11 2“Elas não querem ser mães”: algumas reflexões sobre a escolha pela não maternidade na atualidadeAmizade, alteridade e o estranho: uma leitura das cartas de Freud a Fliess 
Home Page  


Trivium - Estudos Interdisciplinares

 ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.198 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Em trânsito pelo simbólico: o adolescente e a subjetividade em rede

 

In transit through the symbolic: the adolescent and network subjectivity

 

En tránsito por lo simbólico: el adolescente y la subjetividad en red

 

 

Paloma Vieira SilvaI; Nuria Malajovich MuñozII

IBacharel em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, pós-graduanda lato sensu em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-institucional pela Universidade Veiga de Almeida / E-mail: vieirasilvapaloma@gmail.com
IIProfessora adjunta do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro / E-mail: nuria.malajovich@ipub.ufrj.br

 

 


RESUMO

Apresentamos os resultados de uma pesquisa exploratória que tem por objetivo conhecer as diferentes apresentações da vivência da adolescência assumidas na atualidade, partindo de uma ferramenta de escrita atual, o blog. Interrogamos as incidências de um novo tipo de laço, horizontal e pluralizado, na vida dos jovens e na prática clínica. Se, por um lado, o modo de escrita assumido pelos jovens denota a insuficiência do simbólico para situar as questões da existência, ele sinaliza, ao mesmo tempo, pistas de orientação que podem nortear o trabalho clínico com jovens e adolescentes na atualidade.

Palavras-chave: ADOLESCÊNCIA; PSICANÁLISE; ESCRITA; CONTEMPORANEIDADE.


ABSTRACT

We present the results of an exploratory research that aims to know the different presentations of the experience of adolescence assumed today, starting from a current writing tool, the blog. We question the implications of a new type of loop, horizontal and pluralized, in the lives of young people and in clinical practice. If, on the one hand, the way of writing assumed by young people denotes the insufficiency of the symbolic to situate the questions of existence, it at the same time indicates guidelines that can guide the clinical work with young people and adolescents today.

Keywords: ADOLESCENCE; PSYCHOANALYSIS; WRITING; CONTEMPORANEITY.


RESUMEN

Presentamos los resultados de una investigación exploratoria que tiene como objetivo conocer las diferentes presentaciones de la experiencia adolescente asumida hoy, a partir de una herramienta de escritura actual, el blog. Cuestionamos las implicaciones de un nuevo tipo de circuito horizontal y plural en la vida de los jóvenes y en la práctica clínica. Si, por un lado, el modo de escritura asumido por los jóvenes denota la insuficiencia de lo simbólico para situar las preguntas de la existencia, indica, al mismo tiempo, pautas que pueden guiar el trabajo clínico con los jóvenes y adolescentes de hoy.

Palabras clave: ADOLESCENCIA; PSICOANÁLISIS; ESCRITO CONTEMPORÁNEO.


 

 

A prática de escrita sustentada por jovens e adolescentes em meio eletrônico faz-nos interrogar os limites e as possibilidades da prática narrativa na atualidade. A partir de pesquisa exploratória em blogs, procuramos conhecer o modo como a escrita adolescente se desenvolve em meio virtual e o manejo da língua que deriva dessa prática. Para isso, inspiramo-nos no método netnográfico, metodologia que se aplica à pesquisa em sites de internet e permite analisar formas de utilização e de interação em comunidades virtuais (Silva, 2015). Com a propagação e incidência do meio virtual, novas formas de relação e de laço são introduzidas no cotidiano. Nosso recorte baseia-se em blogs cujos autores definem seu conteúdo como 'adolescente' e visa inventariar as principais temáticas e fornecer uma compreensão acerca da dinâmica de trocas referenciais que se constituem nas referidas plataformas.

