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Revista Psicologia e Saúde

 ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.12 no.3 Campo Grande jul./set. 2020

https://doi.org/10.20435/pssa.vi.1035 

10.20435/pssa.vi.1035 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Revisão integrativa: atuação da psicologia na rede de atenção psicossocial

 

Integrative review: procedure of psychology in psychosocial care network

 

Revisión integrativa: actuación de la psicología en la red de atención psicosocial

 

 

Matheus Rodrigues de OliveiraI; Adriano SchlosserI; Jean Paulo da SilvaII

IUniversidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc)
IICentro Universitário Leonardo da Vinci (Uniasselvi)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

No Brasil, os serviços de atendimento em saúde mental têm uma articulação única, conhecida como Rede de Atenção Psicossocial, articulando múltiplos dispositivos em trabalho multiprofissional e interdisciplinar. Entre as profissões, o objetivo deste artigo foi investigar estudos sobre a atuação da Psicologia na Rede de Atenção Psicossocial, desenvolvidos pela Psicologia brasileira, nas bases de dados SciELO, PePSIC, Index Psi, Lilacs e BVS, utilizando os descritores "Rede de Atenção Psicossocial" e "Psicologia". Foram selecionados 21 artigos, publicados de 2012 a 2018, classificados de acordo com a temática de estudo e o método utilizado. Houve predomínio de pesquisas com abordagem qualitativa, com uso de entrevistas e observação para coleta de dados. Os resultados indicaram avanços nas práticas que envolvem a necessidade de promoção de autonomia dos usuários e que modificam o perfil tradicional de atenção à saúde mental, embora ainda se verifiquem problemas na formação teórica e prática do profissional psicólogo no campo psicossocial.

Palavras-chave: saúde pública, Psicologia, saúde mental, Sistemas de Apoio Psicossocial


ABSTRACT

In Brazil, mental health care services have a unique articulation, known as the Psychosocial Care Network, articulating multiple devices in multiprofessional and interdisciplinary work. Among the professions, the objective of this article was to investigate studies on the role of Psychology in the Psychosocial Care Network, developed by Brazilian Psychology, in the databases SciELO, PePSIC, Index Psi, Lilacs, and BVS, using the descriptors "Psychosocial Care Network" and "Psychology". We selected 21 articles, published from 2012 to 2018, classified according to the study theme and the method used. There was a predominance of qualitative research, with interviews and observation for data collection. The results indicated advances in practices that involve the need to promote users' autonomy and that modify the traditional profile of mental health care, although there are still problems in the theoretical and practical training of professional psychologists in the psychosocial field.

Keywords: public health, Psychology, mental health, Psychosocial Supports Systems


RESUMEN

En Brasil, los servicios de atención en la salud mental tienen una articulación única, conocida como la Red de Atención Psicosocial, articulando múltiples dispositivos en un trabajo multiprofisional e interdisciplinario. Entre las profesiones, el objetivo de este artículo es investigar estudios sobre el papel de la psicología en la Red de Atención Psicosocial, desenvueltos pela Psicología brasileira, en las bases de datos de SciELO, PePSIC, Index Psi, Lilacs, e BVS, utilizando los descriptores "Red de Atención Psicosocial" y "Psicología". Fueron seleccionados 21 artículos, publicados de 2012 a 2018, clasificados de acuerdo con la temática de la técnica y el método utilizado. Se cuenta con predominio de pesquisas con abordaje cualitativo, uso de entrevistas y observación para la coleta de dados. Los resultados indican los avances en las prácticas que involucran la necesidad de la promoción de la autonomía de los usuarios y que modifican el perfil tradicional de la atención a la salud mental, aunque todavía hay problemas en la formación teórica y práctica del psicólogo profesional en el campo psicosocial.

Palabras clave: salud pública, Psicología, salud mental, Sistemas de Apoyo Psicosocial


 

 

Introdução

A Política de Saúde Mental brasileira foi construída por meio da mobilização de usuários, familiares e trabalhadores da saúde iniciada na década de 1980, com a finalidade de modificar a realidade das instituições de tratamento instituídas até então, centralizadas na lógica manicomial, onde viviam mais de 100 mil pessoas com transtornos mentais (Brasil, 2011; 2013). Impulsionado pelo papel central dos debates sobre Direitos Humanos no combate à ditadura militar e alimentando-se das experiências exitosas de países europeus na substituição de um modelo de saúde mental baseado nos hospitais psiquiátricos, esse processo de mudança se expressou especialmente por meio do movimento social da luta antimanicomial e de um projeto coletivamente produzido de mudança do modelo de atenção e de gestão do cuidado: a Reforma Psiquiátrica, quebrando assim a hegemonia hospitalocêntrica por meio da criação de uma rede de serviços substitutivos (Alves, 2009; I ancelti & Amarante, 2009).

