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Trivium - Estudos Interdisciplinares

 ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.123 

RESENHA

 

O descompasso entre o corpo e a imagem: sobre a questão transexual na contemporaneidade

 

 

Renato Jesus Aparecido de Praga Palma

Psicanalista. Psicólogo do Exército Brasileiro. Membro associado do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise; Mestre em Psicanálise pela UERJ e Especialista em Psicanálise e Saúde Mental pela mesma universidade

 

 

 

Resenha do livro Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência, de Marco Antonio Coutinho Jorge e Natalia Pereira Travassos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 2018. 130 pgs.

No livro Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência, os autores Marco Antônio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos trazem o tema da transexualidade e suscitam questões pertinentes aos dias de hoje. Ser homem com trejeitos femininos e mulher com modos masculinos são características presentes em diferentes tempos e culturas, entretanto as exigências de intervenção no corpo têm-se apresentado como um episódio recente, o que é denominado pelos autores de "empuxo à cirurgia e ao uso de hormônios" (p.62). Sob o prisma psicanalítico, eles analisam os possíveis motivos de esse fenômeno surgir com tanta força na atualidade e indagam por que o assunto é tratado de forma corriqueira, banalizada, visto que o processo transexualizador implica procedimentos médicos sérios, em muitos casos irreversíveis.

Imerso no referencial teórico freudiano, o livro prioriza o posicionamento segundo o qual as experiências transexuais deveriam abordar-se como únicas, no caso a caso, já que as manifestações sexuais (e transexuais) são múltiplas, não sendo passíveis de generalizações. Ninguém consegue ser abarcado em sua totalidade por um discurso único e normativo. Os autores reconhecem a violência dessa tentativa e vão na sua contramão, por entender que qualquer sujeito só pode ser escutado em sua singularidade e, no que diz respeito às suas questões, desejos e sintomas, ninguém conseguirá dizer algo em seu lugar.

Já na introdução é possível evidenciar que este livro não se restringe exclusivamente a uma discussão da clínica psicanalítica. De modo mais abrangente e com uma linguagem clara e de fácil entendimento, ele aborda o processo transexualizador como uma questão social, condizente com as determinações da cultura de cada época. Partindo dessa percepção, o livro faz um breve histórico de como a transexualidade tem sido abordada pelos campos sociopolítico, médico e psicanalítico, e perpassa por discussões sobre sexo e gênero, normal e patológico, bem como sobre a relação entre homofobia e transexualidade.

É observado com frequência que os pedidos de intervenção no corpo são presentes no caso dos transexuais, mas, para os autores, a questão transexual não se resume a um mero pedido de cirurgia ou do uso de hormônios. Como psicanalistas, eles advertem que há uma forte relação entre o corpo e o pathos subjetivo, uma vez que a materialidade do corpo é atravessada pela linguagem, de modo que o corpo abriga os diversos tipos de conflitos psíquicos que não puderam ser expressos em palavras. Sustentados por essa percepção e por observarem que, na maioria das vezes, a ciência toma o corpo unicamente como objeto de intervenção, deixando de lado a sua acepção discursiva, eles indagam sobre o lugar concedido ao mal-estar descrito pelos transexuais, por que a transexualidade é situada no rol das patologias psiquiátricas, e ainda, em vista de que finalidade a medicina tenta responder aos pedidos de adequação corporal - ao sujeito, que localiza a sua angústia em uma parte do corpo, ou às promessas capitalistas de vender um produto ou uma condição para supostamente acabar com o mal-estar?

Desde o início do livro e principalmente nos capítulos denominados "interrogações" e "a questão transexual", somos levados a questionar o lugar que a medicina e sua nosografia diagnóstica assumem no tocante a essa forma de manifestação da sexualidade. Ao apontarem para a íntima relação entre o capitalismo, a medicalização excessiva e o crescente número de novas patologias, os autores convocam-nos a refletir sobre as controvérsias presentes no modo de conduzir a questão transexual pela ciência.