 

 

A partir da orientação psicanalítica, procuramos situar como se apresenta a adolescência e os impasses que este período de transição acarreta no que diz respeito aos processos subjetivos e à prática clínica. A relação que a psicanálise desenvolve com a escrita revela o aspecto literal do material inconsciente (Freud, 1900/1972). Em Escritores Criativos e Devaneios, Freud (1908/1976) situa pontos de consonância entre o brincar infantil e a criação poética, e aponta a importância dessas duas atividades como apoio aos processos de subjetivação. Lacan (1957), seguindo a trilha freudiana, localiza a letra como instância do inconsciente e propõe a leitura dos sintomas em elementos de linguagem. Lima (2006), a partir da orientação lacaniana, mostra que a escrita equivale, como recurso na adolescência, ao brincar infantil, e possibilita situar o Outro qual instância simbólica. A produção de um texto envolve a localização de um ponto de alteridade, permitindo assim a constituição de um endereçamento. É interessante lembrar que o próprio Freud (1915/1974), ao ter contato com o diário de uma de suas jovens pacientes, ressaltou sua relevância e o qualificou como 'pequena joia'.

Lacadée (2013) aponta a importância de constituição de um ponto de referência que ajude o adolescente a situar-se no discurso, ressaltando que o que surge como intraduzível na língua do Outro pode ser experimentado pelo adolescente como um exílio. Interessa-nos nesse sentido investigar como a escrita pode apontar vias para a transição da adolescência, auxiliando na construção de um novo modo de relação com a linguagem e com a alteridade, e interrogar se dito modo de escrita seria efetivo para a tomada de posição diante do encontro sexuado e para a tomada de distância em relação aos ideais parentais.

 

A escrita na infância: o enigma da origem e a diferença entre os sexos

Em 1905, no texto Três Ensaios Sobre a Teoria da sexualidade, Freud (1905/1972) revela a existência da sexualidade infantil, definindo-a como modos de obtenção de satisfação pulsional, prévios à maturação genital. A partir da incidência da pulsão no corpo e através da mediação e intervenção do mundo externo, que confere à pulsão alguma contenção e direcionamento, a criança entra no universo da cultura. A infância é o momento de inscrição dos significantes primordiais e de trânsito pelo complexo de Édipo. Pinho, G. (2011) aponta que "a singularidade dessa experiência reside no fato de acompanhar a neurose infantil em sua constituição, bem como o estabelecimento do processo de recalque em seus primórdios" (p.64).

Ainda em seus Três ensaios, Freud (1915/1972) indica uma forma sublimada da pulsão de dominação que se caracteriza pela atividade intelectual e que se inscreve na pulsão de saber ou de investigar. A busca por decifrar as questões sexuais, como a diferença dos sexos e a problemática da origem dos bebês, instigam na criança a curiosidade e a inclinação ao conhecimento. A partir do caso do pequeno Hans, evidencia-se como o projeto de desvendar os enigmas da infância pode ser aflitivo para algumas crianças.

Ao acompanhar o caso, Freud (1909/1976) observa que primeiramente o menino estendia a existência de um órgão genital masculino a todos os seres animados e inanimados. Em um segundo tempo, passa a considerar que apenas os animados têm "pipis". A chegada de sua irmã, contudo, faz surgir no menino novas inquietações com as quais vai precisar lidar. A história da cegonha não cessa suas indagações a respeito da vinda de um bebê ao mundo; ao contrário, na medida em que o menino se posiciona de modo totalmente cético quanto à referida história, torna-se ela um propulsor do seu trabalho intelectual. No mesmo movimento, ao perceber a diferença anatômica entre ambos, começa a expressar suas confusões em relação â diferença sexual antes negligenciada. "Não pode haver dúvida quanto à curiosidade sexual de Hans, esta, contudo, também despertou nele o espírito de indagação e favoreceu que ele chegasse a um autêntico conhecimento abstrato" (Freud, 1909/1976, p.19).

