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Trivium - Estudos Interdisciplinares

 ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.99 

ARTIGOS LIVRES

 

Notas sobre a sexuação a partir do filme O Lagosta

 

Notes on sexuation from the movie The Lobster

 

Notas sobre la sexuación a partir de la película El Lagosta

 

 

Fabiano Chagas RabêloI; Karla Patrícia Holanda MartinsII; Leonardo José Barreira DanziatoIII

IProfessor da Universidade Federal do Piauí (UFPI) - Campus CMRV - Parnaíba. Doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Bolsista CAPES/PDSE. E-mail: fabrabelo@gmail.com
IIPsicanalista. Professora Doutora nos cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia da UFC. Av. Da Universidade, 2835. Benfica, Fortaleza, CE. Telefone: (85) - 33667300. E-mail: kphm@uol.com.br
IIIPsicanalista. Professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Av. Washington Soares, 1321. Fortaleza. CEP. 60811905. Telefone: 085-34773000. E-mail: leonardodanziato@unifor.br

 

 


RESUMO

Comenta-se o filme O lagosta como via de investigação da fórmula da sexuação. Interrogam-se tanto a função do falo na modulação de uma tomada de posição frente à diferença sexual, como as consequências da incidência do discurso do capitalista nesse processo. Para isso, trazem-se à baila as contribuições freudianas e lacanianas sobre a perversão e a crítica feita à psicanálise pela queer theory. Na conclusão, ressalta-se uma inconsistência radical no asseguramento de uma identidade sexual e, como seu correlato, a persistência no laço social de um mal-estar irredutível. Problematiza-se ainda a função do amor como suplência da não relação sexual.

Palavras-chave: PSICANÁLISE; SEXUAÇÃO; DISCURSO DO CAPITALISTA; PERVERSÃO; QUEER THEORY.


ABSTRACT

The movie The Lobster is discussed as a way to investigate the sexuation's formula from two guidelines: the first questions the function of the phallus in modulating a position in the sexuation's formula; the second aims the consequences of the incidence of the capitalist discourse in this process. The psychoanalytical contributions on the perversion and the criticism made to the psychoanalysis by queer theory are discussed. One concludes a radical maladaptation of the human for the assurance of a sexual identity and the persistence of an irreducible malaise. The function of love as a substitution for sexual non-relation is problematized.

Keywords: PSYCHOANALYSIS; SEXUATION; DISCOURSE OF THE CAPITALIST; PERVERSION; QUEER THEORY.


RESUMEN

Se comenta la película La langosta como vía para investigar la fórmula de la sexuación a partir de dos directrices: la función del falo en la modulación de una toma de posición frente a la diferencia sexual y las consecuencias de la incidencia del discurso del capitalista en ese proceso. Se discute la concepción psicoanalítica de perversión y la crítica hecha al psicoanálisis por la Queer Theory. Se concluye una desadaptación humana radical en cuanto al aseguramiento de una identidad sexual y la persistencia de un malestar irreductible. Se plantea la función del amor como suplencia a la no-relación sexual.

Palabras clave: PSICOANÁLISIS; SEXUACIÓN; DISCURSO DEL CAPITALISTA; PERVERSIÓN; QUEER THEORY.


 

 

Introdução

Este artigo comenta o filme O lagosta, do diretor Yorgos Lanthimos (2016), como forma de apreender e interrogar a sexuação, lógica desenvolvida por Lacan na virada da década de 1970. Defende-se que, por se tratar de um modelo pouco intuitivo, o estudo da sexuação pode beneficiar-se da interlocução com outros campos do saber como recurso suplementar à investigação clínica. Trata-se, portanto, de um ensaio que busca aprofundar-se no entendimento desse modelo lógico através do debate com a arte e os estudos de gênero.

É importante acrescentar que as manifestações da sexualidade estão em constante transformação, assumindo a cada dia novas roupagens e inflexões a partir de uma complexa relação com a cultura e o social. Daí a importância de se ocupar das expressões atuais da sexualidade, dialogando com outros pontos de vista. Desse modo, pergunta-se o que os matemas da sexuação podem contribuir para o balizamento de um posicionamento clínico, político e ético frente às expressões contemporâneas da sexualidade, levando-se em consideração a influência do discurso do capitalista e da ciência no cotidiano.

A história de O lagosta, indicado para o Oscar em 2017 na categoria de melhor roteiro original, explora as desventuras de David, um homem solteiro, de meia idade, recém-separado, que vive em uma sociedade organizada em torno de uma burocracia, cuja meta é promover casamentos duradouros e estáveis. Nesse regime, vigora uma estratégia de adaptação e exclusão sistemática dos solitários.

A organização deste artigo segue a estrutura do filme, evidenciando seus pontos de obscuridade e lacunas. Defende-se que a não linearidade e o caráter nonsense da história favorecem o esforço de elaboração e pesquisa, uma vez que tais qualidades constituem um obstáculo à tentação de tomar o enredo como uma ilustração imediata da teoria. Assim, no decorrer desta exposição, realizam-se interpolações entre as questões levantadas no filme e algumas contribuições da psicanálise, mas sempre sob a advertência de que o filme permanece irredutível à pretensão de se alcançar uma explicação unívoca e total.