Na década de 2000, com financiamento e regulação tripartite, amplia-se a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), por meio da Lei n.10.216/2001 (Brasil, 2001), dispondo sobre a proteção e direitos de pessoas com transtornos mentais, redirecionamento o modelo as-sistencial. Em 2002, a Portaria 336 do Ministério da Saúde (2002) apresenta as diretrizes de funcionamento de serviços que atuam na saúde mental, destacando-se os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Centros de Atenção Psicossocial - Álcool e drogas (CAPS Ad).

A partir do Decreto Presidencial n° 7508/2011 (Brasil, 2011), a RAPS passa a integrar o conjunto das redes indispensáveis na constituição das regiões de saúde. A partir de então, por meio da Portaria n.3088/2011, a Política Nacional de Saúde Mental propõe as regras de consolidação da RAPS, articulando os diferentes pontos de atenção para pessoas em estado de sofrimento ou transtorno psíquico, ou com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, por meio do funcionamento do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS).

De modo elucidativo, o RAPS não é um local específico, mas uma definição de rede de assistência à saúde, tal como uma rede de pescador, em que cada nó é um centro de atendimento especifico para cada demanda, todas interligadas. Entre os equipamentos substitutivos ao modelo manicomial, pode-se citar os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência (CeCoS), as Enfermarias de Saúde Mental em hospitais gerais, as oficinas de geração de renda, entre outros. As Unidades Básicas de Saúde cumprem também uma importante função na composição dessa rede comunitária de assistência em Saúde Mental (Brasil, 2013).

A proposta do RAPS é garantir a livre circulação das pessoas com sofrimento psíquico pelos serviços, pela comunidade e pela cidade. Sua constituição busca, eminentemente, consolidar a rede horizontal de serviços prestados pelo SUS, organizando as linhas de cuidado a todas pessoas em sofrimento mental e usuários de drogas no âmbito do SUS, seja qual for o nível de complexidade necessário (Vasconcelos, Paiva, & DallaVechia, 2018) garantindo a todo cidadão o direito à saúde, tornando inseparável saúde e cidade.

No Brasil, a Política Pública de Saúde Mental tem garantido que a maior parte dos recursos financeiros seja destinada à estruturação de programas e serviços alinhados às propostas de desconstrução do modelo manicomial, buscando consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária. É preciso, portanto, reconhecer a existência de um tipo de rede (RAPS) que se constitui sem modelo ou estrutura preconcebida, pois se constroi em ato, com base no trabalho vivo de cada trabalhador e equipe. Assim, mediante fluxos de conexões entre si, na busca do cuidado em saúde, seja em encaminhamentos realizados, procedimentos partilhados, projetos terapêuticos que procuram consistência no trabalho multiprofissional (Quinderé e cols., 2014).

No final do ano de 2017, a Política Nacional de Saúde Mental passou por reformulações. Assim, após meses de debate, no mês de dezembro a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), que reúne o Ministério da Saúde e representantes de Estados e municípios, anunciou mudanças na Política Nacional de Saúde Mental (Resolução CIT n. 32/2017 e Portaria No. 3.588/2017) (Brasil, 2017).

Em 2019, novas diretrizes foram apresentadas nas Políticas em Saúde Mental, por meio da nota técnica n° 11/2019, do Ministério da Saúde (Brasil, 2019) e demais órgãos relacionados. Tais mudanças, de forma semelhante às realizadas 2017receberam críticas de profissionais e entidades representativas considerando um retrocesso aos avanços já conquistados. Nas novas diretrizes, dentre outros aspectos, apresenta-se questões envolvendo o uso da eletroconvulsoterapia, internação involuntária ou compulsória por decisão de pessoas ou entes alheios à vontade do usuário, bem como o aumento de leitos de saúde mental em instituições psiquiátricas.