A angústia e a fobia que o menino desenvolve relacionam-se ao complexo de castração instaurado pelo encontro com a diferença dos sexos e à dificuldade em lidar com a ambivalência em relação ao pai e do desejo intenso direcionado à mãe, provenientes da sua posição edípica. Na tentativa de proteger-se da ameaça que se apresenta, Hans constrói fantasias que sustentam seu sintoma fóbico. Freud (1909/1976) mostra-se contrário à ocultação das questões infantis que surgem espontaneamente, indicando que essa atitude pode inibir o processo criativo das crianças e possivelmente afetar a sua saúde. Freud ressalta que algumas indagações precisam ser acolhidas, mas não necessariamente respondidas para que se aquietem por um tempo e possam ser retomadas mais tarde, quando a criança tiver os instrumentos simbólicos necessários para haver-se com elas. Como dissemos, Hans enuncia sua confusão e endereça aos adultos pedidos de esclarecimento sobre seus conflitos. Em determinado momento do seu acompanhamento, ao descobrir que o pai escrevia a Freud sobre sua situação, Hans diz:

Pois conte a ele que eu mesmo não sei, e assim ele não vai perguntar. Mas se ele perguntar o que é a girafa amarrotada, então ele pode escrever para nós, e nós podemos responder, ou então vamos logo escrever que eu mesmo não sei. (Freud, 1909/1976, p.48)

Freud (1907/1976) analisa também a carta de uma menina, Lili, que após discutir com a irmã mais nova sobre a origem dos bebês e não chegar a nenhuma conclusão convincente, escreve para sua tia Mali pedindo que esta lhe responda com uma explicação, pois precisa saber a verdade. A menina, que também está descrente da história da cegonha, parece já ter notado que a vinda de um bebê ao mundo se relaciona a algo que concerne aos adultos casados: "Será que a senhora poderia fazer o favor de me dizer como teve Christel e Paul? A senhora deve saber, pois é casada." (Freud, 1907/1976, p.141-142)

Hans e Lili mostram a importância do endereçamento e sustentação por um adulto das questões sobre o sexo e a origem, é interessante observar que ambos recorrem à escrita como tentativa de esclarecimento para seus enigmas. A pulsão de saber opera nas crianças como uma engrenagem para o pensamento, através da pesquisa e da formulação das teorias sexuais infantis, a criança aventura-se em um processo de compreensão que inclui o corpo, já que seus investimentos visam dar conta daquilo que ela experimenta nele. Segundo Ansermet (2003), as teorias "emergem no entrecruzamento do dentro e do fora, entre a experiência corporal da criança, por meio do investimento das zonas erógenas, e a observação do mundo" (Ansermet, 2003, p.24).

As questões com as quais as crianças se deparam são também um modo de localização do indecifrável próprio à vida. As explicações biológicas acerca da vinda de uma criança ao mundo, por exemplo, não dão conta de simbolizar totalmente esse acontecimento e, se em outros aparatos culturais, como a arte, não é fácil representar a morte, menos ainda é representar a origem da vida. O saber da criança encontra, contudo, no mito a possibilidade de construção da sua própria posição em relação ao limite de resposta a essas questões.

O Complexo de Édipo apresenta-se como mito no sentido de uma via à tomada de posição da criança frente aos insondáveis da sua história. A criança identifica-se com o significante da demanda do Outro e busca uma simbolização, um lugar no Outro do significante, entretanto não o encontra totalmente, o que a leva o constituir o cenário fantasmático que circunscreve o seu lugar (Barros, 1995).

A criança nasce em um contexto, com uma história que a precede e com um lugar na fantasia de seus pais, mas isso, que lhe dá algum abrigo, não a determina; embora referenciada ao mundo que a antecede, está também dissociada dele. É no encontro com isso que diz sobre a criança, mas não a define, ou seja, não encerra suas possibilidades de existência por ser anterior a ela, que uma nova vida pode advir com suas particularidades: "Esses marcos são parciais. Não existe apenas transmissão. Há também criação. Algo surge de novo. Uma hiância permanece aberta. É dela, aliás, que o sujeito pode esperar extrair alguma liberdade" (Ansermet, 2003, p. 30).

