TransFormações em Psicologia (Online)
ISSN 2176-106X
TransForm. Psicol. (Online) vol.2 no.2 São Paulo 2009
Artigos originais
Pesquisa e Psicanálise: contribuições sobre a questão da transferência na instituição
Hélio Cardoso de Miranda Jr.1
Resumo
Partindo da assertiva de que é necessário abordar a transferência para afirmar a possibilidade de pesquisa em psicanálise, exploramos a articulação deste conceito com a noção de "sujeito suposto saber" elaborada por Jacques Lacan para indicar a existência da transferência e a possibilidade de seu manejo nos atendimentos e entrevistas realizados em instituições.
Palavras chave: Psicanálise, pesquisa, instituição, transferência.
Abstracts
Starting from the assertion that it is necessary to broach the transference in order to affirm the possibility of researching in psychoanalysis, we explored the articulation of that concept with the notion of "subject supposed to know" elaborated by Jacques Lacan to indicate the existence of transference as well as the possibility of its handling in the attendances and interviews achieved in institutions.
Keywords: Psychoanalysis, research, institution, transference.
Segundo Freud (1923/1974), a psicanálise é também um método de investigação. Deste modo, a psicanálise é pesquisa e, na verdade, só sobrevive se continua a ser investigativa. Já o problema da pesquisa acadêmica em psicanálise é similar a qualquer questão sobre a relação entre psicanálise e universidade. Questão relevante, pois a psicanálise possui muitos representantes entre os docentes pesquisadores e entre alunos em formação, mas para a qual os necessários debates encontram sempre respostas provisórias.
Dois pontos importantes atravessam as perguntas sobre o método psicanalítico em pesquisa acadêmica.
O primeiro ponto diz respeito ao problema da divisãoentre psicanálise pura e psicanálise aplicada, ou, nos termos de Lacan (1967/2003), entre psicanálise em intensão e extensão. A primeira se refere à formação do analista, à singularidade da experiência clínica analítica. A segunda se refere aos efeitos do discurso analítico no laço entre os próprios analistas, entre os analistas e os outros discursos sociais e campos de saber e, mais amplamente, a presença da psicanálise na mídia, nos livros e universidades - o que implica a pesquisa em psicanálise.
O segundo ponto se relaciona com a afirmativa, presente em muitos autores conhecidos (Birman, 1994; Herrmann, 2004; Lowenkron, 2004), de que para que um pesquisador possa afirmar que utiliza o método psicanalítico, ele deve levar em conta a transferência. Chama atenção o fato de que tal afirmativa esteja presente em autores participantes de linhas teóricas diferentes dentro do campo psicanalítico. Isto significa que apesar das diferenças de concepção sobre clínica e articulação conceitual, a questão da importância da consideração da transferência em psicanálise é ponto de convergência.
Optamos neste texto por enfatizar o segundo ponto, entendendo que sua articulação consistente pode esclarecer um pouco o primeiro. Contudo, temos de deixar claro que a articulação aqui proposta não inclui todas as possibilidades de pesquisa com o método psicanalítico, mas apenas aquelas nas quais existam atendimentos realizados pelo pesquisador ou por equipes ligadas à pesquisa, entendendo por atendimento todo ato de escuta e intervenção no qual seja possível, mas não necessário, operar a partir do lugar do analista para então constituir a singularidade do caso clínico.
Nossa preocupação principal diz respeito aos atendimentos em instituições pelo fato de que cada vez mais psicólogos e psicanalistas ocupam postos institucionais nos quais é possível tal escuta, como centros de saúde, penitenciárias, tribunais de justiça, conselhos tutelares e outros. Citaremos alguns exemplos adiante.
Psicanálise e fala
Partimos da tese lacaniana (Lacan 1953/1998a) de que a psicanálise só dispõe de um meio: a fala do paciente; e que toda fala pede uma resposta. Ora, a fala repousa sobre a língua, depósito de palavras disponíveis e comuns aos seres falantes, e se submete à linguagem, às leis que governam sua utilização. Entretanto, distintamente da língua e da linguagem, a fala é ato que se endereça a um outro do qual o sujeito espera aquilo que ressegure o seu lugar e complete sua falta-a-ser – o que indica a dimensão do Outro (chamado grande outro) presente na demanda que se põe em fala. Para Lacan (1953-54/1986), um primeiro fato importante da palavra em ato é a busca de reconhecimento por aquele que fala. Mesmo o ato sem palavras é também uma palavra, pois o sujeito só pode se colocar na linguagem.