Assim, frente aos debates no cenário atual das políticas de saúde mental no Brasil, torna-se relevante avaliar a produção científica realizada até o momento, reunindo dados que permitam construir reflexões sobre o que foi produzido, além dos caminhos e desafios a serem seguidos no futuro. Com efeito, o presente estudo objetiva investigar estudos sobre a atuação da Psicologia na Rede de Atenção Psicossocial, por meio de uma revisão integrativa da produção científica nacional relacionada à RAPS e a atuação do psicólogo. Tal esforço objetiva contribuir com um panorama das publicações brasileiras sobre esta temática, permitindo indicar horizontes teóricos e desdobramentos práticos para o exercício profissional.

 

Método

A presente pesquisa, de cunho exploratório, consistiu em uma revisão integrativa da literatura sobre a atuação da psicologia na RAPS, mediante a busca de artigos científicos nas bases de dados, SciELO, PePSIC, Index Psi, LILACS, e BVSalud. Foram realizadas buscas utilizando os descritores "rede de atenção psicossocial" AND "psicologia", presentes no título, resumo e/ou palavras-chave.

Foram selecionados para análise os artigos completos publicados entre os anos 2012 e 2018 em idioma português. O período definido se dá em razão das atualizações da política de Saúde Mental que ocorreram ao final do ano de 2011, resultando na implantação da RAPS. Em relação ao idioma, entende-se que por se tratar de temática intimamente ligada a prática profissional no campo das políticas públicas, a análise da produção em língua portuguesa permite observar a produção científica que apresenta maior chance de ser utilizada pelos profissionais. Em relação aos critérios de exclusão adotou-se: artigos não indexados, teses, dissertações, resenhas, livros e capítulos de livros e ausência de pelo menos um dos autores com formação em psicologia.

Ressalta-se que a busca e análise dos artigos foi desenvolvida por dois juízes independentes, e nos casos de discordância, foi realizada uma análise conjunta. A busca inicial resultou em um total de 1024 artigos conforme apresentado na Figura 1.

Assim, na primeira triagem, foram excluídos artigos em outros idiomas que não português e também os materiais indisponíveis na íntegra. Foram selecionados 64 artigos. Na segunda triagem, foram excluídas as produções que antecediam o período cronológico especificado (31), os artigos duplicados (4), e os que não tivessem pelo menos um autor com formação em psicologia (6), resultando em uma amostra final de 21 artigos a serem analisados.

Os procedimentos de análise dos artigos selecionados levaram em consideração os seguintes aspectos: natureza do artigo, método empregado, tema e principais resultados.

 

Resultados e Discussão

Com base no processo de seleção de dados, a Tabela 1 apresenta as produções selecionadas a partir das informações: Autores, nome da revista e seu respectivo qualis; abordagem metodológica, procedimento de coleta de dados e procedimento de análise de dados. Tais informações permitem mapear tanto as produções quanto as revistas que tem possibilitado a circulação deste material, além das características metodológicas das produções.

Verifica-se que os 21 trabalhos analisados foram publicados em 13 revistas diferentes, sendo que a maioria dos periódicos publicou apenas um artigo sobre o tema. As revistas que mais publicaram foram: Psicologia: Ciência e Profissão (5), Fractal: Revista de Psicologia (3), e Estudos de Psicologia (3). Essas três revistas têm em comum, na definição de suas missões, uma preocupação explícita com a socialização do conhecimento psicológico e com a interface entre a Psicologia e a sociedade. Essa característica pode ajudar a explicar o número de artigos sobre temas vinculados à RAPS. Além disso, em relação ao ano de publicação, os anos de 2013 e 2016 são os anos de maior destaque, com seis e cinco publicações respectivamente.

No que diz respeito à classificação das revistas no Qualis Periódicos da última avaliação trienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), seis foram classificadas no estrato A, sendo três A1 e quatro A2, e sete no estrato B, sendo cinco B1 e três B2. Esta avaliação a partir dos estratos das revistas sugere que as publicações passaram por minuciosa análise para publicação, sustentando seus resultados e a pertinência do tema.