Este artigo traz à baila duas diretrizes argumentativas. A primeira interroga a função do falo na modulação de uma tomada de posição frente à diferença sexual; a segunda busca apreender as consequências da incidência do discurso do capitalista nesse processo. Adotam-se como categorias de análise, além das fórmulas da sexuação, a ideia de discurso do capitalista e as contribuições de Freud e Lacan sobre a perversão. Além desses dois autores germinais, faz-se referência a artigos e livros que tratam da sexuação e da interlocução entre psicanálise e queer theory. Os teóricos dessa linha de trabalho foram escolhidos como contraponto à psicanálise em função de sua importância na discussão das expressões da sexualidade na atualidade (Lago, 2010, Simões & Gonçalves, 2018).

Optou-se por dividir o texto em quatro partes. Na primeira, realiza-se uma contraposição entre psicanálise e estudos de gênero como forma de pôr em destaque algumas idiossincrasias da sexualidade humana que comparecem no filme sob uma roupagem ficcional e fantástica. Na segunda, procura-se entender como é retratado o funcionamento dos mecanismos sociais de correção e segregação dos desviantes. Aborda-se em seguida a estratégia de oposição dos rebeldes, que permite avançar na análise do tópico anterior, uma vez que tal estratégia pode ser tomada como espelhamento, uma espécie de continuidade invertida, do dispositivo dominante. A temática do amor como suplência da não relação sexual é tratada ao final dessa seção. Na conclusão, discute-se o destino ambíguo das personagens principais, estabelecendo um paralelo com as manifestações da sexualidade na atualidade.

 

A desadaptação do humano

Logo no começo do Seminário, livro 19: Ou pior..., Lacan (1971-72/2012) joga com a homofonia presente no idioma francês na pronúncia das palavras homem e lagosta,homme e homard, respectivamente. Pergunta ironicamente se os animais que tem pinças se masturbam. Com isso, ele acentua que a entrada do sujeito na partilha dos sexos constitui um fato de linguagem que ultrapassa ao campo do inato, do pré-constituído. Para Lacan, é em torno da pequena diferença e dos seus efeitos significantes que o ser humano tem acesso a uma posição sexuada. Logo, a inserção no campo da linguagem é condição indispensável para a formação de um ser sexuado.

Salienta-se que, restringindo-se a essa assertiva, psicanálise e teoria de gênero estão em consenso. Para ambas, a maleabilidade da pulsão e a plasticidade da linguagem constituem o fundamento de uma não naturalização da sexualidade humana. Nesse sentido específico, a psicanálise pode ser reconhecida como um dos precursores da queer theory (Lago, 2010, Polo, 2012, Simões & Gonçalves, 2018).

Para destacar a especificidade da abordagem psicanalítica do sexual, Lacan (1971-72/2012) diferencia a sexuação - neologismo que cria - das concepções de sexo e gênero. Este se refere às identidades sexuais socialmente constituídas; aquele, à constituição fisiológica, biológica e genética. A sexuação, por sua vez, é um processo que diz respeito aos efeitos de gozo no ser falante a partir da incidência do falo como significante/signo de exceção (Danziato, 2016). Como consequência, esses três termos não se recobrem, embora estejam correlacionados de forma sempre complexa e inevitavelmente singular.

Para dar conta das especificidades do processo de tomada de posição frente à diferença sexual, Lacan (1971-72/2012) constrói um esquema que, segundo ele, inclui algo que é elidido em outros discursos e que desponta na experiência psicanalítica naquilo que ela traz de mais radical e original: a não complementaridade entre os sexos. Propõe então o aforisma: não há relação/proporção sexual. Tal assertiva, segundo ele, enuncia um dizer de Freud que atravessa toda sua obra, sem, contudo, ter se tornado manifesto (Lacan, 2003a).

Para evidenciar esse núcleo ao mesmo tempo fundamental e opaco da obra freudiana, Lacan constrói os rudimentos de uma lógica que inclui a falta e a contradição. Para tanto, ele procede com uma revisão crítica dos fundamentos da lógica em Aristóteles. De acordo com suas palavras, há uma insuficiência em Aristóteles que impossibilita que a desproporção da relação sexual seja satisfatoriamente formalizada. Tal insuficiência, afirma, está presente de modo recorrente no percurso freudiano como um obstáculo, que é indicado e circunscrito, mas que permanece não superado (Danziato, 2016). Freud (1931/1997, 1933/1997) fornece indicações desse limite, destacadamente quando reconhece a dificuldade em explicar a sexualidade feminina restringindo-se aos complexos de Édipo e de castração. Ao mesmo tempo, sustenta que a clínica das neuroses não permite prescindir de tais categorias. Diante dessa contradição circunstancial, Freud assevera que sua teoria está incompleta, destacando que quem chegou mais perto do cerne da elucidação do enigma da sexualidade feminina foram os poetas. Daí sua exortação a que os psicanalistas se ocupem da verdade que os artistas, ao seu modo, transmitem.

A tese de Lacan (1971-72/2012) é que há um obstáculo lógico que impossibilita que se avance na formulação daquilo que constitui o núcleo real e traumático do psiquismo: a não proporção ou não relação entre os sexos. Para não reeditar o impasse freudiano, ele forja a categoria do "não-todo", inexistente na lógica aristotélica clássica, que se mantém no âmbito da afirmação e negação, do singular e do universal. Além disso - a exemplo de Freud - Lacan dirige-se recorrentemente aos artistas e poetas, sustentando que, ao lado dos matemas, é importante que o analista faça uso do poema.

Percebe-se daí um procedimento de investigação que ataca o problema - a circunscrição dos efeitos da não relação sexual para o psiquismo humano - por dois flancos, de forma alternada e concatenada: um que interroga a lógica sem prescindir dela; outro que se volta às indicações laterais e obliquas que o artista produz.