Por um lado, o trabalho da fala é perseguir o impossível objeto do desejo, este que articula pulsão e gozo; por outro, numa continuidade lógica, separa o sujeito do Outro. Duplo movimento em que nos identificamos na linguagem para nos perdermos nela como objeto. Antes da fala, nada é nem deixa de ser; depois, a própria fala pode ser locus de uma verdade singular.
Ao falar para um psicanalista, o indivíduo remonta e recria uma história, na qual está marcada sua sujeição ao Outro, a apreensão de seu desejo em relação ao desejo do outro. Na fala dirigida ao outro, coloca-se em evidência o desejo do homem, que "encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro" (Lacan 1998a, p. 269). Ao receber esta fala, o analista deve ter ouvidos para não ouvir, sua arte consiste em suspender as certezas do sujeito, procurando não obliterar a via da experiência subjetiva na qual o desejo quer se fazer reconhecer.
Na década de 60, Lacan deixará esta ênfase no reconhecimento do desejo para construir e articular sua teoria sobre o objeto "a". Apesar disto, entendemos que podemos aproveitar estas assertivas para articular a transferência com a noção de sujeito suposto saber e refletir sobre os atendimentos nas instituições. Antes disso, é preciso ter clareza que um atendimento na instituição possui características próprias.
É esperado que o discurso institucional atravesse ou formate todo atendimento realizado nas instituições. Tempo, forma e objetivo podem ser itens importantes nos regulamentos e normas que compõem este discurso. No entanto, tais itens podem não ser necessariamente obstáculos para o que podemos chamar de experiência analítica. Cada caso institucional terá graus variáveis de interferência nesta possibilidade.
Tendo como modelo de atendimento a entrevista individual, podemos considerar que ela componha o momento do sujeito falar por si mesmo, articular sua demanda frente a um outro, no qual ele supõe um saber científico e um poder institucional (um saber-poder Outro). A forma de receber esta fala, pautada pelas diferenças entre demanda e desejo, enunciado e enunciação, é que poderá implicar um manejo da situação do ponto de vista psicanalítico, e é este manejo que pode criar possibilidade para uma experiência psicanalítica.
Conforme Figueiredo, Nobre e Vieira (2001), a escuta do analista não é nem objetiva - coletor de dados - nem subjetiva - como alguém que se envolve emocionalmente ou sofre junto com quem atende. O psicanalista vai escutar um sujeito a ser chamado a decidir sobre a destinação e, consequentemente, o rumo das produções discursivas que ele acolhe em cada movimento discursivo, em cada intervenção.
Está implícito que tomamos a experiência psicanalítica como não redutível ao que é conhecido como a "técnica psicanalítica". Birman (1994), por exemplo, ressalta desta experiência o caráter dialógico centrado na interlocução e Herrmann (2004) afirma que identificar técnica e experiência é a nostalgia de uma origem da psicanálise vinculada aos ideais da ciência natural e leva, segundo ele, ao fetichismo da técnica. Para este autor, se privilegiamos o método na pesquisa, aproximamo-nos da psicanálise como teoria em ação via interpretação. O método psicanalítico seria, sobretudo, heurístico, o que permite pensá-lo na clínica extensa, com o cuidado de não abrir mão do rigor.
Desvincular a experiência, como Birman, ou o método, como Herrmann, da técnica é uma via para pensar a possibilidade desta experiência fora da clínica particular. Ademais, com Lacan (1966/1998c, p. 71), seguimos a trilha de considerar que com a escuta psicanalítica cria-se a possibilidade da experiência do sujeito do desejo. Sujeito este que não é o eu (consciente), mas o sujeito das produções inconscientes.
Lacan (1958/1998b, p. 758) afirmou também que a psicanálise, no sentido estrito, se aplica como tratamento; porém é possível falar em método psicanalítico quando se "procede à decifração dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado", ou seja, uma decifração dos significantes que leve em conta o aspecto inconsciente que intervém na organização deles (Sauret, 2003).
Seguindo estas indicações, pode-se considerar a prática do psicólogo psicanalista no contexto de muitas instituições como uma prática que possui condições para possibilitar esta experiência. Não se trata do tratamento psicanalítico da clínica particular ou individual, até porque não estamos lidando com a associação livre da forma como se pode fazê-lo no atendimento clínico individual. Porém, pensar a possibilidade de intervenção implica, desde o princípio, o tratamento dos significantes fora de sua relação suposta com um significado pré-determinado e implica também o fenômeno (fato) que orienta o manejo desta experiência: a transferência.
