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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.156
ARTIGOS TEMÁTICOS
Contrapontos entre Psicanálise e Medicina no Hospital Oncológico*
Counterpoints between psychoanalysis and medicine in cancer hospital
Contrapuntos entre el psicoanálisis y la medicina en el Hospital Oncológico
Luzia Rodrigues PereiraI; Ana Maria Medeiros da CostaII
IPsicóloga; Mestre do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) / E-mail: luziarp@gmail.com
IIPsicanalista membro da APPOA; Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) / E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com
RESUMO
A partir da prática em um hospital oncológico, buscaremos pensar na relação entre psicanálise e medicina em uma época em que a medicina baseada em evidências parece vigorar de forma determinante. Abordaremos inicialmente dita relação, para, em seguida, apontar algumas diferenças éticas que circundam psicanálise e medicina. Nosso intuito é o de esclarecer que ambas podem conviver no contexto hospitalar, uma vez que aquilo que escapa à medicina será central na abordagem da psicanálise.
Palavras-chave: PSICANÁLISE, MEDICINA, EVIDÊNCIA, ÉTICA.
ABSTRACT
Based on practice in a cancer hospital, we will think of the relationship between psychoanalysis and medicine in the present moment where evidence-based medicine seems to prevail. First we will discuss the evidence-based medicine, and then, we will point out some ethical differences involved in psychoanalysis and medicine. Our intention is to clarify that both can coexist in the hospital, and show that, what medicine excludes is fundamental to the psychoanalytic approach.
Key words: PSYCHOANALYSIS, MEDICINE, EVIDENCE, ETHICS.
RESUMEN
Desde la práctica en un hospital oncológico, buscaremos pensar en la relación entre la medicina del psicoanálisis en un momento en que la medicina basada en la evidencia parece estar vigente. Primero lo abordaremos y luego señalaremos algunas diferencias éticas en torno al psicoanálisis y la medicina. Nuestro objetivo es aclarar que ambos pueden vivir en el contexto del hospital, ya que lo que escapa a la medicina será central para el enfoque del psicoanálisis.
Palabras clave: PSICOANÁLISIS, MEDICINA, EVIDENCIA, ÉTICA.
Desde Freud (1926/1996, p.222), vimos que, na escola de medicina, o médico recebe uma formação mais ou menos oposta à de que ele necessitaria para se tornar um analista. Ao descrever sobre o ensino ofertado aos médicos, ele nos assinala que "sua atenção foi dirigida para os fatos objetivamente verificáveis da anatomia, da física e da química, de cuja apreciação correta e influência adequada depende o êxito do tratamento médico".
No contexto atual, com a utilização da medicina baseada em evidências (MBE), tal objetividade parece ainda mais exacerbante, como uma expressão da medicina que tem modelado certo olhar sobre as doenças, de forma a criar um estilo médico. Ela é embasada na aplicação do método científico à prática médica, com a utilização de técnicas oriundas da ciência, engenharia e estatística, tais como: revisões da literatura, análise de risco-benefício, experimentos clínicos randomizados e controlados, de forma a aperfeiçoar o raciocínio clínico para além da vivência clínica e da experiência pessoal de cada médico.
Sackett (2003, p.19), um dos criadores do movimento da medicina baseada em evidências, define a mesma como a integração das melhores evidências de pesquisa com a habilidade clínica e a preferência do paciente. A meta apregoada pela MBE é buscar estreitar a distância entre o conhecimento científico, teórico e sua aplicação prática, transformando-o em elemento de apoio às decisões diagnósticas e terapêuticas e em instrumento para uma melhor atuação profissional. Almeja produzir conhecimentos sólidos sobre a etiologia das doenças e métodos preventivos, diagnósticos e terapêuticos que precisam ser continuamente atualizados e também modificar, através do acesso a essas informações, a prática dos médicos num processo de educação continuada.