Assim, referindo-se ao mito do pai primevo proposto por Freud (1913/1997) em Totem e Tabu, Lacan (1971-72/2012) pontua que o falo - na condição de operador lógico da castração - é o resultado de uma inconsistência irremediável do ser falante. Ele é efeito de uma dissociação radical entre o ser e a natureza produzida pela ação do significante. Daí, quando procura uma garantia para suas escolhas sexuais, o falasser encontra apenas uma significação efêmera e evanescente relativa a uma experiência de gozo que não pode ser compartilhada. Como consequência, as posições de homem e mulher, independentemente dos sexos biológicos de cada indivíduo, estão referidas ao falo, mas de formas diferentes. O homem, incluso integralmente na norma fálica; a mulher, não-toda referida a ela. Por conseguinte, a castração se torna uma função, cujo alicerce não é a presença ou ausência de um órgão, mas as consequências psíquicas da ação do significante no campo do gozo. Por isso, de um modo ou de outro, seja numa posição masculina ou numa posição feminina, a referência ao falo não garante a consistência de uma identidade sexual (Rabêlo, 2015). Apenas demarca modos diferentes e contingentes de operar com o gozo (Danziato, 2016, Polo, 2012a).

Nos estudos de gênero, o problema se coloca de outra maneira. Para Butler (2007), diferença sexual é explicada como o resultado de processos sociais discursivos que geram identidades performativas, concebidas como dinâmicas e plurais. A partir dessa premissa, a psicanálise é criticada e denunciada como produtora de um discurso ideológico heteronormativo, reprodutor de uma lógica sexual falocêntrica. O conceito de falo surge então como ponto de disjunção entre psicanálise e a queer theory (Lago, 2010, Simões & Gonçalves, 2012). Nessa linha de pesquisa, o falo é tomado como um constructo ideológico que reforça e legitima o binarismo supostamente natural homem/mulher, engendrando relações sociais de poder e dominação e mecanismos de exclusão dos que desviam da norma sexual.

Essas breves considerações permitem introduzir o que constitui o ponto central de nossa leitura do filme do diretor Yorgos Lanthimos (2016), O Lagosta: a desproporção sexual. Embora falado em inglês, seus roteiristas - o próprio diretor e seu colega, Efthymis Filippou, ambos gregos - parecem se inspirar no mesmo equívoco sonoro que Lacan (1971-72/2012) se vale para ilustrar a especificidade da sexualidade humana, a saber: a homofonia entre homem e lagosta presente no idioma francês.

Percebe-se que, para a grande maioria das personagens do filme, vigora um sentimento de inadequação no que tange às vivências sexuais e amorosas. Além disso, prevalece uma tensa e complexa formação de compromisso entre o sofrimento de cada um e as estratégias sociais de regulação e planificação da sexualidade.

 

A separação

O filme inicia-se com uma vinheta enigmática. Uma mulher dirige um carro numa estrada. No meio do caminho, freia bruscamente. Sem aparente motivo, desce do automóvel e caminha na direção de dois burros que pastam em um descampado ao lado do acostamento. Saca uma arma e atira seletivamente em um deles. Aos prantos e abalada, retorna ao carro e prossegue a viagem.

Na tomada seguinte, David, o protagonista, e uma mulher, sua iminente ex-companheira, travam um diálogo. Ela comunica o fim do relacionamento. Enquanto a cena se desenvolve, uma segunda voz feminina descreve os pensamentos de David em terceira pessoa. Como é dado a conhecer mais adiante, não se trata de um narrador onisciente, mas de uma personagem-narradora que conta a história retroativamente a partir do relato do próprio protagonista. No terço final do filme, essa personagem passa a fazer parte da trama. Sua identidade é revelada e sua voz passa a integrar os diálogos.

 

 

Durante a sequência da separação, a câmera não mostra diretamente o rosto da ex-mulher de David, focando nas reações do protagonista. Em um misto de resignação e revolta, ele pergunta se o rival preferido pela ex-mulher usa óculos ou lentes de contato. A pergunta de cunho fálico, frequentemente enunciada nos desencontros amorosos e insistentemente celebrada nas músicas românticas - o que ele (ela) tem que eu não tenho - adquire aqui uma nova e estranha roupagem, cujo suporte é a miopia.

Os objetos de David são confiscados. Ele sofre uma interdição e é levado para um local semelhante a uma instituição asilar, mas com a aparência de um resort de férias. Tal instituição congrega simultaneamente funções corretivas, pedagógicas e recreativas. Seu objetivo é fazer com que seus hóspedes reaprendam a viver em sociedade como um casal.

Uma atendente o interroga e preenche um questionário. Da mesma forma que sua ex-mulher na tomada anterior, o rosto da interlocutora de David não é mostrado em primeiro plano, o que confere à situação um ar de impessoalidade. A voz da funcionária é de uma gentileza mecânica e desinteressada. O conteúdo das perguntas, contudo, produz a impressão de que o protagonista recorreu a um serviço de mediação para encontrar um novo parceiro amoroso, o que destoa do ambiente formal e burocrático no qual a entrevista se desenrola.

Suas preferências sexuais e seu histórico de relacionamentos são minuciosamente inqueridos. No item "opção sexual", ele hesita e retruca: - "Há a opção para bissexual? Eu tive um episódio homossexual na faculdade". A funcionária responde: - "Esse item não consta mais como opção válida desde o último verão".