Transferência e instituição
Se a fala é o meio de que dispomos, a transferência é o fenômeno fundamental. Considerada por Lacan (1964/1990) como um dos conceitos fundamentais da psicanálise, a transferência é constantemente citada como fenômeno que marca e distingue o campo psicanalítico, mesmo na pesquisa.
Desde o início de sua prática, Freud se deparou com fenômenos que indicavam o estabelecimento de uma relação especial entre analista e analisando. Utilizando uma idéia de transferência de sentido ou de significado entre as representações mentais, Freud indica o fato da transferência para objetos contemporâneos de afetos que originalmente se aplicavam a um objeto infantil. Esta idéia já estava presente nos Estudos sobre a Histeria (1895/1974) e ressurge na Interpretação dos Sonhos (1900/1974), tendo sido desenvolvida em alguns outros textos como Fragmento da Análise de um Caso de Histeria (1905/1974), A Dinâmica da Transferência (1912/1974) e em Observações Sobre o Amor Transferencial (1915/1974). É esta característica que compõe o fenômeno da transferência no tratamento analítico, quando o analisando transfere ao analista certas representações cuja origem inconsciente é evidente a partir, principalmente, do seu caráter repetitivo. Simultaneamente, Freud se dá conta de um segundo aspecto presente no fenômeno: o da transferência como suporte de uma resistência à rememoração. Assim, a transferência aparece como abertura ao tratamento e também como obstáculo à cura. O estabelecimento e o manejo da transferência passam a ser considerados então pontos fundamentais no tratamento psicanalítico.
Lacan retomou este conceito e procurou diferenciá-lo da repetição. A partir de uma concepção do desejo como questão para o sujeito, Lacan (1964/1990) vai estabelecer a noção de sujeito suposto saber e indicá-la como o pivô da transferência. Esta noção é fundamental para a proposta de intervenção em uma prática na instituição a partir do discurso analítico, então tratemos de explicitá-la sem nos determos na evolução deste conceito na obra de Lacan, que acompanha as modificações da sua concepção sobre o tratamento analítico, sobre o conceito de Outro e sobre a fantasia. Utilizaremos apenas alguns aspectos que podem ser úteis para discutir a prática proposta.
Para isto tomaremos o conceito de Outro como lugar, numa topologia na qual o sujeito se constitui a partir de um exterior que lhe chega por meio das sensações e dos significantes e que é assimilado como interior na dialética do desejo a partir da inscrição na ordem simbólica. O Outro é uma alteridade radical ao sujeito pontual da enunciação e ao mesmo tempo é também lugar de endereçamento da fala, um termo que garante a enunciação deste sujeito, o portador de um veredicto sobre a verdade de sua fala. Este Outro, então, pode ser entendido, numa primeira dimensão, como um sujeito que porta um saber, forma que assumiu comumente a articulação conceitual sobre o endereçamento da questão do desejo ao analista – o sujeito suposto saber alguma coisa sobre o desejo – e, numa segunda dimensão, como a suposição de um sujeito no próprio saber produzido pela articulação significante – o sujeito suposto no saber, ou seja, em um saber previamente estabelecido.
Enquanto a primeira formulação nos permite compreender a suposição de saber encarnada numa instância, numa pessoa ou numa representação, a segunda concepção dá ensejo à compreensão de um suposto saber no e do próprio inconsciente, que é fruto da articulação significante. É esta, na verdade, a operação que o analista leva o analisando a fazer quando pontua e interpreta a fala permitindo a emergência de uma articulação significante, um saber, que o sujeito toma como uma surpresa estranhamente familiar.