A MBE, por ter um padrão universal, retoma o modelo positivista que reduz o qualitativo ao quantitativo. Ela se insere em uma racionalidade moderna que muitas vezes privilegia a doença em detrimento do doente. Sackett (2003) parece reconhecer a limitação da MBE em pesquisas que questionem sobre os próprios pacientes ou sobre sua experiência de doença. Ele aponta que as perguntas feitas pelos pacientes aos médicos quase sempre são relativas à experiência com a doença, os exames diagnósticos e os tratamentos, e não relativas aos resultados dos exames ou desfechos da saúde que geram um impasse. Cita a pesquisa qualitativa, a qual, para ele, se encarrega desses assuntos:
Esse tipo de pesquisa procura descrever e compreender os sentimentos, ideias e a experiência mais ampla do paciente, em vez de medir objetivamente os desfechos. Embora consideremos a integração da pesquisa qualitativa um dos principais desafios atuais da MBE, prontamente admitimos que não somos especialistas nessa área, que a encaminhamos aos outros. (Sackett, 2003, pp. 39-40)
Para Foucault (1974/ 2010, p.181), apesar dos avanços tecnológicos, os médicos estão inventando uma sociedade não da lei, mas da norma. O que rege a sociedade não são os códigos, mas a perpétua distinção entre o normal e o anormal, o perpétuo empreendimento de restituir o sistema de normalidade.
Canguilhem (1982), por sua vez, baseia-se em um estudo histórico, acompanhando o percurso da medicina ocidental dos últimos séculos. Ele nos aponta que não é possível falar de patologia objetiva; pode-se praticar objetivamente, de forma metódica, crítica e experimentalmente, mas seu objeto não é um fato, e sim um valor. É a vida, como atividade de informação e assimilação, que busca lutar contra tudo que constitui um obstáculo à sua manutenção e desenvolvimento. Em outros termos, cientificamente, não se ditam normas à vida.
Para o autor, não deveria haver uma dicotomia que separasse saúde e doença, a normalidade e a patologia deveriam fazer parte de uma mesma natureza, através de uma mesma realidade: a vida. Segundo ele: "É a vida em si mesma, e não a apreciação médica, que faz do normal biológico um conceito de valor e não um conceito de realidade estatística" (Canguilhem, 1982, p.50).
Padrões mensuráveis podem ser úteis na clínica, uma vez que dão certa visão do que é normal como algo prevalente, estatisticamente demonstrado ou objetivamente mensurável; a saúde e a doença exigem, contudo, outros tipos de terapêutica para serem mais adequadamente apreendidas.
Segundo Castiel (2002), um importante aspecto na discussão sobre a Medicina Baseada em Evidências diz respeito à autonomia do paciente que pode ser levada em conta, mas, no entanto, fica subjacente à primazia de abordagens objetivantes, universalizantes e previamente qualificadas - a escolha do médico junto a seu paciente passaria a ser a escolha da "melhor evidência, prevalecendo, em tese, o princípio bioético da beneficência" (p.119). O autor defende que a MBE, ao instituir leis universalizantes em sua abordagem, pretende proteger tanto médicos quanto pacientes da intromissão de aspectos por ela considerados indesejáveis ao tratamento, como sentimentos, intuições, desejos ou resistências.
Lembramo-nos, no entanto, da fala de um oncologista que propôs, no cotidiano do trabalho, certa transição "de uma medicina baseada em evidências para uma medicina baseada no relacionamento", como forma de, para ele, preservar "o encontro clínico e a boa relação com o paciente". Para a psicanálise, ele falava da transferência! Intuitivamente, ele via efeitos profícuos no andamento de seu trabalho e em sua clínica pela transferência estabelecida com seus pacientes. Ele se utiliza da medicina baseada em evidências, mas compreende bem que existe algo para além da mesma que necessita de ser levado em conta.
Cabe-nos indagar se diante da facilidade de acesso às informações através da MBE, que divulga diariamente as pesquisas realizadas e os artigos científicos, sobretudo em uma doença que ainda carece de tantos conhecimentos como o câncer, se os médicos podem se furtar a esse meio de consulta que os auxilia a definir no momento as condutas de tratamento.
Castiel (2002) propõe certo cuidado para que a medicina baseada em evidências não se apodere de todo o campo semântico da medicina, apontando como um desafio considerar a saúde com as múltiplas dimensões sem desconsiderar a vertente científica e o que ela nos tem a oferecer.
O sujeito pode vir a identificar-se com os números, os exames ou os diagnósticos em sua ânsia de significar o vazio de sua condição de acometido por uma doença grave como o câncer, muitas vezes assintomática, nem sequer percebida por ele antes, mas trazida à tona por um poderoso aparato diagnóstico. No entanto, não podemos dizer que há propriamente uma elaboração psíquica nessa identificação. Os padrões estatísticos e as entidades diagnósticas não coincidem com respeito ao que é singular do sujeito.