No contexto da pesquisa científica salienta-se a importância da descrição minuciosa dos procedimentos adotados ao longo do estudo, tendo em vista as possibilidades de replicação em outros contextos, bem como a análise crítica dos achados em relação aos procedimentos adotados. Assim, verificou-se que alguns estudos não citaram de forma declarada a metodologia utilizada para análise dos dados coletados.

Dos 17 artigos empíricos, apenas um deles apresentou abordagem quantitativa, tratando-se de um levantamento de dados em que se analisou prontuários e documentos (Teixeira et al., 2015) e um com abordagem de métodos mistos, utilizando entrevista e aplicação de escalas (Macêdo e cols., 2013).

Os demais artigos empíricos possuíam delineamento de pesquisa com abordagem qualitativa. No que diz respeito ao restante dos artigos, os estudos se caracterizam como relatos de experiência (Alberti & Palombini, 2012; Cunda e cols.,2013; Larentis & Maggi, 2012; Noal e cols., 2016 ), e ensaios teóricos (Couto & Delgado, 2015; Neto & Amarante, 2013; Sereno, 2012).

Em relação às temáticas, foram identificadas produções referentes às atividades da rede com ênfase na construção de uma práxis promotora da autonomia e cidadania dos usuários. De modo geral, verificou-se que os diferentes modelos de trabalho se dirigem principalmente ao contexto dos grupos que vivem à margem da sociedade, seja por condição social e/ou sofrimento psíquico. Nesta proposta, Romanini e cols. (2017) apresentam a questão do acolhimento e relação entre usuários do CAPS ad, Consultórios de Rua e Equipe de Saúde, partindo do pressuposto do acolhimento enquanto ferramenta de construção do comum, concretizado nos encontros cotidianos entre profissionais e usuários. O estudo parte do pressuposto que o acolhimento deva ser feito desde o momento que o usuário entra no serviço, pois é a partir do acolhimento proveniente da recepção que haverá uma possível garantia de aderência ao tratamento. Ademais, espera-se uma uniformidade das equipes referente às formas de acolher esses usuários, considerando-se de extrema importância a postura acolhedora dos profissionais, para alcançar objetivos satisfatórios.

Felix-Silva e cols. (2016) problematizaram os processos de subjetivação em saúde mental com pessoas em situação de rua. Analisou-se o contexto de rua enquanto paisagens psicos-sociais que permitem o tensionamento da RAPS, interpretando a própria condição de vivência de rua como um modo de fazer arte, considerando sua capacidade de sobrevivência em contexto de extrema vulnerabilidade. Para os autores, a arte de sobreviver, frente a inúmeras ameaças, parte da capacidade dos sujeitos de cuidarem de si mesmos, reinventando uma nova forma de saúde mental, que não exclui o sofrimento psicológico que também os acomete.

A autonomia enquanto processo central nas práticas em saúde mental também perpassou o espaço dos assentamentos agrários, em produção de Neto e Dimenstein, (2017). Em contexto marcado por condições de vida e trabalho precárias, aliadas as barreiras no acesso às políticas e programas de saúde e assistência social, buscou-se identificar as demandas de saúde mental da população do estudo. Os resultados indicaram que as equipes de saúde possuem pouco conhecimento sobre o território e as necessidades de saúde mental locais, limitando a prática profissional. A desarticulação da equipe, somada ao desconhecimento das características da população, contribuem diretamente para a falta de acolhimento e para a manutenção das condições de saúde desfavoráveis. Desta forma, apesar dessas ações tentarem viabilizar ações de atenção integral a essa população, acabam por realizarem práticas pontuais, fragmentadas e que não apresentam continuidade. O despreparo de equipes profissionais também se evidenciou em outras produções. No estado do Piauí, Macedo e Dimenstein (2016) apresentam uma análise sobre os saberes e práticas de psicólogos que atuam na rede de atenção à Saúde Mental, com base nos efeitos produzidos pela atuação. Os resultados apontam problemas na formação profissional em Saúde Mental, que resultam em práticas clínicas predominantemente individuais, em detrimento de uma perspectiva em saúde coletiva e atenção psicossocial preconizadas nas políticas públicas. O efeito colateral manifesta-se em um discurso contraditório, onde se criticam o modelo manicomial, mas pratica-se o modelo clínico tradicional, com viés na doença, que da mesma maneira não avança para um modelo de atenção psicossocial e territorial. Esse viés do modelo clínico tradicional acaba dificultado a atuação da Política Nacional de Saúde Mental, o que faz repensar a formação do psicólogo, especialmente no campo das políticas públicas.