Neste sentido, sempre que um ser-falante se põe a demandar de um outro termo alguma resposta, pode-se falar da suposição de um saber no termo ao qual esta fala se dirige e isto constitui o pivô da transferência. Lacan, no Seminário 7 (1959-60/1991, p. 177), marcou a ampliação deste conceito ao afirmar que a transferência "se manifesta na relação com alguém a quem se fala. Este fato é constitutivo". No Seminário 11 Lacan afirma que onde houver sujeito suposto saber haverá também transferência (1964/1990, p. 220). A diferença no tratamento desta demanda de resposta é que pode produzir efeitos de experiência analítica e isto depende do ato de quem a recebe. Aí reside um ponto que marca a diferença do discurso do analista em relação aos outros discursos sociais: o saber é suposto, o que, de acordo com Lacan, está de acordo com a recomendação freudiana para "abordar cada novo caso como se não tivéssemos aprendido coisa alguma com suas primeiras decifrações" (1967/2003 p. 254)
Contudo, a transferência também se relaciona com a repetição, a atualização na relação analítica de certas questões cruciais para o sujeito. Repetição que implica o passado reinscrito no presente, numa temporalidade em que o passado se funda no só-depois (a posteriori). Esta dimensão enfatiza o tempo e o seu manejo. Bezerra Jr. (1989, p. 235) afirma que "o que marca a perspectiva analítica é esta operação a partir da qual a palavra atual organiza o sentido do passado em função do futuro" e, sob o impacto da transferência, "o relato do passado perde seu caráter de certeza e passa por um remanejamento simbólico cujos efeitos se dão no presente". Este aspecto da transferência também está presente nos atendimentos institucionais, pois não é possível separar completamente o endereçamento e a repetição. Contudo, devemos estar cientes de que a forma e o manejo da repetição possuem limites importantes nas instituições, mesmo considerando os aspectos particulares de cada uma que podem permitir ou obstar este manejo. Um dos principais fatores de atravessamento nos atendimentos em instituições é o tempo, pois as instituições em geral não permitem o seu manejo como na clínica particular.
Apesar desta limitação, seguindo as indicações sobre o sujeito suposto saber, podemos entender que o indivíduo que chega à instituição endereça sua questão, seu sofrimento, seu gozo, para um Outro considerado legítimo para efetuar o reconhecimento desta demanda. No sentido que vimos trabalhando aqui, há transferência neste endereçamento. Contudo, o trabalho do psicanalista colocado no lugar de receber esta demanda é o de justamente não reconhecê-la na forma como se apresenta. Isto é que nos permite afirmar a possibilidade de um deslocamento transferencial que indique as aberturas ao manejo, mesmo na instituição.
Considerando que temos alguém a falar para um outro alertado pela escuta psicanalítica e em condições de manejar este endereçamento por não responder à demanda e com isto incitar a fala, podemos, a princípio, afirmar a possibilidade da transferência em muitos atendimentos realizados em instituição. Nossa hipótese é a de que lidamos com o que Miller (1989, p. 45) chama de primeira versão da transferência, fase de alienação significante e de intensa ativação imaginária, para tentar um deslocamento a fim de remeter o sujeito às perguntas sobre seu desejo. Tal deslocamento se aproximaria da segunda versão da transferência, segundo a mesma autora. Nesta segunda versão, ou segundo momento, o saber antes suposto no discurso do mestre (ou no discurso da universidade) se desloca para um saber suposto no próprio discurso que operou o deslocamento por meio das intervenções, o discurso analítico. Neste tempo curto, a queixa se transforma em enigma para o sujeito, em pergunta que o implica. A terceira versão da transferência que se segue na condução de uma análise seria a do saber construído pelo próprio sujeito para desenhar os contornos de sua relação com o objeto de desejo. Este seria o principal trabalho da análise. Neste texto, porém, limitamo-nos a indicar a possibilidade de acolher a primeira versão da transferência para tentar o deslocamento que aproxime o sujeito das perguntas sobre seu desejo. Isto, por si só, pode produzir efeitos interessantes.
Retomando a questão do método, é justamente considerar o trabalho sob transferência que auxilia a entender dois pontos tanto da pesquisa clinica em psicanálise quanto do tratamento psicanalítico, dimensões que Freud mesmo aproximou dentro do campo psicanalítico (investigação e tratamento). O primeiro é que a direção da pesquisa se encontre na própria experiência, o que é ratificado por Birman (1994) e Lowenkron (2004). O segundo é o de que o psicanalista não se coloca de forma exterior ao sujeito que fala. Neste sentido, como defende Figueiredo et al. (2001, p. 13), "o sujeito que observa (epistêmico) não é exterior ao sujeito observado (empírico)" ou, dito de outra forma, o sujeito "observado" inclui o "observador" em suas séries psíquicas, o que coloca em questão o valor de verdade que o fenômeno possa ter do ponto de vista empírico. Estamos nos referindo à questão da realidade psíquica, termo com o qual Freud nomeou o que ele encontrou na complexa relação entre o interno e o externo, o subjetivo e o objetivo. É neste mesmo sentido que Lacan afirmará não haver realidade pré-discursiva (1972/1985).