Percebe-se a partir desse trecho que o problemático para o sistema societário vigente não é tanto a opção sexual de cada um, mas o desencontro sexual. Para a estratégia de controle que o filme retrata, o que importa é a manutenção da estabilidade das relações monogâmicas. Coíbe-se, antes de qualquer coisa, o ratear e a deriva. Nesse contexto, a bissexualidade representa a expressão de uma errância que ameaça a assunção de uma identidade sexual unívoca, que supostamente constituiria o alicerce de uma escolha estável e duradoura do(a) de um(a) parceiro(a).

Vale lembrar que a partir do termo bissexualidade Freud (1905/1997) põe em relevo o caráter plástico, heterogêneo e fragmentado da sexualidade humana, assim como sua organização parcial, retroativa e os efeitos traumáticos que advêm daí. É em torno dessa incompletude inerente à sexualidade humana que ele defende uma etiologia sexual das neuroses. Tal constatação constitui o fundamento de seu modelo de aparelho psíquico. Não é à toa que talvez esse seja o ponto de sua teoria mais atacado e criticado, inclusive por psicanalistas dissidentes (Freud, 1914/1999).

A abordagem freudiana da sexualidade representa, portanto, um ponto de resistência à cooptação da psicanálise a outros discursos. É possível dizer com Lacan: há um mal-estar que emana da desproporção entre os sexos que faz objeção a qualquer promessa de felicidade plena. A não relação constitui uma manifestação do real que introduz descontinuidades e rupturas nos funcionamentos discursivos, indicando seus limites e pontos de impossibilidade (Lacan, 1971-72/1992).

Os primeiros quinze minutos do filme apresentam uma realidade ao mesmo tempo distópica e cotidiana: estranhamente familiar, levemente futurista, porém eivado por um clima antiquado e conservador. As personagens, pessoas aparentemente comuns, sofrem no cotidiano os efeitos de um sistema de controle que proíbe a vida solitária. Os desadaptados são compulsoriamente enviados a um hotel-reformatório, uma espécie de spa-asilo, para que possam encontrar um novo par. Ao final da estadia, os solitários remanescentes são transformados em um animal de sua escolha.

Daí o título da película: a opção do protagonista. Durante a entrevista de admissão, David justifica sua escolha: são bichos que vivem mais de 100 anos, tem sangue azul como os aristocratas e são férteis por quase toda vida. Vivem no mar. Diz gostar muito do mar. Confidencia então que seu cachorro é, na verdade, o seu irmão, que esteve no mesmo hotel no ano passado, mas que falhou em encontrar um novo par.

Até então, o animal poderia muito bem ser tomado como a parte do espólio da separação que coube ao protagonista.

 

O hotel/reformatório

Na instituição, os recém-chegados recebem novas roupas e são levados a seus aposentos. Já no seu quarto, David é recepcionado pela gerente do hotel. Ela comunica como será a rotina nos próximos dias e as regras que regem a formação de novos casais. Assevera: após 40 dias, caso os hóspedes não encontrem um novo par, serão transformados em animais. Mas adverte: - "um lobo e um pinguim não podem viver juntos, nem um camelo e um hipopótamo. Isso seria absurdo".

Essa preocupação com o risco da relação extra-espécies poder ser interpretado como indício de que o projeto instintual da nova espécie talvez não seja suficiente para orientar os acasalamentos. É como se um potencial desvio permanecesse como resíduo do humano, contaminando o animal. Assim, a errância - marca fundante da sexualidade do ser falante - passa a perturbar o plano da natureza.

A gerente pergunta então pelo animal da opção de David. Faz questão de destacar que a metamorfose representa uma segunda chance para que cada pessoa encontre um(a) novo(a) parceiro(a) da mesma espécie. Ao escutar a resposta do protagonista, ela o elogia, salientando que a maioria dos hóspedes escolhe animais domésticos, o que acaba por produzir uma superpopulação e um desequilíbrio ambiental.

Mais uma vez, há aqui elementos para se pensar uma perturbação do plano instintivo animal pela sexualidade humana. O vínculo de uma pessoa transformada em animal doméstico a outro ser humano pode ser entendido como uma forma de identificação a um outro/semelhante colocado no lugar de ideal do Eu (Freud, 1914/1997). Avalia-se daí a complexidade da relação entre David e seu cachorro. Para seu irmão, a transformação de David representaria a perda desse resíduo de laço social, enquanto para este a presença da companhia fiel de seu cachorro constitui uma admoestação de um futuro sombrio à espreita.

Do exposto, é lícito afirmar que a meta do dispositivo vigente é alcançar uma homeostase perfeita das trocas sociais, de forma que fique excluída qualquer perda ou entropia. Tudo leva a crer que a opção por um animal constitui uma das poucas formas tolerada de manifestação de uma singularidade. É como se um traço indelével do sujeito fosse isolado nessa escolha, desempenhado uma função de nomeação. Além do animal de escolha, há outras formas de individuação aceitas: o número do quarto e a característica marcante. Essa última sobrepõe-se ao nome próprio na designação das personagens durante sua estadia na instituição. É por essa via que as personagens são apresentados nessa etapa do filme: o homem de língua presa, o viúvo manco, a mulher sem sentimentos, a que gosta de biscoitos amanteigados, a moça que sangra pelo nariz e a que possui cabelos bonitos.

Essa característica marcante também desempenha a função de móbil para a formação de novos casais. É como se a estratégia utilizada para fazer a relação sexual consistir se apoiasse na obliteração da diferença sexual. Um traço identificatório qualquer serve ao propósito de colmatar a falta e a diferença entre os sexos, criando uma relação de complementaridade e espelhamento. Tal estratégia é equivalente à do fetichista na perversão, que desmente a castração, deslocando para um acessório da vestimenta ou para outra parte do corpo o valor afetivo da genitália fálica do sexo feminino (Freud, 1927/1997). Deve-se ressaltar, no entanto, que no filme não estamos no âmbito da estrutura perversa, mas de um dispositivo social que se tornou hegemônico.