Costa (2011) refere-se ao significante "evidência" como certo achatamento do tempo de compreender postulado por Lacan no sofisma dos prisioneiros. A autora tece uma relação da evidência com o instantâneo. Paradoxalmente, é nesse contexto que se constitui o campo da crença e que se exclui o sujeito. A "evidência" coloca o tema do olhar cumprindo uma função oposta do que pretende sustentar. Ela institui um curto circuito no tempo, colando olhar e saber ao instante de ver, de forma a dispensar a dúvida do tempo de compreender, que é constituinte do sujeito dividido, implicado na experiência do insabido do inconsciente.
Assim, pela dispensa do insabido, a "evidência", paradoxalmente, constitui nosso sistema de crenças. A evidência: "eu vejo, eu sei" acaba por institucionalizar o saber ao instante da informação, constituição das crenças que dirigem nosso cotidiano e que nos dispensam da implicação.
Apesar de o campo da medicina constituir-se muitas vezes como evidência, essa não se pode configurar em uma dimensão de desimplicação do sujeito e do médico nesse campo de saber, tampouco pode ser reduzida a ele. Leite (2015) nos aponta que o tratamento depende sempre de um processo concomitante de responsabilização do sujeito, não se reduz ao instante da evidência, universalizado pelas pesquisas médicas científicas. Essa responsabilização depende de um tempo de elaboração que se conclui num ato de decisão correspondente a uma escolha do sujeito em sofrimento. (p.429)
MBE tem as mesmas letras de BEM, significante que nos remete à ética médica, ao princípio da beneficência, mas é preciso não confundir, como o corretor do computador, que insiste em corrigir MBE para BEM, só o sujeito poderá dizer o que é seu bem, suas decisões frente a um tratamento agressivo, muitas vezes invasivo, coincidindo ou não com a melhor evidência indicada. O bem nos remete à ética. Psicanálise e medicina marcam posições éticas diferentes. Torna-se premente refletirmos sobre a ética da medicina e da psicanálise, a fim de esclarecer suas peculiaridades e o que possibilita a ambas estarem no mesmo espaço.
A ética da psicanálise e a ética da medicina
O analista inserido em uma instituição oncológica faz parte das decisões clínicas e da responsabilidade partilhada com a equipe e com o próprio paciente. Nesse contexto, ele só pode atuar referenciado à ética da Psicanálise, com o discurso que lhe é peculiar. Em determinadas situações, torna-se premente que o discurso analítico possa interrogar as regras instituídas para dar lugar à palavra e à particularidade de cada caso. As regras e protocolos hospitalares muitas vezes vilipendiam a subjetividade dos pacientes. Em alguns casos, é imprescindível abrir ou ao menos tentar abrir algumas exceções a partir do que cada caso clínico convoca em sua singularidade.
Se, para a medicina, há muitas vezes um bem a ser atingido, como, por exemplo, um procedimento médico num intervalo de tempo cronológico e protocolar; para a psicanálise, esse tempo é de outra ordem, trata-se do tempo do sujeito, um tempo lógico. Muitas vezes, é tarefa do analista alertar a equipe sobre a importância do adiamento, por exemplo, de uma cirurgia, tendo em vista a necessidade do sujeito de ter um tempo de elaboração do mal estar imposto pela doença que acomete seu corpo. É sabido o caráter de urgência dos procedimentos; a não realização dos mesmos pode implicar, muitas vezes, risco de vida para o paciente. Segundo os dizeres de uma paciente, porém, "não cabem atropelos!". Podemos pensar aqui que ser atropelado pode acarretar outros danos ao sujeito, talvez ainda mais graves ou desastrosos.
O psicanalista, a partir de sua ética, não está autorizado a dizer o que é melhor para o sujeito. É o sujeito que detém o saber do que é possível ser sabido e o analista trabalhará com os significantes surgidos a partir daí. A ética da psicanálise é denominada por Lacan como ética do desejo referenciada ao real. Essa não incide no domínio do ideal.
Lacan (1959-60/2008) inicia o seminário "A Ética da Psicanálise" retomando o projeto de Freud, do qual ele organizou sua "primeira intuição daquilo que está em questão na experiência do neurótico" (p.73). Para Lacan, o objeto, de cujo reencontro se trata, é qualificado de objeto perdido. É em relação a esse vazio -das Ding-das ding, que possibilita a criação, que o autor se refere à ética da psicanálise.