Na pesquisa de Miranda e cols. (2014) há uma associação representacional entre as atividades em saúde mental e imagem de precariedade. Tal imaginário não afeta apenas os usuários do sistema, mas também os profissionais que atuam nos serviços, limitando sua capacidade de criação e fomentando práticas que não atendem à complexa demanda. Nesta perspectiva, busca-se a construção de dispositivos que estimulem e sustentem a construção de uma práxis baseada no conceito de saúde ampliada, com proposta psicossocial, requerendo a contínua construção e reconstrução de cada profissional, gestor, educador, e da sociedade em geral.

Em um contexto do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF) na Bahia, Santos e Mandelbaum (2013) ao buscar compreender as práticas e trabalho interdisciplinar de psicólogos, verificaram que, mesmo com liberdade de ação para intervenções, as práticas se mantêm na lógica clínico-assistencial, limitando a atuação psicossocial e em rede. Esses resultados trazem ao debate novos e antigos problemas no âmbito do SUS, como dificuldades estruturais (Unidades de Saúde sem estrutura adequada, dificuldade de espaço para atendimento, falta de materiais, etc.), precarização do vínculo trabalhista, falta de educação permanente em saúde, entre outros. Para a psicologia, as limitações se problematizam no problema da atuação baseada no atendimento ambulatorial, em detrimento do que preconiza os pressupostos de uma Saúde Coletiva.

Na mesma direção, a pesquisa de Muhl e Holanda (2016) sobre as vivências dos psicólogos em saúde pública, identifica a dualidade vivida pelos profissionais no aspecto satisfação e insatisfação relacionada à sua área de atuação, satisfação essa quando se identificam com seu trabalho e insatisfação quando se resignam à sua função. Esta designação, na ausência de formação adequada, contribui fortemente para o dualismo envolvendo teoria e prática, bastante presente nas atuações em saúde no país.

Em Aracaju-SE, Guimarães e cols. (2013), ao investigarem as práticas, limites e potencialidades de psicólogos em ambulatórios de saúde mental, também identificaram a predominância da atuação clínica tradicional, com poucas ações interdisciplinares. O que dificulta a consolidação desse modelo são as práticas profissionais que contrariam a proposta interdisciplinar, a exemplo da atuação isolada do profissional psiquiatra em relação ao psicólogo.

Em oposição, o estudo de Batista e Nobre (2013) discute o processo de consolidação da reforma psiquiátrica em Aracaju, por meio das práticas de uma equipe gestora da RAPS. No que diz respeito aos achados da pesquisa, embora sem apresentar focalmente a atividade do psicólogo, evidenciou-se que tais espaços tendiam a ser formados por militantes e profissionais voltados à busca de transformação social. O estudo salienta que, para a mudança ocorrer, faz-se necessário a participação popular crítica, autônoma e permanente.

No contexto do CAPS ad, a revisão de literatura produzida por Larentis e Maggi (2012) identificou limitações semelhantes nas atividades dos psicólogos, havendo maior ênfase em práticas como atendimentos clínicos individuais, avaliação psicólogica, e ainda encontra-se limitações na formação acadêmica profissional com ênfase na clínica tradicional como também a necessidade de que a atuação dos profissionais psicólogos seja mais questionada, assim não atendendo ao preconizado na Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Embora legalmente, tais ações sejam aceitas, as recomendações indicam prioridade em intervenção psicossocial, isto é, atividades na comunidade, intervenções comunitárias, visitas domiciliares, entre outras ações na perspectiva de saúde no território. Sendo assim, os CAPS ad representam um início de quebras de paradigmas referente a dependente química, mas também, entende-se que existem limitações, até mesmo por serem bastante recentes.

Couto e Delgado (2015) apresentam a questão do CAPSi e a questão das políticas públicas referentes à saúde mental no contexto infanto-juvenil. Por meio de análise do percurso histórico e avanços obtidos nesse campo, destaca-se ainda a insuficiência no número de CAPSi implantados no país, bem como a necessidade de desenvolvimento de estratégias de articulação intersetorial da saúde mental com demais dispositivos de assistência à infância e adolescência. A articulação intersetorial mostra-se, uma vez mais, uma necessidade fundamental para práticas bem sucedidas no contexto de atuação em saúde mental.