Explica-se daí a reação do protagonista na cena do rompimento. Por serem míopes, ele e sua ex-esposa, o defeito de seu rival deveria ser mais ajustado ao de sua ex-mulher que o seu. Sua ex-mulher não usa óculos; ele sim. Daí a pergunta pela lente de contato, que desestabiliza a reciprocidade identificatória. É importante ressaltar que essa metáfora visual comparece várias vezes no decorrer do filme, sendo crucial no seu desfecho.

Antes de deixar o quarto, a gerente do hotel ordena que uma funcionária prenda o braço direito de David nas costas com uma algema. Trata-se de uma espécie de dinâmica de grupo com fins pedagógicos, cujo objetivo é demonstrar como é mais fácil viver a dois do que sozinho. Além disso, tal expediente visa combater à masturbação que, como no caso do homem de língua presa, é punida com queimadura dos dedos. No entanto, malgrado essas práticas que coíbem a satisfação sexual, os hóspedes são mantidos em estado de permanente excitação, de modo que busquem o mais rápido possível um relacionamento com um novo par.

Ao olhar pela janela, David vê uma fila de corpos deitados no chão, inertes, com capas de chuva, ao lado de um grupo de caçadores. Uma funcionária dá ao grupo algumas instruções, dentre as quais se destaca: "para cada solitário abatido, um dia extra". Armas de dardos tranquilizantes disponíveis em cada quarto do hotel sugerem que as pessoas abatidas não foram mortas, mas imobilizadas. Tudo leva a crer que as caças são os antigos hóspedes que falharam na tarefa de encontrar um novo par. Mais adiante, revela-se que os alvos são os hóspedes que fugiram do hotel para escaparem da transformação.

Os novos hóspedes são então levados ao salão de baile. A gerente encena um dueto musical com o seu companheiro, no qual celebram o encontro das cores. É como se os dois se apresentassem como um modelo bem-sucedido de casal. Durante esses bailes, outras performances são executadas. Todas acentuando de forma mecânica e estereotipada as vantagens da vida a dois. Após essas apresentações, os participantes são incentivados a dançar e a interagirem entre si.

Ao final do baile, soa um alarme. Todos são convocados a pegar suas armas e seguir para a floresta para a caçada. As presas, como já dito, são os hóspedes fugitivos que não consentiram com a transformação. Eles diferenciam-se dos demais por vestirem capas de chuva. Os caçadores, por sua vez, são instigados a abater o maior número de alvos. A cada presa abatida é concedido um dia a mais na instituição.

Essa concessão constitui a saída para uma personagem coadjuvante da história, a mulher sem sentimentos. Ela é a hóspede mais avessa ao contato humano e, paradoxalmente, a mais antiga e bem adaptada à rotina da instituição. Ela se recusa a manter qualquer relação de troca afetiva com os demais hóspedes, adiando incessantemente a transformação em animal por meio do acúmulo de bônus de caça. Pode-se dizer que há uma espécie de compromisso tácito entre o sistema dominante e o distanciamento afetivo dessa mulher.

A caçada acontece como um balé em câmera lenta, numa estranha mistura entre comédia e a tragédia. Percebe-se então como cada hóspede age no lugar de caçador. A personagem principal, David, mostra-se inibida e culpada. Recusa-se a abater os alvos, resignando-se quanto ao caráter incontornável de sua transformação. Outros, a exemplo da mulher sem sentimentos, engajam-se obstinadamente nessa atividade sem se deter no fato de que o caçador de hoje pode ser a caça de amanhã.

No ônibus, David é cortejado pela mulher que gosta de biscoitos amanteigados. Ela adverte que, caso não encontre um novo par, cometerá suicídio. A concretização dessa ameaça faz com que o protagonista torne-se progressivamente mais culpado e recluso.

Um casal se forma no hotel-reformatório, tomando como elemento de reciprocidade o sangrar pelo nariz, o que acirra ainda mais em David o sentimento de fracasso. Há nesse caso um detalhe interessante. O homem, que na realidade possui como traço marcante o mancar, golpeia recorrentemente o próprio nariz para gerar o sangramento. Fica evidente então que não há nada de espontâneo ou natural nessa referência a uma característica identificatória em comum na formação de casais. David confronta o colega manco, alertando para uma provável reação negativa de sua companheira ao perceber que foi enganada. O viúvo manco desconsidera o alerta do colega e parte para o período de prova do casal, uma espécie de lua de mel em um veleiro. Pouco tempo depois, para apaziguar as discussões e brigas, é enviada uma filha para compor e estabilizar a nova família. Percebe-se então que, nessa sociedade fictícia, o ato sexual está dissociado da procriação. Quando necessário, a ciência incumbe-se de prover os filhos, que são socializados por famílias já constituídas.

Sem cultivar mais esperanças de encontrar um novo par, David, a exemplo de seu colega manco, resolve dissimular sua compaixão e empatia com as outras pessoas para, assim, aproximar-se da mulher sem sentimentos. A estratégia obtém sucesso..., até certo ponto. Eles se casam e são enviados para um período de prova e observação. Em uma dada manhã, ao acordar, sua nova companheira lhe conta que torturou e assassinou o seu irmão. Ao ver o cachorro agonizando no banheiro, David não consegue conter o choro. A mulher sem sentimentos então ameaça entregar David à direção do hotel-reformatório para que seja punido por tentar burlar o sistema de formação de casais. Ele pergunta então qual é o castigo para tal transgressão. Ela responde: a transformação em um bicho que ninguém deseja ser. Nesse caso, além da humanidade, ele perderia o direito de escolha. O roteiro deixa em aberto qual seria esse animal.