Rinaldi (1996) nos aponta que a coisa, para Lacan, mais do que incognoscível, é impossível, uma vez que é um vazio. Como não há objeto absoluto do desejo, a Coisa só pode ser pensada enquanto mítica: “A noção de Coisa está associada ao conceito de Real como dimensão radical do significante, uma vez que o surgimento do simbólico, se por um lado desperta o desejo de plenitude, por outro, impõe a experiência da falta de plenitude” (p.74).
Das Ding possibilita constantes buscas do sujeito pelo objeto causa de seu desejo, mas sempre inatingível. Para Rinaldi (1997), Das Ding pode ser vista como o núcleo do Real, responsável pela insaciabilidade do desejo humano, o que faz com que a psicanálise não seja um idealismo. A ética da psicanálise tem como referência última o Real enigmático, o que impõe o movimento desejante na permanente tentativa de simbolizar este obscuro objeto do desejo.
Destarte, não se trata de uma ética do bem, tampouco de uma forma de universalização moral, mas é, acima de tudo, uma "ética do bem-dizer", onde cada um, na sua singularidade, se posiciona como desejante.
Devemos estar advertidos, segundo Rinaldi (1997), de que não se trata de um retorno às paixões, dado que a noção de desejo está articulada, na psicanálise, à lei, não enquanto moral, mas referida à Lei da Castração. Segundo Lacan, a arte, a religião e a ciência trataram de formas diferentes esse vazio. Deter-nos-emos no ponto que mais se aproxima da experiência no contexto hospitalar: a ciência.
Para Lacan (1959-60/2008), é de verwerfung que se trata no discurso da ciência. Esse discurso rejeita a presença da coisa, “uma vez que, em sua perspectiva, se delineia o ideal do saber absoluto, isto é, de algo que estabelece, no entanto, a Coisa, não a levando ao mesmo tempo em conta” (p.160).
A medicina tem como referência, muitas vezes, a ética do bem, uma ética universalizante do bem-estar. É embasada no princípio da beneficência, que consiste na “obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. O profissional deve ter a maior convicção e a maior informação técnica possível, que assegurem ser o ato médico benéfico ao paciente (ação que faz o bem)" (Cremesp, 2011).
A medicina propõe-se restituir ou salvaguardar um estado de saúde conforme as normas sociais vigentes, porém é confrontada, frequentemente, com efeitos complexos e inesperados da linguagem, do desejo e do corpo. O que é foracluído do simbólico retorna no real, como postula Lacan. Se a ciência foraclui o sujeito de seu campo, ele faz seu retorno; e é a psicanálise que vai operar sobre esse sujeito. Para Elia (2008), a psicanálise seguirá os trilhos da ciência clássica, mas ela o fará de forma a operar sobre o sujeito, "e é nisso que reside a sua subversão em relação ao estatuto (foracluído) da ciência" (p.66).
O sujeito da psicanálise é minimal, o que se diz de um sujeito sem quaisquer qualidades, uma vez que essas qualidades são da ordem do imaginário, que as ciências ditas "humanas" tomam como objeto de estudo e investigação.
A ética para a psicanálise não é a ética humanitária, não se trata de um homem humanizado, mas de um sujeito menos subjetivado e esvaziado de saber. No contexto hospitalar, são comuns preceitos que versam sobre a humanização do tratamento, o homem como medida de todas as coisas. Será que o tratamento não poderia, por si, ser humanizado? Há nisso uma espécie de ideal que se projeta no futuro, como criação de condições.
A posição do psicanalista, no entanto, não deixa escapatória, uma vez que exclui "a ternura da bela alma". À psicanálise não cabem preceitos como a bondade, a pureza; sua posição não é a da bela alma, e não cabe a ela compreender ou curar.
"Não lhe convirão as marcas qualitativas da individualidade empírica, seja ela psíquica ou somática; tampouco lhe convirão as propriedades qualitativas e uma alma; ele não é mortal nem imortal, puro nem impuro, justo nem injusto, pecador nem santo, condenado nem salvo(...)" (Milner, 1996, p.33).