Ainda nesta temática, Teixeira e cols. (2015) analisam as mudanças realizadas na Rede de Saúde Mental para crianças e adolescentes em Campinas, SP, com base nas propostas de diferentes estratégias de reorientação do cuidado. A análise de Couto e Delgado (2015) constata que através da reestruturação dos serviços a partir de articulação intersetorial - neste caso, com a atenção primária e em atuação multidisciplinar - foi possível avanço na organização territorial e diminuição de encaminhamentos originados do setor jurídico. Uma vez mais se sustenta que a reorientação dos serviços é primordial enquanto estratégia de fortalecimento dos pontos da rede de atenção à saúde.

Outra importante articulação a ser realizada no contexto de apoio psicossocial seria com a rede de apoio social dos sujeitos. Macedo e cols. (2013) ao analisarem a rede de apoio social de usuários do CAPS II com diagnóstico de esquizofrenia, no Distrito Federal, identificaram, dentre outros aspectos, a necessidade do apoio familiar e social no processo saúde-doença, onde o vínculo atua como recurso terapêutico e promotor de saúde a partir da identificação de potencialidades e limitações do usuário. A relevância do estudo está na valorização de uma cultura participativa, em que toda a rede possa contribuir para o aumento de autonomia e da autoestima dessa população.

Noal e colaboradores (2016) apresentaram relato de experiência das estratégias de apoio psicossocial e saúde mental aos afetados pelo incêndio na Boate Kiss, ocorrido em 2013. Dentre diversas ações realizadas, destacam-se o mapeamento das estruturas e serviços de apoio, o desenvolvimento de um núcleo gestor que organizava os eixos de trabalho, a formação permanente dos profissionais e voluntários, a regulação em saúde mental, que auxiliava no fluxo de referência dos sujeitos em busca de cuidados e informações, e o apoio psicossocial, com serviços diversificados e entidades com suporte mútuo, favorecendo suporte e cuidado a quaisquer afetados, direta ou indiretamente. Estes elementos, quando associados, permitem a construção de uma rede de atenção em saúde mental e psicossocial fortalecida e eficiente, tendo em vista a contribuição de cada entidade e profissional visando promover estratégias de cuidado, baseadas nas demandas da população. É importante evidenciar que os bons resultados alcançados neste evento critico, foram resultados do comprometimento coerente com as diretrizes de atuação (inter) nacionais e legislação brasileira com enfoque em estratégia sustentáveis e efetivamente benéficas.

Em complemento, ressalta-se a relevância da supervisão clínico-institucional em CAPS e Rede de Atenção Psicossocial, como ferramenta para o aumento da eficiência na rede. Essa ferramenta é prevista pela Portaria GM n° 1174, de 07.07.05. Nesse contexto, Alberti e Palombini (2012) apresentam tal atividade enquanto proposta de espaço de fala, construção e sistematização de saberes, bem como maior autonomia e entrosamento da equipe, permitindo o desenvolvimento de iniciativas de articulação em rede e melhores propostas de projetos terapêuticos. Esse destaque a supervisão, operam em três eixos fundamentais, primeiro na articulação com o território, o que melhora a otimização da conexão com os serviços municipais. Em segundo, é a respeito da orientação clínica e por terceiro no fortalecimento dos laços nas equipes para uma melhor atenção ao usuário.

A produção de Leite e cols. (2018) descreve a constituição do Fórum de Serviços que compõem o RAPS em uma gerência específica na cidade de Porto Alegre. Com base nas relações construídas nestes espaços de discussão, uma das estratégias de problematização da práxis em saúde é a Educação Permanente em Saúde (EPS), proporcionando espaços de reflexão e construção de modelos envolvendo a tríade trabalho, gestão e educação no campo da saúde pública. Assim sendo, é um processo que está em permanente construção, pois horizontalizar as relações de trabalhos entre profissionais e gestores é um caminho a ser seguido e também uma resposta a ser alcançada. Quinderé e cols. (2014) ao discutirem as interações entre os níveis de complexidade do sistema de saúde na atenção à saúde mental em Sobral-CE, apresentam um diagnóstico do funcionamento na região, enfatizando as portas de entrada disponíveis aos serviços de saúde mental, que vão desde o CAPS e Unidades de Saúde, à Unidade de Psiquiatria no Hospital Geral. O trabalho apresenta uma rede de atendimento sólida, que inclui além dos dispositivos formais o próprio domicílio do usuário e seu acompanhamento constante. A atuação nessa perspectiva fortalece o cuidado em saúde produzido e sustentado através da rede, por meio de articulações entre os espaços institucionais e o território de saúde.