Em Escritores Criativos e Devaneios, Freud (1908/1976) faz uma aproximação entre o brincar da criança e a atividade dos escritores, apontando que a brincadeira e a escrita são formas de criação que articulam fantasia e realidade. Nesse sentido, a fantasia sustenta um processo de separação, ou seja, uma forma de relação particular com a realidade. Essa articulação leva o brincar infantil e a criação poética a constituírem lugares de reposicionamento do sujeito no mundo: "Acaso não poderíamos dizer que ao brincar toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade?" (Freud, 1908/1976, p.149)

 

A adolescência como operação lógica e o recurso à escrita

A adolescência apresenta-se como um problema novo para a psicanálise e tem, como mostra Rassial (1999), um valor de operação lógica, mais do que cronológica. As transformações corporais da puberdade exigem um trabalho de construção e de apropriação de um novo eu, da imagem de um corpo que agora se assemelha a um corpo adulto. Além disso, o distanciamento do universo familiar introduz a necessidade de constituição de novos ideais e de um novo modo de habitar a linguagem, inscrevendo-se no laço social a partir de uma relação inédita com o Outro. Nesse sentido, a travessia da adolescência não pode ser totalmente demarcada ou definida em termos cronológicos, alguns sujeitos podem demorar-se mais que outros nessa operação, além disso, as determinações imaginárias e reais têm consequências simbólicas bastante relevantes.

A partir da incidência do Nome-do-pai e da funcionalidade da metáfora paterna, que faz operar a suposição de saber dirigida ao pai e, portanto, a orientação fálica do desejo da mãe, a criança é levada a tentar resolver o enigma de seu lugar no desejo do Outro. Como dissemos, ela interpreta ao seu modo o furo no saber sobre a origem, que não se resolve com a transmissão da história familiar, o que a circunscreve pela via do mito no Outro do significante e lhe garante alguma resposta em relação à sua posição, ainda que pouco substancial, de sujeito. É esse Outro do apelo ao desamparo fundamental que declina em sua consistência imaginária com a chegada da adolescência. O fim da infância depende de um processo no qual ocorre uma queda da idealização em relação às figuras parentais, deslocando o lugar do Outro, antes constituído a partir dessas figuras imaginárias, em uma instância simbólica (Rassial, 1999).

Na adolescência, portanto, o engano do Édipo desvela-se e o sujeito confronta-se radicalmente com a castração do Outro, sendo convocado a reelaborar as fantasias constituídas na infância para dar conta da renúncia, feita mediante uma promessa de restituição, ao gozo de objeto do Outro primordial. Aqui, algo é perdido novamente, a decepção com a promessa fálica faz com que o sujeito passe a ter notícias de que não haverá relação sexual que promova um gozo total, ou seja, que não haverá restituição da parte de gozo perdida, o que se presentifica com o declínio da referência fálica. A adolescência requer assim a construção de uma nova resposta sintomática, ou seja, de um novo modo de posicionamento no campo do Outro.

 

O impossível de dizer e a constituição de uma nova língua

Diante do fracasso do Édipo e das referências parentais como ponto de ancoragem, cabe ao sujeito encontrar um novo lugar a partir de onde se dizer. A maturação sexual e a chegada avassaladora da pulsão irrompem no corpo e trazem novas exigências com a possibilidade do encontro sexual. Stevens (2003) indica a complexidade do processo: "a diferença entre a criança que chega à puberdade e o animal pequeno que chega à idade de procriar é que o animal sabe o que tem que fazer, o que chamamos instinto... já os meninos e as meninas não, não sem encontrá-lo no discurso" (p.1).

 

 

A imposição de fazer um laço inédito com o Outro, agora defasado em seu lugar de saber, pode engendrar uma dificuldade de tradução daquilo que se passa no corpo e no pensamento. Como aponta Lacadeé (2003), o adolescente pode experimentar-se como estando exilado, fora da língua do Outro, causando uma 'insegurança linguageira'. O autor adverte que essa dificuldade pode acarretar tentativas de inscrição no laço social sem o recurso à linguagem, produzindo condutas de risco, excessos e errâncias. Estas parecem surgir paradoxalmente como uma tentativa de conferir valor à existência, evidenciando o delicado impasse em que a carência simbólica coloca. "Por meio do pôr-se em risco, algo do gozo do corpo pede para ser limitado, marcado, regulado, autenticado por uma marca simbólica, haja vista a ordem de castração ter deixado de operar" (Lacadeé, 2003, p.60).