Há um lugar esperado para a psicanálise na medicina, o que não necessariamente coincidirá com o lugar ocupado aí pelo psicanalista, visto que esse pautará seu trabalho na ética da psicanálise, que é oposta a qualquer forma de universalização da moral, do poder e de imposições de um mestre. O discurso médico, em disjunção ao discurso da psicanálise, muitas vezes é representante do discurso de mestria.
Para Clavreul (1983): "Em nome do princípio de que o saber está no médico e a ignorância no doente, ele se acha justificado para decidir enquanto mestre absoluto, não podendo ninguém duvidar de que ele sabe melhor que qualquer outro qual é o bem de seu doente e de que ele não pode não desejar este bem" (p.185).
Lacan (1959-60/2008) tece uma crítica à ética do bem, cuja relação do homem com sua ação é regida por um ideal de conduta que pressupõe o alcance de um bem, que promete uma relação harmônica entre os homens. Para o mesmo, a cada instante temos que saber da nossa relação efetiva com o desejo de fazer o bem, com o nosso desejo de curar. "Essa expressão não tem outro sentido senão o de nos alertar contra as vias vulgares do bem, tal como elas se oferecem a nós tão facilmente em seu pendor, contra a falcatrua benéfica do querer-o-bem-do-sujeito" (p.262).
Destarte, convocar, no contexto hospitalar, aquele que procura um analista à sua posição de sujeito é fundamental em psicanálise, pois "por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis" (Lacan, 1966/1998 p. 873).
A ética da psicanálise refere-se a um sujeito que não deve ceder de seu desejo, e, no momento em que Lacan traz o desejo para o centro do debate ético, afasta-se do caráter prescritivo, em termos de valores e ideais de conduta próprios da ética moralista. Além disso, separa-se de uma concepção essencialmente hedonista.
"Toda a experiência analítica não é senão o convite para a revelação de seu desejo, e ela muda a primitividade da relação do sujeito com o bem, em relação a tudo o que até então foi articulado sobre isso pelos filósofos" (Lacan, 1959-60/2008 p.265).
Lacan utiliza-se da tragédia no seminário da Ética, especialmente Antígona, de Sófocles, com rápidas referências a algumas outras do mesmo autor, para analisar as relações da tragédia com a prática e a ética da psicanálise. Para Rinaldi (1996), através da tragédia, Lacan formula uma ética desvinculada da moral e do poder, ou do que se chama "serviço de bens" (p.102).
Lacan (1959-60/2008, p.306) discute as razões de Antígona, as razões dos deuses, segundo ela própria afirma. Defende-as, ao longo da história: para Antígona, não é simplesmente a defesa dos direitos sagrados do morto e de sua família, nem tampouco uma ideia que quiseram representar de sua santidade. Há uma coisa singular, é o corpo do irmão Auradephos que precisa de ser sepultado, por ele Antígona desafiou as leis dos cidadãos, visto não poder mais ter outro irmão, já que seus pais, Édipo e Jocasta, estavam mortos.
Antígona sepulta o irmão em confronto com as razões da cidade, representadas pelas posições do rei Creonte, que para Lacan (1959-60/2008) "está aí para o bem de todos" (p.305). Creonte comete um erro de julgamento por querer o bem de todos, uma lei sem limites, soberana. Lacan nos adverte de que "o bem não poderá reinar sobre tudo sem que apareça um excesso, de cujas consequências fatais nos adverte a tragédia" (p.306).
Lacan toma Antígona como a figura máxima do belo, o belo como a visada do desejo. Isso por sua determinação e luta na busca do desejo, porque ela "não cede de seu desejo". Antígona nos faz ver o ponto de vista que define o desejo, ela se opõe â moral que Creonte preconiza.
A tragédia revela assim a posição que Antígona apresenta em relação ao seu desejo, do qual absolutamente não abre mão, ainda que ao preço de sua vida. A partir da sua decisão em que enfrenta "a lei da cidade" (ou a interdição do rei), ela é posta entre a vida e a morte, uma morte vivida de forma antecipada, uma vida prolongada até a tumba.
Dessa posição de Antígona, diz Lacan, surge seu brilho, brilho insuportável. É na travessia dessa zona que se revela o desejo. Antígona interrompe assim o que seria a lei de todos. Seu ato marca a "experiência trágica da vida", uma relação fundamental do desejo com a morte. O desejo de Antígona é, portanto, a representação máxima, radical e trágica do desejo levado às suas últimas consequências.