Estar incluído na série psíquica não é somente reconhecer ou constatar que o observador-pesquisador interfere no objeto observado-pesquisado, como é quase consenso nas pesquisas em psicologia clínica. Em psicanálise, isto significa que o analista tenta causar um discurso no qual a realidade a ser instaurada seja a da divisão do sujeito entre os significantes que o determinam e o objeto causa de seu desejo. Para além de reconhecer seu lugar discursivo, perspectiva crítica que não deve ser abandonada, o psicanalista, como causa deste novo discurso, é parte integrante da realidade ali criada.
Dois campos de interface da psicanálise com a instituição nos quais esta leitura se faz possível atualmente podem ser citados como exemplos. O primeiro diz respeito ao campo chamado de saúde mental, quer dizer, a rede de instituições que historicamente aborda e trata o sofrimento mental – desde hospitais psiquiátricos até os centros de saúde. Há muitos psicanalistas trabalhando neste campo e muitas produções a respeito das intervenções possíveis a partir do lugar do psicanalista, como em Lobosque (2001) e Costa & Figueiredo (orgs.) (2004).
O outro campo é o da interface da psicanálise com as instituições judiciárias. Podemos citar como exemplo o livro organizado por Barros (2003) que aborda o trabalho com os adolescentes autores de ato infracional. Há produções também sobre a abordagem de casos em direito de família, como Caffé (2003). Esta autora tratou de três casos nos quais se tentou um deslocamento transferencial que permitisse a intervenção em casos de conflito familiar judicial a partir do lugar instituído de "perito judicial".
Há também um texto interessante que articula a psicanálise simultaneamente a estes dois campos por meio de um estudo de caso. Neste texto, Senra (2004) aborda um caso na instituição psiquiátrica cujo desenlace dependeu justamente do manejo clínico em meio aos atravessamentos discursivos próprios às instituições relacionadas ao caso clínico em questão: a rede de saúde mental e o poder judiciário. Este manejo auxiliou um indivíduo psicótico na possibilidade de nomear um lugar próprio frente ao Outro que, mesmo precariamente, como é comum à estrutura psicótica, permitiu-lhe indicar a exclusão que tais discursos impunham à sua inscrição como sujeito.
Conclusão
Se pudermos considerar a dimensão da transferência relacionada à noção de sujeito suposto saber como elaborada por Lacan, podemos entender que a demanda dirigida às instituições também constitui este lugar como foco de seu endereçamento. E se isto pode ser assim considerado, podemos também pensar que um manejo de tal transferência pode ser possível para constituir o que chamamos de experiência analítica. Mantendo clara a diferença deste manejo em relação à possibilidade de manejo da situação clínica na clínica individual de consultório particular, podemos afirmar que, mesmo limitado a um tempo da transferência específico, os atendimentos realizados em instituição podem possibilitar esta experiência desde que um manejo desta transferência inicial seja realizado. Tal manejo implica a suspensão das certezas, o ‘fazer semblante’ de saber, a não resposta à demanda que mantém aberta a pergunta sobre o sofrimento e com isto a incitação ao aparecimento da divisão do sujeito.
Dos exemplos citados anteriormente, cabe registrar que tanto o trabalho de Caffé (2003) quanto o de Senra (2004) se transformaram em pesquisas acadêmicas – Caffé como tese de doutorado e Senra como dissertação de mestrado. Isto vem corroborar nossa proposta de que podemos abordar a transferência na instituição e que, portanto, podemos sustentar a possibilidade de pesquisa em psicanálise a partir dos atendimentos realizados em instituições. Isto, porém, não elimina os debates sobre a especificidade do método psicanalítico no que ele implica a respeito da relação estabelecida entre psicanalista e indivíduo atendido. Se o pesquisador está do lado do psicanalista, o sujeito produzido nesta relação é fruto da própria relação, como indicamos utilizando a referência de Figueiredo et al. (2001).
Resta ainda um problema importante para a pesquisa acadêmica e que não abordaremos neste texto: a escrita do caso atendido em instituição. Que diferenças haveria entre um estudo de caso psicanalítico atendido no consultório particular e o caso atendido nas instituições? Como os atravessamentos institucionais devem ser considerados na relação estabelecida entre o psicanalista e aquele que é atendido/escutado? Questões para outros debates.
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1 Estudante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo - cardosomiranda@uol.com.br