Acossado, David golpeia a mulher sem sentimentos e a leva à sala de transformação para que receba a punição que queria infligir. Nesse momento, depara-se com uma camareira do hotel. Ao invés de ser denunciado, ele recebe a inesperada ajuda dessa funcionária, que mais adiante se revela uma agente infiltrada dos rebeldes. David então foge do hotel, seguindo em direção à floresta, onde adormece.

 

A milícia rebelde

Ao despertar, David é recepcionado pelos rebeldes, uma espécie de milícia clandestina que combate o sistema de casamento compulsório. Eles vivem na floresta em acampamentos volantes, fugindo dos caçadores que de tempos em tempos realizam incursões para capturar os solitários. A líder do grupo informa a David que ele é bem-vindo e que pode juntar-se ao grupo, caso assim queira. Diz que lá todos podem se masturbar, dançar sozinhos nas festas - no caso, música eletrônica, pois se dança separado - e permanecer solteiro o tempo que quiser. No entanto, adverte que lá vigora uma rígida disciplina. O sexo é terminantemente proibido sob a pena de severas punições: o beijo vermelho e o sexo vermelho. O primeiro consiste em infligir cortes nos lábios de quem é flagrado flertando. Após a mutilação, o casal é forçado a se beijar. Já o sexo vermelho é mantido em segredo, como um tabu. Trata-se de um castigo supostamente mais severo do que o beijo vermelho, provavelmente a concretização da castração no real, que seria aplicada àqueles que se excedessem nas trocas de sexuais. Além disso, todos devem cavar a própria cova e se haver sozinhos com as adversidades, no caso de serem capturados ou lesionados.

Numa observação mais apressada, poder-se-ia argumentar que o sistema de regulação oficial e a estratégia rebelde constituem dois modos de organização totalmente distintos. Uma análise mais detalhada à luz da fórmula da sexuação pode levar a uma conclusão diversa. Os mecanismos de controle oficial e rebelde podem ser considerados equivalentes, no sentido que ambos se empenham em negar a diferença sexual por caminhos diferentes, mas análogos. No sistema oficial, trata-se da negação do universal da castração e da afirmação da existência de uma relação sexual complementar; no caso dos rebeldes, da afirmação absoluta do universal da castração e da negação de qualquer possibilidade de trocas sexuais. Logo, antes de se firmar como uma resposta subversiva ao controle oficial, os rebeldes reproduzem de forma espelhada o modo de regulação que combatem. Desse modo, a possibilidade contingente de escolha de um parceiro se transforma numa injunção e a liberdade para permanecer solitário assume a forma de proibição de se vincular a alguém, como outra versão do supereu.

Ao se comparar as duas estratégias, é possível isolar o que no filme poderia ser qualificado como uma perversão social (Ferrari, 2014). Ambas constituem tentativas de velar a não relação sexual por meio do desmentido da castração. No caso do dispositivo oficial, coíbe-se toda e qualquer errância. Elege-se um traço - a marca singular - que exclui a diferença sexual e que proporciona a ilusão de uma relação complementar, recíproca, duradoura e sem falhas. A injunção para que os solteiros arrumem um novo companheiro(a) sob pena de exclusão do laço social pode ser entendido como um desmentido daquilo que insiste como núcleo real da estrutura, a não-relação sexual. Para os rebeldes, prevalece a consistência maciça, sem furos, da lei da castração, que não admite nenhuma exceção ou dialetização.

Daí ser possível falar da incidência de um desmentido da castração tanto lá como aqui. A perspectiva do não todo permanece velada, uma vez que, nos dois casos, trata-se de coibir a manifestação da falha agenciada pela castração que causa a desproporção sexual. Por isso, o desenvolvimento de toda e qualquer relação afetiva fundamentada na disparidade de posições subjetivas é fortemente reprimida como uma ameaça ao laço social.

Pode-se argumentar que, tanto no sistema oficial como entre os rebeldes, vigora um obstáculo para se adotar uma posição feminina, uma vez que o devir feminino pressupõe simultaneamente a incidência da função fálica e a dialetização de sua exceção. No entanto, tal obliteração do feminino ocorre de formas diferentes. Na sociedade oficial, o traço identificatório que agencia a constituição do casal possui um caráter absoluto, estabelecido por uma relação paranoica com o saber e sua tirania científica. Tratar-se-ia então de um casal composto por dois sujeitos numa posição masculina. Estabelece-se daí uma relação dual, recíproca e homogênea, o que faz com que as trocas afetivas assumam um caráter mecânico e estereotipado. Já entre os rebeldes, prevalece um modo de identificação ao líder e ao grupo mais próximo dos processos descritos por Freud em Psicologia das Massas e análise do Eu (1921/1997). Não é à toa o estilo militarizado e hierárquico que rege a relação entre os rebeldes. Aqui também a diferença sexual é velada, de uma forma até mais manifesta e menos sutil. Todo investimento pulsional deve ser direcionada ao grupo, seja por meio de identificações verticais com o líder, seja na forma de identificações horizontais com os demais membros.