Se Lacan se utiliza da tragédia para falar da ética, podemos, em certa analogia, pensar que o hospital é um local onde muitas tragédias acontecem, de perdas imputadas seja no próprio corpo, seja na própria vida. Nosso trabalho com esses sujeitos não é o de buscar restabelecer o estado anterior de harmonia, ou enfocar a dramaticidade da doença, mas sim o de possibilitar que, diante do impossível de suportar que o câncer aponta, o paciente possa adquirir mais recursos para lidar com o que se apresenta, de forma a encontrar outras saídas. E, assim como Antígona, alguns pacientes no contexto hospitalar nos evidenciam um desejo que não vacilou frente a um diagnóstico ou a uma imposição médica.
A contribuição da psicanálise, nesse contexto, aplica-se na medida em que acolhe o discurso do sujeito e suas produções. Essa é, assim, distinta da medicina, ainda que trate o mesmo paciente. O discurso médico é necessário para que seu avesso também possa existir.
Para Ansermet (2003, p.12), é antes de tudo a posição do clínico em relação ao paciente que estabelece a diferença fundamental entre psicanálise e medicina. O médico opera a partir do lugar do mestre. Sem isso, ele não poderia trabalhar, e o paciente não teria como ser tratado. A posição do analista, ao contrário, não é a de um mestre. Para o psicanalista, a decisão é o que caracteriza o sujeito. Ninguém pode saber sobre seu bem antes dele próprio.
A psicanálise no contexto hospitalar não busca concorrer com a medicina, tampouco submeter-se a ela. Ainda que não responda à demanda da ordem médica, não a recusa. Trabalho do psicanalista é o de escutar o sujeito, não em oposição ao medicamento que pode aliviar ou conter a doença, ou a algum procedimento médico, mas abrindo um espaço para o sujeito como via de acesso ao inconsciente.
Como ressalta Clavreul (1983), quando o discurso médico fracassa, ao reduzir as desordens da subjetividade para integrá-las à sua ordem, abre-se espaço para a atuação da psicanálise no hospital oncológico. A subjetividade, abolida do discurso médico, será central na abordagem da psicanálise. Destarte, há espaço para ambas as disciplinas no hospital: se a medicina precisa excluir a subjetividade, essa retorna e é a psicanálise que se deterá sobre ela.
Não é possível a um psicanalista fazer uma cirurgia, assim como, muitas vezes não cabe a um médico que, por exemplo, fará uma amputação no corpo de um sujeito, poder deter-se pormenorizadamente na subjetividade dele. Lacan (1971) nos adverte de que, antes de pensarmos em como vamos reabsorver o campo médico no campo freudiano, é preciso dizer, entretanto, que aí nós somos os intrusos!
Para que o analista possa estar efetivamente no hospital, ele precisa, portanto, da figura do médico, uma vez que é o analista quem acolhe o resto da ciência, aquilo que ela precisa de excluir. Não se trata de um vínculo de subordinação, mas de uma relação na qual cada um pode ser, de alguma forma, reconhecido como portador de um saber.
Psicanálise e medicina, nesse contexto, podem conviver, desde que se respeite o campo e os limites de cada uma (Alberti, 2000, p.52.). Logo, discursos e posições éticas diferentes no hospital são importantes, o sujeito precisa não apenas de tratar o câncer, mas muitas vezes também, se o desejar, ser escutado, encontrar saídas para lidar com essa incidência no real que a doença provoca. Há um trabalho singular de cada um para lidar com seu adoecimento, forma de contornar o real pelo simbólico.
Destarte, busca-se um reconhecimento das diferenças, bem como respeito e consideração pelo trabalho de cada um. É o que nos possibilita, numa construção diária e permanente, um lugar transferencial tanto com o paciente como com a equipe. Cabe ao analista sustentar o "não saber" para possibilitar essa hiância que se dirige a outro saber: o insabido do inconsciente. E, por vezes, algo da singularidade de cada paciente necessita de ser transmitido à equipe para que ele possa ser mais bem assistido.
Referências
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Recebido em 29/10/2018
Aprovado em: 18/08/2019
* Artigo baseado na dissertação de mestrado de Luzia Rodrigues Pereira, intitulada "Uma experiência de clínica psicanalítica em hospital oncológico", defendida em julho de 2015 no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação de Ana Maria Medeiros da Costa.