Outro ponto de análise presente no livro refere-se ao questionamento do imaginário social de que haveria uma prática sexual normal, bem como uma complementaridade entre os sexos. Em "Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade", Freud (1905/1996) observou que as apresentações da sexualidade são muito diversas, podendo-se manifestar de qualquer forma, mesmo naquelas que, a princípio, não teriam cunho sexual. Para Freud, os objetos de satisfação libidinal são o mais possível variáveis, o que dá suporte a sua teoria sobre a bissexualidade como constitutiva e universal, ou seja, pelo fato de o objeto da pulsão ser variável, pode-se investir, de forma latente ou manifesta, em qualquer objeto, de ambos os sexos. Embasados nessa compreensão, os autores concebem, no capítulo "sexo e gênero", que a teoria da bissexualidade permite retirar a homossexualidade do rol de doenças, fazendo dela mais uma forma de escolha objetal. O sexo então abarcaria o estado biológico enquanto o gênero faria referência à influência da cultura, que dita as regras sobre a sexualidade.

É possível observar nesse capítulo uma importante explanação sobre o pensamento de diferentes sociólogos, psicanalistas e sexologistas sobre a relação entre sexo e gênero, culminando na ideia de que, em muitos casos de transexualidade, o gênero se sobrepõe ao sexo em uma tentativa de adequação do sexo biológico ao gênero, podendo resultar em demandas à medicina de intervenção no real do corpo, muito embora a medicina pouco tenha a responder sobre a questão psíquica que subjaz à demanda transexual - que é o sofrimento referente ao seu sexo. Sobre isso, o livro traz uma extensa análise histórica do surgimento e da evolução do conceito de transexualidade, bem como de sua aceitação pela sociedade e pela medicina científica. E, pelo viés da psicanálise, os autores tecem argumentos sobre o que levaria os transexuais a lidarem com o seu imaginário não pela via simbólica, mas por uma tentativa de corrigi-lo através de uma intervenção na materialidade do corpo. Eles trazem importantes contribuições sobre as hipóteses causais das disforias de gênero e da transexualidade, tributando especial atenção a dois importantes trabalhos, como o livro Sex and Gender (1968) de Robert Stoller, e o recente relatório do Hospital John Hopkins, Sexuality and Gender (2016).

Por fim, e não menos importante, o livro traz em seu último capítulo um extenso questionamento sobre a eficácia da cirurgia de transgenitalização, uma vez que recentes pesquisas revelam uma iatrogenia presente nesse processo, visualizada no elevado número de casos de depressão e de tentativas de suicídio após a cirurgia. Sob o nome "desafios", o capítulo expõe questões pertinentes a esse campo, como, por exemplo, se realmente é possível um homem transformar-se em mulher, e vice-versa, e por que a ciência avalizaria essa crença. Haveria algum interesse por detrás dela que a faça pleitear com tanta facilidade os procedimentos de transexualização? Inserido nessa questão, os autores informam sobre o elevado número de crianças e de adolescentes que são indicados a se submeterem ao processo transexualizador. Se primeiramente nos questionamos se essa escolha é deliberada ou se são os próprios pais ou especialistas que convocam tais sujeitos a ditas intervenções, outra pergunta não menos relevante apresenta-se: por que muitas crianças que têm características ou comportamentos sexuais incomuns são influenciadas a se tornarem transgêneras, já que a infância e, principalmente, a entrada na adolescência colocam questões comuns sobre a imagem corporal, sobre a sua identidade e sobre o seu sexo?

Se o livro traz como foco as controvérsias referentes ao processo transexualizador, também fornece importância similar aos dilemas enfrentados por aqueles que já realizaram as intervenções e que almejam a destransição. Os autores informam-nos que o número de pessoas com tal intento tem-se elevado e, a partir de diferentes relatos, o livro incrementa suas indagações relativas à eficácia das cirurgias de mudança de sexo.

Em suma, preocupados com os múltiplos aspectos da questão transexual, Marco Antônio Coutinho Jorge e Natália Pereira Travassos discorrem sobre a complexidade envolvida nesse campo, demonstrando ser uma questão com diferentes desdobramentos e que se apresenta no limiar entre o discurso do sujeito e da ciência. O livro presenteia-nos com uma contribuição inovadora, que coloca em voga um tema contemporâneo muito pouco debatido.

 

Referências

Freud, S. (1996). Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Em Edição standard das obras completas de Sigmund Freud (v. 7). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1905)        [ Links ]

Jorge, M. A. C.; Travassos, N. P.(2018). Transexualidade: o corpo entre o sujeito e a ciência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.         [ Links ]

Mayer, L. McHugh, P. (2016). Sexuality and Gender. Em The New Atlantis (v. 50). Washington: Center for the Study of Technology and Society.         [ Links ]

Stoller, R. J. (1968). Sex and Gender: the transsexual experimente. Londres: Chatto & Windus.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/03/2019
Aprovado em: 01/04/2019

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