Outra experiência exitosa foi observada na produção de Leite e cols. (2013) no contexto da atuação da psicologia nos Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF) no Ceará, com ações que condizem com uma proposta de clínica ampliada, como: atividades com equipe de referência, grupos de educação em saúde com a equipe multidisciplinar, visitas domiciliares e reuniões com os agentes comunitários de saúde. Estas ações demonstram que é possível fazer saúde ampliada, desconstruindo o status quo através de práticas que atuem com a equipe básica de saúde. Porém, como apresentado em outros estudos, as produções cientificas a respeito do NASF são escassas mas não exclui a grande contribuição que a pesquisa trouxe a respeito das possibilidades e entraves da atuação no Psicólogo nesta área. Entraves a respeito da dificuldade do trabalho interdisciplinar e o predomínio do modelo biomédico, e as possibilidades são as já citadas frente as ações na perspectiva da clínica ampliada.

Uma das modalidades apresentadas em duas produções envolvendo modelos de prática foi o acompanhamento terapêutico - AT (Neto & Amarante, 2013; Sereno, 2012). Ambos, de natureza teórica, partem da premissa de que as contingências dos sujeitos acontecem em seu dia a dia, em meio às relações sociais. Nesta perspectiva, as produções indicam a possibilidade de um acompanhante no auxílio do usuário em suas atividades diárias, contribuindo na construção de sua autonomia.

Outra estratégia de trabalho foi o acolhimento e escuta qualificada, identificados no relato de experiência de Cunda e cols. (2013) realizada com adolescentes de uma unidade infanto-juvenil de um Hospital Psiquiátrico em Porto Alegre-RS. Tal prática foi chamada de acolhimento responsável e teve foco na escuta qualificada dos pais, responsáveis e dos próprios adolescentes em relação aos seus sofrimentos. Essa pesquisa seguia os princípios bases do atendimento publicado pelo Ministério da Saúde, no texto Caminhos para uma Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil. O foco desta política é dado na escuta da criança e do adolescente, muitas vezes encaminhado pela rede do território, poderia ser pela educação, saúde, assistência social etc, de modo a identificar se há ou não uma demanda de tratamento.

Por fim, a partir dos múltiplos olhares, práticas e reflexões sobre o campo, presentes nos estudos analisados, duas são as problemáticas centrais presentes. Primeiro: a necessidade de estratégias efetivas de acesso aos sujeitos que vivem à margem da sociedade, tarefa singular para o cuidado em saúde, reconhecendo seus valores, crenças e práticas, e assim singularizando o modelo de atendimento a partir da valorização do sujeito e de seu bem-estar integral. É importante esclarecer que a RAPS é a aplicação e a promoção de uma mudança do perfil tradicional de trabalho em saúde, incluindo o tratamento em saúde mental de forma integral ao contexto da saúde geral (Brasil, 2011; 2013). Isso se relaciona ao segundo aspecto central nos estudos analisados: a perspectiva de formação do psicólogo, ainda fortemente voltada aos modelos de atuação que se distanciam de uma prática psicossocial e intersetorial. Assim, a RAPS como tecnologia de cuidado em saúde, deve ser objeto de reflexão da psicologia para que seja possível a produção de ações transformadoras e que garantam o que Amarante (2007) retrata como uma forma de atenção ao sofrimento mental, com base no acolhimento, cuidado efetivo dos sujeitos e construção de um espaço de diversidades.

 

Conclusão

Entende-se que a produção e divulgação da atuação da Psicologia na RAPS proporciona o compartilhamento de experiências de práxis da atuação profissional, assim como serve de base para sua reprodução em contextos diversos, fortalecendo práticas frente aos fenômenos complexos presentes nesse campo, tais como: reforma psiquiátrica; atenção ao uso de álcool e outras drogas; saúde mental; políticas públicas; trabalho interdisciplinar; promoção da equidade, entre outros. Ademais, no contexto de mudanças nas políticas públicas, verifica-se a necessidade de compreender como a repercussão da política pública nas relações sociais, influencia novas formas de trabalho em saúde pública.

Compreender este complexo e multifacetado fenômeno representa uma importância fundamental para o campo profissional. E analisar a produção científica que sustenta as práticas e a organização dos sistemas de intervenção - neste caso a RAPS - torna-se uma estratégia valiosa. Assim, mesmo com importância social e científica, notou-se a produção incipiente de estudos diretamente relacionados à temática. Entretanto, ressalta-se que a RAPS é uma rede ainda em construção e que conta com menos de uma década desde sua criação.

Contudo, apesar de haver um pequeno número de publicações, elas se apresentam em diferentes modelos teóricos, epistemológicos e metodológicos, o que permite constatar a complexidade e necessidade de múltiplas formas de analisar a RAPS. Ora complementares, ora divergentes, o grande número de teorias e o pequeno número pesquisas oferecem diferentes olhares para o fenômeno, o que também permite avaliá-lo como um campo do conhecimento recente e que necessita de uma contínua construção.

As temáticas encontradas nos estudos se relacionam com o trabalho de profissionais da Psicologia inseridos na RAPS e permitem refletir sobre a necessidade do aumento das pesquisas científicas produzidas por profissionais que atuam diretamente nas políticas públicas de saúde mental. Os resultados obtidos até o presente momento trazem contribuições importantes para uma compreensão dos aspectos que permeiam a RAPS, e retratam a necessidade constante de aprimoramento por meio de pesquisas, sistematizações e rigor metodológico. Nesse sentido, o número ainda incipiente de pesquisas publicadas revela que, longe de estar saturada, essa temática ainda muita lacuna a ser preenchida, e aspectos a serem compreendidos.

Como limitações do presente estudo, se identifica que a busca de artigos pelos descritores selecionados pode ter excluído pesquisas que indiretamente discutem a RAPS, mas que não fizeram parte da seleção pois não foram produzidas por profissionais com formação em Psicologia, critério este relacionado ao objetivo central deste estudo, ou que não nomeavam a RAPS conforme o descritor utilizado. Nesse sentido, entende-se que diversas produções tratam de forma específica a atuação do psicólogo nos diversos dispositivos que compõem a RAPS (como os Núcleos Ampliados de Saúde da Família - NASF, Centros de Atenção Psicossocial - CAPS, Consultório na rua, Unidades de acolhimento, entre outros), trazendo produções que poderiam integrar a análise.

Com base na característica multiprofissional da RAPS, e a partir da experiência vivenciada neste estudo recomenda-se que em pesquisas futuras também sejam analisados estudos produzidos por outras categorias profissionais, possibilitando a ampliação do olhar e aumento do conhecimento teórico-prático nesse campo.

Por fim, os poucos trabalhos encontrados e o curto período de menos de uma década de funcionamento dessa rede, podem e/ou deveriam ser as formas de estimular os profissionais apresentarem os trabalhos realizados em campo a partir da atual produção. Ainda, partindo do pressuposto que o RAPS é um sistema de garantias de direitos da população tendo acesso a saúde mental articulada a toda rede de atenção, o que garante a integralida-de e universidade do atendimento público, não mais deixando a à saúde mental separada da saúde em geral. Para finalizar as academias também devem ocupar espaços para discussão e produção de novos olhares para este campo de atuação que envolve não apenas a psicologia, mas todas as áreas de saúde.

 

Referências

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Endereço de contato:
Matheus Rodrigues de Oliveira Adriano Schlösser
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E-mail: adriano.psicologia@yahoo.com.br

Recebido: 01/07/2019
Última revisão: 31/01/2020
Aceite final: 27/02/2020

 

 

Matheus Rodrigues de Oliveira: Psicólogo. Universidade do Oeste de Santa Catarina, Videira, SC.
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Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3769-3635
Adriano Schlosser: Professor da Graduação em Psicologia. Doutor em Psicologia (UFSC). Universidade do Oeste de Santa Catarina, Videira, SC.
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Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1728-1414
Jean Paulo da Silva: Professor da Graduação em Psicologia. Doutorando em Psicologia (UFSC). Centro Universitário Leonardo da Vinci, Guaramirim, SC.
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Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5173-1856

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