Apesar de o fim da infância, pelo distanciamento ao universo familiar, produzir uma forte contestação da palavra do Outro parental, requisita a sustentação de um lugar para a palavra, fazendo operar algum limite ao desmedido do gozo. Caso contrário, o adolescente pode, diante do Outro excessivamente fragilizado, buscar experimentar suas inquietações em seu próprio corpo. Diferentemente dos piercings e tatuagens, marcas corporais difundidas e aceitas na cultura, os atos de autoflagelação são frequentes na adolescência. Apesar de serem muitas vezes encobertos, escancaram a disfunção na operação simbólica que esses sujeitos tentam realizar.

A confusa tarefa de estabelecer novas identificações e inventar significantes que sirvam como apoio ganha novos contornos com o advento das transformações culturais da contemporaneidade. Em decorrência da queda das figuras ideais na conformação da sociedade e a prevalência de um discurso sobre a verdade sustentado pela ciência, os sujeitos passam a se disporem horizontalmente no laço social, o que faz com que os adultos também se deparem com certa dificuldade de responder simbolicamente ao adolescente, podendo deixá-lo excessivamente à deriva.

A constituição de uma língua própria, e, nos termos de Lacadée (2003), de um 'ponto de onde' se dizer, não é de todo solitária. Nesse processo, o adolescente requisita muitas vezes as antigas referências, ao mesmo tempo que busca novas identificações. O abalo do Outro imaginário impõe a constituição de novos suportes que validem o Nome-do-pai em seu registro simbólico, permitindo que ocupe o lugar de sujeito singular. A escolha de uma profissão é, por exemplo, um dos Nomes-do-pai que o adolescente tem que inventar para si. É cada vez mais comum, entretanto, que, nesse momento, algumas experimentações aconteçam, o sujeito faz escolhas e, por vezes, descobre que tais objetos não lhe servem tanto, abandonando-os e partindo para a busca de outros, o que pode gerar incômodo àqueles que acompanham seu percurso. Alberti (2010) indica que a escolha de uma profissão requer que o adolescente possa responder â pergunta "Quem sou eu?", já menos angustiado com o declínio da referencia parental, investindo em um caminho que agora conta com a singularidade de seu desejo.

 

As experiências virtuais e a incidência de modos contemporâneos de identificação

Atualmente, com o advento da internet, o meio virtual passa a ser um espaço importante em que os sujeitos adolescentes apoiam a prática da escrita. As plataformas conhecidas como blogs trazem uma dimensão de novidade à escrita adolescente que se relaciona à passagem da esfera privada para a pública. Diferentemente dos diários e agendas, o sujeito que mantém um blog escreve para ser lido. Nesse sentido, entendemos que além do exercício narrativo como possibilidade de constituição de um novo lugar para o Outro e, portanto, de trânsito pelo simbólico, a escrita pública parece operar ainda na busca por respostas ao apelo identificatório do adolescente. Analisando o modo como os adolescentes requisitam a prática da escrita desde a época não tão distante em que o uso de diários e agendas era bastante comum até a atualidade, em que o apoio da escrita em meios virtuais como os blogs se faz notório, vimos aparecer algumas vias pelas quais essa prática parece ser um operador de subjetivação para o sujeito adolescente.

Em um mundo onde os ideais não estão ancorados em figuras facilmente localizáveis, o uso e a frequência em blogs parece viabilizar para os adolescentes espaços de expressão e novos modos de constituição de laços horizontais de identificação. Nossa pesquisa exploratória em 'blogs adolescentes', nomeados assim pelos próprios autores, indica a identificação a um significante através do qual esses sujeitos encontram lugar no laço social e mostra a existência de uma troca referencial com outros usuários, convidados a comentarem o conteúdo publicado. As publicações giram em torno de materiais autorais, poemas ou prosas narrativas da vida cotidiana e fotos pessoais, além de materiais da cultura como poesias, imagens, letras de músicas e trechos de livros. Esses elementos aproximados no espaço virtual sugerem uma composição em mosaico como esforço de invenção de si mesmo que se apoia em uma estrutura em rede.