É possível ainda especular se a organização societária oficial não seria fundamentada no discurso universitário, transformado e atravessado pelo discurso capitalista (Lacan, 2003c). Verifica-se elementos do discurso universitário ao se constatar a prevalência de regras burocráticas que regem de forma compulsória as trocas entre os indivíduos. Tais regras funcionam como um saber (S2) no lugar de dominante do discurso. Elas regulam o laço social, tomando os sujeitos como objetos a serem transformados e adaptados. Também é lícito apontar elementos do discurso capitalista nessa sociedade distópica, uma vez que ela se fundamenta em um aparato tecnológico e científico que nega a falta e a diferença sexual a partir da promessa de formas não mediadas de satisfação. Um exemplo disso seria a presença de dispositivos no filme que guardam fortes semelhanças com alguns produtos de nossa cultura, cuja tónica é o consumo instantâneo em massa, por exemplo: os aplicativos digitais de agenciamento de encontros, a concepção in vitro e os resorts, ambientes artificiais que prometem o isolamento da realidade e do mal-estar.

Considera-se razoável, por sua vez, situar o funcionamento do grupo dos rebeldes conforme a organização do discurso do mestre. Sua abrangência parece restrita ao campo de influência de um determinado líder; todavia, o engendramento de tais líderes parece ser algo inerente ao funcionamento do sistema dominante, haja vista que esse não só reconhece como também responde preventivamente de forma ostensiva à ação dos rebeldes. Deve-se considerar ainda que o ingresso no grupo dos rebeldes constitui uma escolha forçada. Os seus membros são os desadaptados e excluídos da sociedade oficial. O vínculo inicial ao grupo se deve, portanto, à condição de clandestino e à ameaça de transformação em animal. A permanência ao grupo, no entanto, deriva dos efeitos da ameaça real de castração que o líder encarna para garantir o celibato. Certa "dessexualização" permanece como uma ordem superegoica, estabelecendo o fim do erótico.

Em determinado momento, o filme mostra um ataque ao hotel-reformatório organizado pelos rebeldes. Para preparar essa investida, os rebeldes assumem identidades falsas e simulam serem casais já constituídos. A líder dos rebeldes mantém o vínculo com sua família de origem e, de tempos em tempos, visita-os junto com outros supostos casais amigos como disfarce para se infiltrarem na sociedade oficial. Dessa forma, os rebeldes-espiões conseguem passar despercebidos enquanto organizam suas ações terroristas.

Nesse ponto da história, o improvável realiza-se. O protagonista se apaixona por uma mulher do grupo rebelde e é correspondido. Trata-se da narradora da história. Eles desenvolvem um complexo jogo de sinais - uma inventiva mistura de libras com código Morse - para se endereçarem um ao outro sem que os demais percebam. Surge daí singelas mensagens de amor. Aqui vemos materializada a tese de Lacan (1972-73/1985) de que o amor faz suplência da não relação sexual. As cartas de amor materializam um dizer sobre o que da relação sexual permanece como impossível de se escrever. Trata-se de uma contingência, quando algo do real cessa de não se escrever (Soler, 2011).

Tais mensagens testemunham o fracasso das estratégias de regulação, a oficial e a rebelde. No primeiro caso, quando inclui a castração e a desproporção sexual como condição de acesso ao outro sexo por meio da fantasia. No segundo, quando evidencia que a castração não é uma lei de ferro imposta por uma severa vigilância exterior. O amor entre David e sua nova parceira atesta que a castração é uma função que resulta de um fato estrutural, a incrustação da linguagem na vida. Tal verdade irrompe junto com essa relação amorosa. O amor faz signo do real, da não relação sexual, destacando os pontos de impossibilidade de cada discurso e promovendo voltas em quarto de giro para modalidades de discursos vizinhas (Lacan, 2003b).

Durante as missões preparatórias para o ataque, David e sua companheira simulam ser o que na realidade são: um casal apaixonado. Eles trocam juras de amor e fazem planos de vida a dois. A verossimilhança da atuação chama a atenção de todos, ao tempo que causa constrangimento aos rebeldes que participam dessas incursões. A líder do grupo chega a elogiar o empenho e a dedicação de David e sua companheira à missão.

Na execução do ataque, evidencia-se o objetivo almejado pela líder rebelde. A meta não é matar ou ferir, mas denunciar a impostura do modelo oficial de formação de casal. Assim, o marido da gerente do hotel reformatório é forçado pela líder do grupo a escolher entre a própria vida e a da companheira, enquanto David revela à moça que sangra pelo nariz o expediente adotado pelo viúvo manco para simular uma reciprocidade identificatória.

De volta ao acampamento, durante a comemoração do sucesso da incursão, o frágil arranjo que protegia David e sua companheira se desfaz. Quando estavam prestes a concretizar a fuga do acampamento rebelde, o casal sofre um revés. O diário da companheira de David cai na mão da líder do grupo, que, juntamente com o plano de fuga em curso, reconhece a autoria dos sonhos de vida a dois lá registrados, uma vez que são os mesmos que a dona do diário havia confidenciado nas suas visitas à cidade, enquanto, sob a proteção de seu disfarce, podia expressar o que sentia pelo companheiro. A impostura do casal revela então sua face de verdade. Trata-se, portanto, da verdade como um semi-dizer na forma de ficção.

A líder rebelde leva então a narradora para uma clínica oftalmológica na cidade sob o pretexto de realizar um tratamento que a livraria da miopia. Ao invés disso, faz com que o médico a cegue. A moça demora um tempo fingindo ao companheiro que enxerga, temendo que a desidentificação com o traço da miopia provoque o fim da relação. No entanto, ambos permanecem juntos, talvez mais intensamente ligados do que antes. O fato de terem sido descobertos faz com que antecipem a fuga, mas não sem antes se vingar da líder do grupo, demonstrando suas fragilidades e medos.

