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Revista Psicologia e Saúde

 ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.12 no.3 Campo Grande jul./set. 2020

https://doi.org/10.20435/pssa.vi.1078 

10.20435/pssa.vi.1078 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Apoio matricial e produção de autonomia no trabalho em saúde

 

Matrix support and the production of autonomy in health work

 

Apoyo matricial y la producción de autonomía en el trabajo de salud

 

 

Daniel Goulart RigottiI; Daniele Pompei SacardoII

ICentro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta)
IIUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp)

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RESUMO

Como diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS), o Apoio Matricial busca ampliar a capacidade analítica dos trabalhadores de saúde e sua corresponsabilização nas ações desenvolvidas nos serviços. Objetivou-se compreender sua influência para a autonomia dos apoiadores no trabalho em saúde, por suas percepções. Analisaram-se narrativas elaboradas a partir de grupos focais e os resultados mostraram o processo de trabalho dos apoiadores matriciais sustentado em três eixos: autonomia, fragmentação do trabalho/cuidado e processos de gestão, associados à proposta do SUS de produzir trabalhadores criativos e capazes de analisar seu contexto. Revelaram-se a ampliação de autonomia para desenvolver o trabalho cotidiano; o reconhecimento da contradição entre a integralidade e a fragmentação do trabalho e do cuidado; e o impacto das formas de gestão na produção desses sujeitos. Finalmente, apontamos para a necessidade de maiores investimentos institucionais no Apoio Matricial como política efetiva de ampliação de compromisso e autonomia dos trabalhadores e de processos de cogestão.

Palavras-chave: apoio matricial, processo de trabalho em saúde, autonomia profissional, integralidade em saúde


ABSTRACT

As a guideline of the Brazilian National Health Service (SUS), the Matrix Support seeks to expand the analytical capacity of health workers and their co-responsibility in the actions developed in the services. The objective was to understand its influence on the autonomy of supporters in health work by their perceptions. We analyzed narratives elaborated from focus groups, and the results showed the work process of the matrix supporters sustained in three axes: autonomy, fragmentation of work/care, and management processes, in association with SUS proposal to produce creative and capable workers to analyze its context. It was revealed the expansion of autonomy to develop daily work, the recognition of the contradiction between the comprehensiveness and fragmentation of work and care, and the impact of management forms on the production of these subjects. Finally, we point to the need for greater institutional investments in Matrix Support as an effective policy of increasing commitment and autonomy of workers and co-management processes.

Keywords: matrix support, health work process, professional autonomy, integrality in health


RESUMEN

Como directriz del Sistema Único de Salud (SUS), el Apoyo Matricial busca ampliar la capacidad analítica de los trabajadores de la salud y su corresponsabilización en las acciones desarrolladas en los servicios. Se objetivó comprender su influencia para autonomía de los apoyadores en el trabajo en la salud, por sus percepciones. Se analizaron narrativas elaboradas a partir de grupos focales, y los resultados mostraron el proceso del trabajo de los apoyadores matriciales sostenido en tres ejes: autonomía, fragmentación del trabajo/cuidado y procesos de gestión, asociados a la propuesta del SUS de producir trabajadores creativos y capaces de analizar su contexto. Se revelaron el aumento de autonomía para desarrollar el trabajo de rutina, el reconocimiento de la contradicción entre la integridad y la fragmentación del trabajo y del cuidado, y el impacto de las formas de gestión en la producción de esos sujetos. En último lugar, indicamos la necesidad de grandes inversiones institucionales en el Apoyo Matricial como política efectiva de aumento de compromiso y autonomía de los trabajadores y de procesos de cogestión.

Palabras clave: apoyo matricial, proceso de trabajo en la salud, autonomía profesional, integralidad en salud


 

 

Introdução

Desde sua implantação em 1989, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem se institucionalizando por meio de diversas práticas, tanto na gestão quanto na assistência à saúde mais diretamente, entre as quais destacamos o Apoio Matricial, objeto deste estudo.

O Apoio Matricial foi implantado inicialmente como uma experimentação em diversas cidades cujos gestores apostaram nessa estratégia para o desenvolvimento da atenção em saúde, tais como Campinas e Paulínia, SP; Betim e Belo Horizonte, MG; Quixadá e Sobral, CE; Recife, PE; Aracaju, SE; e Rio de Janeiro, RJ (Campos, 1999; Castro, Oliveira & Campos, 2016). Posteriormente, foi incorporado como diretriz para a atenção à saúde pelo Ministério da Saúde, como forma de enfrentar o desafio de implantar ações em saúde que promovam cuidado dos sujeitos e coletivos de forma integral, em oposição à fragmentação ainda bastante presente no trabalho em saúde no SUS (Brasil, 2012).

Seguindo a proposta fundamental do Método da Roda, ou Paideia, desenvolvido por Campos (2015), que busca promover o encontro concreto entre diversos trabalhadores de saúde, como uma reunião, o Apoio Matricial constitui-se como uma ferramenta para análise de seu cotidiano de trabalho. Campos (2015) defende que, a partir da análise compartilhada de seu contexto, os trabalhadores de saúde consigam organizar-se para a construção de coletivos mais autônomos que enfrentem o modo dominante de gestão autoritária, produtivista e fragmentadora predominante nos serviços de saúde, produzindo-se, nesse processo, dialeticamente como sujeitos. Na perspectiva desse autor, tais coletivos se organizam como estratégias metodológicas, localizadas num tempo e lugar, para que as equipes interfiram concretamente nos sistemas produtivos, de forma a impor a cogestão dos processos de trabalho, diminuir ou eliminar o autoritarismo da gestão institucionalizada, garantir a participação dos usuários, trabalhadores e gestores envolvidos nos processos de produzir saúde, bem como distribuir igualmente o poder de decisão entre eles (Campos, 2015).

O Apoio Matricial é, portanto, ao mesmo tempo, um arranjo para gestão do trabalho e uma estratégia para compartilhamento de conhecimentos, conforme Campos (1992; 1999) e Campos e Domitti (2007). Consiste essencialmente em criar espaços potentes de diálogo entre distintos profissionais da saúde, os especialistas apoiadores matriciais e os da atenção básica, para, a partir do compartilhamento de um determinado núcleo de conhecimento, construir intervenções que ampliem a comunicação e o campo de atuação de todos os profissionais, intervindo na organização dos serviços e dos processos de trabalho em saúde (Campos & Domitti, 2007; Figueiredo & Onocko Campos, 2009; Gomes, 2006; Castro et al., 2016; Castro & Campos, 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017).

Dessa forma, espera-se que possa auxiliar no reconhecimento das diversas situações que chegam às equipes de saúde como demandas, possibilitando distinguir as que são individuais das coletivas; as que são do cotidiano da vida e que podem ser acolhidas pelas equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e por outros recursos sociais da comunidade daquelas que demandam atuação especializada em saúde. Aproximando-se as equipes de diferentes níveis de atenção, seria produzida uma permeabilidade em seus campos de atuação, favorecendo, assim, a corresponsabilização para novas ofertas de promoção de saúde (Castro & Campos, 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017).

O Apoio Matricial intervém diretamente no processo de trabalho em saúde, definido por Peduzzi e Schraiber (2008) como a prática cotidiana dos trabalhadores de saúde imersos na produção e no consumo de serviços de saúde, bem como a dinâmica que acontece entre o objeto, o instrumento e a atividade dessa prática. Além disso, tal trabalho tem como característica somente existir no momento de sua produção e em função dessa, isto é, nas práticas de cuidado constituídas na relação entre o agente trabalhador/produtor e o agente usuário/consumidor; nas palavras de Merhy (2013), é o "trabalho vivo, em ato", em que a essência do trabalho em saúde é a própria ação. Nesse sentido, o trabalhador de saúde é, ao mesmo tempo, instrumento, recurso e sujeito na ação de trabalhar, pois também insere nesse processo, na medida do possível, seus próprios projetos, pessoais e coletivos, ao que já estava previsto como projeto e finalidade do trabalho em saúde (Peduzzi & Schraiber, 2008).

Podemos compreender, então, que essa atividade implica necessariamente dimensões objetivas e subjetivas para sua realização. Entre as objetivas, temos a própria ação de trabalhar materializada nas diversas formas de cuidado. Já as subjetivas implicam dimensões nem sempre conscientes para os trabalhadores. Para González Rey (2012), a subjetividade é um fenômeno singular e particular de cada sujeito na sua relação com o mundo objetivo e suas próprias percepções desse mundo, que não se separa da realidade objetiva, mas dá sentido a ela, num movimento dialético, e, portanto, contribui para determinar a produção de ações e novas percepções dos sujeitos acerca da sua realidade e de como a vivenciam. Ou seja, é um processo ativo, mais que uma instância ou um lugar mental.

Dessa forma, o trabalho em saúde pode ser compreendido também como um processo que produz, ao mesmo tempo, sujeitos em parte autônomos e em parte alienados. Campos (2015) defende a ideia de que a alienação presente nos processos de trabalho em saúde no SUS está relacionada a formas de gestão tayloristas, influenciadas pelas ideias de F. W Taylor (1990), criador de um método de organização do trabalho designado por ele como científico, que transferia dos trabalhadores para os gerentes da empresa o conhecimento de todas as etapas da produção, fragmentando o trabalho em nome de maior produtividade. No caso da saúde, a gestão dos serviços de saúde caracteriza-se por uma racionalidade gerencial hegemônica, fundamentada no taylorismo, portanto com uma verticalização do poder dos gestores (Campos, 2015; Vargas & Macerata, 2018). Isso impediria aos trabalhadores o exercício da cogestão e a apropriação de seu trabalho e, consequentemente, de dar algum sentido a esse como sendo de sua própria produção. Essa atribuição de sentido se daria pelo reconhecimento de si mesmo naquilo que produziu e a satisfação decorrente do próprio ato de produzir, o que poderia ser tanto em nível individual quanto coletivo, produzindo nesse processo maior autonomia, por se perceber ativo e criativo em sua produção. Essa ideia aproxima-se de Dejours (1992), quando este define que o não reconhecimento de seu trabalho como uma obra gera sofrimento nos trabalhadores. Sousa e Batista dos Santos (2017), ao estudarem esse tema em Dejours, também apontam para a impossibilidade de se encontrar sentido no trabalho pela organização desse na realidade atual, fazendo com que os trabalhadores não se reconheçam na direção de seu próprio trabalho, atendendo somente às demandas.

Reafirma-se, então, que, como qualquer outro, o trabalho em saúde é fundamental para a construção de identidades e subjetividades dos trabalhadores, na medida em que, conforme Navarro e Padilha (2007), constitui-se como "fonte de identificação e de autoestima, de desenvolvimento das potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade" (p. 14).

Nesse sentido, o modo de produção e a organização do trabalho também interferem e são determinantes no processo de subjetivação dos trabalhadores, na medida em que, para sobreviver psiquicamente e como sujeito, esses têm de se adaptar às imposições típicas do modo de produção capitalista e da organização taylorista do trabalho impregnados nos processos de trabalho em saúde e evidenciados pela ênfase na produtividade, pela fragmentação, pela gestão autoritária e pela dissociação entre o fazer e o sentido desse fazer (Campos, 2015; Dejours, 1992; Sousa & Batista dos Santos, 2017). Assumindo-se que esses elementos (modos de produção, organizações do trabalho, sujeitos e subjetividades) são produzidos histórica e ideologicamente, da mesma forma o são as necessidades em saúde que devem ser atendidas pelo trabalho em saúde, as quais, em nossa sociedade capitalista, são transformadas em mercadorias, e o valor de uso do trabalho em saúde é convertido em valor de troca, perdendo-se a relação de sentido entre o trabalho e sua utilidade, que passa a ter seu valor definido a partir da lógica de mercado, fragmentando o processo de cuidar em saúde e aprofundando a alienação no modelo privatista de saúde (Campos, 2015; Peduzzi & Schraiber, 2008).

Dessa forma, defende-se aqui que é preciso opor-se a essa situação, considerando que devem ser constituídos processos de trabalho que ampliem a autonomia dos sujeitos envolvidos na produção de bens e serviços de saúde, trabalhadores, gestores e usuários, como um dos objetivos centrais do sistema de saúde (Onocko Campos & Campos, 2012). Para Campos (2015), uma forma seria a valorização e o fortalecimento de processos que produzam participação e corresponsabilização, em cogestão.

Portanto, o objetivo do presente artigo é compreender se a realização do Apoio Matricial tem produzido maior autonomia nos apoiadores matriciais em Campinas, SP, cenário da pesquisa realizada, e se contribui para ampliar a cogestão do processo de trabalho e, consequentemente, maior corresponsabilização pelo cuidado em saúde.

 

Método

Este estudo é decorrente de uma pesquisa de mestrado profissional, desenvolvida no Departamento de Saúde Coletiva/FCM/Unicamp, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, pelo parecer n. 1.016.685.

Foram participantes deste estudo 53 trabalhadores da rede pública de saúde de Campinas, SP, matriculados no Curso de Especialização em Apoio Matricial do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, entre maio de 2014 e outubro de 2015. A maior parte desses traba-lhadores-alunos já atuava como apoiadores matriciais na época da realização da pesquisa e foram convidados no início do referido curso de especialização a participarem de um grupo focal cujo objetivo era conhecer as percepções dos alunos acerca de temas previamente delineados num roteiro, incluindo questões sobre o Apoio Matricial. Tal escolha do momento foi intencional para evitar possíveis interferências pela apresentação dos conteúdos e conceitos ao longo do curso. A técnica dos grupos focais, conforme Minayo (2014), busca o entendimento de diferentes percepções e atitudes que se revelem durante a discussão do grupo sobre o tema em questão.

Ressalta-se que este estudo era parte de uma pesquisa mais ampla, "Avaliação do Método de Apoio Paideia como Estratégia de Educação Permanente para Profissionais do SUS", sob responsabilidade do Coletivo de Estudos e Apoio Paideia (Departamento de Saúde Coletiva/FCM/Unicamp), e os grupos focais discutiram o tema Apoio Matricial a partir de um roteiro que buscava atender a mais pesquisas em andamento, além da que originou este artigo. Devido à quantidade de participantes, foram organizados três grupos focais, com cerca de 17 pessoas por grupo, e as sessões foram gravadas e transcritas na íntegra. De todo o material obtido pelos grupos focais nas transcrições, foram selecionados para análise apenas os trechos que respondiam aos objetivos do presente estudo.

Para a análise dos dados, foram seguidas rigorosamente quatro etapas, nesta sequência: 1) leitura das transcrições, em que se fez uma primeira separação de trechos dos discursos individuais nos grupos focais e sua organização por núcleos argumentativos; 2) a partir destes, identificaram-se ideias-chave, separando-as e as reagrupando por eixos temáticos que se desvelaram nesse processo, sendo selecionados três para este artigo: Autonomia, Fragmentação do Trabalho e do Cuidado e a Relação com Processos de Gestão; 3) construíram-se então narrativas distintas para cada eixo temático, na terceira pessoa do plural, de acordo com Onocko Campos e Furtado (2008), procurando contemplar ao máximo a variedade e complexidade de opiniões e compreensões que surgiram nos grupos focais, mesmo quando eram contraditórias; e 4) interpretação dos resultados à luz do referencial teórico e do cotejamento com a revisão bibliográfica realizada, em que as narrativas e as discussões conseguintes procuraram dialogar com as histórias vividas no cotidiano pelos participantes.

Foram observados todos os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos, conforme o proposto pela Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

 

Resultados e Discussão

Os resultados apresentados aqui mostraram que a produção do processo de trabalho dos apoiadores matriciais em Campinas sustenta-se em três importantes dimensões constituintes do fazer, tomadas aqui como categorias de análise: a autonomia; a fragmentação do trabalho e do cuidado; e a relação com processos de gestão. Tais dimensões ou categorias associam-se e fundamentam a proposta de construção de processos de trabalho do SUS que façam emergir os sujeitos trabalhadores em sua potência criativa e com capacidade de análise de sua realidade de trabalho, em que pesem a ampliação de sua autonomia para o desenvolvimento do seu trabalho cotidiano; o reconhecimento da contradição entre a integralidade e a fragmentação do trabalho e do cuidado; e o impacto percebido das diversas formas de gestão sobre a emergência desse sujeito trabalhador.

Autonomia

Em relação à produção de autonomia, observamos o que Onocko Campos e Campos (2012) afirmam como coprodução e ampliação da autonomia pelas relações entre os sujeitos, na medida em que, nas narrativas, suas características pessoais, somadas a fatores externos de sua realidade, deixam marcas no Apoio Matricial desenvolvido, sendo possível reconhecê-los no trabalho realizado.

Visto que a constituição do sujeito e do mundo sempre dependerá da relação dialética entre o sujeito e as condições objetivas, sociais e históricas, as ações do matriciamento foram identificadas com a apreensão e transformação da realidade, tal como descrito por Campos (2000) e Onocko Campos e Campos (2012).

Na narrativa a seguir, percebe-se a liberdade para experimentar formas de realizar o Apoio Matricial, construindo-o de acordo com as realidades e necessidades encontradas nos territórios das unidades:

O jeito como começamos a fazer o Apoio Matricial em Campinas não tinha um método a priori, e aprendemos fazendo, de acordo com o entendimento de cada um, e reconhecendo que cada território tinha características distintas e demandas específicas.

Dessa forma, os apoiadores matriciais perceberam a possibilidade para criar seu trabalho ao mesmo tempo em que se o fazia, construindo e se apropriando de uma metodologia que não estava colocada, inicialmente, num processo dialético, em que as possibilidades são produzidas a partir da ação, cujos sentidos são atribuídos a cada momento, como resultado da ação e da percepção de cada trabalhador.

Não há definição de formas preestabelecidas de se realizar o Apoio Matricial, mas encontra-se nos próprios guias institucionais a constituição de um espaço dialógico entre equipes e profissionais, como uma "proposta de intervenção pedagógico-terapêutica" (Chiaverini et al., 2011, p. 13), numa expectativa de o Apoio Matricial se compor por ações criativas e transversais, decisões compartilhadas, e com potencial de provocar mudanças nos envolvidos (Brasil, 2007; Brasil, 2004; Chiaverini et al., 2011). Nesse sentido, para Bispo Júnior e Moreira (2017), o Apoio Matricial atuaria também na lógica da educação permanente em saúde, como estratégia para suprir a precariedade da formação acadêmica dos profissionais em saúde no Brasil para, entre outros temas, a corresponsabilização e o trabalho em equipe.

Ao propor o Apoio Matricial, Campos (1999) esperava que este pudesse ser utilizado pelos trabalhadores da forma o mais livre possível, e que se buscasse reunir nas ações desenvolvidas tanto o que fosse necessário ser feito quanto os elementos de interesse pessoal dos trabalhadores, como forma de ampliação da autonomia dos profissionais, promovendo e produzindo sujeitos livres e responsáveis, corresponsáveis pela assistência e pela gestão e organização do trabalho. Entretanto, naquele momento, ele sugeriu algumas ações para a produção do cuidado, tais como atividades grupais, atividades físicas, até mesmo artísticas, não em caráter de definição de um modo de fazer, mas sim como possibilidades para os profissionais (Campos, 1999). A isso, Cunha e Campos (2011) chamaram de "cardápio de atividades" (p. 964), sugerindo a ideia de se poder escolher, entre as várias opções, a que mais convier no momento.

Assim, permitir-se vivenciar o não saber e as incertezas do como fazer o Apoio Matricial parece ter produzido nos apoiadores transformações subjetivas, como o saber produzido pela experiência transformadora de que nos fala Bondía (2002), na qual os acontecimentos afetam os sujeitos, transformam-se neles de forma singular e particular e os transformam em novos sujeitos. A partir da expressão "aprendemos fazendo", relatada pelos apoiadores, relacionamos essa experiência com o que Campos, Cunha e Figueiredo (2013) definem como o objetivo da função apoio, ou seja, a produção de sujeitos livres, e com o processo de subjetivação de acordo com González Rey (2012), em que o sentido da realidade se produz pela relação com ela.

Outro trecho das narrativas também esclarece esse modo de se produzir criativamente e coletivamente o trabalho em saúde pelo Apoio Matricial e como tal ação é percebida como transformadora do olhar e da potência dos trabalhadores para maiores graus de autonomia, como preconizado por Campos (2015):

Quando nos encontramos com as equipes para o matriciamento, nossas percepções sobre os problemas também são afetadas no contato com as outras formas de ver e compreender os mesmos problemas ou situações dos outros profissionais. Assim, temos percebido que é possível ampliar as possibilidades para o enfrentamento desses problemas, no cotidiano. Para nós, o matriciamento é construir junto conhecimento e soluções para os problemas, é ensinar e aprender. Diferente das capacitações relativas a temas específicos, o apoio matricial é percebido por nós como mais interessante porque nos permite maior liberdade para compor o trabalho.

Essa seria uma premissa do próprio trabalho em saúde, que deveria sempre constituirse como um processo que permita a novidade, a criação, "encaminhando o trabalho para a produção de vida, de cuidados e cidadania, pois é no dia a dia que os trabalhadores e suas práticas são vivenciadas e reproduzidas" (Camuri & Dimenstein, 2010, p. 811).

Em consonância com essa liberdade para criar, percebida mais individualmente, os encontros dos matriciadores com as equipes, seja nas reuniões instituídas ou não, aparecem nas narrativas como espaços potentes para a transformação da relação dos trabalhadores com suas práticas, como observa-se nos trechos a seguir:

As reuniões das equipes são percebidas por nós como o momento por excelência do matriciamento, como encontro entre nós e os profissionais matriciados, e vemos que é uma característica do modo de fazer matriciamento em Campinas.

(...) e reconhecendo que cada território tinha características distintas e demandas específicas. O que fizemos, então, foi discutir os casos com as equipes de cada local para pensar quais ações eram mais adequadas para cada território e para os seus usuários. Além disso, entendíamos que precisávamos fazer uma ponte entre as equipes e as especialidades.

Alguns de nós percebemos que é mais fácil construir ações quando compartilhamos os problemas e pensamos juntos as saídas com a equipe. Isso é possível quando participamos frequentemente do cotidiano dessa equipe.

As reuniões foram percebidas como espaços de compreensão ampliada dos casos discutidos e construção coletiva de soluções para esses problemas, permitindo a todos a apropriação do fazer o cuidado em saúde, valorizando e integrando os diversos núcleos de saber. Tornaram-se os espaços coletivos estratégicos para a cogestão, com tempo e lugar definidos, dos quais Campos (2015) nos fala.

Para os apoiadores matriciais, tanto a sua compreensão dos significados do Apoio Matricial quanto a forma como o executam são pautadas pelo princípio do fazer coletivo, em relações nas quais todos os sujeitos envolvidos se permitem afetar uns pelos outros, reconhecendo em si e no outro seus conhecimentos e suas práticas com limites e potências singulares, reconfigurando-se para ambos as visões sobre os problemas e ampliando os olhares sobre as soluções possíveis. Produzem-se então, nesse encontro, subjetividades, pois, segundo González Rey (2012) e Campos (2015), a constituição do sujeito se dá na relação permanente entre dois planos, o interno e o externo ao indivíduo, que se interferem e se recriam continuamente.

Dessa forma, nos resultados que obtivemos, o matriciamento parece alcançar o objetivo esperado por Campos (1999; 2015) de ser uma ferramenta potente para ampliar a autonomia dos profissionais como sujeitos livres e responsáveis, na medida em que puderam assumir corresponsabilidade pela assistência prestada e pela gestão e organização do trabalho.

As narrativas evidenciam a essência do matriciamento como a criação desses espaços de diálogo entre distintos profissionais, a partir do compartilhamento de um determinado núcleo de conhecimento, para construir intervenções que ampliem a comunicação e o campo de atuação de todos os profissionais (Campos & Domitti, 2007; Figueiredo & Onocko Campos, 2009, Castro & Campos, 2016).

Nesse sentido, o matriciamento preconiza a promoção da interlocução entre os profissionais para atender a dois objetivos: a) organizar os serviços e processos de trabalho, como uma estratégia para possibilitar que as diversas situações que chegam às equipes sejam percebidas em suas diferenças e nas diferentes necessidades que demandam; e b) tornar as especialidades mais próximas das equipes da atenção básica, permeando seu campo de atuação e favorecendo a corresponsabilização por essas demandas (Gomes, 2006).

Os encontros referidos pelos apoiadores matriciais possibilitam a descoberta de potenciais da própria equipe da atenção básica para resolver problemas, como vemos no seguinte trecho:

Temos visto que as discussões de caso no matriciamento geralmente produzem soluções a partir das condições da própria equipe matriciada, nem sempre envolvendo uma ação direta nossa, e reconhecemos a potência do PSF [Programa de Saúde da Família] para lidar com os problemas.

Evidencia-se aqui a função de compartilhamento de saber do Apoio Matricial, para que outros profissionais das equipes possam incorporar em suas ações de campo esses saberes, produzindo intervenções (Campos, 2000; Campos & Domitti, 2007). Quando os sujeitos estão implicados com o processo de cogestão, da sua interação surgirão propostas de ações para resolver os problemas, ofertadas tanto pelos apoiadores quanto pelos outros trabalhadores, que não devem perder seu caráter reflexivo, isto é, de voltar seu pensamento também para esse processo de cogestão, analisando sistematicamente sua sustentabilidade e os resultados (Campos et al., 2013).

Para que se efetive a possibilidade de cogestão, é preciso que se constitua uma grupalida-de nos coletivos, como intenção do apoiador matricial, promovendo a criação de possibilidades para que os membros do grupo se identifiquem entre si e com o próprio grupo, tendo como eixo um objetivo ou projeto em comum. Ou seja, esses espaços coletivos produzidos pelos encontros no Apoio Matricial revelam sua característica de transicionalidade, operando como intermediários, mediadores entre o mundo interno daqueles coletivos (reuniões) e o mundo externo (problemas de saúde), tornando possível a experimentação de outras formas de fazer e onde se analisa o resultado para obter mais aprendizado (Campos et al., 2013).

Fragmentação do Trabalho e do Cuidado

A fragmentação do trabalho se revelou nas dificuldades existentes para o cuidado compartilhado e para o diálogo nas equipes matriciadas ou dentro das próprias equipes, apontadas nas narrativas, que vêm ao encontro do que é observado em diversos estudos (Campos, 1999; Gomes, 2006; Cunha & Campos, 2011; Campos et al., 2013; Castro e Campos, 2016; Castro et al., 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017; Vargas & Macerata, 2018). Esses afirmam que, atualmente, uma das características marcantes do trabalho em saúde é sua fragmentação, evidenciada por processos de trabalho reducionistas e restritivos, calcados no modelo biomédico e sustentados pela concepção de processo saúde-doença que nega sua produção histórica e social.

Tal concepção a-histórica embasa a formação profissional, percebida como dicotomizante e como produtora e reprodutora de cuidado fragmentado (Bispo Júnior & Moreira, 2017). Encontramos ressonância dessa percepção na afirmação de Cunha e Campos (2011) de que a própria formação dos profissionais de saúde incentiva a disputa entre as profissões, negando sua complementaridade, e investe para que cada núcleo de saber seja considerado "senão suficiente na intervenção terapêutica, pelo menos protagonista" (p. 967).

Há, porém, nas narrativas, uma aposta de que o matriciamento possa desvelar essa contradição e auxiliar a superá-la, na percepção de que as reuniões e os encontros de matriciamento têm sido fundamentais para a ampliação do olhar clínico, resultando em diminuição da fragmentação do cuidado. Essa expectativa está em acordo com a proposta da política, pois, em relação à assistência, o Apoio Matricial pretende enfrentar o desafio de implantar ações em saúde que promovam cuidado dos sujeitos e coletivos de forma integral, em oposição à fragmentação (Brasil, 2012).

Nota-se uma grande fragilidade para a sustentação dos princípios inovadores para o cuidado propostos pela prática do matriciamento, e mesmo os defendidos pelo próprio SUS. Ao se depararem com as diferenças de concepção acerca do cuidado, os apoiadores matriciais retornavam aos seus núcleos de saber como um movimento defensivo e que lhes garantia maior segurança quanto ao que fazer. As narrativas a seguir ilustram esse movimento:

Vemos que ainda há encaminhamentos externos que são diflceis de serem tratados em rede, de forma integrada, quando envolvem outras políticas, mas o que é do nosso núcleo é mais fácil de resolver. No nosso cotidiano, vemos que ainda está presente a concepção de saúde-doença como elementos separados.

Há entre nós uma percepção de que o olhar da maioria dos profissionais, inclusive o nosso, para as pessoas, é segmentado, e não conseguimos enxergar o sujeito em sua integralidade. Acreditamos que isso justificaria a dificuldade no compartilhamento do cuidado. Sabemos que a compreensão de saúde-doença considerando a integralidade e a subjetividade ainda é um desafio e que pode ter relação com a formação dos profissionais de saúde, que é insuficiente para resolver os problemas.

Podemos notar aqui algumas contradições, como um retorno à prática fragmentada de produzir o cuidado, indo no sentido oposto à diretriz da integralidade, e a forte influência do modelo biomédico presente nas práticas e nos saberes dos profissionais. É contraditório na medida em que os movimentos se direcionam para o rompimento dos modelos fragmentadores, mas essencialmente esses ainda formam a base de sustentação das práticas de cuidado, desconsiderando o processo de coprodução.

É evidente que estamos falando aqui de um campo de disputa entre modelos de atenção, mas que carregam em si elementos ideológicos, sendo, em última análise, uma disputa por poder, no sentido de domínio do saber sobre a compreensão do processo saúde-doença. Campos (2015) nos alerta para o fato de que os modelos teóricos ganham certa autonomia em relação aos grupos, que passam a aderir a eles sem o devido distanciamento crítico, tomando-os como verdades fundamentais. Entretanto, neste caso, observamos que falar sobre isso já é um movimento para o restabelecimento da crítica por parte dos profissionais sobre seu próprio trabalho e para o reconhecimento de que a adesão ao modelo biomédico também é problematizada por vários trabalhadores no seu cotidiano.

Relação com Processos de Gestão

Campos (2015) afirma que a falta de interesse em participar dos processos de gestão de seu trabalho revela o êxito da função alienante da gestão sustentada em moldes tayloristas. De acordo com Matos (1994), a fragmentação do sujeito e do cuidado pode ser percebida como um dos elementos do trabalho em saúde que contribuem para processos de alienação dos trabalhadores, visto que seu fazer cotidiano, seu ofício e seu investimento profissional passam a ser realizados de modo técnico e frequentemente desprovido de significado social.

Para Onocko Campos (2007), essas posturas individuais são resultado da internalização e reprodução de processos alienantes diante do novo, e seria uma função de gestão, aqui referida como a gerência dos serviços de saúde, direcionar a organização do trabalho para a produção de maior autonomia e criatividade, diminuindo a alienação.

Outro aspecto importante das formas de gestão para o Apoio Matricial é como este é reconhecido como ação de saúde nos serviços de saúde, como nas narrativas a seguir:

Por isso, achamos que é preciso que o coordenador compreenda que o Apoio Matricial também é trabalho. Isso dá um incentivo.

Parece que muitos deles só veem como trabalho os atendimentos e, se você não está atendendo porque foi matriciar, parece que não está trabalhando.

De acordo com Campos (1999) e Campos et al. (2013), a forma de organização dos serviços de saúde em que o trabalho multiprofissional e a construção de relações transdisciplinares são dificultados e quase impedidos de acontecer também produz a fragmentação. Isto é, além de uma dimensão de assistência, há uma dimensão da gestão influenciando no Apoio Matricial, no sentido de um processo subjetivo e dinâmico que possa produzir condições para acontecimentos e/ou ações (Onocko Campos & Campos, 2012).

Some-se a isso o fato de que, no município de Campinas, o Apoio Matricial não é diretriz municipal desde 2005, não havendo mais investimentos reais para que tal ação se realizasse (Castro & Campos, 2016). A despeito disso, de acordo com esses autores e com os resultados obtidos pela pesquisa que originou este artigo, o Apoio Matricial vem acontecendo por iniciativa dos próprios trabalhadores e de parte dos gestores, visto sua penetração no processo de trabalho desde sua implantação no município. Nas palavras de Castro & Campos (2016, p. 1626), "percebe-se que o Apoio Matricial manteve-se incorporado ao discurso e às práticas de diversos profissionais da atenção básica e especializada".

Nas narrativas, a agenda aparece como um instrumento de gestão utilizado ora para facilitar o acontecimento do Apoio Matricial, ora como um impeditivo, a depender do olhar do gestor local para essa ação no cotidiano do serviço de saúde. Entretanto, os participantes deste estudo afirmaram que assumem, na maior parte das vezes, a gestão de sua própria agenda, como ilustrado por este trecho de uma narrativa:

Percebemos o Apoio Matricial, hoje em dia, como dependente de nossas disponibilidades individuais para acontecer, principalmente no que diz respeito a reservar horários em nossas agendas para realizar o apoio junto às equipes que matriciamos. Se nós não insistirmos e não administrarmos nós mesmos nossas agendas, elas serão tomadas pelos atendimentos em nossas especialidades.

Essa autonomia, destacada também em outros estudos (Castro & Campos, 2016; Castro et al., 2016), contudo, tem um limite, e, na medida em que o Apoio Matricial pode ser contemplado nas agendas dos profissionais, podemos reconhecer nas narrativas a função necessária de suporte da ação de gestão para a constituição de relações intersubjetivas que permitam experimentar as diferenças de forma construtiva (Onocko Campos, 2007).

 

Considerações Finais

Neste artigo, buscou-se responder se o Apoio Matricial influencia na produção de maior grau de autonomia dos trabalhadores apoiadores matriciais e se amplia a cogestão dos processos de trabalho, gerando maior corresponsabilização pelo cuidado em saúde.

Os resultados obtidos apontaram para o que vem se consolidando na literatura científica sobre o tema, de forma a corroborar achados de outros estudos, e reafirmam o Apoio Matricial como produtor de novos trabalhadores-sujeitos e novas realidades para o processo de trabalho em saúde, afastando-se do modelo taylorista, fragmentador do trabalho e de seu produto, o cuidado em saúde.

Observamos que os resultados indicaram o Apoio Matricial como importante ferramenta para a produção de maiores graus de autonomia nos processos de trabalho em saúde, descritos como a liberdade para criar o modo de fazer o próprio trabalho, incorporação do sentido de seu trabalho e de seus resultados e maior implicação com as diretrizes que norteiam o SUS, bem como com a produção de saúde.

A autonomia dos trabalhadores também se evidenciou em processos de cogestão no cotidiano do trabalho entre apoiadores matriciais e profissionais das UBS, concretizados nos encontros organizados entre os profissionais, percebidos como bastante potentes para construir novas possibilidades de ações de saúde e de afirmação do protagonismo dos trabalhadores na organização do próprio trabalho, com ampliação de corresponsabilidade.

Entretanto, mesmo que as narrativas tenham revelado a potência do Apoio Matricial para a desconstrução do trabalho fragmentado, a fragmentação do trabalho em saúde ainda predomina nas práticas dos profissionais, fundamentadas pelo modelo biomédico e por processos de gestão produtivistas e autoritários, que tendem a impedir a autonomia e criatividade dos trabalhadores, bem como sua constituição como sujeitos. A disputa por modos de gestão democráticos tem sido o cotidiano dos apoiadores matriciais em Campinas, conforme os resultados deste estudo, contrapondo-se à forma como a municipalidade tem conduzido a gestão do Apoio Matricial, não mais reconhecido como diretriz institucional. Esse campo de disputa demonstra a expectativa dos apoiadores matriciais por uma melhor articulação entre si e os serviços, constituindo uma rede de verdade, e evidencia o campo dinâmico de forças que se constitui como o terreno por excelência do fazer o Apoio Matricial.

Como limites deste estudo, trata-se de um estudo qualitativo de uma realidade específica, o município de Campinas, em um determinado momento histórico, não sendo possível realizar generalizações, mas sim compreendê-lo no contexto delimitado desta pesquisa. Entretanto, espera-se que esses resultados possam contribuir para o fortalecimento das políticas orientadas para a construção de práticas em saúde no SUS que sejam democráticas e geradoras de sujeitos com maior autonomia, apontando para a necessidade de maiores investimentos institucionais no Apoio Matricial como política efetiva de ampliação de compromisso, autonomia dos trabalhadores e de processos de cogestão.

 

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Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 20/02/2020
Aceite final: 08/05/2020

 

 

Daniel Goulart Rigotti: Mestre em Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde. Professor da Graduação em Psicologia do Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta).
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10.20435/pssa.vi.1045 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Comunicação de notícias difíceis: revisão integrativa sobre estratégias de ensino na formação médica

 

Communication of difficult news: integrative review on teaching strategies in medical education

 

Comunicación de noticias difíciles: revisión integradora sobre estrategias de enseñanza en educación médica

 

 

Esther Almeida da Silva-Xavier; Larissa Polejack; Eliane Maria Fleury Seidl

Universidade de Brasília (UnB)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Notícias difíceis são informações que afetam seriamente a visão do indivíduo sobre o seu futuro. Na saúde, são atribuições médicas em situações de comunicação diagnóstica de condições clínicas graves, no prognóstico e/ou terapêutica desfavorável de quadros irreversíveis ou sem tratamento modificador (falecimentos, sequelas, assistência paliativa). Este estudo realizou revisão integrativa das estratégias de ensino desse tipo de comunicação na formação médica. Foram acessadas a PsycINFO, a Biblioteca Virtual em Saúde e a PubMed, de 2014 até maio de 2019. Foram encontrados 59 resumos e, após aplicação dos critérios de exclusão, 13 artigos empíricos foram analisados. Identificou-se diversidade no uso de estratégias de ensino, sendo a simulação (com atores ou pessoas treinadas) a mais descrita. Outras estratégias (discussão entre pares, escrita reflexiva, reunião compartilhada com pacientes, vídeos de casos e emprego de tecnologias digitais) também foram identificadas. O uso combinado dessas estratégias tem importância primordial no treinamento profissional contemporâneo.

Palavras-chave: educação médica, notícias difíceis, ensino-aprendizagem


ABSTRACT

Difficult news are informations that seriously affect an individual's view of their future. In health, they are medical assignments in situations of diagnostic communication of serious clinical conditions, in the prognosis and/or unfavorable treatment of irreversible conditions or without modifying treatment (deaths, sequelae, palliative care). This study carried out an integrative review of teaching strategies for this type of communication in medical education. PsycINFO, the Virtual Health Library, and PubMed were accessed from 2014 to May 2019. We found fifty-nine abstracts, and after applying the exclusion criteria, we analyzed 13 empirical articles. Diversity in the use of teaching strategies was identified, with simulation (with actors or trained people) being the most described. Other strategies (peer discussion, reflective writing, shared meeting with patients, case videos, and use of digital technologies) were also reported. The combined use of these teaching-learning strategies is of paramount importance in contemporary professional training.

Keywords: medical education, difficult news, teaching-learning


RESUMEN

Las noticias difíciles son informaciones que afectan seriamente la visión de un individuo sobre su futuro. En salud, son asignaciones médicas en situaciones de comunicación diagnóstica de afecciones clínicas graves, en el pronóstico y/o tratamiento desfavorable de afecciones irreversibles o sin modificar el tratamiento (muertes, secuelas, cuidados paliativos). Este estudio llevó a cabo una revisión integradora sobre estrategias de enseñanza para ese tipo de comunicación en educación médica. Se accedió el PsycINFO, la Biblioteca Virtual de Salud y el PubMed, de 2014 a mayo de 2019. Se encontraron 59 resúmenes y, después de aplicar los criterios de exclusión, se analizaron 13 artículos empíricos. Se identificó la diversidad en el uso de estrategias de enseñanza, siendo la simulación (con actores o personas capacitadas) la más descrita. También se informaron otras estrategias (discusión entre pares, escritura reflexiva, reunión compartida con pacientes, videos de casos y uso de tecnologías digitales). El uso combinado de estas estrategias de enseñanza-aprendizaje es de suma importancia en la formación profesional contemporánea.

Palabras clave: educación médica, noticias difíciles, enseñanza-aprendizaje


 

 

Introdução

A comunicação é uma atividade básica da experiência humana e uma importante ferramenta relacionai em nossas vidas. Sua origem etimológica é latina (communicatio), sendo traduzida literalmente como "tornar comum" e sendo-lhe atribuído o significado do ato de repartir, dividir, distribuir (Cunha, 2010). Nenhum grupo social existe sem ela, de modo que cabe à comunicação tanto a troca quanto o compartilhamento de ideias e informações entre seus membros. Quando inadequada, torna-se fonte de conflitos interpessoais. Para que se torne eficiente, é importante que contemple aspectos motivacionais e proporcione expressão emocional e afetiva, gerando informação para a tomada de decisão que auxiliará na regulação do comportamento do grupo (Robbins, 2004).

Como a saúde e a doença são experiências íntimas em nossa vivência humana, ambas demandam uma contextualização sociocultural por meio da comunicação. Nas trocas comunicativas, a saúde e o adoecimento dos sujeitos interatuam de modo particular, estabelecendo uma relação clínica. Esta, quando estabelecida a partir de uma comunicação adequada, torna-se fundamental para o compartilhamento de informações diagnósticas, terapêuticas e bioéticas, fortalecendo também os laços de empatia e de confiança dos envolvidos nessa relação (Ruiz, 2003). No atual cenário da medicina, a comunicação é um aspecto essencial do relacionamento clínico, isto porque ela possibilita a construção intersubjetiva inerente à atuação médica e à relação com o paciente (Stellyes, 2017). Assim, nessa área, a comunicação se torna eixo condutor, tanto para as notícias boas quanto para as indesejadas.

A comunicação de más notícias é uma tarefa importante na rotina dos profissionais de saúde, apesar de não ser a preferida pela maioria. Essa modalidade de comunicação versa sobre conteúdos e/ou temas que constituem situações de ameaça à vida, ao bem-estar pessoal, familiar e social, devido a repercussões físicas, sociais e emocionais que causam ao paciente e à família. Uma má notícia pode ser definida como qualquer informação que afete seriamente e de forma adversa a visão de um indivíduo sobre o seu futuro. Na saúde, ela relaciona-se a condições clínicas graves, crônicas, irreversíveis ou sem possibilidade de terapia curativa ou tratamento modificador (Araújo & Leitão, 2012; Baile et al., 2000; Chehuen Neto et al., 2013).

A comunicação de más notícias deve sempre ser contextualizada na perspectiva de quem a experiencia, de modo que não há como calcular de antemão seu dano até que se tenha determinado as expectativas e a compreensão de quem a recebe (Baile et al., 2000). Desse modo, este trabalho optou por adotar o termo notícia difícil, em vez de má notícia, já que este último pode exacerbar um juízo de valor prévio, adicionando um cunho pejorativo à informação compartilhada.

Comunicar notícias difíceis é tarefa árdua, podendo desencadear conflitos morais e questionamentos éticos relacionados à autonomia e ao livre-arbítrio na relação estabelecida entre o profissional, a família e o paciente (Geovanini & Braz, 2013). Como esse tipo de comunicação pode acontecer em cenários complexos permeados por insegurança, medo e desconhecimento, o adequado manejo do assunto pelos profissionais envolvidos torna-se uma necessidade. Após recebimento de uma notícia difícil, a maior parte das pessoas pode expressar sentimentos negativos, o que pode ser agravado quando a comunicação é feita de maneira inapropriada. Para se evitar isso, a capacitação profissional médica é fundamental. Ademais, esse preparo é necessário, pois a comunicação diagnóstica é uma das atribuições descritas no Código de Ética Médica, capítulo V, artigo 34, que veda ao profissional "deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal" (Brasil, 2009, p. 38).

A comunicação terapêutica em saúde nem sempre é trabalhada na graduação e na pós-graduação médica, sendo aprendida na prática e, muitas vezes, sem reflexões sistemáticas e regulares. Nesse caso, não é incomum que as habilidades de comunicação sejam ensinadas por meio da abordagem "veja um, faça um, ensine um" - "see one, do one, teach one" approach (Lamba, Tyrie, Bryczkowski, & Nagurka, 2016, p. 105). Essa abordagem não costuma priorizar as implicações emocionais do processo, pautando-se na execução operacional dos procedimentos e condutas. Para tanto, é necessário trabalhar também as emoções e os sentimentos envolvidos no processo de comunicação de notícias difíceis; pois, quando o profissional identifica a emoção experienciada, ele consegue adequar sua atuação e melhorar seu desempenho junto a pacientes e familiares, promovendo, assim, uma permanência saudável em sua área de atuação (Afonso & Minayo, 2017).

Um estudo qualitativo finlandês identificou que a comunicação de notícias difíceis é um evento estressante, não só para os médicos em exercício com longa experiência, mas também para os estudantes. Os resultados sinalizaram uma clara tensão entre sentir empatia e ter distância profissional. O distanciamento emocional foi descrito como contraditório aos pensamentos empáticos dos estudantes. Devido a isso, a supressão emocional e a redução propositiva da empatia foram empregadas como mecanismos de enfrentamento, sendo o distanciamento também usado como uma estratégia para gerenciar o estresse da comunicação de notícias difíceis. Esses achados sugerem falta de estratégias de enfrentamento adequadas para manejo de encontros desafiadores, e o estudo discute que sentimentos desconcertantes devem ser abordados e os alunos devem receber apoio com relação a esses desafios. Assim, faz-se necessário o emprego de meios educacionais para desenvolver a empatia e o enfrentamento por meio de aprendizagem experiencial, humanidades médicas, além de intervenções baseadas em escrita reflexiva e em grupo (Toivonena, Lindblom-Ylãnneb, Louhialaa, & Pyórálãc, 2017).

Segundo um estudo brasileiro sobre a percepção médica quanto à comunicação de notícias difíceis em Oncologia, não há uma capacitação apta a dirimir por completo os sentimentos negativos envolvidos nesse processo. Isto porque é evidente a existência de algum grau de sofrimento no paciente que recebe uma notícia difícil, assim como no profissional que a comunica, especialmente em situações de finitude de vida ou de cessão terapêutica curativa. Todavia, a abordagem desse tema e o reconhecimento de sua complexidade são oportunidades para aprender a lidar com os sofrimentos inerentes à morte e ao morrer. Para tanto, ressalta-se a necessidade de se implantarem estratégias educacionais que vão ao encontro de uma formação médica sincronizada com o processo de humanização assistencial em saúde (Silva, Sousa, & Ribeiro, 2018).

Conforme os pontos elencados no presente artigo, depreende-se que, se a comunicação terapêutica padece de preparo, tanto na graduação quanto nas residências médicas, não é de se estranhar que isso também ocorra no cenário de comunicação de notícias difíceis. Essa situação não é circunscrita apenas à realidade brasileira, pois um estudo norte-americano de revisão integrativa identificou lacunas na literatura quanto ao ensino e ao preparo dos residentes cirúrgicos para esse tipo de comunicação em ambiente de trauma e de centro cirúrgico, após eventos inesperados. Além da dificuldade em manejar essa situação, os resultados da revisão apontaram dificuldades dos cirurgiões em repassar notícias aos familiares, especialmente quando não havia uma relação médico-paciente previamente estabelecida no contexto do evento traumático (Lamba et al., 2016).

Diante do exposto e com as mudanças na sociedade que envolvem o uso de novas tecnologias e o acesso à informação, o campo biomédico sofre o impacto desse processo demandando a reformulação dos paradigmas de cuidado em saúde. Não desconsiderando os avanços farmacológicos, o grande rol de mudanças na área biomédica centra-se na alteração do paradigma estabelecido na relação médico-paciente, especialmente no que tange ao lugar da revelação de informações fidedignas nesse ínterim. Cada vez mais, os pacientes ocupam um espaço diferenciado e menos passivo, enquanto os profissionais de saúde seguem sendo formados para não lidar com essa realidade (Geovanini & Braz, 2013).

O preparo médico para comunicar notícias difíceis desponta com premência no cenário atual, em que pacientes buscam informações diagnósticas na internet. Isso inclusive repercute na relação clínica, demandando novas formas de se relacionar e de se comunicar em saúde. Diante disso, uma proposta viável para se lidar com essa situação seria a adoção de metodologias ativas de ensino na formação dos profissionais. A partir disso, Paiva, Parente, Brandão e Queiroz (2016) sinalizam que:

Os procedimentos de ensino são tão importantes quanto os próprios conteúdos de aprendizagem. Portanto, as técnicas de ensino tradicional passam a fazer parte do escopo de teóricos não só da área da Educação, mas de toda a comunidade intelectual que busca identificar suas deficiências e buscam [sic] propor novas metodologias de ensino-aprendizagem. (p. 146).

Uma característica comum entre as metodologias ativas de ensino é a concepção de educação problematizadora, em que o aprendiz é instigado a se implicar com o mundo a sua volta, elaborando uma compreensão acerca de sua realidade. Isso, por sua vez, possibilita-lhe intervir nessa realidade, transformando-a. Essa perspectiva rompe com o modelo tradicional centrado na abordagem conteudista, com enfoque individual no processo de ensino (Paiva et al., 2016). Nas metodologias ativas, o aluno é o centro do processo de aprendizagem, contrapondo-se à ideia de espectador. Nela, o ensino nasce na prática e busca uma teoria que o explique. Com isso, há uma mudança do "ensinar" para o "aprender", havendo um desvio do foco do docente para o aluno, que se corresponsabiliza por seu aprendizado (Souza, Iglesias, & Pazin-Filho, 2014).

A metodologia ativa trabalha com situações-problema, de modo que o docente necessita ter conhecimento da temática e do cenário e ter experiência com essas situações, a fim de instigar a curiosidade dos discentes. Essas metodologias problematizam a realidade, possibilitando a aprendizagem a partir da cena e do contexto em que o aprendiz se encontra inserido. Isso faz com que ele interaja com o seu processo de aprendizado, exercitando habilidades futuras de diálogo, observação, reflexão crítica e de tomada de decisão quanto à conduta a ser adotada (Diesel, Baldez, & Martins, 2017). Em uma revisão integrativa brasileira, identificou-se predomínio do uso de metodologias ativas de ensino-aprendizagem no ensino superior, principalmente no contexto de educação em saúde (Paiva et al., 2016). Disso, infere-se que as metodologias ativas contribuem na formação médica, ao promover o contato do estudante ou do profissional com vivências cotidianas ou limítrofes de sua profissão, em um ambiente preparado e protegido de ensino.

Diante do exposto, o presente estudo teve por objetivo identificar qual metodologia ativa ou estratégia de ensino foi descrita na formação médica para comunicação de notícias difíceis, no período de 2014 a maio de 2019, voltada tanto para estudantes de graduação quanto para residentes ou médicos.

 

Método

Trata-se de uma revisão integrativa (RI) da literatura que visou sintetizar e analisar a produção científica de artigos empíricos sobre o uso de metodologias ativas na formação médica para comunicação de notícias difíceis. Optou-se pela RI, pois esta viabiliza a organização do conhecimento científico, possibilitando ao pesquisador contatar outros trabalhos e questões similares àquelas que ele se propõe a investigar, assim delineando o cenário científico do tema a ser estudado. Ademais, isso possibilita pensar outras oportunidades a serem trabalhadas, já que oferta informações sobre procedimentos usados em trabalhos prévios (Botelho, Cunha, & Macedo, 2011). Por se caracterizar como uma sinopse dos principais pontos de um conceito ou área de estudo, a RI reúne e sintetiza métodos, teorias e/ou estudos empíricos, tendo abrangência ampla ou limitada em pesquisas quantitativas, qualitativas ou de métodos mistos. Seu uso é versátil na definição de conceitos, na revisão de teorias e evidências, bem como na análise de problemas metodológicos de um tema específico (Ercole, Melo, & Alcoforado, 2014; Souza, Silva, & Carvalho, 2010).

Inicialmente, foi realizada a definição do problema a partir de revisão bibliográfica, buscando identificar artigos empíricos nas seguintes bases de dados: PsycINFO, base de dados da American Psychological Association (APA) e nos portais da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e da PubMed, a partir da fórmula de descritores: ("medical education") AND ("bad news" OR "difficult news") AND ("learning"). Os descritores foram definidos conforme o Medical Subject Headings (MeSH) e os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS).

Foram considerados elegíveis os artigos disponíveis na íntegra, publicados em português ou inglês, no período de 2014 até o 1° semestre 2019, precisamente maio. Foram excluídas outras publicações científicas (editoriais, comentários, artigos de revisão, relatos de experiência, teses, dissertações, artigos de profissionais não médicos), manuscritos que não apresentassem informações quanto ao uso de metodologias ativas no resumo ou trabalhos que tivessem por objetivo a validação de instrumentos para avaliar a comunicação de notícias difíceis.

As informações coletadas dos artigos foram agrupadas em uma planilha Excel, constando link e DOI, a referência conforme a APA, palavras-chave, país do estudo, base de dados ou portal identificados, título, idioma, ano de publicação, delineamento do estudo, objetivo(s), participantes, método, resultados principais, discussão/comentários. Por fim, foi realizada a análise dos resultados com a síntese dos artigos selecionados de maneira descritiva, possibilitando apresentação da metodologia ativa levantada ou das estratégias de ensino, conforme o objetivo deste estudo.

 

Resultados

Foram identificados 59 resumos nas bases de dados e nos portais selecionados. Após aplicação dos critérios de exclusão, foram analisados 13 artigos empíricos, sendo 12 em língua inglesa e um em língua portuguesa (Figura 1). Quanto ao ano de publicação: três são de 2014; dois de 2015; um de 2016; quatro de 2017 e três de 2018. No que se refere ao país de realização dos estudos, seis eram dos Estados Unidos, dois eram estudos transculturais realizados entre o Canadá, a China e os Estados Unidos, um era de Israel, um da Finlândia, dois da Suíça e um do Brasil.

Quanto ao delineamento metodológico, identificaram-se: nove estudos de intervenção com métodos mistos; dois estudos descritivos qualitativos; um estudo longitudinal de coorte com métodos mistos e um estudo transversal quantitativo. No que tange ao perfil dos participantes dos estudos, dez artigos foram realizados com estudantes de medicina e três com médicos residentes. Da amostra analisada, quatro abordaram temáticas de treinamento, capacitação ou formação curricular relacionada à comunicação de notícias difíceis para estudantes e residentes (Johnson et al., 2017; Luttenberger, Graessel, Simon, & Donath, 2014; Parikh, White, Buckingham, & Tchorz, 2017; Williams-Reade, Lobo, Whittemore, Parra, & Baerg, 2018).

Quatro artigos apresentaram teorias como abordagem pedagógica de ensino de comunicação de notícias difíceis, sendo estas: a terapia centrada no cliente de Rogers (Luttenberger et al., 2014), a teoria da aprendizagem adulta de Knowles (Johnson et al., 2017), os quatro estágios experienciais de Kolb associados com a teoria familiar sistêmica (Williams-Reade et al., 2018) e a teoria da metacognição (Lajoie et al., 2015). Todos os artigos sinalizaram a importância dos aspectos emocionais na comunicação de notícias difíceis, contudo apenas seis estudos pontuaram a necessidade de acolhimento emocional das angústias, da insegurança e do distanciamento emocional reportados pelos participantes, como forma de prepará-los para lidar com a temática de notícias difíceis (Hurst, Baroffio, Ummel, & Burn, 2015; Karnieli-Miller, Palombo, & Meitar, 2018; Lajoie et al., 2015; Skye, Wagenschutz, Steiger, & Kumagai, 2014; Toivonena et al., 2017; Williams-Reade et al., 2018).

Do total de artigos, 11 pontuaram que os estudos realizados ou descritos decorreram de atividades instituídas nos currículos de formação médica, quer seja na graduação, quer seja nos programas de residência (Hurst et al., 2015; Johnson et al., 2017; Karnieli-Miller et al., 2018; Kron et al., 2016; Luttenberger et al., 2014; Sombra Neto et al., 2017; Parikh et al., 2017; Schmitz et al., 2018; Skye et al., 2014; Toivonena, et al., 2017; Williams-Reade et al., 2018). Esses artigos sinalizaram que, apesar de as exigências de participação nos cursos ou disciplinas constituírem requisitos obrigatórios na formação, a participação nas pesquisas tinha caráter voluntário e aqueles que se abstivessem de participar delas não sofreriam sanções no processo de avaliação das referidas práticas de ensino.

Entre as técnicas de ensino identificadas, os artigos apresentaram uma perspectiva multimodal, trabalhando com duas ou mais estratégias. A simulação (role-plalying) foi a mais citada, sendo descrita em 11 estudos (Baile & Blatner, 2014; Hurst et al., 2015; Johnson et al., 2017; Karnieli-Miller et al., 2018; Kron et al., 2016; Lajoie et al., 2014; Luttenberger et al., 2014; Sombra Neto et al., 2017; Parikh et al., 2017; Skye et al., 2014; Williams-Reade et al., 2018). Nessa técnica, o papel do paciente ou familiar era desempenhado por atores ou pessoas treinadas, conforme um roteiro padronizado. Desses 11 artigos, em um houve inversão de papéis, de modo que os participantes experienciaram o papel de paciente (Luttenberger et al., 2014).

Quatro estudos empregaram ambiente instrucional multimídia com tecnologias digitais, tais como módulos de ensino on-line, realidade virtual, aprendizagem mediada por computador, discussão em grupo em chats de conversa (Lajoie et al., 2014; Lajoie et al., 2015; Kron et al., 2016, Schmitz et al., 2018). Desses quatro, dois estudos tinham características transculturais e foram realizados em países diversos, como Estados Unidos, Canadá e China (Lajoie et al., 2014; Lajoie et al., 2015). A apresentação de vídeos de casos também foi descrita em três artigos (Lajoie et al., 2014; Lajoie et al., 2015; Schmitz et al., 2018).

Por fim, quatro artigos detalharam a aprendizagem baseada em problemas (ABP) como metodologia norteadora dos trabalhos (Hurst et al., 2015; Johnson et al., 2017; Lajoie et al., 2014; Lajoie et al., 2015). Os demais nove artigos, apesar de não descreverem a metodologia de ABP, apresentaram técnicas ou procedimentos de ensino (simulação com pessoas ou em computador, discussão entre pares, escrita reflexiva, reunião compartilhada com pacientes, vídeos de casos, realidade virtual), focando a apresentação de situações rotineiras ou padronizadas nas áreas estudadas (Tabela 1).

 

Discussão

Vários países discutem a necessidade de se adotar um currículo e uma formação médica adequados à realidade dos sistemas de saúde. Para isso, faz-se necessário articular práticas de assistência ao paciente, conhecimento médico, habilidades interpessoais e de comunicação, profissionalismo e aprendizagem baseada em práticas problematizadoras. Como exemplo disso, citam-se as diretrizes do Conselho de Credenciamento para Educação Médica de Pós-Graduação nos Estados Unidos (Accreditation Council for Graduate Medical Education [ACGME], 2019) e o CanMEDS (2019), estrutura educacional canadense que detalha e apresenta as habilidades médicas necessárias para atendimento efetivo às necessidades de saúde da população. No Brasil, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos de medicina também acompanham as mudanças globais nos referenciais educacionais e nas políticas de saúde, primando por uma formação profissional aliada às mudanças contemporâneas da sociedade (Brasil, 2014; Gomes, Brino, Aquilante, & Silva de Avó, 2009).

Os resultados do presente estudo revelaram uma prevalência de trabalhos realizados com estudantes de graduação, o que vai ao encontro das diretrizes curriculares mencionadas acima. Considerando que essas diretrizes estabelecem os princípios, os fundamentos e as finalidades da habilitação médica, elas têm papel norteador no projeto pedagógico de formação. No entanto, foi observada uma escassez de trabalhos com os docentes, peças primordiais no processo de ensino. Segundo Costa e Azevedo (2010), o papel do docente seria o de oferecer experiências que aumentem o autoconhecimento, o poder de escuta, o respeito e a tolerância, auxiliando os estudantes a detectar suas fragilidades, medos e preconceitos. Isso também proporciona ao aluno uma observação mais ampliada da atuação médica, que pode ser terapêutica em si. Daí, depreende-se a importância do papel do professor, não só como transmissor de conhecimento, mas também como multiplicador de modelos assistenciais na prática médica, de modo que esses profissionais necessitam também de aprimoramento e educação permanente em suas atividades docentes no que se refere à comunicação de notícias difíceis.

Apesar de apenas um terço dos artigos detalharem o uso da ABP, o presente estudo identificou que os demais artigos descreveram práticas problematizadoras coerentes com essa metodologia. A ABP trabalha com situações do dia a dia, promovendo a integração entre a teoria e a prática, bem como o desenvolvimento e o aprimoramento de habilidades técnicas, cognitivas, afetivas e de atitudes na formação (Baile & Blatner, 2014). Para otimizar seu trabalho, ela concilia o emprego de múltiplas técnicas ou estratégias de ensino, tais como as identificadas neste estudo para troca ou compartilhamento da informação. No caso desta RI, mesmo não havendo uma diferenciação clara entre a metodologia ativa e as técnicas empregadas, depreende-se que as estratégias de ensino em saúde, por serem múltiplas, remetem-nos à própria diversidade do campo, pois existem inúmeras formas de se compartilhar as experiências e o conhecimento na área. Além disso, para entrar em contato com a experiência humana na saúde e na doença, essa diversidade também se faz necessária na educação médica.

Os resultados sinalizaram o emprego de tecnologias digitais e de recursos da rede mundial de computadores como forma de mediação do ensino e da aprendizagem. Um ponto identificado no estudo refere-se ao uso dessas tecnologias digitais em situações com distâncias geográficas ou continentais. Isso inclusive reflete o panorama mundial, pois a sociedade contemporânea utiliza-se dessas tecnologias para facilitar as relações de informação e comunicação e, atualmente, não há praticamente nada que não seja intermediado por elas. Isso corrobora a ideia de que a Educação precisa se familiarizar com os recursos tecnológicos para incentivar as atividades pedagógicas, propiciando melhor interação entre os agentes envolvidos no processo de ensino-aprendizagem (Andrade, 2015).

Dos artigos analisados, 46% sinalizaram a necessidade de acolhimento ao medo, às angústias, à insegurança e ao distanciamento emocional reportados pelos participantes no processo de comunicação de notícias difíceis. Esse dado vai ao encontro da literatura, ao sinalizar que o processo de ensino interatua com afetos e sentimentos, os quais podem promover ou impactar os processos cognitivos envolvidos na comunicação e aprendizagem de modelos de assistência em saúde (Karnieli-Miller et al., 2018; Toivonena et al., 2017; Lajoie, 2015; Hurst et al., 2015). Ceccim (2008) pontua que o campo das construções cognitivas é também espaço de requalificação de afetos (processo de singularização) e de convite às aprendizagens de natureza complexa (processos intelectivos). Contudo, como, usualmente, os métodos educacionais legitimam o saber acumulado e negligenciam as aquisições intensivas (a criação do trabalho coletivo, a interdependência com os usuários, a adoção de práticas externas às instituições de ensino e a transdisciplinaridade), a implicação afetiva no espaço de produção do saber acaba sendo denegada na formação.

Diante do exposto, cabe destacar que a formação médica é um importante componente do HumanizaSUS, programa da Política Nacional de Humanização (PNH) do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído em 2003 e que visa à execução dos princípios do SUS no cotidiano das práticas de atenção e gestão, qualificando a saúde pública no Brasil. O HumanizaSUS aplica-se a diferentes ações, políticas públicas e instâncias gestoras, demandando trocas comunicativas entre os sujeitos e os cenários envolvidos, tendo por finalidade a valorização e a implicação dos diferentes atores envolvidos no processo de produção de saúde, quer sejam eles usuários, quer sejam eles trabalhadores ou gestores (Brasil, 2020).

 

Conclusão

Quanto à formação médica para comunicação de notícias difíceis, esta revisão integrativa identificou que a aprendizagem baseada em problemas (ABP) foi a metodologia ativa mais descrita, enquanto a simulação foi a estratégia de ensino mais empregada. O uso combinado dessas situa o aluno no centro do processo de aprendizagem e o envolve na atividade de ensino, ao favorecer que ele contate situações-problema. Foram identificadas também outras estratégias de ensino (discussão entre pares, escrita reflexiva, reunião compartilhada com pacientes, vídeos de casos e emprego de tecnologias digitais), as quais podem ser aplicadas nos mais diversos cenários, desde que contextualizadas aos objetivos do processo de ensino e aos recursos disponíveis para sua implementação. Reforça-se a importância do uso dessas estratégias como medidas complementares à profissionalização médica contemporânea, contribuindo com vivências ampliadas no processo de ensino-aprendizagem.

Reconhece-se como limitações deste trabalho a falta de artigos com profissionais já habilitados para comunicação de notícias difíceis, assim como com os docentes no ensino desse tipo de comunicação. Isso se faz necessário, pois apresentaria dados pertinentes à educação continuada do profissional e da educação permanente do professor. Além disso, sugere-se para investigação futura a realização de estudos com cada estratégia específica de ensino, de modo a identificar os aspectos fortes, as fragilidades e as possibilidades de aplicação de cada estratégia.

Por fim, sinaliza-se a necessidade de se explorar estudos de comunicação de notícias difíceis na perspectiva da interdisciplinaridade, e não única e meramente na perspectiva médica. Isso porque o levantamento de condutas acerca desse tipo de comunicação por equipes multiprofissionais pode contribuir para a melhoria do compartilhamento de informação entre os atores envolvidos, quer sejam eles pacientes, quer sejam eles familiares ou profissionais, implicando-os nos processos de cuidado. E, quanto a isso, a Psicologia tem muito a contribuir no campo das construções intersubjetivas, da comunicação terapêutica e da humanização na aplicação de modelos de intervenção e de assistência biopsicossociais.

 

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Esther Almeida da Silva-Xavier
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Recebido em: 11/07/2019
Última revisão: 11/02/2020
Aceite final: 03/03/2020

 

 

Esther Almeida da Silva-Xavier: Psicóloga. Mestranda na linha de pesquisa: Psicologia da Saúde e Processos Clínicos na Universidade de Brasília, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura, Brasília, DF.
E-mail: esther.gea.ex@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-0168-9087
Larissa Polejack: Doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde. Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e Cultura da Universidade de Brasília, Brasília, DF.
E-mail: larissapolejack@hotmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-0506-1721
Eliane Maria Fleury Seidl: Doutora em Psicologia. Professora associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura e do Programa de Pós-Graduação em Bioética, na Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília, Brasília, DF.
E-mail: eliane.seidl@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1942-5100

^rND^sAfonso^nS. B. C.^rND^sMinayo^nM. C. S.^rND^sAndrade^nE. F.^rND^sAraújo^nJ. A.^rND^sLeitão^nE. M. P.^rND^sBaile^nW. F.^rND^sBuckman^nR.^rND^sLenzi^nR.^rND^sGlober^nG.^rND^sBeale^nE. A.^rND^sKudelka^nA. P.^rND^sBaile^nW. F.^rND^sBlatner^nA.^rND^sBotelho^nL. L. R.^rND^sCunha^nC. C. de A.^rND^sMacedo^nM.^rND^sCeccim^nR. B.^rND^sChehuen Neto^nJ. A.^rND^sSirimarco^nM. T.^rND^sCândido^nT. C.^rND^sBicalho^nT. C.^rND^sMatos^nB. O.^rND^sBerbert^nG. H.^rND^sVital^nL. V.^rND^sCosta^nF. D.^rND^sDiesel^nA.^sBaldez^nA. L. S.^sMartins^nS. N.^rND^sErcole^nF. F.^rND^sMelo^nL. S.^rND^sAlcoforado^nC. L. G. C.^rND^sGeovanini^nF.^rND^sBraz^nM.^rND^sGomes^nR.^rND^sBrino^nR. F.^rND^sAquilante^nA. G.^rND^sSilva de Avó^nL. R.^rND^sHurst^nS. A.^rND^sBaroffio^nA.^rND^sUmmel^nM.^rND^sBurn^nC. L.^rND^sJohnson^nE. M.^rND^sHamilton^nM. F.^rND^sWatson^nR. S.^rND^sClaxton^nR.^rND^sBarnett^nM.^rND^sThompson^nA. E.^rND^sArnold^nR.^rND^sKarnieli-Miller^nO.^rND^sPalombo^nM.^rND^sMeitar^nD.^rND^sKron^nF. W. K.^rND^sFetters^nM. D.^rND^sScerbo^nM. W.^rND^sWhite^nC. B.^rND^sLypson^nM. L.^rND^sPadilla^nM. A.^rND^sBecker^nD. M.^rND^sLajoie^nS. P.^rND^sHmelo-Silver^nC.^rND^sWiseman^nJ.^rND^sChan^nL. K.^rND^sLu^nJ.^rND^sKhurana^nC.^rND^sKazemitabar^nM.^rND^sLajoie^nS. P.^sLee^nL.^sPoitras^nE.^sBassiri^nM.^rND^sKazemitabar^nM.^rND^sCruz-Panesso^nI.^rND^sLu^nJ.^rND^sLamba^nS.^rND^sTyrie^nL. S.^rND^sBryczkowski^nS.^rND^sNagurka^nR.^rND^sLuttenberger^nK.^rND^sGraessel^nE.^rND^sSimon^nC.^rND^sDonath^nC.^rND^sPaiva^nM. R. F.^rND^sParente^nJ. R. F.^rND^sBrandão^nI. R.^rND^sQueiroz^nH. B.^rND^sParikh^nP P.^rND^sWhite^nM. T.^rND^sBuckingham^nL.^rND^sTchorz^nK. M.^rND^sRuiz^nR.^rND^sSchmitz^nF. M.^rND^sSchnabel^nK. P.^rND^sBauer^nD.^rND^sBachmann^nC.^rND^sWoermann^nU.^rND^sGuttormsen^nS.^rND^sSilva^nA. E.^rND^sSousa^nP A.^rND^sRibeiro^nR. F.^rND^sSkye^nE. P.^rND^sWagenschutz^nH.^rND^sSteiger^nJ. A.^rND^sKumagai^nA. K.^rND^sSombra Neto^nL. L.^rND^sSilva^nV. L. L.^rND^sLima^nC. D. D.^rND^sMoura^nH. T. M.^rND^sGonçalves^nA. L. M.^rND^sPires^nA. P B.^rND^sFernandes^nV. G.^rND^sSouza^nC. S.^rND^sIglesias^nA. G.^rND^sPazin-Filho^nA.^rND^sSouza^nM. T.^rND^sSilva^nM. D.^rND^sCarvalho^nR.^rND^sStellyes^nC. E. V.^rND^sToivonena^nA. K.^rND^sLindblom-Ylanneb^nS.^rND^sLouhialaa^nP.^rND^sPyoralac^nE.^rND^sWilliams-Reade^nJ.^rND^sLobo^nE.^rND^sWhittemore^nA. A.^rND^sParra^nL.^rND^sBaerg^nJ.^rND^1AFF1^nIzabella Rodrigues^sMelo^rND^1AFF1^nThatiane Hellen de^sAmorim^rND^1AFF1^nRaquel Braga^sGarcia^rND^1AFF1^nLarissa^sPolejack^rND^1AFF1^nEliane Maria Fleury^sSeidl^rND^1AFF1^nIzabella Rodrigues^sMelo^rND^1AFF1^nThatiane Hellen de^sAmorim^rND^1AFF1^nRaquel Braga^sGarcia^rND^1AFF1^nLarissa^sPolejack^rND^1AFF1^nEliane Maria Fleury^sSeidl^rND^1AFF1^nIzabella Rodrigues^sMelo^rND^1AFF1^nThatiane Hellen de^sAmorim^rND^1AFF1^nRaquel Braga^sGarcia^rND^1AFF1^nLarissa^sPolejack^rND^1AFF1^nEliane Maria Fleury^sSeidl

10.20435/pssa.vi.1047 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

O direito à saúde da população LGBT: desafios contemporâneos no contexto do sistema único de saúde (SUS)

 

LGBT population's right to health: contemporary challenges in the context of brazilian national health service (SUS)

 

El derecho a la salud de la población LGBT: desafíos contemporáneos en el contexto del sistema de salud pública de brasil (SUS)

 

 

Izabella Rodrigues Melo; Thatiane Hellen de Amorim; Raquel Braga Garcia; Larissa Polejack; Eliane Maria Fleury Seidl

Universidade de Brasília (UnB)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

O direito à saúde da população LGBT brasileira recebeu maior atenção a partir de 2004. Entretanto a efetivação dessas políticas de Estado se encontra prejudicada, como apontam estudos desenvolvidos na segunda década do século XXI. Esta revisão de literatura entra nesse escopo de pesquisas, partindo do artigo "Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil", para avaliar o desenvolvimento das políticas públicas em saúde voltadas para a população LGBT brasileira entre 2013 e 2019. As pesquisas por artigos deram-se nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-Psi), SciELO e PsycINFO. Seis dos 81 artigos encontrados preenchiam os critérios de inclusão. Questionou-se como a socialização dos agentes de saúde em contextos LGBTfóbicos leva a práticas contrárias aos princípios das políticas nacionais voltadas para a proteção dos direitos à população LGBT. Propõe-se fortalecimento das ações educativas voltadas para dissolução de preconceitos.

Palavras-chave: LGBT, Sistema Único de Saúde, processo transexualizador, direito à saúde, revisão integrativa


ABSTRACT

The Brazilian LGBT population's right to health received more attention as of 2004. However, as studies developed in the last ten years point out, these State policies are still undermined. This literature review enters this research scope considering the article "Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil" (Homosexuality and the right to health: a challenge for the health public policies in Brazil) to evaluate the changes in the LGBT population's healthcare between 2013 and 2019. We researched in the databases "Biblioteca Virtual em Saúde -Psicologia Brasil" (BVS-Psi), SciELO, and PsycINFO. Out of 81 articles, six of them fulfilled the inclusion criteria. How the socialization of health agents in LGBT-phobic contexts causes their practices to contradict the national policies for the protection of the LGBT population was questioned. The proposal is to strengthen educational actions to mitigate prejudices.

Keywords: LGBT, Brazilian National Health Service (Sistema Único de Saúde), transexualizing process, right to health, integrative review


RESUMEN

El derecho de la población LGBT brasileña a la salud recibió mayor atención el 2004. Sin embargo, según estudios conducidos a partir de 2010, esas políticas estatales aún se ven perjudicadas. Esta revisión de la literatura entra en el ámbito de investigación, considerando el artículo "Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil" (Homosexualidad y derecho a la salud: un desafío para las políticas públicas de salud en Brasil), para evaluar la atención médica de la población LGBT entre 2013 y 2019. Las búsquedas se realizaron en las bases de datos Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-Psi), SciELO y PsycINFO. Entre 81 artículos, seis cumplían con los criterios de inclusión. Se cuestionó cómo la socialización de los agentes de salud en contextos LGBT-fóbicos hace que sus prácticas contradigan las políticas de protección de los derechos de la población LGBT. Luego, se propone fortalecer acciones educativas para mitigar prejuicios.

Palabras clave: LGBT, Sistema de Salud Pública de Brasil (Sistema Único de Saúde), proceso transexualizador, derecho a la salud, revisión integrativa


 

 

Introdução

As dinâmicas de exclusão social fazem com que grupos marginalizados tenham direitos básicos, tais como saúde e educação, negados (Silva, Nobre, Carvalho Bezerra, Duarte, & Macedo Quinino, 2017). O fim da segunda década do século XXI não se mostra amigável a diversos grupos de pessoas, como poder-se-ia pensar anos antes. A população LGBT ainda é marginalizada e as vivências dessas pessoas são rotuladas enquanto opções antinaturais. No presente artigo, será utilizada a terminologia LGBT, seguindo o acordo firmado na 1ª Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Presidência da República, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008).

A não realização da 4ª Conferência Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais ilustra os ataques direcionados à comunidade. O evento deveria acontecer em novembro de 2019, de acordo com o Decreto n. 9.453, de 31 de julho de 2018 (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2018). Também no ano de 2018, o deputado Professor Victório Galli (PSL-MT) propôs o Projeto de Decreto Legislativo n. 1014/18, com o objetivo de impedir a realização da conferência, alegando que esta seria "afronta legal aos bons costumes de uma sociedade justa e moralmente civilizada" (Câmara dos Deputados, 2018). O senador Rogério Carvalho (PT/SE) enviou requerimento ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos questionando quando será realizada a 4ª Conferência LGBT (Brasil, 2019). No entanto, até 15 de novembro de 2019, ainda não houve manifestação do referido ministério e o evento ainda não ocorreu.

A organização heterocisnormativa1 da sociedade permite apenas aos sujeitos respondentes a esse padrão determinarem os polos de certo e errado. Por isso, ainda se mostram necessárias as lutas de grupos LGBT para terem seus direitos garantidos, inclusive na área de saúde, onde o atendimento é prestado também por pessoas cujos comportamentos foram desenvolvidos em contextos sociais LGBTfóbicos2, estruturados em valores religiosos e naturalizantes (Santos, Santos, Souza, Boery, & Yearid, 2015; Silva et al., 2017).

O último Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil (Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2016), referente ao ano de 2013, elenca os principais tipos de violências aos quais está exposta a população LGBT. A violência psicológica é a mais prevalente, contabilizando 40,1% das denúncias, seguida pela discriminação, com 36,4%, e por violências físicas, com 14,4%. Um dos dados mais alarmantes desta pesquisa revela que as discriminações por orientação sexual e por identidade de gênero são os tipos de violações discriminatórias mais cometidas contra a população LGBT, somando 92,2% das denúncias. Esses números tornam evidente o nível em que se encontra o desconhecimento da sociedade brasileira em relação às vivências que saiam do eixo heterossexual e cisgênero.

Seguimentos conservadores da sociedade brasileira rotulam como estranho e digno de marginalização tudo aquilo que não conseguem compreender. Dentro do nosso imaginário, ainda é comum a confusão entre identidade de gênero e orientação sexual, de forma que todas as pessoas LGBT são colocadas em uma mesma categoria e desrespeitadas com a mesma virulência. Para quem se propõe a trabalhar com populações específicas, é necessário fazer ajustes às idiossincrasias daquele grupo, buscando assegurar equidade e inclusão daquelas pessoas (Angonese & Lago, 2017).

Arán, Murta e Lionço (2009) ilustram essa proposição ao discutirem a inserção de pessoas transgêneras3 no sistema de saúde. As autoras apontam para a importância de se extrapolar o posicionamento focado na fisiología desses sujeitos e considerar quais são as representações sociais desse grupo, ainda ligadas à patologização, estigmatização e invisibilização. Somente ao serem ouvidas as vozes das pessoas transgêneras sobre suas necessidades de saúde e integração social, pode-se delinear políticas públicas adequadas.

Polejack, Totugui, Gomes e Conceição (2015) destacam como aspectos históricos, comunitários, econômicos, políticos e culturais influenciam as noções do que é saúde, sendo essas noções pontos de partida para a elaboração de políticas públicas. A partir dessa compreensão, podemos nos implicar enquanto cidadãos, usuários ou profissionais do sistema de saúde, proponentes de demandas relacionadas à garantia de direitos. Torna-se possível a manutenção do Sistema Único de Saúde alinhada com as subjetividades de grupos sociais marginalizados, como a população LGBT.

A Constituição Federal de 1988 estabelece compromisso do Estado Brasileiro com a garantia do direito à saúde pública. Em nosso país, políticas públicas de saúde são elaboradas e colocadas em prática a partir da relação entre Estado e sociedade, sendo os cidadãos compreendidos como agentes de monitoramento (Polejack et al., 2015).

O Sistema Único de Saúde do Brasil foi instituído pela Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990. No corpo do texto da lei, no artigo 2°, lê-se que a saúde é entendida enquanto direito humano fundamental e que é dever do Estado promover o gozo de tal direito. No parágrafo 1° deste artigo, especifica-se que políticas econômicas e sociais devem ser elaboradas com o objetivo de promover qualidade de vida aos cidadãos, devendo o acesso ser universal e igualitário. Os autores da lei também reconheceram que variáveis diversas, a exemplo de alimentação, moradia e trabalho, são determinantes para organizar a saúde dos brasileiros, permitindo que ações de promoção da saúde sejam implementadas (Lei 8.080, 1990). Entende-se por promoção da saúde o fomento de práticas que visem ao aumento da saúde e do bem-estar, por meio da mudança de variáveis ligadas a problemas de saúde, sejam elas individuais, sejam elas sociais (Czeresnia, 2009).

O Capítulo II da Lei 8.080 (1990) versa especificamente sobre os princípios e as diretrizes fundamentais do Sistema implementado. O artigo 198 da Constituição Federal é evocado e complementado com os princípios de universalidade de acesso aos serviços de saúde, integralidade da assistência, preservação da autonomia dos sujeitos, igualdade na assistência, direito à informação, utilização da epidemiologia e participação da comunidade.

Os Princípios de Yogyakarta (2006) pontuam que é dever dos Estados garantir acesso a serviços de saúde física e mental de alta qualidade, não podendo haver nenhuma ordem de discriminação no atendimento. Os autores do referido documento dizem que a dimensão da sexualidade é parte fundamental da garantia de direitos e, por isso, também é obrigação dos Estados prover instalações e condições adequadas de atendimento para as diferenças de orientação sexual e identidade de gênero. Os Estados têm a obrigação de desenvolver e implementar programas de combate a toda forma de discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero, pois as dinâmicas discriminatórias causam prejuízos à saúde daqueles que são marginalizados. Além disso, também é dever estatal promover educação sobre saúde sexual e sobre escolhas concernentes à vivência da sexualidade, com foco no consentimento (Yogyakarta Principles, 2006). O Brasil reconhece, no documento Cadernos de Atenção Básica: Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva (Brasil, 2010a), a universalidade dos direitos sexuais. Por essa razão, devem ser propostas políticas públicas que se adequem às "especificidades dos diversos segmentos da população" (p. 17). Os Cadernos também apontam que a diversidade sexual faz com que as situações de saúde (Czeresnia, 2009) difiram entre sujeitos de uma mesma sociedade.

A Política Nacional de Saúde LGBT (PNSLGBT) (Brasil, 2013) foi formulada a partir das propostas do Programa Brasil sem Homofobia e dos Princípios de Yogyakarta e funciona no âmbito do SUS. O objetivo da PNSLGBT foi implementar ações de mudança social, com vistas ao combate à LGBTfobia nos ambientes de atendimento e gestão públicos em saúde. Os proponentes reconheceram como a discriminação e a exclusão sofridas por esse grupo afetam a saúde dos sujeitos que o integram. Para o enfrentamento da discriminação, deve-se promover a democracia social e reforçar o caráter laico do Estado Brasileiro. A Resolução n. 26, de 2017, propõe o segundo Plano Operativo da Política anteriormente mencionada e sustenta-se sobre os eixos de acesso da população LGBT à atenção integral à saúde; promoção e vigilância; educação permanente e mobilização popular; articulação e controle sociais; e monitoramento e avaliação das ações voltadas para a população LGBT.

A Resolução n. 26 (2017) pode ser entendida como resposta governamental às exigências feitas pelos autores da Carta de Brasília (Ministério da Saúde, 2009). O documento foi elaborado a partir de considerações feitas sobre as desigualdades sociais geradas por estruturações sexistas, racistas, adultocêntricas e pelo modelo econômico capitalista, de forma que pessoas e suas dignidades são colocadas como menos importantes do que as possibilidades de geração de lucro. Também se reconhece a intensidade do desenvolvimento do fundamentalismo religioso em nosso país, contrariando a laicidade de nosso Estado e permitindo-se a violação de direitos humanos. Destaca-se a importância da participação popular para a gestão do SUS, de forma a garantir o direito à saúde de todos os cidadãos. Além de exigirem a publicação de planos operativos, os autores demandam que a participação popular no SUS seja garantida e que haja melhoria do atendimento oferecido, de forma a acolher de maneira qualificada as demandas diversas dos cidadãos que buscam os serviços.

Albuquerque, Garcia, Alves, Queiroz e Adami (2013) discutem, em revisão bibliográfica, o estado de vulnerabilidade posto à população LGBT quando se trata do acesso à saúde, em razão do preconceito e discriminação sofridos por essas pessoas. Os autores reconhecem o avanço representado pelo posicionamento oficial do Estado, na forma de leis, planos e resoluções. No entanto questionam a qualidade da efetivação de tais políticas públicas. De forma coerente com o reportado no Relatório de Violência Homofóbica (Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2016), a discriminação permeia os atendimentos prestados e afasta esses cidadãos da vivência plena de um de seus direitos fundamentais.

As necessidades de saúde da população LGBT ainda são desconhecidas de grande parte dos profissionais de saúde. Sem atendimentos adequados, lésbicas, gays, bissexuais e pessoas transgêneras resistem, cada vez mais, a buscar suporte qualificado em saúde. Entre as reclamações desse grupo, encontra-se a heterocissexualidade assumida. A relação entre usuário e profissional fica prejudicada, dessa forma, e outros prejuízos são causados ao cidadão. Destaca-se a pobreza da comunicação, fator diretamente conectado ao silenciamento de questões relacionadas à sexualidade, à promoção e à prevenção em saúde.

O grande desafio enfrentado atualmente no Brasil, como apontam Mello, Avelar e Maroja (2012), é a transformação das incipientes políticas públicas voltadas à população LGBT, elaboradas com maior afinco a partir do ano de 2004, em efetivas políticas de Estado. Mello et al. (2012) destacam a importância de tais políticas ultrapassarem os planos individuais de governo, de forma que sejam reduzidas as incertezas relativas a, por exemplo, marcos legais de combate à LGBTfobia. A falta de articulação do Congresso Nacional com os parlamentares alinhados com a defesa da população LGBT, de forma a avançar com os debates relativos à criminalização da discriminação dessas pessoas, fez com que fosse necessário o Supremo Tribunal Federal manifestar-se nesse sentido, como aponta a matéria de Moura e Pupo (2019) para o Estadão.

Propõe-se, então, o fomento de reflexões sobre os papéis e crenças dos profissionais de saúde, de forma a melhorar os ambientes de atendimento. Os agentes devem alinhar-se com as políticas governamentais e com as especificidades das populações atendidas. A proposta encontra-se prejudicada, no entanto, na medida em que há poucos estudos nessa temática. Os autores sugerem a realização de novas pesquisas sobre a relação da população LGBT e o SUS, o que possibilitará, inclusive, o aprimoramento das políticas existentes (Albuquerque etal., 2013).

A Psicologia, enquanto área da saúde, é convocada a participar desse processo de manutenção, contribuindo com as políticas públicas a partir das compreensões de fluxos subjetivos e de relações de poderes sociais. Gonçalves (2010, como citado por Polejack et al., 2015) localiza a prática de psicólogas e psicólogos em momentos históricos com demandas diferenciadas. A autora identifica épocas em que trabalhamos com foco na normatização, adequação individual e patologização de questões sociais. Com o tempo, principalmente a partir da década de 1980, direcionamos nossas reflexões e práticas para atender a demandas coletivas, posicionadas politicamente a partir de questionamentos do status quo. Os anos de 1990 foram marcados pelo Projeto de Compromisso Social da Psicologia, fundado na defesa de políticas sociais. A Constituição Federal também foi essencial para embasar a atuação de profissionais da Psicologia com grupos excluídos. Estabelece-se nova relação entre nós e o campo público: nosso conhecimento é disponibilizado para elaborar políticas públicas de Saúde e com a garantia de direitos sociais (Polejack et al., 2015).

Esta revisão integrativa de literatura propôs-se a responder a pergunta: "Como se deu o desenvolvimento das políticas públicas em saúde voltadas para a população LGBT brasileira desde a publicação do artigo 'Homossexualidade e o direito à saúde: um desafio para as políticas públicas de saúde no Brasil', de Albuquerque et al. (2013)?". Objetivou-se avaliar as mudanças ocorridas na atenção à saúde da população LGBT entre 2013 e 2019, ou seja, desde a publicação do artigo referenciado até o ano de 2019.

 

Método

O estudo aqui descrito consiste em revisão integrativa da literatura. Esta modalidade de revisão compreende a articulação de estudos empíricos e teóricos, de forma a evidenciar o estado atual em que se encontram as pesquisas em determinada área. Os conteúdos discutidos pelos autores são analisados e sintetizados em uma redação única, com o propósito de responder aos questionamentos levantados pelo autor da revisão (De Souza, Da Silva, & De Carvalho, 2010).

Os autores do artigo utilizado enquanto ponto de partida (Albuquerque et al., 2013) realizaram suas pesquisas nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs) e Scientific Electronic Library Online (SciELO). Os descritores em ciências da saúde (DeCS) escolhidos foram homossexualidade, políticas públicas, assistência integral à saúde, sendo "AND" o operador booleano utilizado para conectá-los. Foram selecionados para análise os manuscritos escritos em língua portuguesa, que versassem sobre a temática do estudo, disponibilizados integralmente on-line e publicados entre 2004 e 2013.

Os autores da presente pesquisa julgaram ser importante realizar mudanças na forma de pesquisar os materiais para este estudo, pois se pretendia ampliar as compreensões sobre os cuidados de saúde de outras pessoas dentro da população LGBT. Assim, os termos usados para busca foram homo, políticas públicas, Sistema Único de Saúde, LGBT. Aos termos "homo" e "LGBT", foi acrescentado o operador booleano *, de truncamento. "Sistema Único de Saúde" foi pesquisado dessa forma e também como "SUS"; para as pesquisas em bases de língua inglesa, utilizou-se "Unified Health System". O operador "AND" teve a função de articular todos os termos. As pesquisas foram realizadas nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-Psi), SciELO e PsycINFO (organizada pela American Psychological Association).

Artigos brasileiros, empíricos e teóricos, publicados entre 2013 e 2019, com textos completos disponíveis on-line, conectados ao tema desta pesquisa, escritos em línguas portuguesa, inglesa ou espanhola, foram selecionados para esta revisão. Optou-se por excluir teses e dissertações. O período de 2013 a 2019 foi delimitado para permitir a contextualização do desenvolvimento das políticas públicas em saúde para a população LGBT e dos estudos sobre elas nos anos compreendidos entre o estudo do artigo-base e o presente momento.

Os autores da presente pesquisa julgaram ser importante realizar mudanças na forma de pesquisar os materiais para este estudo, pois se pretendia ampliar as compreensões sobre os cuidados de saúde de outras pessoas dentro da população LGBT. Assim, os termos usados para busca foram homo, políticas públicas, Sistema Único de Saúde, LGBT. Aos termos "homo" e "LGBT", foi acrescentado o operador booleano *, de truncamento. "Sistema Único de Saúde" foi pesquisado dessa forma e também como "SUS"; para as pesquisas em bases de língua inglesa, utilizou-se "Unified Health System". O operador "AND" teve a função de articular todos os termos. As pesquisas foram realizadas nas bases de dados Biblioteca Virtual em Saúde - Psicologia Brasil (BVS-Psi), SciELO e PsycINFO (organizada pela American Psychological Association).

Artigos brasileiros, empíricos e teóricos, publicados entre 2013 e 2019, com textos completos disponíveis on-line, conectados ao tema desta pesquisa, escritos em línguas portuguesa, inglesa ou espanhola, foram selecionados para esta revisão. Optou-se por excluir teses e dissertações. O período de 2013 a 2019 foi delimitado para permitir a contextualização do desenvolvimento das políticas públicas em saúde para a população LGBT e dos estudos sobre elas nos anos compreendidos entre o estudo do artigo-base e o presente momento.

 

Resultados e discussão

O número total de artigos encontrados foi 81. Após leitura dos resumos e dos textos completos, concluiu-se que seis deles preenchiam os critérios de inclusão estipulados pela equipe.

Um terço dos artigos foi escrito no ano de 2017. Os anos de 2013, 2014, 2015 e 2019 são representados por um artigo cada um. Os estudos foram publicados em revistas distribuídas nas seguintes áreas: saúde coletiva (2), saúde HIV/aids (1), políticas públicas em saúde (1), bioética (1) e psicologia (1). Quatro estudos foram classificados como revisões, de naturezas narrativa (2) e integrativa (2). Os demais estudos eram inéditos, sendo um deles realizado a partir de pesquisa empírica, e outro, empírico e documental.

A Tabela 1 apresenta os objetivos estipulados pelos autores e os resultados encontrados por eles nos seis artigos analisados.

Silva et al. (2017) realizaram mapeamento das políticas públicas voltadas para a população LGBT. Os autores afirmam que essa movimentação estatal sinaliza o reconhecimento da LGBTfobia enquanto variável para a determinação de saúde. O Programa Brasil sem Homofobia, lançado em 2004, tem como objetivo aprimorar a educação e o comportamento dos gestores públicos em relação às populações LGBT, partindo da não discriminação a nenhum sujeito dentro dos serviços públicos de saúde.

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, de 2004, parte do pressuposto de que os trabalhos em saúde não podem ser permeados por nenhuma ordem de preconceito, reconhecendo as especificidades de gênero. O Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de Aids e DSTs, publicado em 2007, objetiva a promoção da qualidade de vida de mulheres, cis e trans, que vivem com HIV/aids. No entanto o Plano não se dedica ao cuidado de homens transgêneros. O Plano Nacional de Enfrentamento da Epidemia de aids e DST entre Gays, HSH e Trans, do mesmo ano, qualificou os esforços de prevenção do HIV/aids dentro de grupos sociais específicos (Silva et al., 2017).

O Processo Transexualizador (PrTr), lançado em 2008 e revisto em 2013, visa à ampliação da concepção de saúde das pessoas transgêneras, buscando integralidade no atendimento em saúde e propagação de informação e conhecimento para a população (Silva et al., 2017). O PrTr busca a integralidade da atenção às pessoas transgêneras, sem se restringir às cirurgias de ressignificação sexual. As intervenções se pautam no trabalho de equipes multidisciplinares, garantindo o acesso dessas pessoas à Atenção Básica e à Atenção Especializada, visando a um atendimento humanizado e livre de discriminação. A Atenção Especializada no PrTr inclui as modalidades de atenção ambulatorial (acompanhamento clínico, pré e pós-operatório e hormonioterapia) e hospitalar (realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório) (Popadiuk et al., 2017).

Ressalta-se a importância de os profissionais da Atenção Básica estarem também preparados para acolher as demandas das pessoas transgêneras, uma vez que a Atenção Básica é o contexto em que ocorrem os encaminhamentos para atendimentos especializados. Entre janeiro de 2008 e maio de 2016, foram realizados 320 procedimentos hospitalares do Processo Transexualizador, não havendo nenhum óbito. É oportuno observar que parte das pessoas transgêneras não tem interesse em realizar cirurgias de redesignação sexual, não sendo procedimentos definidores de suas identidades (Popadiuk et al., 2017).

O III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) é uma iniciativa da Secretaria de Direitos Humanos do Governo Federal, consolidada em 2010. O Programa parte do pressuposto de que é responsabilidade do Estado promover políticas centradas na "dignidade da pessoa humana e na criação de oportunidades para que todos e todas possam desenvolver seu potencial de forma livre, autônoma e plena" (Brasil, 2010b). O PNDH-3 é organizado em eixos orientadores, diretrizes, objetivos estratégicos e ações programáticas, bases para a implementação de políticas públicas voltadas para demandas sociais específicas (Silva et al., 2017).

O Eixo 3 do Programa trata da universalização dos direitos em contextos de desigualdades. A sistematização desse eixo deu-se a partir da compreensão das diversidades no alcance da igualdade social, "visando à superação de barreiras estruturais para o acesso aos direitos humanos" (Brasil, 2010b). A Diretriz 10 desse eixo versa sobre a garantia da igualdade na diversidade.

A Política Nacional de Saúde Integral LGBT consiste em plano organizado em diretrizes e objetivos focados no combate à discriminação à população LGBT nos serviços de saúde. Os autores sublinham o preconceito e violências sofridos por esse grupo social enquanto prejudicial à saúde (Silva et al., 2017).

A Conferência Nacional LGBT, em 2008, contou com a presença do então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, ministros e representantes do movimento LGBT, fazendo com que o Brasil fosse o primeiro país a realizar uma atividade dessa natureza, demarcando o compromisso do Estado com os direitos dessa população (Freire et al., 2013). A comparação do momento atual com o que havia há onze anos permite a constatação de que não houve melhorias - talvez, possa-se considerar 2019 como sido o ápice do retrocesso em termos da garantia de direitos a minorias sociais.

A nomeação da pastora evangélica Damares Alves para o Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos representou um retrocesso para os direitos da população LGBT, para a população indígena e para as pessoas vivendo com HIV/aids. O novo ministério se recusou a adicionar a população LGBT como um grupo protegido pelo seu governo, declarando que políticas de diversidade ameaçam a família brasileira (Montenegro et al., 2019).

O novo projeto de governo promove agenda conservadora que pretende proibir o debate acerca das temáticas de sexualidade, gênero e diversidade em escolas, incentivando que essas discussões se restrinjam ao ambiente doméstico, como ressaltam Montenegro et al. (2019). Tal posicionamento do governo, de invisibilização e impedimento dos debates acerca da diversidade sexual, afeta a responsabilidade do Estado em promover políticas públicas de saúde voltadas para a população LGBT. A proibição da disseminação de informações, em decorrência da "ameaça à família brasileira", tal como aponta Damares, mostra-se como retrocesso à população LGBT quando falamos em acesso a saúde. Popadiuk etal. (2017) apontam que um dos pilares importantes para que pessoas transgêneras tenham seus direitos garantidos por meio do PrTr é o preparo e acesso a informações de toda a equipe de saúde, o que necessita passar por debates de gênero e sexualidade.

Observa-se nas falas de Damares ideias que reforçam os estereotipos de gênero e dificultam o trabalho das políticas públicas voltadas para a população LGBT. Esse posicionamento conservador é observado na primeira declaração da ministra: "Meninas vestem rosa, e meninos vestem azul", afirmando que "não haverá mais doutrinação de gênero para as crianças e adolescentes do Brasil" (Montenegro et al., 2019). Além disso, o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, já afirmou publicamente ser homofóbico, declarando que preferia ver seu filho morto em um acidente do que ser gay. O governo federal, aliado ao Congresso mais conservador desde o período do regime militar, pode comprometer os direitos da população LGBT no Brasil, país com maior índice de homicídios LGBTfóbicos e considerado o mais perigoso para as pessoas transgêneras do mundo (Montenegro et al., 2019).

Enquanto a tendência mundial é de queda do crescimento dos casos de HIV/aids, o Brasil segue o rumo oposto e tem um aumento nos casos registrados, principalmente entre homens jovens que fazem sexo com outros homens, tal como destacam Montenegro et al. (2019). É importante ressaltar que o risco e a vulnerabilidade dos homossexuais femininos e masculinos com relação à infecção pelo HIV são resultado da falta de informação, do preconceito e do grande estigma social que recai sobre essa população (Santos et al., 2015).

O atual governo também tem representado retrocessos nas políticas de combate ao HIV. Em janeiro de 2019, o governo de Bolsonaro censurou um manual, desenvolvido pelo Departamento Nacional de Vigilância, Prevenção e Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis, HIV/aids e Hepatites Virais (DDAHV), que abordava a saúde dos homens transgêneros, incluindo estratégias de redução de danos (por exemplo, necessidade de evitar seringas ou agulhas ao usar hormônios). De acordo com o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a política de HIV/aids não deve desrespeitar a instituição familiar (Montenegro et al., 2019).

Os posicionamentos atuais do governo se mostram em desacordo com os eixos da Resolução n. 26 (2017), que prevê:

I - Acesso da população LGBT à atenção integral à saúde; II - Promoção e vigilância em saúde; III - Educação permanente, educação popular em saúde e comunicação; IV -Mobilização, articulação, participação e controle social; V - Monitoramento e avaliação das ações de saúde para a população LGBT. (p. 2).

Mesmo com os avanços da população LGBT no combate à epidemia de HIV/aids, que assolou sobremaneira esse segmento da população na década de 1980, ainda existem ameaças à população LGBT no combate a essa epidemia. Santos et al. (2015) apontam que os movimentos da população LGBT concentraram-se no combate à discriminação e ao preconceito e na prevenção da incidência no vírus, tanto para a própria comunidade quanto para a população geral. Os autores pontuam que, além do combate à homofobia, o combate à epidemia de HIV/aids contribuiu para a consolidação desses grupos, alvos de grande estigma social e de falta de informação.

Miskolci, Valadão e Gomes (2011, citado em Santos et al., 2015) afirmam que uma das razões para o despreparo dos profissionais da saúde para lidar com a diversidade sexual e de gênero está nos acordos construídos e disseminados nas dinâmicas histórico-sociais. As formações técnicas não dispõem de espaços de reflexões críticas sobre o tema. O despreparo dos profissionais prejudica a relação profissional-usuário, inibindo a expressão livre e aberta de pessoas LGBT sobre a temática de sua sexualidade com os profissionais de saúde, com limitações às possibilidades de prestação de cuidado.

Para que seja possível efetivar a mudança proposta pela Política Nacional de Saúde Integral LGBT e proporcionar o correto atendimento à população em sua diversidade, é necessário que os profissionais de saúde passem por revisão de seus pensamentos e posturas éticas. Os códigos de ética de profissões da saúde devem ser observados em suas pontuações enfáticas sobre a não discriminação nos atendimentos. A imposição da heterocissexualidade como o comportamento sexual padrão pode contrariar o princípio da autonomia, uma vez que limita as possibilidades de autodeterminação do usuário, obrigando-o a se submeter a padrões externos de retidão. Uma das formas de promover as mudanças necessárias nos serviços de saúde perpassa pelo questionamento da heterossexualidade como a única possibilidade aceitável de orientação sexual, buscando abarcar as especificidades dos diversos segmentos populacionais (Santos et al., 2015).

É necessário compreender a comunidade LGBT em toda sua complexidade, respeitando a autonomia e diversidade de cada segmento populacional que compõe a sigla. Freire et al. (2013) ressaltam que o pluralismo de siglas engloba grupos de indivíduos que, apesar de movidos por discursos semelhantes, delimitam suas diferenças, sendo estas pouco ou nada compreendidas pela sociedade. Por isso, mostra-se indispensável a reflexão sobre as subjetividades LGBT. Santos et al. (2015) propõem, então, ter na bioética principialista ponto de partida para a atuação profissional em saúde, baseando-se nos princípios de beneficência, não maleficência, respeito à autonomia e justiça (Paranhos, 2017). Assim, pode-se superar os juízos de valor dos profissionais de saúde, promovendo maior igualdade no atendimento da população LGBT.

A pluralidade e diversidade contida nos segmentos populacionais da sigla LGBT representam também diferentes demandas para os serviços de saúde. A problemática de saúde no universo de travestis, transexuais e transgêneros (TTT) engloba mais do que a realização de cirurgias de transgenitalização. O que faz um sujeito se afirmar em um gênero é sua subjetividade. Assim, é possível que a transformação do corpo proveniente da hormonioterapia já seja suficiente para a garantia do sentimento de identidade em pessoas transgêneras (Bento 2006, como citado em Freire et al., 2013).

Os estudos selecionados destacaram a relevância das políticas governamentais para a defesa dos direitos de indivíduos e coletivos com relação à saúde. O Ministério da Saúde elaborou a Carta dos Direitos dos Usuários, compreendendo as demandas de diversos grupos sociais e qualificando os debates na área. Essa política objetiva a ampliação do acesso a serviços adequados, de acordo com os princípios de integralidade e universalidade do SUS, por proporem ações voltadas para a promoção, prevenção e recuperação da saúde (Brasil, 2010 como citado em Freire et al., 2013).

A Carta dos Direitos dos Usuários no SUS é enfática ao abordar o direito ao atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação, negação ou restrição, em virtude da orientação sexual e identidade de gênero. Assim, a LGBTfobia é equiparada às discriminações de raça, classe e idade. Entre os direitos assegurados pela carta, encontra-se o de todo usuário ser chamado por seu nome social, também utilizado nos registros do SUS (Silva et al., 2017). Entretanto, apesar da existência da Regra Administrativa Federal (n. 1.820, de 13 de agosto de 2009) que garante o uso do nome social, muitas vezes essa exigência não é observada pelos profissionais em suas práticas, lesando um direito que a população LGBT tem e sendo uma das queixas mais significativas relacionadas ao tratamento precário por parte da equipe multiprofissional (Perucchi et al., 2014).

Perucchi et al. (2014) destacaram outra queixa significativa identificada por essa população: a da falta de profissionais especializados para o atendimento da população transgênera, como endocrinologistas, psiquiatras, ginecologistas, urologistas e psicólogos no quadro de pessoal clínico de alta complexidade. O Brasil dispõe de cinco hospitais que realizam atendimentos ambulatoriais e cirúrgicos: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, Goiânia (GO); Hospital de Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS); Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (RJ); Fundação Faculdade de Medicina, da Universidade de São Paulo (USP); e Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife (PE) (Brasil, 2017; Popadiuk et al., 2017). Há, também, 23 unidades de atendimento ambulatorial (Coordenação de Promoção de Equidade em Saúde integrante da Gerência de Programas Especiais da SES de Goiás, 2015), espalhadas pelo território nacional. E, apesar da existência desses centros especializados, os tratamentos oferecidos não são integrados. Eles oferecem apenas parte dos serviços recomendados pela legislação vigente, o que coloca esse segmento da população em situação de risco e vulnerabilidade.

Os dados anteriores corroboram as discussões levantadas por Perucchi et al. (2014), segundo as quais, devido à falta de integralidade e à dificuldade de acesso aos serviços, os cidadãos transgêneros ocupam uma posição de maior vulnerabilidade diante do risco da automedicação, uso inadequado e não especializado de hormônios e a inserção corporal de silicone. Tais procedimentos podem levar a danos irreversíveis à saúde do usuário e até ao óbito. É de extrema importância, então, repensar o lugar de vulnerabilidade reservado aos cidadãos transgêneros nos serviços públicos de saúde no Brasil. Apesar de ser modelo mundial em sua organização, a prática do SUS ainda expõe usuários a agravos de saúde (Perucchi et al., 2014).

Diante desse cenário, observa-se como as dificuldades decorrentes do preconceito, enfrentadas por esses indivíduos na sociedade, manifestam-se nos serviços de saúde. As pessoas transgêneras encontram-se em situação especialmente vulnerável, justificando uma política específica de saúde para elas. As pessoas acessam os serviços motivadas pela combinação de aspectos individuais e contextuais, que também serão preditores da qualidade do atendimento recebido (Freire, Araujo, Souza, & Marques, 2013). Essas reflexões corroboram, assim, as ideias apontadas por Silva et al. (2017), que argumentam como o debate sobre diversidade, promovido a partir das demandas identificadas por gestores e pesquisadores, não se conecta com a atuação dos profissionais em contato direto com os usuários.

A partir da visão em como se dá esse desenvolvimento de políticas públicas em saúde voltadas para a população LGBT brasileira, é possível delinear propostas de trabalho e resoluções que possam tornar esse cenário mais justo, igualitário e saudável para a população LGBT. I ancelti (2007, como citado em Freire et al., 2013) enfatiza a importância de se utilizar a clínica peripatética para o atendimento desse seguimento populacional. A proposta dos autores é de uma prática dialógica e que contemple a fluidez das relações.

As pessoas transgêneras podem ser mais bem atendidas à medida que se amplia a gama de serviços a elas oferecidos, além daqueles delimitados pelo Processo Transexualizador do SUS. Para tanto, é necessário haver sensibilização dos profissionais às particularidades desse grupo, o respeito ao nome social e a saída do modelo binário para organização de gêneros. Ações formativas, cartazes, promoção de cursos sobre a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais e avaliação e monitoramento dos serviços por atores adequados à tarefa (como os integrantes do Comitê Técnico de Saúde LGBT) também são identificados como formas de aprimorar os serviços oferecidos à população LGBT (Popadiuk et al., 2017).

Os espaços institucionalizados devem ser ocupados por representantes da população LGBT, de forma a exercer-se o controle social no SUS. Essa dinâmica se dá pelo contato com gestores dos níveis municipais, estaduais e federais para a propositura de políticas novas e acompanhamento da implementação das existentes. A vulnerabilidade e a exposição aos riscos desse grupo social fazem com que seja necessário maior afinco nas pressões feitas (Silva et al., 2017). A Lei n. 8.080, de 1990, que instituiu o SUS, no Capítulo II, artigo 7°, define a participação comunitária enquanto um dos princípios do Sistema ali detalhado. O Estado Brasileiro reconhece a participação social enquanto fator potente e necessário de enfrentamento às desigualdades características de nossa sociedade, de forma a fortalecer a democracia (Brasil, 2013).

 

Considerações finais

As autoras deste estudo observaram a grande quantidade de artigos de revisão de literatura encontrados durante o processo de pesquisa. Sugere-se, a partir disso, a aproximação dos usuários por futuros pesquisadores. A falta de estudos empíricos dificultou a resposta à pergunta feita sobre as mudanças em políticas públicas da população LGBT entre os anos de 2013 e 2019. As autoras reconhecem que não incluíram na pesquisa dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Outro ponto a ser considerado refere-se à escassez de estudos sobre outros sujeitos da sigla LGBT, como as pessoas bissexuais. Estas são constantemente invisibilizadas nas discussões públicas e um dos papéis da academia é contribuir para lançar luz sobre essas questões. Conforme constataram Machado, Alves e Dickson (2018), o bissexual, ao relacionar-se com pessoa do mesmo gênero, é lido como gay ou lésbica; a partir do momento que se relaciona com sujeitos do gênero oposto, é identificado como heterossexual. A polarização embutida nesse raciocínio abre espaço para a prática da bifobia. Este preconceito é vivenciado de maneiras distintas por homens e mulheres, colocando essas pessoas em risco quando se trata de suas saúdes sexuais (Moscheta, Fébole, & Anzolin, 2016).