Pudemos constatar diferentes usos que parecem motivar as páginas destinadas à narrativa. Existem blogs que são tomados como diários on-line, em que o adolescente relata vivências cotidianas e conflitos, a complexidade de fazer escolhas, de assumir posições e traduzir o que se passa em seu pensamento. Alguns dos autores de blogs escrevem em nome próprio e valorizam o reconhecimento de sua escrita, mostram um comprometimento com sua página e com seus leitores. Há também blogs em que são narradas experiências traumáticas, cujos autores decidem manter-se anônimos, publicando relatos de marcas de violência e abuso, por exemplo, o espaço fica aberto a diálogos com leitores que tenham passado por situações similares. A escrita on-line parece fazer um enlace entre a parte dos acontecimentos que escapam à simbolização e o lugar de um suposto e esperado leitor. Ao narrar suas experiências íntimas em blogs, a passagem da língua privada à língua pública parece funcionar como uma tentativa de autenticação de uma língua no social, o que pode encontrar semelhanças com certa dimensão do tratamento clínico com adolescentes. Em alguns blogs, os escritores assumem posições diante de discussões políticas e modos de inserção em movimentos culturais e sociais. Com isso, certo modo de escrita on-line pode ultrapassar o aspecto íntimo apresentando um viés político e social. É o que revela outro tipo de página que encontramos em nossa pesquisa, páginas que se propõem a ser destino de textos com recortes e temas específicos. Nesse sentido, destacamos os blogs e páginas em redes sociais que abrigam textos relacionados ao movimento feminista. São plataformas mantidas não por uma autora, mas por várias meninas e mulheres, em que são promovidos debates e trocas de informações sobre o tema. A maioria tem por objetivo veicular relatos de abusos e opressões e assumem o intuito de constituir-se como grupos de apoio em rede.

A escrita on-line parece dar suporte à busca dos adolescentes pela autenticação de uma posição, mas com a peculiaridade de assumir hoje a característica de um laço social que tende à dispersão. A inconsistência dos laços identificatórios que se sustentam em trocas que não requisitam o corpo coloca-se como questão. Kehl (2000) aponta a prevalência na atualidade de estilos de escrita que se sustentam na pretensão de dizer o real todo e que acabam por anular o engajamento ético do leitor. A proliferação de conteúdos produz um excesso que impede a experimentação da escrita em seu aspecto aberto e não estático, e freia a participação ativa do Outro. A escrita virtual tende muitas vezes à desregulação, que pode se apresentar como um compartilhamento repetitivo de descrições de estados de ânimo ao predomínio da agressividade na exposição de opiniões e da intolerância ao outro em diversos aspectos. Nesse sentido, Seldes (2015) considera que o meio virtual pode constituir-se como uma 'máquina desesperada de dar sentido' em um espaço sem Outro.

Autores vêm-se debruçando sobre a questão da constituição de novos modos de sustentação da operação de identificação em tempos da inconsistência do Outro. Mandil (2007) frisa que já não é possível extrair do Outro um significante com sentido estável para apoiar a identificação, a oferta do discurso da verdade sustentado pela ciência caminha junto à proliferação de objetos tecnológicos, contribuindo para o estabelecimento de uma dificuldade de localização de ideais na cultura. Musachi (2015) assinala a proliferação de modos de identificação que investem nas imagens em detrimento da palavra, o que faz com que as relações sociais tendam a ser mediadas através da tecnologia, provocando uma redução do real à imagem. Aquilo que não produz imagem deixa de interessar, como revela o modo atual de relação cotidiana dos jovens:

Mais preocupados com o "viver a imagem", os jovens capturados pelo espetáculo, encarnariam talvez uma tentativa de "ativar o olhar do Outro", mesmo que o Outro não exista, para se sentirem olhados, como um apelo a que a imagem responda como simbólica, mais além de uma captura do gozo que passa pelo imaginário. (Musachi, 2015, p.2)

A fragilização dos significantes-mestres no laço social provoca novos desafios em relação à passagem da adolescência, dificultando a operação lógica que leva a experimentar a inconsistência imaginária do Outro e a inventar novos significantes com os quais identificar-se. Segundo Musachi (2015), o império contemporâneo das imagens acaba por incidir como uma tentativa de resposta ao apelo simbólico, constituindo novos modos de suporte para a operação de identificação e de relação com o corpo. Como exemplo disso, vemos a facilidade com a qual cada vez mais os sujeitos se submetem a processos cirúrgicos que oferecem uma modificação corporal em busca do ideal, nos quais o tratamento pela imagem não parece encontrar um ponto de basta para a consistência do corpo.

Com o declínio das idealizações nas figuras parentais, o lugar de saber sustentado pelo universo familiar sofre um abalo. Na contemporaneidade, os saberes estão difundidos, à disposição, mas não necessariamente incorporados em figuras determinadas, nos professores e mestres, por exemplo, nem em lugares definidos, nas escolas e universidades, embora a possibilidade de acessá-los esteja, literalmente, às mãos de todos. É o que aponta Serres em seu livro Polegarzinha (2013). Os avanços tecnológicos constituem novas formas de comunicação entre as pessoas e vias de acesso ao conhecimento, o que, dentre outros efeitos, horizontaliza o saber e transforma a subjetividade. Segundo Serres (2013), o papel do educador - mas como queremos propor, também o do analista - precisa adaptar-se aos novos tempos, considerando que, em certa medida, o conhecimento já está transmitido. O educador deve apresentar-se como parte de um mundo diverso e plural, acompanhar e direcionar, até onde lhe concerne, as escolhas que se vão esboçando. Ele não sustenta mais o lugar de portador do conhecimento, devendo então dar suporte ao desejo de saber convocando o sujeito a implicar-se em seu processo de aprendizagem.

Dicker (2015) ressalta a fragilidade e os extravios sofridos pelas identificações na atualidade. A constituição de um imaginário radical que liga os jovens a um Mestre Absoluto, seja pelo fanatismo religioso ou pelo envolvimento a discursos políticos totalitários, vão na direção de constituição de um bem universalizante, mesmo que destrutivo. A nomeação através das comunidades de gozo, veganos, hippies, hipsters, feministas, punks, nerds, queers, gays, trans, e etc., ilustram um modo claudicante de identificação que parece operar em grande escala em nossos tempos. Esse modo de nomeação centra-se na existência de um gozo comum produzindo identidade, na contramão da via empreendida na clínica psicanalítica, que se interessa mais pela direção singular que cada um estabelece com o seu modo de gozo.

A prevalência das imagens na atualidade coloca-se como promessa de alcance do impossível do gozo, operando como véu da castração do ser falante que o distancia da angústia quando se apresenta a inexistência da relação sexual (Dicker, 2015). A onipresença da realidade virtual na vida do ser falante é intrusiva, mas também consentida. Em tempos de falência de uma identificação estável, cabe ao analista através de sua prática auxiliar o adolescente a constituir um saber fazer singular com o gozo que ultrapasse o imperativo desmedido dos likes, a saber, modo como alguém afirma que gostou de um conteúdo publicado nas redes sociais. A psicanálise encontra na atualidade a tarefa de acompanhar o adolescente em seu percurso de constituição de uma língua que o autentique no laço social. As transformações do mundo contemporâneo e o declínio das figuras identificatórias na conformação da sociedade localizam novos impasses e exigem mapear os recursos de que se valem os adolescentes para lidar com sua travessia no mundo atual.

