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Trivium - Estudos Interdisciplinares

 ISSN 2176-4891

Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.235 

RESENHA

 

Outras narrativas: línguas de resistência

 

Other narratives: languages of resistance

 

Autres récits: langues de résistance

 

 

Christiana Cunha Freire

Psicanalista; professora do curso “A Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma” (Instituto Sedes Sapientiae); psicóloga do Hospital Dia do Departamento de Psiquiatria da Unifesp. E-mail: christianafreire@uol.com.br

 

 

Resenha do livro A psicanálise e os lestes (São Paulo: Annablume, 2017, 217 p.) organizado por Paulo Sérgio de Souza Jr.
Review of the book Psychoanalysis and the Easts (São Paulo: Annablume, 2017, 217 p.), edited by Paulo Sérgio de Souza Jr.
Revue du livre La Psychanalyse et les lests (São Paulo: Annablume, 2017, 217 p.), édité par Paulo Sérgio de Souza Jr.

 

 

A psicanálise e os lestes é um livro que interessa, pois questiona as demarcações fixas, tidas como naturais, entre Leste e Oeste, bárbaros e civilizados, colonizados e colonizadores; entre outras que poderíamos imaginar, tais como negros e brancos, mulheres e homens, pobres e ricos, e demais marcadores - temas controversos da atualidade e da história da humanidade. O ato de suspeitar das ficções estabelecidas como verdades norteia esse magnífico trabalho, que tem como base de sustentação a articulação entre a política e a ética, ao promover a abertura e o questionamento a respeito da manutenção dos arranjos sociopolíticos e econômicos convenientes ao pensamento dominante.

Os costumes, como bem sabemos, podem ser coercitivos, a fim de manter o status quo; eles definem, "sem muita piedade, um determinado quadro fixo neste globo". O que está definido, porém, não foi sempre assim, mas é resultado de um processo que guarda uma história responsável por determinar espaços e lugares fixos: "a posição do falante e sua injunção de sentido são fundamentalmente pautadas num eixo, ainda que bastante escamoteado pela opacidade da referência" (p. 9) - como adverte Paulo Sérgio de Souza Jr., organizador e um dos autores, logo na apresentação.

Ao propiciar de vários modos a abertura para "uma outra cena" (p. 11), que não a estabelecida, os capítulos desse livro promovem um giro no tempo, rearticulam as fixações existentes e produzem novos sentidos para a realidade, a partir da contribuição da psicanálise e de outras disciplinas. Linguistas, tradutores, psicanalistas, psicólogos clínicos, professores de literatura comparada, cientistas sociais, oriundos de diferentes partes do mundo, compõem o grupo de autores dessa edição.

O argumento motivador do projeto dessa série de livros parte do texto "O analista e os bárbaros" (2014/2017), da autoria de Souza Jr. e presente no Volume 1. O bárbaro1 "tensiona" o campo de nossas familiares referências: ele, que inicialmente deu limite ao mundo greco-romano, tem sobrevivido aos tempos e à geografia, ganhando função estabilizadora através da figura representada pelo estrangeiro - garantia de um limite muito conveniente ao nativo. Os bárbaros devem manter-se afastados, em nome de um cuidado em evitar dano ou prejuízo; mas o afastamento do estrangeiro é acompanhado por certo fascínio2: "no avesso do pavor e da repulsa pelos seus costumes áridos, o cheiro da sua comida ou os descompassos do sonido incerto de sua trombeta", encontramos o fascínio, salienta Souza Jr.. Afinal, "talvez a escuridão que o estrangeiro habita seja a morada de um saber que nós ignoramos... e que, sobretudo, nos faz falta em alguma medida" (pp. 26-27). Antes de impressionar-se pelo estrangeiro, no entanto, convém começar lembrando que "somos estrangeiros de nós mesmos": "a língua nos divide" e, além disso, "o eu está implacavelmente fadado a se revelar como sendo um outro" - como afirma Rimbaud (p. 31).

No prefácio da obra, Paulo Schiller amplia o tema, ao dizer que as convenções elucidadas na história recente da Europa são arbitrárias e revelam pressupostos ancorados em um imaginário, por vezes preconceituoso, formado por fantasias e concepções acerca dos países, das línguas e das culturas do que se considera o "Leste" - um suposto Oriente. Tais concepções relacionam-se com os lugares em que a psicanálise se expandiu e, também, em que ela foi suprimida, a partir de suas origens em Viena (p. 13). A trágica história da psicanálise em vários países do Leste - determinada por governos autoritários que viam a psicanálise como "expressão da assim dita cultura 'ocidental', burguesa, que privilegiava o desejo do indivíduo" (p. 18) - trouxe, para Schiller, questões a respeito da viabilidade de uma análise. Ele acompanha Souza Jr. quando observa que, para além da política e da cultura, a resistência à psicanálise não se restringe à existência de diferentes línguas e à dificuldade de tradução de uma para outra.

Renata Udler Cromberg, no capítulo "Psicanálise na Rússia" (2017), recupera a história e o valor do trabalho da psicanalista Sabina Spielrein, que teve seu pensamento reconhecido na história da psicanálise e, depois, foi esquecida. Em diferentes circunstâncias históricas, psicanalistas importantes na Rússia e no Leste Europeu sofreram o mesmo destino. Situações de guerra e regimes totalitários, como podemos observar em território russo, extinguiram serviços de saúde, clínicas infantis, policlínicas, abrigos psicanalítico para crianças, entre outras oficinas experimentais que surgiram com a ascensão da psicanálise sob o governo socialista de Lênin; e fizeram submergir toda uma rica produção no campo da psicanálise, que se tornaria inacessível até o surgimento da Glasnost, abertura cultural, e da Perestroika, reestruturação política do país. No desenvolvimento da história da Rússia, o ressurgimento da psicanálise no tempo de abertura cultural e reestruturação política - como mostra a análise de Cromberg - só foi possível a partir do conhecimento dos acontecimentos e das histórias vividas, do aparecimento da verdade a respeito das atrocidades sofridas. Tal elaboração restituiu o lugar de trabalho psíquico necessário para que novos investimentos pudessem começar a ser novamente realizados.

Ainda nessa publicação, o capítulo de autoria de Sabina Spielrein - intitulado "Sobre a Palestra do Dr. Skalkovsky" (1929/2017) - reflete, segundo Cromberg, a luta da psicanalista russa pela psicanálise na União Soviética, sob o governo de Stalin. Tratase, até onde se tem notícia, do único texto da autora preparado e publicado originalmente em russo; foi também um dos últimos textos de psicanálise apresentados antes da condenação do campo em 1931, o que levou à sua completa proibição no país em 1936. O modo singular com que Spielrein afirma a importância da escuta do paciente e da não intervenção do analista, sobretudo na análise de crianças, distancia-se de uma psicanálise pedagógica.

Katerina Malichin (2017), no capítulo "De língua a língua na linguagem e, então, â assunção da fala", relata sobre pessoas que partiram atrás de refúgio, depois da guerra da Síria, tendo perdido a família, as posses, a pátria, encontrando-se num lugar em que tudo é estrangeiro: a língua, os costumes, as normas sociais. Ressalta que, na maioria das vezes, não há demanda da parte delas: somos nós que, de certa maneira, criamos a demanda. Há a dificuldade da passagem à palavra, que está desacreditada depois dos pesados traumas. Nessas circunstâncias, o trabalho do clínico consiste na criação das condições de uma enunciação, uma tentativa de sua parte de cicatrizar o vazio do descrédito que deixa um sujeito emudecido em casos como esses. Segundo a autora, nossa prática enquanto psicanalistas, mesmo fora do nosso consultório, funda-se na transferência -"abandonando, contudo, a neutralidade"- e "na construção de uma disposição sem separações estanques que receberá a dor em toda a sua magnitude". "Por causa de suas experiências extremas, em que todas as exclusões são reais, e não imaginárias", espera-se "uma fala qualquer da parte do sujeito; oferecendo, primeiro, a nossa, ao contrário do que se passa no divã do analista" (p. 170).

No capítulo "A possibilidade de uma psicanálise lacaniana em língua árabe", Zoubida Bessaih (2017) reflete sobre a interdição da escrita incidindo sobre a língua materna nos países árabes. Numa análise, essa questão se impõe de maneira mais aguda. "A língua seria, então, uma língua atônita", no sentido que "Derrida, comentando Foucault, dá à fala da loucura - uma fala interditada, reduzida ao silêncio pela ordem da razão" (p. 38). Bessaih recupera Mustapha Safouan quando faz da desvalorização da língua materna a pedra angular das dificuldades dos povos árabes. Ela toma a falta de transmissão e tradução em língua materna como razão essencial do atraso econômico e cultural.

Como conceber, então, uma psicanálise em países onde a língua materna está fora do jogo? - indaga a autora. Ela retoma o poema de Assia Djebar, que escreve sobre o tempo da primeira língua secreta, língua que ensurdecia e reivindicava o diálogo todo esse tempo: "a língua primitiva, que se reclama bárbara, teria querido dançar em ti e te fazer dançar. Mas... tarde demais!", diz a poetisa (p. 43). Temos aqui outro belo texto que fala do sujeito emudecido na sua língua de origem a partir dos apagamentos do idioma, da cultura e das normas sociais - depois, nesse caso, da ocupação francesa na Argélia. Segundo Bessaih, a população, resistindo, recusou-se a frequentar as escolas francesas quando "o poderio colonial calculava generalizar o ensino do francês para apagar a identidade árabo-berbere do povo conquistado" (p. 47). Trata-se de um trabalho que investiga a língua interditada, pois escreve a língua da mãe, a língua do dominado. Ela é a língua da resistência, a língua das mulheres.

Em "O intraduzível entre os ecos cálidos e mortíferos de uma mesma língua" (2014/2017), Janine Altounian - na mesma direção dos textos anteriores - escreve, a partir de uma experiência pessoal de análise, sobre a expulsão de sua língua materna e como seus pais foram expulsos de seu espaço de vida. Tornou-se fundamental que tivesse ido a Bursa (Turquia) - cidade natal de sua família, no Império Otomano, anteriormente ao genocídio dos armênios, em 1915. "Escutar aquela língua cálida da minha infãncia, mas, ao mesmo tempo, portadora de morte por ocasião dos slogans negacionistas, me fez entender fisicamente como passar de uma língua para outra, traduzir, desafiar o intraduzível do prazer e da angústia", diz a autora (p. 69).

"Para recolher e transmitir o que restava de uma cultura destruída era preciso traduzi-lo, tentar traduzir o intraduzível" (p. 69). Como só é possível traduzir o que foi simbolizado, o tratamento de um analisante portador de traços dessa destruição consistia nesse trabalho cultural em dois tempos (o que Freud denomina "Kulturarbeit", diz a autora). Traduzir o intraduzível animava dois campos que se juntavam, para ela, em duas formas de experiência: "traduzir, como tradutora, de uma língua para outra e traduzir, como analisante, uma ausência de língua para o que ali se escuta" (p. 69). Nos dois casos, "traduzir é de fato deslocar do original para a outra língua, e do originário para a transferência" (p. 71).

O último capítulo, "Alucinando o outro: fantasias derridianas sobre a escrita chinesa", é de Chang Han-Liang. Nele, o autor faz uma análise crítica quanto às conceitualizações pós-renascentistas da escrita chinesa, levantando problemas metodológicos nos estudos comparados e na hermenêutica cultural. Chang está preocupado com a centralidade funcional que a linguagem exerce ao representar a alteridade e, em particular, com a força e os limites dos lugares, como fala, a representar a escrita silenciosa. Ele interroga sobre o ponto de partida crucial e sobre o contexto cultural a partir dos quais podemos interpretar o caractere chinês. Deveríamos falar do caractere chinês em termos de etimologia ou a despeito dela? "Se nosso contexto for a etimologia e nossa posição, a de um lexicógrafo, veremos que há muitos mitos por dissipar entre os escritos dos ocidentais pesquisados, nenhum dos quais possuía um conhecimento adequado de chinês" (p. 187). Questões sobre autoridade interpretativa são relevantes para a hermenêutica cultural, segundo Chang. Como falante nativo de chinês e lexicógrafo formado, entretanto, Chang não deseja fazer o papel de etnógrafo nativo, pois não quer endossar o essencialismo, já que acredita que o observado não tem uma existência transparente e só faz sentido em relação com o observador.

Por todos os capítulos, a premência da desconstrução da História oficial para o surgimento de outras narrativas - silenciadas no discurso hegemônico - fundamenta essa importante investigação política e essencialmente psicanalítica, por trazer à tona o que foi recalcado. Procura, assim, ampliar o espaço, confrontar referenciais diversos, a fim de chamar a atenção para a possibilidade de deslocar-se para além das "órbitas fixas". A real dimensão daqueles que estão à margem, como os Lestes na sua pluralidade e heterogeneidade, torna-se presente a partir desse movimento. Essa é uma leitura essencial no momento atual em que vivemos.

 

 

Recebido em: 12/04/2019
Aprovado em: 23/09/2019

 

 

1 No primeiro capítulo da edição, Paulo Sérgio de Souza Jr. resgata a etimologia do termo: o bárbaro, designado pelos gregos no século V a. C. como aquele que "barbareja" (p. 11), que não fala a língua da civilização - a grega.
2 Termo que vem do latim, fascinum: segundo Souza Jr., símbolo que corporifica a divindade Fascinus, representada, na tradição romana, por um falo - com o qual se acreditava espantar as influências malignas.

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