Salienta-se, por fim, a necessidade de posicionamento da Psicologia nos processos de aprimoramento do SUS, a partir das compreensões de fluxos subjetivos e de relações de poderes sociais. Desde a década de 1980, direcionamos nossas reflexões e práticas para atender a demandas coletivas, posicionadas politicamente a partir de questionamentos do status quo. Estabelece-se, então, uma nova relação entre psicólogas, psicólogos e o campo público: nosso conhecimento é disponibilizado para elaborar políticas públicas de Saúde comprometidas com a garantia de direitos sociais (Polejack et al., 2015). Sugere-se, assim, o desenvolvimento de mais estudos sobre o papel da Psicologia no desenvolvimento de políticas de saúde voltadas para a população LGBT.

 

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Endereço de contato:
Izabella Rodrigues Melo
EQRSW 7/8, lote 1, Edifício Monumental Sudoeste, apartamento 13, Setor Sudoeste
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E-mail: izabella.rmelo@gmail.com

Recebido em: 12/07/2019
Última revisão em: 05/11/2019
Aceite final: 21/01/2020

 

 

Izabella Rodrigues Melo: Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Psicóloga.
E-mail: izabella.rmelo@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5172-1148
Thatiane Hellen de Amorim: Graduanda em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: thati.amorim1@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0367-7952
Raquel Braga Garcia: Graduanda em Psicologia pela Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: raquelrbg504@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6473-1943
Larissa Polejack: Doutora em Psicologia. Professora de Magistério Superior da Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: larissapolejack@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0506-1721
Eliane Maria Fleury Seidl: Doutora em Psicologia, professora de magistério superior da Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: eliane.seidl@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1942-5100

 

 

1 O termo é usado de acordo com a proposta de Silva et al. (2017). Os autores referem-se à organização social ordenada a partir da cisgeneridade e da heterossexualidade, que não compreendem outras formas de existência.
2 O termo é usado de acordo com a proposta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (2017).
3 O termo é usado de acordo com a recomendação da Organização das Nações Unidas (2018).

^rND^sAlbuquerque^nG. A.^rND^sGarcia^nC. D. L.^rND^sAlves^nM. H. J.^rND^sQueiroz^nC. M. H. T. De^rND^sAdami^nF.^rND^sAngonese^nM.^rND^sLago^nM. C. D. S.^rND^sArán^nM.^rND^sMurta^nD.^rND^sLionço^nT.^rND^sCzeresnia^nD.^rND^sFreire^nE. C.^rND^sAraujo^nF. C. A.^rND^sSouza^nÂ. C.^rND^sMarques^nD.^rND^sMachado^nJ.^rND^sAlves^nA.^rND^sDickson^nM.^rND^sMello^nL.^rND^sAvelar^nR. B. D.^rND^sMaroja^nD.^rND^sMontenegro^nL.^rND^sVelasque^nL.^rND^sLegrand^nS.^rND^sWhetten^nK.^rND^sMattos^nR. De^rND^sRafael^nR.^rND^sMoscheta^nM.^rND^sFébole^nD.^rND^sAnzolin^nB.^rND^sMoura^nR.^rND^sPupo^nA.^rND^sParanhos^nF. R. L.^rND^sPerucchi^nJ.^rND^sBrandão^nB. C.^rND^sMagno^nC.^rND^sBerto^nG.^rND^sRodrigues^nF. D.^rND^sAugusto^nJ.^rND^sPolejack^nL.^rND^sTotugui^nM.^rND^sGomes^nP.^rND^sConceição^nM.^rND^sPopadiuk^nG. S.^rND^sOliveira^nD. C.^rND^sSignorelli^nM. C.^rND^sSantos^nA. R. D.^rND^sSantos^nR. M. M.^rND^sSouza^nM. L. D.^rND^sBoery^nR. N. S. D. O.^rND^sSilva^nJ. W. S. B.^rND^sNobre^nC. N.^rND^sde Carvalho Bezerra^nH. M.^rND^sDuarte^nK. V. N.^rND^sde Macedo Quinino^nL. R.^rND^sDe Souza^nM. T.^rND^sDa Silva^nM. D.^rND^sDe Carvalho^nR.^rND^1AFF1^nAntônio Vladimir^sFélix-Silva^rND^1AFF2^nGabriela Pinheiro^sSoares^rND^1AFF1^nAntônio Vladimir^sFélix-Silva^rND^1AFF2^nGabriela Pinheiro^sSoares^rND^1AFF1^nAntônio Vladimir^sFélix-Silva^rND^1AFF2^nGabriela Pinheiro^sSoares

10.20435/pssa.vi.1053 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Cartografia da saúde do homem em conflito com a lei

 

Cartography of the health of men in conflict with the law

 

Cartografía de la salud del hombre en conflicto con la ley

 

 

Antônio Vladimir Félix-SilvaI; Gabriela Pinheiro SoaresII

IUniversidade Federal do Piauí (UFPI)
IIUniversidade Potiguar (UNP)

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RESUMO

Neste estudo, apresentamos um recorte de uma pesquisa-intervenção realizada em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, com o objetivo de cartografar processos de subjetivação da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei. Para a produção das informações, utilizamos a cartografia e realizamos encontros com participantes da pesquisa por meio de práticas integrativas grupais e uso de objetos relacionais da arte. Para a discussão e os resultados, utilizamos a esquizoanálise, que aponta: a) as ações do cuidado em custódia são reduzidas à medicalização do confinamiento e à atenção de urgência e emergência, quando não é adiado ao máximo esse direito humano; b) a promoção da saúde do homem privado de liberdade é associada a ações de humanização e direitos humanos vinculados à determinação social. Conclui-se que os processos de subjetivação denunciam as instituições de violência e anunciam modos de desinstitucionalização da saúde mental custodiada.

Palavras-chave: saúde mental, hospital psiquiátrico, cuidado em custodia, saúde do homem


ABSTRACT

In this study, we present a cutout of an intervention research performed in a Hospital of Custody and Psychiatric Treatment, with the objective of mapping subjectivation processes of the health of men with mental disorders in conflict with the law. For data production, we used cartography and held meetings with research participants through group integrative practices and the use of relational art objects. For discussion and results, we used schizoanalysis, which points out that: a) actions of care in custody are restricted to the medicalization of the confinement and the urgent and emergency attention, when this human right is not deferred to the maximum; b) the promotion of the health of men deprived of freedom is associated with humanization and human rights actions linked to social determination. We concluded that the subjectivation processes denounce institutional violence and announce ways of deinstitutionalizing mental health in custody.

Keywords: mental health, psychiatric hospital, care in custody, men's health


RESUMEN

En este estudio, presentamos un recorte de una investigación-intervención realizada en el Hospital de Custodia y Tratamiento Psiquiátrico, con el objetivo de mapear los procesos de subjetivación de la salud del hombre con trastorno mental en conflicto con la ley. Para la producción de información, utilizamos cartografía y realizamos reuniones con los participantes de la investigación a través de prácticas de integración grupal y el uso de objetos relacionales del arte. Para la discusión y los resultados, utilizamos el esquizoanálisis, que señala: a) las acciones de cuidado en custodia se reducen a la medicalización del encarcelamiento y a la atención de urgencia y emergencia, cuando este derecho humano no se extiende al máximo; b) la promoción de la salud del hombre privado de libertad está asociada a acciones de humanización y derechos humanos vinculadas a la determinación social. Se concluye que los procesos de subjetivación denuncian a las instituciones de violencia y anuncian formas de desinstitucionalización de la salud mental vigilada.

Palabras clave: salud mental, hospital psiquiátrico, cuidado en custodia, salud del hombre


 

 

Introdução

Celas, cantos, contos, prosa e versos que denunciam violações de direitos humanos: artimanhas da loucura em um Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP). Corpos mal-amados pela pátria amada dormem em camas de concreto sem colchões. Homens com diagnósticos de transtornos mentais em conflito com a lei presos entre grades e psicotrópicos auguram vidas, liberdades pensantes, sonhos brincantes. Mau-cheiro. Celas escuras. Grades. Mais grades. Outras grades. Dores... Olhares algures atravessam entranhas. Ante o sofrimento ético-estético-político a que estão submetidos quarenta e três homens que cumprem medida de segurança no HCTP, também nomeado de manicômio judiciário, onde realizamos uma pesquisa-intervenção, nossos corpos de cartógrafo e cartógrafa engolem gritos, aprisionam liberdades, silenciam compaixão. Nossas lágrimas secam nos olhos antes que deslizem no rosto e caiam no chão (Diário Cartográfico do autor).

Na pátria amada Brasil, o manicômio mental (Pelbart, 2009a) nasceu antes do hospital psiquiátrico e antes do manicômio judiciário. O manicômio mental nasceu junto da colonização de indígenas e da escravização do povo negro, traficado da África. A genealogia do manicômio mental está relacionada ao racismo estrutural (Deleuze & Guattari, 2012), pretensão do homem branco, europeu e heterossexual que tinha a missão de projetar sua imagem por meio da extinção das desvianças e do isolamento dos desviantes que não estavam em conformidade ao idêntico de si mesmo; este que não suporta a alteridade dos loucos e dos que não se deixam identificar com o espelho da produção de subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018) cuja "crueldade só se iguala a sua incompetência ou a sua ingenuidade" (Deleuze & Guattari, 2012, p. 51). Essa mentalidade manicomial e racista, da qual não escapamos, deu origem à psiquiatria, cuja função de ordem social e higiene pública (Foucault, 2010a) é anterior à inauguração, no Rio de Janeiro, do Hospício D. Pedro II, em 1852, que passou a se chamar Hospital Nacional dos Alienados, em 1890 (Costa, 2007), e à criação do primeiro manicômio judiciário, em 1921, também no Rio de Janeiro, que, a partir do novo código penal, recebeu o nome de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho (HCTPHC). Como ressalta Cristina Rauter (2003), antes, os loucos vagavam "pelas ruas, no hospital da Santa Casa, misturados a vagabundos, sifilíticos e prostitutas, nas prisões e nas casas de família, especialmente as abastadas" (p. 42); seguindo o Código Penal de 1830, os juízes recomendavam que "loucos que cometessem crimes fossem entregues às famílias e às casas a eles destinadas" (p. 42). O HCTPHC foi extinto em março de 2013, "após a desinternação jurídica de todos os pacientes" (Santos, & Farias, 2014, p. 516), efeito de intervenção com base na aplicação da Lei Antimanicomial, Lei n. 10.2016 (Brasil, 2001), e em argumentos que comporiam as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Pnaisp) (Brasil, 2014).

A Lei n. 10.2016/2001, Lei da Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2001) ou Lei Antimanicomial emergiu a partir da Reforma Sanitária e da luta de trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental que se iniciou no fim dos anos 1970 e se prolongou na década de 1980, tendo como marcos a 8- Conferência Nacional de Saúde de 1986 e a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM) de 1987 (Tenório, 2002; Yasui, 2010). A partir da Reforma Psiquiátrica e das políticas de saúde mental, enfrentamos desafios e tivemos avanços com algumas experiências do cuidado de base comunitária a pessoas com sofrimento psíquico, envolvendo ações intersetoriais, arte, pontos de cultura, geração de renda, trabalho e economia solidária, autonomia e protagonismo de usuários e usuárias (Ramos, Paiva, & Guimarães, 2019). Atualmente, ainda há muitas dificuldades a serem superadas, principalmente relacionadas a usuários de substâncias consideradas lícitas e ilícitas e muitas relacionadas à saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei.

A política de saúde mental (Brasil, 2001) orienta o tratamento com base na atenção psicossocial de base comunitária e o acompanhamento pelos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), incluindo o acolhimento em todos os serviços e estabelecimentos da Rede de Saúde que compõem o Sistema Único de Saúde (SUS) e dispositivos do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Nessa perspectiva, a atenção psicossocial ao homem com transtorno mental que se encontra custodiado também deve ser dada com base na Pnaisp (Brasil, 2014) e nos princípios da Lei n. 10.2016/2001 (Brasil, 2001), que regulamenta as internações compulsórias aplicadas pela Justiça a inimputáveis e semi-imputáveis.

O homem com transtorno mental é considerado inimputável quando não é capaz de saber que estava cometendo atos infracionais ou entrando em conflito com a lei em um dado momento de crise relacionada a transtornos mentais (Brasil, 2011; Santos & Farias, 2014; Santana, Pereira, & Alves, 2017). A execução da medida de segurança a partir da internação compulsória tem sido uma dificuldade já apontada em outras pesquisas (Soares Filho & Bueno, 2016; Prado & Schindler, 2017), haja vista que essa internação só deveria ocorrer depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento terapêuticos e todos os recursos extra-hospitalares disponíveis na rede de assistência (Dalmolin, 2006).

A Pnaisp surgiu em função do esgotamento de um modelo proposto no Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário (PNSSP) (Brasil, 2004), que objetivava garantir o acesso ao Sistema Único de Saúde como direito humano e o reconhecimento como sujeito de direito do cidadão que se encontra preso - direito assegurado pela Constituição de 1988 e pela Lei 8.080/1990. No entanto, mesmo com a adesão de todos os estados e do Distrito Federal ao PNSSP e com a constituição de 235 equipes de saúde, a maioria dependente das secretarias de Justiça, ficaram fora dessa atenção à saúde as pessoas custodiadas em penitenciárias federais; e a geografia da atenção à saúde, entre 2003 e 2013, com base nesse plano, foi reduzida aos muros das unidades que compõem o "itinerário carcerário: delegacias e distritos policiais, cadeias públicas, colônias agrícolas ou industriais" (Brasil, 2014, p. 5).

A Pnaisp, construída com a participação de vários atores sociais e deliberada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), parte do reconhecimento do fracasso da instituição Saúde quanto à redução epistemológica da atenção e do cuidado com ações limitadas à instituição Justiça, por isso, aposta em ações interministeriais e anuncia, na perspectiva da clínica ampliada, a "necessidade urgente de promover a inclusão efetiva das Pessoas Privadas de Liberdade ao Sistema Único de Saúde - SUS, cumprindo os princípios de universalidade e de equidade" (Brasil, 2014, p. 5). Em outras palavras, a assistência, no âmbito do SUS, aconteceria para além dos muros do itinerário carcerário, ou seja, contando não só com o trabalho das equipes mínimas que atuam in loco - em 2013, eram 235 Equipes de Saúde no Sistema Prisional - mas também com todos "os serviços da Rede de Atenção à Saúde do SUS, incluindo definitivamente toda a população privada de liberdade no Sistema Único de Saúde" (Brasil, 2014, p. 6). Com base nessas políticas, as ações de promoção da saúde e de prevenção de agravos à saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei fazem parte do cuidado no itinerário carcerário, haja vista o HCTP constituir uma das unidades do sistema penitenciário. Essa política concebe itinerário carcerário como todo o percurso no sistema prisional, "desde o momento da detenção do cidadão e sua condução para um estabelecimento policial até a finalização do cumprimento da pena" (Brasil, 2014, p. 7).

Dada a existência de manicômios judiciários e de outros manicômios, a luta antimani-comial é uma luta permanente, haja vista que a própria Reforma Psiquiátrica corre risco de contrarreformas. O atual governo (2019-2022) lançou a Nota Técnica n. 11/2019, que aponta para a suspensão do fechamento de leitos, a ampliação de leitos psiquiátricos, o financiamento para compra e uso de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) (Brasil, 2019).

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil tem atualmente vinte e nove Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico.

Os HCTPs, apesar de terem o nome de hospitais, não são unidades de saúde, sendo considerados pelo SUS como unidades prisionais, destinadas à custódia das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei e que estão submetidas à sanção penal de Medida de Segurança- indivíduos que cometeram algum tipo de delito ou contravenção penal, mas não são reconhecidos pela justiça como capazes de identificar o caráter ilícito de suas ações (inimputáveis) (Brasil, 2014, p. 8).

No que se refere às experiências de desinstitucionalização de custodiados, destacamos os processos realizados por meio do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), em Minas Gerais, desde 1999, e do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), em Goiás, iniciado em 2009. As ações desses programas incluem compensação das internações compulsórias por acompanhamento ao longo do processo criminal, oferecendo assistência integral e intersetorial a partir dos serviços do SUS e Suas às pessoas com transtornos mentais que entram em conflito com a Lei (Correia, Lima, & Alves, 2007; Soares Filho & Bueno, 2016; Prado & Schindler, 2017).

À diferença dessas experiências, o HCTP, onde realizamos a pesquisa, tem em comum com outras unidades que compõem o itinerário do sistema prisional no Brasil, nos Estados Unidos e na França, o agenciamento da produção de subjetividades custodiadas em modos de vida precária com tratamento desumanizado e degradante (Wacquant, 2007; Agamben, 2008; Butler, 2011). Trata-se de uma perspectiva biopolítica de fazer sobreviver em condições subumanas para deixar morrer (Agamben, 2008) custodiado em uma estrutura marcada pela grave carência de profissionais e pala insalubridade (Wacquant, 2007), "das celas com umidade, sujeira, pouca iluminação e ventilação [que] geram impacto direto nas demandas de saúde, pois propiciam o surgimento de agravos ou os potencializam, facilitando a transmissão e dificultando o tratamento das doenças" (Brasil, 2014, p. 8).

Estudos realizados nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França anunciam as dificuldades para a chamada ressocialização dos custodiados, principalmente quando não se inventam processos de autonomia e não se criam condições para que eles se sintam pertencentes ao processo de desinstitucionalização. Schmitt, Bolsoni, Conceição e Oliveira (2014) afirmam que pesquisas realizadas no Brasil também mostram resultados similares a esses estudos. As autoras e o autor confirmam que "nosso contexto se agrava pela pesada herança antidemocrática (escravismo, machismo, repetidas ditaduras, exclusão social crônica) e pela opção do desenho do sistema sob forte influência norte-americana" (p. 8); concluem apontando para o "grave paradoxo: o Estado prende para ensinar o cidadão a respeitar a lei, mas o castiga descumprindo todas as leis e destituindo-o dos direitos de cidadania" (p. 9). Paradoxo dos paradoxos encontramos no manicômio judiciário, onde o homem em conflito com a lei é custodiado para receber tratamento psiquiátrico e cumprir medida de segurança, não obstante o Estado viola os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais, agenciando subjetividades que produzem racismo institucional e reproduzem linhas duras das instituições de violência: Justiça/Prisão, Saúde/Psiquiatria.

Foucault (2010b) observou que, até o final do século XVIII, o direito penal só considerava loucura os casos relacionados à demência e a debilidades mentais e quando o transtorno mental se apresentava na forma de furor. O autor apresenta uma genealogia dos jogos de saber e da modalidade de poder relativos à racionalidade médica que inventou a patologização do crime voltada à higienização pública e relata, ainda, que a intervenção da psiquiatria na jurisprudência da loucura do crime na França, na Inglaterra, na Áustria e na Escócia ocorreu no início do século XIX, "a propósito de uma série de casos que tinham aproximadamente a mesma forma e se desenrolaram entre 1800 e 1835" (Foucault, 2010b, p. 3).

A partir da leitura do livro de Delmato, Código Penal Comentado, Soares Filho e Bueno15 ressaltam "que, no Brasil, antes da reforma do Código Penal Brasileiro, de 1984, todos os 'excluídos' eram considerados perigosos para a sociedade. Depois desta data, somente as pessoas com transtornos mentais foram consideradas perigosas" (p. 2106). Nessa situação, de acordo com o Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen), em 2014, existiam, no Brasil, "2.497 pessoas em cumprimento de Medida de Segurança na modalidade de internação psiquiátrica. Aproximadamente 85% destas pessoas estão em Alas Psiquiátricas ou Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) e 15% em unidades prisionais comuns" (Soares Filho & Bueno, 2016, p. 2103).

A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Pnaish) (Brasil, 2008) reconhece a coexistência de determinantes sociais do processo saúde-doença, entre os quais, problematiza e ressalta a violência como "um fenômeno difuso, complexo, multicausal, com raízes em fatores sociais, culturais, políticos, econômicos e psico-biológicos, que envolve práticas em diferentes níveis" (p. 11). A violência amplia a vulnerabilidade dos custodiados e expõe os homens, autores de atos infracionais, a outras situações de violência, dado que a produção de subjetividades custodiadas está marcada pelo agenciamento de modos de vida precária (Butler, 2011) e a violência, tal qual a injustiça social, é um dos dispositivos da produção de subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018).

Quando o cenário de prática profissional é um HCTP, onde o processo de gestão, trabalho e educação em saúde é precário, e as ações, fora dos muros do manicômio judiciário, são reduzidas à atenção de urgência e emergência, quando tem transporte e número suficiente de agentes penitenciários trabalhando, como se configuram os processos de subjetivação da saúde do homem privado de liberdade que entrou em conflito com a lei em função de transtornos mentais? Quando pensamos esse foco indagatório, voltamo-nos à problematização das ações de profissionais nesse cenário de práticas de produção de subjetividades custodiadas. Guiamo-nos pela concepção de saúde como campo de produção da vida e negociação de sua determinação social (Brasil, 2010). E entendemos por processos de subjetivação a expressão, por meio da linguagem verbal e não verbal, de modos de sujeição e de devir sujeito, modos de ser, pensar e atuar, de produzir narrativas ou reproduzir discursos. Trata-se da expressão de enunciados e enunciações que nos remetem tanto à dimensão extrapessoal quanto à dimensão intrapessoal, tanto às questões macro quanto às questões micropolíticas. Guattari & Rolnik (2010) mostram que esses processos de subjetivação são totalmente descentrados, podendo exprimir atravessamentos das instituições econômicas, sociais, tecnológicas, icônicas, ecológicas, etológicas, midiáticas, jurídicas e políticas; e, ao mesmo tempo, exprimir "sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagem e de valor, modos de memorização e de produção de ideias, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos e assim por diante" (p. 39).