 

Referências

Adolescente demais: https://adolescentedemais.com.br        [ Links ]

Alberti, S. (2010) O adolescente e o Outro. (p. 36-43) Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Ansermet, F. (2003) Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise. (p.24). Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Barros, M. (1995) Do mito à fantasia: uma questão para a psicanálise com crianças. Em: Fort-Da, n. 03. Rio de Janeiro: Revinter.         [ Links ]

Blog de uma garota adolescente: http://blogdeumagarotaadolescente.blogspot.com.br        [ Links ]

Blogueiras feministas - http://blogueirasfeministas.com        [ Links ]

Desejo adolescente: http://www.desejoadolescente.com        [ Links ]

Diários de uma adolescente estranha: https://diariosdeumaadolescenteestranha.wordpress.com/        [ Links ]

Dicker, S. (2015) As identificações, hoje. O imaginário mais além do narcisismo. Disponível em http://oimperiodasimagens.com.br/pt/as-conversacoes        [ Links ]

Freud, S. (1972) A interpretação dos sonhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol.5). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1900)        [ Links ]

Freud, S. (1972) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 7, p.177-212). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1905)        [ Links ]

Freud, S. (1972) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 7, p.199-202). Rio de Janeiro: Imago. (Acréscimo originalmente publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1974) Breves escritos: carta à dra.Hermine Von Hug-Hellmuth. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 14, p.385). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1915)        [ Links ]

Freud, S. (1976) Escritores Criativos e Devaneios. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 9, p.149). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1908)        [ Links ]

Freud, S. (1976) Análise de um caso de fobia em um menino de cinco anos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 10, p. 19-48). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1909)        [ Links ]

Freud, S. (1976) O esclarecimento sexual das crianças. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 9, p. 141-142). Rio de Janeiro: Imago. (Originalmente publicado em 1907)        [ Links ]

Kehl, M. (2000) O sexo, a morte, a mãe e o mal. Em Nestrovisk, A. e Seligmann-Silva, M. (Orgs.), Catástrofe e representação (p.137-148). São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Lacadeé, P. (2011) Uma vida não sem risco. Em Lacadeé. P, O despertar e o exílio. Ensinamentos psicanalíticos da mais delicada das transições, a adolescência (p.55-66). Rio de janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

Lacan, J. (1998) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. Em Lacan. J, Escritos (p 436-496). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1ª Ed.         [ Links ]

Lima, M. (2006) Sobre a escrita adolescente. São Paulo: Estilos da Clínica, v.11 n.20. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415 71282006000100005        [ Links ]

Mandil, R. (2007) A psicanálise e os modos contemporâneos de identificação. Online: Opção Lacaniana Online, n.4. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n4/textob.asp        [ Links ]

Musachi, B. (2015) Entre a captura pelas imagens e a função capital da imagem. Disponível em http://oimperiodasimagens.com.br/pt/as-conversacoes        [ Links ]

Pinho, G. (2011) Hans - uma análise do infantil. Em Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, O infantil na Psicanálise, n.40 (p.63-73). Porto Alegre.         [ Links ]

Rassial, J. (1999) A adolescência como conceito da teoria psicanalítica. Em Rassial. J, O adolescente e o psicanalista (p.45-72). Rio de Janeiro: Companhia de Freud.         [ Links ]

Relato de um abuso: http://relatodeumabuso.blogspot.com.br        [ Links ]

Seldes, R. (2015) As identificações na época do gozo. Disponível em http://oimperiodasimagens.com.br/pt/as-conversacoes        [ Links ]

Serres, M (2013). Polegarzinha: uma nova forma de viver em harmonia e pensar as instituições, de ser e de saber. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Silva, S. (2015) Desvelando a netnografia: um guia teórico e prático. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comum. Vol. 38 no.2, São Paulo.         [ Links ]

Stevens, A. (2013) Quando a adolescência se prolonga. Online: Opção Lacaniana Online, ano 4, n.11        [ Links ]

World Adolescente: http://worldadolescentesl.blogspot.com.br        [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/08/2017
Aprovado em: 21/08/2018

Creative Commons License All the contents of this journal, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution License