa tarefa a profissionais que precisam dar conta, não apenas do manuseio de um corpo (com todas as técnicas envolvidas), mas também de questões que envolvam o sofrimento alheio.

Contudo, percebe-se que a realidade vivenciada por este grupo de trabalhadores não os leva, necessariamente, a uma condição de adoecimento. Ao analisarmos a forma como esse trabalho está organizado, podemos constatar que, mesmo diante de dificuldades, existem largas margens de negociação com suas atribuições. Considerando que a maioria dos agentes funerários verbaliza "aqui eu faço um pouco de tudo" (E1, E3, E4, E7, E8, E9, E10), pode-se afirmar que existe liberdade na organização do seu trabalho, o que os coloca em uma posição privilegiada e estruturante de sentidos subjetivos.

É importante ressaltar que os participantes deste estudo vivenciam situações dolorosas no seu cotidiano de trabalho, porém, este grupo de trabalhadores parece encontrar formas de dar conta desta realidade, por meio da negociação com uma organização do trabalho flexível. Ademais, quando a negociação não se torna possível ou não é suficiente, o grupo investigado parece poder contar com a estratégia defensiva coletivamente elaborada, que nesse caso se expressa na religiosidade e em formas "silenciosas" de apoio mútuo das equipes.

Dessa forma, os agentes funerários parecem conseguir levar adiante as responsabilidades do ofício conciliando-as com uma condição de saúde mental no seu contexto laboral. Funcionando como um "combustível", por sua vez, as vivências de prazer se originam nos momentos em que os familiares da pessoa falecida olham para o agente funerário e verbalizam: "Nossa, ela está linda" (E10), "Eu não sei o que eu faria sem você" (E7) ou "Parece que está dormindo" (E9). Esses depoimentos evidenciam e caracterizam o reconhecimento que este trabalhador precisa para lograr estabilizar a experiência subjetiva do ofício que conduz à saúde mental no trabalho. Dejours (1999) coloca que é desse reconhecimento que depende o sentido do sofrimento, pois, a partir do momento em que o profissional tem seu trabalho reconhecido, ele consegue dar sentido aos seus esforços, dúvidas, angústias, decepções e até mesmo ao seu desânimo. Todas as vivências de sofrimento deste trabalhador não foram em vão, contribuíram não só para a organização do trabalho, mas também para que ele se tornasse um sujeito diferente do que era antes de receber o reconhecimento, contribuindo para a afirmação da sua identidade.

Ao trilhar esse caminho, o trabalhador enxerga como o seu fazer é significativo. É muito interessante observar que, apesar dos preconceitos e demais dificuldades que, eventualmente, se façam presentes, o agente funerário reafirma o valor social do seu trabalho, constantemente, colocando-o como "importante" (E3), "necessário" (E4), "bonito" (E9).

Por meio da análise psicodinâmica do trabalho, pode-se afirmar que a função do agente funerário foi subjetivamente construída (por meio do significado coletivamente atribuído ao trabalho), de modo a proteger os trabalhadores de tudo que pode advir do chamado estatuto social da profissão. O que se pode observar é que, apesar do desconhecimento e preconceito social, este trabalhador pode viver de uma forma muito diferente dos estigmas pré-estabelecidos acerca deste fazer. Mais do que isso, somos levados a suspeitar que, embora seja uma evidente fonte de dissabores, o estatuto social da profissão pode contribuir para o fortalecimento da saúde subjetiva do trabalhador, na medida em que o força a produzir-se em uma posição "diferenciada". Ou seja, diante de um trabalho socialmente desqualificado, somente um tipo muito especial de trabalhador poderá exercê-lo. Constrói-se, assim, um sentido muito preciso para esta profissão, uma função que "não épara qualquer um" (E6), que exige um tipo especial de sujeito, corajoso e, ao mesmo tempo sensível.

Evidentemente, estas são questões que exigem ser melhor examinadas em futuras pesquisas. No que se refere ao presente estudo, espera-se que traga contribuições lançando luz sobre esses trabalhadores e promovendo a desmistificação de muitos preconceitos socialmente construídos, de modo que se possa olhar para o profissional da morte com maior valorização, com maior cuidado. Um vasto campo de pesquisa nesta área fica evidenciado quando se percebe a quase inexistência de estudos sobre o profissional do segmento funerário. Assim como os demais trabalhadores e/ou demais profissões, esses profissionais merecem ser alvo de maior atenção, em estudos que visem à sua saúde mental enquanto trabalhador.

 

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Endereço para correspondência:
Veronica Dalla Costa Flores
Universidade Feevale
Av. Dr. Maurício Cardoso, 510, Bairro Hamburgo Velho
93510-235, Novo Hamburgo, RS - Brasil
E-mail: veronicadcflores91@gmail.com

Recebido em: 23/01/2017
Primeira decisão editorial em: 04/10/2017
Versão final em: 04/10/2017
Aceito em: 01/10/2017

 

 

1 Conjunto de práticas, fundamentadas em métodos e técnicas próprios da especialidade, conducentes à higienização, conservação, embalsamento, reconstrução, restauração e cuidado estético de cadáveres, de acordo com as normas estabelecidas e respeitando os diferentes preceitos religiosos requeridos. (Dicionário Infopedia, 2003-2016).
2 Embora não se tivesse planejado no âmbito do projeto de pesquisa, as pesquisadoras foram convidadas por uma das funerárias participantes deste estudo para assistir o processo de preparação de dois corpos que, na ocasião da realização das entrevistas, estavam chegando. O convite foi aceito porque, enquanto pesquisadoras, percebeu-se que aquela consistia uma oportunidade única para conhecer importantes detalhes do trabalho do agente funerário.

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