Desde essa perspectiva, apresentamos uma análise dos desdobramentos relacionados ao nosso objetivo, a saber: cartografar processos de subjetivação da saúde do homem que cometeu algum delito durante crise de transtorno mental. Para tanto, pensamos, incialmen-te, com os poetas, participantes da pesquisa, e com outros autores e autoras que, no nosso ponto de vista, contribuem com concepções e conceitos para nossa caixa de ferramentas denominada esquizoanálise (Perrone, 2009; Deleuze & Guattari, 2012). A partir da esqui-zoanálise, Deleuze e Guattari (2012) concebem a subjetividade como uma produção, politicamente, economicamente e historicamente, marcada pela formação do desejo no campo social, cujos processos de subjetivação exprimem a coexistência de agenciamentos segmentares, os quais os autores nomeiam de linhas de força molar, e agenciamentos coletivos e criativos do desejo, os quais eles nomeiam de linhas maleáveis e moleculares, no sentido de deslocamentos, desterritorializações e devir nova subjetividade (Rolnik, 2006).

O que buscamos com a esquizoanálise dos processos de subjetivação da saúde do homem que cometeu algum delito durante crise de transtorno mental? Na produção de subjetividades custodiadas, operam principalmente os dispositivos Justiça e Psiquiatria com seus jogos de saber e poder "que instrumentam táticas de controle, fixação e adestramento dos corpos" (Rauter, 2003, p. 16). Não obstante, para análise dos processos de subjetivação da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei, consideramos também outros dispositivos com seus atravessamentos sociais, econômicos, educacionais e políticos que emergem dessa produção de subjetividades relacionados às ações de desumanização e humanização em saúde. A esquizoanálise não propõe a representação, a interpretação nem a simbolização do objeto de estudo, "mas apenas a fazer mapas e traçar linhas, marcando suas misturas tanto quanto suas distinções" (Deleuze & Guattari, 2012, p. 119)2. Nessa perspectiva, buscamos não delinear somente os atravessamentos dos dispositivos que são articulados para o agenciamento do homem com transtorno mental em conflito com a lei "como alguém potencialmente [perigoso, sempre] capaz de comentar um crime" (Rauter, 2003, p. 41). Ou seja, não reduziremos a análise dos processos de subjetivação dos participantes da pesquisa às linhas duras, linhas de força do manicômio mental que operam como grades conectando a vida do custodiado à loucura e à periculosidade, mas ressaltamos a existência dessas linhas com o desalinhamento antimanicomial a partir dos versos, isto é, das linhas dos poemas que são tradução de processos de subjetivação criativos que singularizam a vida entre grades e psicotrópicos.

 

Caminhos cartográficos no manicômio

No HCTP, onde realizamos a pesquisa, tomamos conhecimento, em uma das rodas de conversa realizadas com a gestão, que havia trinta homens com transtornos mentais em conflito com a lei, no itinerário do sistema prisional, aguardando uma vaga no HCTP. Constatamos que havia quarenta e três internos e vinte e três em tratamento ambulatorial, totalizando sessenta e seis pacientes judiciários do sexo masculino; faixa etária entre 18 e mais de 60 anos, sendo trinta e dois deles da região metropolitana e trinta e quatro de outros municípios do Estado, conforme dados estatísticos que o HCTP sistematiza para alimentar o Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen). Em uma das rodas de conversa realizada com a presença da psiquiatra, ela nos relatou que a maioria dos considerados pela Justiça como inimputáveis é caracterizada pela psiquiatria no âmbito das psicoses, e a minoria, no campo das toxicomanias e dos transtornos de personalidade antissocial: vinte e nove cumpriam medida de segurança, entre os quais sete haviam feito a conversão da pena para essa modalidade; nove dependentes de drogas ilícitas estavam na denominada situação temporária de internação, além de seis que deveriam estar em liberdade, pois se encontravam na denominada "desinternação condicionada", ou seja, a Justiça havia lhes outorgado esse direito, mas o processo de desinstitucionalização estava condicionado à existência de dispositivos tais como família, residência terapêutica, residência assistida. Esses custodiados se encontravam com os vínculos familiares interrompidos e só havia uma Residência Terapêutica em funcionamento na cidade, havendo a notícia de recursos orçados para outras duas que não foram abertas durante o período da pesquisa.

Nesse contexto, realizamos uma cartografia dos processos de subjetivação da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei, ou seja, do homem que cometeu algum delito durante uma crise de transtorno mental. Essa cartografia, como modo de fazer pesquisa qualitativa em Psicologia, Ciências Sociais e Saúde Coletiva (Barros & Kastrup, 2010), implicou a composição de paisagens psicossociais (Rolnik, 2006) com os participantes no manicômio judiciário, por meio de práticas integrativas grupais (Nascimento, 2016) e de ferramentas da arte relacional (Rolnik, 1988; 2002; 2006).

A produção das informações se deu por meio da realização de vinte e cinco encontros de duas horas cada um, com dezoito participantes, por um período de um ano e oito meses, excetuando-se meses de férias. Além disso, realizamos seis rodas de conversa com nove dos dezesseis agentes penitenciários que trabalham em trios por plantão de 24h; um círculo de cultura e três rodas de conversa com um psiquiatra que presta serviço de 4h uma vez por semana, três enfermeiros e duas técnicas de enfermagem que prestam serviços de 8h por dia, alternadamente, e duas assistentes sociais que também prestam serviço de 8h, uma vez por semana. Realizamos doze reuniões com a gestão, diretor e vice. Ao todo, foram 70 entradas e saídas.

Entre os objetos relacionais da arte produzidos pelos participantes da pesquisa, elegemos para análise dos processos de subjetivação da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei: dois diários cartográficos escritos em versos e narrativas em prosa de um agente penitenciário, de uma enfermeira, de dois técnicos de enfermagem e de uma assistente social; e narrativas produzidas em uma roda de conversa e um círculo de cultura, do qual participaram sete profissionais. O uso de objetos relacionais da arte para interação e intercâmbio com os participantes e para a produção de informações vinculadas ao objetivo da pesquisa está relacionado à perspectiva ético-estético-política da cartografia e à concepção de arte contemporânea: arte como experimentação (Dias, 2004; Rolnik, 2006), a exemplo dos objetos relacionais de Lygia Clark (Rolnik, 2002). Nessa cartografia, nossos diários cartográficos foram usados como instrumentos de registros de informações e os diários cartográficos dos participantes, cujo material foi entregue durante a pesquisa, foram usados como objetos relacionais. Objetos relacionais são artefatos da arte que produzem afecções, não só os levados por nós: literatura, música, filmes, fotografia, videoclipes, entre outros; como também os produzidos pelos participantes da pesquisa: tatuagens, modelagens, cartas, contos, causos, poesia, rap, letras de música e esquizodrama.

 

"Vivendo entre Aspas"

"Vivendo entre Aspas", de autoria de Sabiá, é um poema escrito com um verso único e que o faz fugir à estrutura e à métrica do haicai, sem deixar de se aproximar de elementos da composição poética dessa arte japonesa: permanência, transformação, percepção momentânea, ausência de rima e de adjetivação pitoresca ou explicações (Vieira, 1989). As aspas (significante) constituem elementos de permanência e o verbo viver, no gerúndio, elemento de transformação; já as aspas concretas ("") compõem as imagens que atravessam o poema, simbolizando as grades que aprisionam "um modo de viver o real cotidiano [no manicômio], sem complicá-lo com ideias", para usar uma expressão da experiência zen de Alberto Caieiro, heterônimo de Fernando Pessoa (Vieira, 1989).

O poema-título desta seção com resultados e discussão e os versos de poesias, enunciados e enunciações, apresentados para análise dos processos de subjetivação da saúde do homem em conflito com a lei, fazem parte da arte de reinventar-se em um HCTP. Os custodiados, participantes da pesquisa, recebem aqui como pseudônimos nomes de pássaros. Trata-se de um recorte de uma pesquisa-intervenção, cujo projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa e aprovado conforme Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 02830412.5.0000.5296.

No âmbito da psicologia e saúde coletiva, a promoção da saúde é associada às ações de profissionais em cenários cujas práticas são vinculadas à determinação social da saúde e aos direitos humanos. Quando esse cenário de prática faz parte do itinerário do sistema prisional, onde não há uma Equipe de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei e não se dá a efetiva inclusão dessas pessoas ao Sistema Único de Saúde como assegura a Pnaisp (Brasil, 2014), as ações de saúde são reduzidas à atenção de urgência e emergência; no HCTP, às vezes, até esse direito humano é negado.

Durante a pesquisa, fizemos intervenção para que fosse agendado exame de vista de um dos participantes; há seis meses, seu pai havia deixado o valor da consulta oftalmológica com o diretor da unidade; o custodiado gostava de ler e de escrever, ficou feliz quando recebeu novos óculos, mesmo que só pudesse ler em alguns momentos do dia, pois não havia lâmpada em sua cela nem na maioria das celas. Seis meses depois, fizemos visita a um dos participantes, após ele se submeter à cirurgia para retirada de "pedra na vesícula". Ele narra que passou à noite "batendo grades", gritando de dor e gritando "Agente! Agente! Agente!", mas só ouviram seus gritos pela manhã. À noite, não havia, no HCTP, nenhum profissional da saúde de plantão. No mesmo período, identificamos sintomas de tuberculose em um dos participantes da pesquisa. Nossa intervenção junto à administração do HCTP provocou a visita do Sistema de Vigilância em Saúde do Estado, que realizou teste rápido e não só comprovou que o custodiado estava infectado como também diagnosticou que outros custodiados e mais treze agentes penitenciários estavam com nível de bacilos no sangue um pouco acima do aceitável pela vigilância sanitária.

Um ano após iniciada a pesquisa, fomos convidados à "festa de natal" no HCTP; aquele dia havia reforço, além dos agentes penitenciários, pelo menos mais três polícias portavam fuzis. Encarregaram-nos de fazer uma vivência com os custodiados; dos quarenta e três internos, aproximadamente, trinta estavam na sala onde realizávamos os encontros, chamada de biblioteca. Não tivemos coragem de compor com a hipocrisia; recusamo-nos e nos negamos a desenvolver qualquer dinâmica e grupo, depois de ouvir uma das assistentes sociais responder pelo diretor da unidade a um pedido de um custodiado. Ele pedia: "Doutor, quando vão marcar minha ida ao dentista? Não aguento mais tanta dor de dente". Antecipando-se ao diretor, a assistente social expressou todo o agenciamento moral-religioso que atravessa molarmente os processos de subjetivação e de produção de subjetividades custodiadas: "Hoje, vamos esquecer a dor de dente, a dor de cabeça, todas as dores. Hoje, é dia de celebrar o nascimento de Jesus!".

Esse incidente nos fez lembrar a narrativa de Carcará, em um dos nossos primeiros encontros. Ao se referir ao homem com transtorno mental em conflito com a lei, no HCTP, ele afirmava: "Eu não me considero um problema, mas um produto; pois o que tem, aqui, na unidade, é apenas cadeia, a pessoa é totalmente esquecida e tem uma patologia acrescentada". Segundo ele, a patologia acrescentada é um problema sério. E conclui: "Aqui, tem um problema sério, a direção. Esse problema da direção mancha a reputação da justiça. O Hospital de Custódia era para se chamar de Hospital da Hipocrisia, pois não existe recuperação. Isso tem que ser denunciado, essa unidade tem de ser fechada, por isso não basta melhorar as estruturas, pois a forma de tratamento que fazem conosco também está errada".

A assistência jurídica, uma determinação social da saúde no itinerário do sistema prisional, praticamente não existe no HCTP. Entre os seis custodiados em situação de desinternação condicional, havia Ave-Severina, com mais de sessenta anos. Ele vivia capinando as áreas do HCTP, até que morreu com câncer nos ossos. Dos cinco que continuaram nessa condição de liberdade condicionada à situação de internos, dois foram transferidos para a Residência Assistida de um Hospital Psiquiátrico depois das intervenções provocadas por nossa cartografia, com intervenções junto à Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania (Sejuc) e indiretamente a outros órgãos da rede de assistência e de atenção psicossocial. Nossa pesquisa-intervenção gerou outros processos de desinstitucionalizações e desinternações que não serão relatadas aqui, por questões do recorte da pesquisa.

Durante a pesquisa, nossos diários cartográficos foram usados como instrumentos de registros de informações, e os diários cartográficos dos participantes foram usados como objetos relacionais, o material desses diários foi entregue numa oficina de confecção de capas de livros que poderiam ser escritos por cada um deles. Entre os dezoito custodiados participantes da pesquisa, uma minoria fazia desenho e a maioria narrava em prosa, escrevia cartas ou pedia ao parceiro de cela para escrever o que narrava. Dois poetas escreveram em versos seus diários cartográficos, objetos relacionais da arte produzidos pelos participantes, durante a pesquisa.

Ao devir poesia, a minoria o faz das experiências das grades, experiências do Fora de dentro do HCTP. "Para Blanchot, Foucault e Deleuze, a experiência do fora constitui uma estratégia de resistência que, na contramão da tradição racional, inaugura novas possibilidades éticas e estéticas de vida" (Levy, 2011, p. 135). Portanto "abrir o pensamento ou arte para as forças do fora significa chamar a vida à transformação, colocar em prática estratégias de resistência. Ou, nas palavras de Deleuze e Guattari, fazer do pensamento e da arte verdadeiras máquinas de guerra" (Levy, 2011, p. 136).

A força de fazer fugir o pensamento do manicômio judiciário, permanecendo custodiado, faz da prisão no HCTP "um lugar político, quer dizer, um lugar onde nascem e manifestam-se forças, um lugar onde se forma a história, e de onde o tempo surge" (Foucault, 2010a, p. 82). Nessa perspectiva ético-estético-política da cartografia, a poesia "tem, ao menos, um quê de comum com o discurso: quando faz passar uma força que cria a história, ela é política" (Foucault, 2010a, p. 82). O Fora na vida entre grades na prisão, como expressam os poetas participantes desta cartografia, está relacionado à liberdade de inventar "uma modalidade [poética] e inédita entre pensar, viver e desarrazoar" (Pelbart, 2009a, p. 138).

"A cadeia não são as grades, /A liberdade não é a rua, /Existem homens livres nas grades. /E existem homens presos na rua". Esses versos de Mandarim, citando e parafraseando Mahatma Gandhi, e o poema-título desta seção foram produzidos em um encontro mediado pela poesia, um dos objetos relacionais da arte que utilizamos durante a pesquisa. O poema de Sabiá e os versos de Mandarim convergem com o pensamento de Toni Negri (2001):

A vida é uma prisão quando não a construímos e quando o tempo da vida não é apreendido livremente. É possível ser livre tanto dentro como fora da prisão. A prisão não é [só] uma falta de liberdade, assim como a vida não é a liberdade - pelo menos a vida dos trabalhadores [que se assujeitam a condições de trabalho e de vida desumanos]. (p. 21).

Os versos dos poetas, como diria Artuad, não "respiram ócios felizes e êxitos do intelecto" (Pelbart, 2009b, p. 131), no contexto do HCTP. Pelo contrário, eles denunciam e anunciam a produção de subjetividades custodiadas cuja análise dos processos de subjetivação da saúde do homem em conflito com a lei nos remete ao sofrimento ético-estético-político, ao de-sassossego provocado pelo confinamiento, às afecções do corpo e à resistência política dos participantes da pesquisa e às sensações que o manicômio judiciário produz neles e em nós, cartógrafo e cartógrafa.

Os enunciados e enunciações que expressam esses processos de subjetivação constituem uma tradução dos agenciamentos produzidos, principalmente, pelas instituições Justiça e Saúde, mostrando como a determinação social da saúde e os determinantes sociais atravessam e transversalizam a produção de subjetividades custodiadas: "Muitos que aqui chegam /Não sabem nem onde estão /O tempo vai aumentando /Dentro do coração /Muito remédio controlado /É dado às pessoas /Mas nada se vê mudado /No comportamento delas" (Sabiá). "Passamos dia e noite trancado /Não tem nada pra fazer /Vivo deitado o dia todo /E começo a escrever. /São muitos assim como eu /Que vivem neste estado /O que tem só é remédio /Para os desorientados /Que os médicos receitam /Pros doidos ficar comportados" (Mandarim).

No HCTP, prevalece a medicalização do confinamiento, no sentido da psiquiatrização e psicologização de tudo que foge à norma (Foucault, 2010a)4. A medicalização dos modos de vida precária (Butler, 2011) e, consequentemente, o confinamiento entre grades e o tratamento reduzido à aplicação de psicotrópicos são dispositivos que emergem nas prosas de outros participantes da pesquisa e nos versos de Sabiá e Mandarim, marcando os processos de subjetivação segmentados e a produção de subjetividades custodiadas pelas instituições da violência (Basaglia, 2010):

"No hospital de custódia /É engraçado se ver /Os médicos que têm aqui /Não quer a gente atender/Se depender somente deles /A gente vai é morrer. /Nós pedimos aos enfermeiros /Alguma medicação /Eles falam que não podem /Tem que ter autorização /Dos médicos desta Unidade /Que não dão nem atenção" (Mandarim). "Os funcionários daqui todos eles usam 'máscaras' /Para quem está fora olham de um jeito /Mas para nós mudam completamente as caras! /Por causa disso e outras coisas /Muitos que saem, voltam /E quando chegam mostram os monstros que eles moldaram" (Sabiá). "Só tomo remédio à noite /Somente para dormir /Eu não estou precisando mais /Com isso não vou discutir /O médico não quer suspender /Quem sou eu pra impedir?" (Mandarim). "Nunca vi tanto disfarce /Lobos em face de cordeiros /Somente os prisioneiros /Não estão disfarçados de doentes! /O tempo é o remédio e o remédio destrói /Onde a mente é dizimada nada mais se constrói" (Sabiá).

O paradoxo do tempo: tempo como remédio pode ser o tempo dos bons encontros com a escrita e de devir outro ao devir poesia, tempo de intensidade das sensações de sensibilidade, o qual não está dissociado do afeto nem da duração da experiência emotiva (Lapoujade, 2013). Trata-se de um tempo do fora que os autores usam para escrever versos, tradução de linhas de fuga que resistem ao manicômio judiciário e à produção de subjetividades que capta e copta os processos de subjetivação no desejo de manicômio. O uso desse tempo para criação serve para que os autores dos versos denunciem a segmentaridade molar do tempo no manicômio: o remédio controlado como materialização da medicalização da existência e o assujeitamento ao uso abusivo de psicotrópicos para matar o tempo de produção de vida: segmentaridade que expressa linhas duras do desejo de manicômio, linhas-grades que inibem os processos de singularização, quando não os destrói, produzindo dessubjetivação, efeitos da servidão social (máquina Justiça, máquina Psiquiatria) e da servidão máquina (desejo servil, máquina inconsciente colonial-capitalístico) (Lazzarato, 2010; Rolnik, 2018). Era comum encontrar algum recém-custodiado vagando; às vezes, um dos participantes da pesquisa o convidava aos nossos encontros para que fizéssemos intervenção junto à psiquiatria a fim de sugerir a redução da indicação abusiva de psicotrópicos.

A questão da segurança alimentar e nutricional também emerge como parte da determinação social da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei: "A nossa alimentação /É vergonha até dizer /É pão dormido com café /Que é obrigado a família trazer /Que o governo não quer mais /Mandar alimentação pra você. /O feijão é velho e duro /Chega até a amargar /[...] É difícil viver assim /Tudo para você nunca chega /Café amargo e pão duro /Desse jeito sem manteiga. /A nossa alimentação /Não tem nada de vegetal /O almoço e as quentinhas /Que não tem nada de sal /A janta do mesmo jeito /Que faz a gente passar mal. /Não temos nutricionista /Para este processo acompanhar /Alguns não se sentem bem /Quando vão se alimentar /Comida terceirizada /Feita em qualquer lugar. /[...] Com uma comida dessa /Regime não admira /Pois os doido é tão magro /E ainda mais doente /Falta tudo nesse lugar /Só não falta paciente" (Mandarim).

As narrativas em prosa dos profissionais convergem com os enunciados em versos dos poetas. Elas dão conta de processos de subjetivação segmentados em práticas de saúde cristalizadas e atravessadas pelos jogos de saber e poder que imprimem uma redução da epistemologia da saúde à psiquiatria: "Falta de conhecimento e experiência profissional em psiquiatria e ausência de capacitação em enfermagem forense e psiquiatria e/ou psiquiatria forense" (Enfermeira); "Falta de incentivo à qualificação técnico-científica e ao aperfeiçoamento profissional" (Técnico de Enfermagem 1); "Falta de conhecimento da doença mental" (Técnica de Enfermagem 2); "Política, em curto prazo, de viabilização de recursos que incentivem a capacitação e a formação profissional, bem como o aprimoramento destes técnicos [de enfermagem] na psiquiatria forense" (Técnico de Enfermagem 1).

Os dispositivos classe e apoio familiar emergem como determinantes sociais da promoção da saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei. Nos processos de subjetivação de uma das assistentes sociais, única profissional que se refere ao custodiado como paciente, ela afirma: "A reintegração social do portador de transtorno mental em conflito com a lei na família [é uma dificuldade], considerando a desinformação da patologia do seu familiar e as condições socioeconómicas desfavoráveis. De concreto, sabemos das dificuldades dos serviços de saúde mental para inclusão de nossa demanda, [de] deslocamento das famílias. Identificamos em alguns casos que a família não está preparada para lidar com a manifestação e o comportamento do paciente uma vez em tratamento ambulatorial" (Assistente Social 1). O técnico de enfermagem corrobora: "Há número reduzido de profissionais, pouco incentivo financeiro e nenhum incentivo educacional" (Técnico de Enfermagem 1).

 

Artes do fim do começo do manicômio

A discussão e os resultados apresentados anteriormente mostram que: a) a cartografia como modo de fazer pesquisa-intervenção possibilitou aos participantes da pesquisa devir grupo sujeito na escrita de narrativas e elaboração de diários cartográficos de sua autoria; b) as ações do cuidado, no HCTP, são reduzidas à medicalização do confinamiento e à atenção de urgência e emergência, quando não é adiado ao máximo até esse direito humano; c) a promoção da saúde do homem privado de liberdade, nos processos de subjetivação dos participantes da pesquisa, é associada a ações de humanização e direitos humanos vinculados à determinação social da saúde.