David encena com a própria líder uma situação que ela lhe descrevera em tom de ameaça, que constituiria a punição a ser aplicada a ele e sua companheira caso fossem descobertos: ser enterrado vivo em uma cova rasa, enquanto cães lambem e cheiram as partes do corpo à mostra, com destaque especial para o rosto. Ao reproduzir essa cena traumática e fantasiada, David demostra pela via da angústia a falta de quem até então se apresentava como agente de uma lei sumária que não admite falhas.

Durante a fuga, no trajeto em direção à cidade, o casal para em um restaurante de beira de estrada para descansar e comer. O protagonista diz à companheira cega que precisa ir ao banheiro. Na última cena, os créditos surgem no momento em que, de frente ao espelho, o protagonista está na iminência de ferir a retina com uma faca.

Esse derradeiro ato - e sua suspensão - possui um sentido polissêmico. Conforme nos ensina os mitos de Édipo e Tirésias, a cegueira remete a um saber que consente e aceita a castração, mesmo que em um tempo tarde demais. Há também outra possibilidade, mais pessimista: o protagonista resigna-se com as regras do sistema do casamento compulsório e, a exemplo do seu amigo manco, mutila-se para alcançar uma reciprocidade identificatória com a companheira.

Cabe salientar que a sexuação, conforme sublinham Simões e Gonçalves (2018), constitui muito mais uma via processual do que um ponto chegada cristalizado. Dessa forma, independentemente das identificações e das escolhas objetais, o que importa é a posição que cada sujeito ocupa em relação a suas vivências de gozo. Assim, a cegueira comum às personagens poderia servir de disfarce para a não reciprocidade das posições que ambos ocupam.

 

Para concluir: a sexualidade na contemporaneidade

A história de O lagosta sugere uma equivalência entre a escolha objetal por meio da identificação a um traço marcante e o retorno à animalidade. Essas duas vias podem ser entendidas como tentativas correlatas de regulação do mal-estar e denegação da diferença sexual, na mediada que ambas visam estabelecer uma homeostase apoiada de uma relação objetal recíproca que oblitera os efeitos constitutivos e humanizantes da não relação sexual .

Essa distopia fantástica convida-nos a uma reflexão acerca da lógica biopolítica dominante em nossa sociedade, que reduz ao geneticismo social, às neurociências e às novas tecnologias, questões fundamentalmente sociais e simbólicas. Como se, na alma do projeto biopolítico contemporâneo, habitasse uma proposta de destruição do sujeito e da civilização. Há aí, portanto, um paradoxo com o qual devemos lidar e que exige um posicionamento político e ético.

Vale ressaltar que, no filme, ainda que supostamente desumanizadas, as pessoas transformadas em bichos expressam uma dor de existir que as diferencia. Daí a contradição: se o sistema insiste em atestar que o humano não erra no exercício da sexualidade e que há uma equivalência possível entre os sexos, as expressões de afeto mais humanas acontecem entre os animais transformados e os solitários. As relações entre os pares acasalados são, por sua vez, artificiais, estereotipadas, organizadas em torno de um clichê de felicidade.

Nesse contexto, a irrupção do amor constitui uma contingência desorganizadora, uma vez que promove quartos de giros que solapam a hegemonia das modalidades discursivas cristalizadas pelas estratégias regulatórias dominantes. Assim como o amor, as manifestações do feminino também constituem uma ameaça a essa homeostase artificial. Não é a toa que a vingança da líder do grupo rebelde recai justamente sobre a companheira de David.

A trama de O lagosta leva-nos ainda a refletir sobre algumas possíveis inflexões que as demandas dos movimentos políticos LGBT podem assumir. Se tais movimentos sociais inquestionavelmente promovem a defesa dos direitos humanos, combatendo a discriminação e os discursos de ódio e violência; em alguns momentos, no entanto, eles parecem assumir uma reinvindicação de consistência das identidades. Decorre daí o risco de essa militância reproduzir de forma espelhada uma normatividade que combatem. Se, por um lado, a formação de grupos com traços de gêneros comuns pode servir de instrumento para a mobilização política e a promoção de direitos; por outro, tais grupos em alguns momentos parecem constituir códigos de conduta, formais e informais, manifestos ou não, igualmente rígidos e potencialmente segregadores. Cabe então indagar os limites do projeto de coletivização das identidades sexuais, que a psicanálise, a partir do ensino de Lacan, permite localizar e problematizar (Cossi & Dunker, 2017). Deve-se salientar que essa perspectiva não está em contradição com algumas reflexões promovidas no interior da própria queer theory, como se percebe na entrevista realizada com J. Butler por Knudsen (2010).

A demanda por uma consistência identitária presente nos movimentos LGBT, por sua vez, é reforçada pelo discurso da ciência. Surgem daí diferentes formas de intervenções cirúrgicas e tratamentos hormonais como meio de adaptação do corpo ao gênero. Pondera-se que tais procedimentos podem até se justificar, conquanto se esteja advertido que uma equivalência entre sexo e gênero é inatingível e que uma discrepância entre esses dois termos sempre irá existir (Coutinho Jorge & Travassos, 2017, Simões & Gonçalves, 2018, Polo, 2012b).

No filme, a transformação em animais mostra-se insuficiente para apagar o que permanece como marca indelével de cada sujeito, o que leva os solitários a perpetuarem suas errâncias mesmo após a metamorfose.

 

Referências

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Recebido em: 11/07/2018
Aprovado em: 05/02/2019

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