Os processos de subjetivação da saúde do homem em conflito com a lei denunciam as instituições de violência e anunciam modos de desinstitucionalização da saúde mental custodiada. Não obstante, não deixamos de reconhecer as dificuldades encontradas para efetivar não só as ações de promoção da saúde e prevenção de agravos, no contexto do HCTP, mas também as dificuldades de ações voltadas à desinstitucionalização e ao fechamento do manicômio judiciário, como aponta uma das assistentes sociais e um dos custodiados participantes da pesquisa, haja vista o comprometimento da articulação trabalho, gestão e educação em saúde diante do fluxograma do (des)cuidado ao custodiado e ao profissional da saúde e diante da fragmentação da organização do processo de trabalho da equipe de atenção psicossocial. Sem dúvida, as falhas na Raps e a negligência política do Estado contribuem para isso, considerando que só havia uma Residência Terapêutica em funcionamento na cidade e a notícia de recursos orçados para outras duas que não foram abertas durante o período da pesquisa.

A atenção psicossocial à saúde do homem com transtorno mental em conflito com a lei e privado de liberdade, no HCTP, é extremamente precária, como mostramos com a análise dos processos de subjetivação cartografados. O que conseguimos mapear como desdobramento mínimo dos processos instituintes, gerados a partir da pesquisa-intervenção, está relacionado à mobilização de recursos éticos, estéticos e políticos. O cuidado em saúde, no âmbito do instituído pelas políticas, está relacionado à articulação de dispositivos e ações intersetoriais cujos efeitos do uso, caso fossem efetivadas as ações, dentro e fora dos muros do HCTP, poderiam convergir para a desinstitucionalização das subjetividades custodiadas e para a promoção da saúde: segurança física; acesso à alimentação saudável; atenção psicológica; acompanhamento psiquiátrico; assistência jurídica; prevenção de agravos; cuidado aos hipertensos, aos diabéticos e aos que têm diagnósticos de soropositivos; acesso aos serviços de saúde em casos de urgência e emergência e para recuperação da saúde em casos de processos de adoecimento; assistência social ao custodiado e à família.

Os autores dos versos também produziram uma cartografia do trabalho morto dos agentes das instituições da violência no HCTP. Eles nos fizeram ver, falar e pensar sobre sua poesia como produção do trabalho vivo em ato (Merhy, 2005) e sobre como a segmentaridade dos processos de subjetivação do processo de trabalho, no HCTP e nos órgãos que compõem o sistema jurídico-político do Estado, corrobora agenciamento de produção de subjetividades custodiadas e não contribui com processos de desinstitucionalização nem com o fechamento do manicômio judiciário.

Os versos conectados à vida e ao pensamento do fora (fora do manicômio mental) são linhas de fuga às modulações do manicômio judiciário que operam como grades conectadas à engrenagem da produção de subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018). A linguagem poética, composta por imagens, enunciados e enunciações, como em "Vivendo entre Aspas", traduz os processos de subjetivação de Sabiá e Mandarim, nos quais encontramos convergência com o pensamento de Foucault (2002), para que possamos afirmar com os poetas e o filósofo que, no HCTP, o tratamento da loucura fica no limbo entre o saber médico e a ordem judicial, sendo o fracasso da instituição Saúde, paradoxalmente, o sucesso da instituição Prisão/Justiça.

Os processos de subjetivação de profissionais e os poemas enunciam os jogos de saber e poder que são produzidos nas relações entre custodiados, técnicos e agentes penitenciários e na reprodução das unidades discursivas no tecido das instituições Justiça, Saúde e Psiquiatria, materializadas nos estabelecimentos hospital/prisão, denunciando a redução epistemológica dos diagnósticos psiquiátricos. Os versos fazem uma tradução da vida cotidiana de custodiados e das experiências do fora de dentro do manicômio judiciário: ora mostram os processos de subjetivação marcados pela segmentaridade, ora mostram processos singulares que traduzem a arte de reinventar-se e devir autor em uma unidade psiquiátrica de custódia e tratamento.

 

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Endereço de contato:
Antônio Vladimir Félix-Silva
Avenida São Sebastião, 3950, apto. 8, Bairro Frei Higino
Parnaíba, PI. CEP: 64207-005
E-mail: gabypsoares@hotmail.com

Recebido em: 08/07/2019
Última revisão: 30/09/2019
Aceite final: 04/12/2019

 

 

Antônio Vladimir Félix-Silva: Doutor em Ciências Psicológicas (Universidade de Havana-Cuba). Vinculado à linha de pesquisa Psicologia, Saúde Coletiva e Processos de Subjetivação - Núcleo de Estudos Análise Institucional e Cartografia. Universidade Federal do Piauí, PI, Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Reis Velloso, Parnaíba.
E-mail: wladyfelix@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3084-379X
Gabriela Pinheiro Soares: Graduação em Psicologia pela Universidade Potiguar, Natal, RN. Estágio Profissional no Complexo Penal Feminino Dr. João Chaves. Realizou pesquisa-intervenção no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (Natal, RN, Brasil). Escritora, advogada e psicóloga pela Universidade Potiguar.
E-mail: gabypsoares@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000.0001-8697-8445

^rND^sBarros^nL. P.^rND^sKastrup^nV.^rND^sButler^nJ.^rND^sCorreia^nL. C.^rND^sLima^nI. M. S. O.^rND^sAlves^nV. S.^rND^sDias^nR.^rND^sFoucault^nM.^rND^sLazzarato^nM.^rND^sPelbart^nP P^rND^sPelbart^nP P^rND^sPerrone^nC. M.^rND^sPrado^nA. M.^rND^sSchindler^nD.^rND^sRamos^nD. K. R.^rND^sPaiva^nI. K. S.^rND^sGuimarães^nJ.^rND^sRolnik^nS.^rND^sRolnik^nS.^rND^sSantana^nA. F. F. A.^rND^sPereira^nM. O.^rND^sAlves^nM. O.^rND^sSantos^nA. L. G.^rND^sFarias^nF. R.^rND^sSoares Filho^nM. M.^rND^sBueno^nP. M. M. G.^rND^sTenório^nF.^rND^sVieira^nP^rND^1AFF1^nAndreia Neves^sDuarte^rND^1AFF1^nElizabeth^sQueiroz^rND^1AFF1^nAndreia Neves^sDuarte^rND^1AFF1^nElizabeth^sQueiroz^rND^1AFF1^nAndreia Neves^sDuarte^rND^1AFF1^nElizabeth^sQueiroz

10.20435/pssa.vi.1058 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Programa cognitivo-comportamental de educação nutricional para mulheres com excesso de peso

 

Cognitive-behavioral nutrition education program for overweight women

 

Programa cognitivo-conductual de educación nutricional para mujeres con sobrepeso

 

 

Andreia Neves Duarte; Elizabeth Queiroz

Universidade de Brasília (UnB)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Introdução: A pesquisa teve como objetivo propor e avaliar um programa cognitivo-comportamental de educação nutricional para mulheres com excesso de peso e identificar fatores que interferem na adesão.
Métodos: estudo qualiquantitativo, quase experimental, com mulheres com excesso de peso, alocadas em dois grupos: um que participou de um programa em grupo baseado no modelo cognitivo-comportamental e outro que recebeu acompanhamento individual. Foram comparados dados antropométricos e bioquímicos, além de fatores relacionados à adesão.
Resultados: Os dados antropométricos e bioquímicos não diferiram significativamente entre os grupos. A análise qualitativa evidenciou mudanças relevantes em relação à qualidade e quantidade da alimentação ingerida.
Discussão: As estratégias utilizadas permitiram a elaboração de recursos cognitivos relevantes para perda de peso.
Conclusões: O programa auxiliou em mudanças nos hábitos alimentares, o que pode repercutir em alterações antropométricas e bioquímicas relevantes no médio prazo.

Palavras-chave: obesidade, perda de peso, educação alimentar e nutricional, terapia cognitiva-comportamental


ABSTRACT

Introduction: The objective of this research was to propose and evaluate a cognitive behavioral nutrition education program for overweight women and to identify factors that interfere with adherence.
Methods: A quasi-experimental, qualitative and quantitative study, were performed. Overweight women were separated in two groups: one who participated in a group program based on the cognitive behavioral model and the other who received individual follow-up. Anthropometric and biochemical data were compared, as well as factors related to adherence.
Results: Anthropometric and biochemical data did not differ significantly between groups. The qualitative analysis showed important changes in relation to the quality and quantity of the food ingested.
Discussion: The strategies used allowed the elaboration of relevant cognitive resources for weight loss.
Conclusions: The program assisted in changes in eating habits, which may impact on relevant anthropometric and biochemical changes in the medium term.

Keywords: obesity, weight loss, food and nutritional education, cognitive behavioral therapy


RESUMEN

Introducción: La investigación tuvo como objetivo proponer y evaluar un programa educativo de nutrición cognitiva conductual para mujeres con sobrepeso e identificar factores que interfieren con la adherencia.
Métodos: Un estudio cualitativo y cuantitativo, cuasi-experimental, de mujeres con sobrepeso que fueron asignadas en dos grupos: uno que participó en un programa grupal basado en el modelo cognitivo conductual y el otro que recibió un seguimiento individual. Se compararon datos antropométricos y bioquímicos, así como factores relacionados con la adherencia.
Resultados: Los datos antropométricos y bioquímicos no difirieron significativamente entre los grupos. El análisis cualitativo mostró cambios en relación con la calidad y cantidad de los alimentos ingeridos.
Discusión: Las estrategias utilizadas permitieron la elaboración de recursos cognitivos relevantes para la pérdida de peso.
Conclusiones: El programa ayudó a los cambios en los hábitos alimenticios, lo que puede afectar los cambios antropométricos y bioquímicos relevantes en el mediano plazo.

Palabras clave: obesidad, pérdida de peso, educación alimentaria y nutricional, terapia cognitivo-conductual


 

 

Introdução

A prevalência do excesso de peso apresenta índices crescentes e, no Brasil, atinge mais da metade da população adulta. Apesar dos esforços da comunidade científica e das políticas governamentais para enfrentamento desse problema, a obesidade já atinge 18,9% dos adultos brasileiros, sem diferenças entre os sexos (Brasil, 2018). Esse quadro traz à tona uma preocupação com a baixa eficácia das estratégias de saúde usualmente utilizadas na abordagem do problema.

Na área de saúde, a maior preocupação com a alimentação inadequada e o excesso de peso diz respeito ao aumento do risco de doenças cardiovasculares na população, uma vez que tais condições favorecem o desenvolvimento de hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemias e diabetes (Sociedade Brasileira de Cardiologia, 2001; Sociedade Brasileira de Diabetes, 2007; Sociedade Brasileira de Cardiologia, Sociedade Brasileira de Hipertensão, Sociedade Brasileira de Nefrologia, 2010).

Adicionalmente, outras questões de ordem psicossocial devem ser consideradas, como a estigmatização sofrida por pessoas obesas (Tomiyama et al., 2018), bem como aspectos psicológicos, como ansiedade, depressão e baixa autoestima, que podem ser desencadeados pela presença da obesidade (Segal, Cardeal, & Cordás, 2002) no contexto social contemporâneo, o qual persiste em impor um padrão idealizado e homogêneo de beleza (Mattos & Luz, 2009).

Outro ponto importante a ser considerado acerca desse tema diz respeito à estrutura dos ambientes sociais urbanos, atualmente considerados como propícios para o desenvolvimento da obesidade, uma vez que aumentam as oportunidades de consumo alimentar excessivo associado ao sedentarismo (Lerario & Lottenberg, 2006; Souza & Oliveira, 2008).

Nesse sentido, o enfoque da obesidade deve envolver fatores como: a mudança dos hábitos alimentares; a prática regular de atividade física; a identificação de aspectos psicológicos; a consideração de fatores sociais e dos ambientes obesogênicos; e, em alguns casos, o tratamento farmacológico e/ou cirúrgico (Alves, 2012).

No entanto a abordagem usualmente utilizada pela área de saúde responsabiliza o indivíduo pelo encaminhamento de ações que implicam mudanças de estilo de vida, com pouca ênfase em fatores psicossociais multidimensionais (Rodrigues & Boog, 2006). Diante dessa questão, destaca-se a necessidade de intervenções mais abrangentes e contextualizadas para a efetividade de programas de prevenção e combate à obesidade.

Dos fatores enfatizados no tratamento da obesidade, a mudança de hábitos alimentares é apontada como o de mais difícil adesão por parte dos pacientes (Pontieri & Bachion, 2010), por envolver questões desde o âmbito cultural até as experiências pessoais (Viana, 2002). Assim, contribuições da psicologia da saúde relativas aos diferentes componentes biopsicossociais que constituem o comportamento alimentar e influenciam no processo de adesão aos tratamentos de saúde podem auxiliar na abordagem desse aspecto.

Nesse contexto, o modelo cognitivo destaca-se como um pressuposto teórico que a literatura aponta como efetiva em programas de mudanças de hábitos de vida, por ser uma abordagem que destaca o estudo de aspectos de caráter biopsicossociais que ajudam na compreensão dos comportamentos de saúde (Beck, 2009). Trata-se de uma abordagem baseada na teoria de que o problema em questão é mantido por cognições e crenças disfuncionais. Esse enfoque utiliza práticas com o intuito de modificar comportamentos a partir da assimilação de antecedentes e consequências de determinadas condutas, associando-as com técnicas cognitivas destinadas a identificar, avaliar e posteriormente reestruturar crenças e cognições disfuncionais (Tsiros, Sinn, Brennan, Coates, Walkley, & Petkov, 2008). Dessa forma, o objetivo terapêutico desse modelo é reestruturar os pensamentos distorcidos e colaborativamente desenvolver soluções pragmáticas para produzir mudança e melhorar aspectos emocionais e comportamentais (Knapp & Beck, 2008).

Vasques, Rodrigues e Álvarez (1998) destacam que os obesos podem se beneficiar do modelo cognitivo, uma vez que esse enfoque vem mostrando eficácia por objetivar a organização das contingências para mudança de peso e condutas, em princípio, relacionadas ao autocontrole de comportamentos alimentares e contextos sociais e situacionais mais amplos.

Considerando que na área de saúde a teoria e a prática ainda se encontram, muitas vezes, separadas, o objetivo do atual estudo foi propor e avaliar um programa de educação nutricional baseado no modelo cognitivo-comportamental como estratégia para adoção de hábitos alimentares saudáveis e redução do peso e do risco cardiovascular em mulheres com sobrepeso e obesidade. Adicionalmente, o estudo também se propôs a identificar fatores que facilitam e dificultam a adesão ao tratamento das participantes do programa.

 

Métodos

Foi realizado um estudo qualiquantitativo quase-experimental, do tipo pré/pós-teste com grupo controle não equivalente. As atividades da pesquisa foram desenvolvidas em um ambulatório de nutrição do Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal, e a coleta de dados teve duração de três meses.

As participantes foram alocadas de forma não randomizada em dois grupos: Grupo Experimental (GE), que participou do programa de educação nutricional semanal em grupo pautado no modelo cognitivo-comportamental e teve duração de três meses, e Grupo Controle (GC), que recebeu o aconselhamento nutricional individual, mensal conforme o protocolo padrão do ambulatório onde a pesquisa foi realizada.

As participantes do GE foram recrutadas mediante propaganda do programa nas Unidades de Saúde da cidade de realização do estudo. A etapa de recrutamento teve duração de um mês. O grupo controle foi composto pelas pacientes atendidas rotineiramente no ambulatório de nutrição onde a pesquisa foi realizada, as quais autorizaram o uso de seus dados coletados nas consultas para pesquisa com fins comparativos.

Foram incluídas no estudo mulheres entre 20 e 59 anos com Indice de Massa Corporal (IMC) > 25 kg/m2 e circunferência abdominal (CA) > 88 cm. Foram excluídas da pesquisa mulheres que estivessem realizando dieta para perda de peso nos três meses anteriores ao início do estudo; pacientes que realizaram cirurgia bariátrica; e mulheres que, durante o período de estudo, tiveram alguma prescrição medicamentosa modificada. Para o GC, foram recrutadas pacientes que atendessem aos mesmos critérios e tivessem comparecido em pelo menos três consultas, respeitando o tempo de três meses para coleta de dados semelhante ao GE.

No GE, o primeiro e o último encontro foram momentos individuais para obtenção dos dados iniciais e finais referentes à avaliação nutricional (aferição do peso, estatura, CA e cálculo do IMC), aferição da pressão arterial (PA) e realização dos exames bioquímicos (glice-mia de jejum e lipidograma completo).

A intervenção realizada nesse grupo foi baseada no Programa Pense Magro (Beck, 2009), que adota o modelo cognitivo-comportamental como pressuposto teórico e originalmente tem duração de seis semanas, nas quais são propostas 42 atividades diárias. No entanto, considerando a inviabilidade de se realizar encontros diários no contexto de saúde pública, o programa proposto nesta pesquisa foi estruturado em 13 encontros semanais, em que todos os princípios do programa original foram contemplados, além de incluir outras questões de ordem sociocultural de relevância em programas de educação nutricional, adaptadas para a realidade local.

Os encontros tinham duração aproximada de 60 minutos. A pesquisadora iniciava as sessões discutindo as dificuldades e vantagens percebidas das atividades propostas na semana anterior e, em seguida, abordava os temas previstos para o encontro de forma expositiva, com auxílio de painéis elaborados em cartolinas. Após a exposição oral, abria-se uma discussão com o grupo, para que todas se manifestassem acerca das dificuldades percebidas para incorporação do proposto e possíveis estratégias para enfrentá-las. Após essa discussão, as tarefas impressas do programa "Pense Magro" previstas para o dia eram entregues, para que as participantes as preenchessem. As atividades realizadas em cada encontro são descritas de forma sucinta na Tabela 1:

A atual pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs) da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal, que emitiu parecer favorável a sua execução, com o número de protocolo 570/11.

Para análise quantitativa dos dados, foi empregado o Teste . de Student para comparação das médias das medidas bioquímicas e antropométricas entre os grupos, no momento inicial do protocolo. Para a avaliação do efeito do programa proposto após o período de três meses e comparação com o grupo controle, foram testadas medidas longitudinais entre grupos e intergrupos, com o uso de modelos de efeitos mistos de análise de variância com medidas repetidas. Para efeito de análise, usou-se um nível de significância de 5%. Os dados foram analisados pelo aplicativo SAS 9.2. As entrevistas gravadas foram transcritas e analisadas qualitativamente com definição de unidades temáticas, conforme a metodologia proposta por Bardin (2010).

 

Resultados

Inscreveram-se no programa 51 mulheres; ao longo do desenvolvimento das atividades, 28 desistiram e 23 finalizaram a pesquisa, o que correspondeu a 45% do total inicial. No GC, das 50 mulheres elegíveis inicialmente para o estudo, apenas 16 continuaram o acompanhamento nutricional no período de três meses para comparação dos dados. Assim, este estudo contou com a participação total de 39 mulheres.

A Tabela 2 apresenta as médias das variáveis que compõem o perfil antropométrico e metabólico inicial das participantes do GC e do GE.

Com o intuito de avaliar a efetividade do programa proposto, os dados do GE e GC, antes e depois das intervenções, foram comparados. A Tabela 3 apresenta esses resultados.

Os relatos, gravados nas entrevistas do quinto e do sétimo encontro, além da entrevista de avaliação final do programa, foram agrupados em dez categorias, que possibilitaram identificar fatores que facilitam e fatores que dificultam a perda de peso e as mudanças de hábitos alimentares, bem como a avaliação do programa pelas participantes, conforme exposto na Tabela 4:

Na perspectiva das participantes, a realização de dietas não radicais, em que se pode comer de tudo em quantidades moderadas, facilita a adesão ao planejamento alimentar, uma vez que consideram importante se permitir comer em situações especiais para se sentir bem e continuar o processo de mudanças. Tais constatações podem ser exemplificadas no seguinte trecho:

É, que não precisa ser tão radicalpra conseguir chegar onde você quer, você pode chegar onde você quer reduzindo, e não cortando coisas. A dieta radical é que faz com que você realmente desista, você não consegue fazer! (A. D. S., 36 anos).

Adicionalmente, as participantes consideraram fatores como o estabelecimento de metas realistas, perda de peso gradual e mudanças graduais e permanentes como facilitadores na realização de mudanças, conforme exemplificado a seguir:

Não adianta vir com meta não sei das quanta, totalmente fora da nossa realidade, que faz a gente perder muito peso, mas que depois você não dá conta de continuar, então é uma mudança realmente de atitude, de hábito, tem que ser rotina, conscientizar bem que essa mudança é devagar (G. C. S., 47 anos).

Outro ponto considerado como fator facilitador para mudanças diz respeito ao suporte social de colegas de trabalho, bem como o apoio recebido no grupo e o compromisso com seus membros e a pesquisadora, como ilustra o exemplo a seguir:

[...] porque, se você for pensar, todo mundo teve algum dia que teve algum probleminha e que era difícil vir e tal, mas se você tem outros do seu grupo do trabalho que estejam envolvidos, vai ter sempre alguém estimulando [...] termina que uma vai fortalecendo a outra [...] (M. R. M., 51 anos).

No que diz respeito aos fatores que as participantes consideraram difíceis de mudar, destacam-se as questões qualitativas e quantitativas da dieta, a rotina alimentar, os compromissos sociais e as "tentações" alimentares. Um ponto de destaque em relação aos problemas do processo de emagrecimento diz respeito à dificuldade de manter a dieta em situações não rotineiras e compromissos sociais, quando os outros insistem para comer, como mostram os exemplos:

Os doces e os lugares que a gente vai, nunca vi tanta festa em um mês só! Igual esse agora... É casamento do meu primo... Nossa, aquele bolinho de chocolate mata qualquer um... é mais essa questão de comer fora, né! Porque você tá lá, vê todo mundo comendo, chega no final tem que comer um pouquinho (A. P. L., 29 anos).

A partir da análise de conteúdo sobre a avaliação do programa pelas participantes, foi possível verificar que o programa auxiliou em mudanças importantes na alimentação, como a adaptação com a escolha alimentar e a dieta, a redução do consumo de alimentos não saudáveis concomitante ao aumento do consumo de alimentos saudáveis e a volta para dieta após algum excesso alimentar.

Na avaliação final, as participantes não contribuíram com propostas novas, ao serem solicitadas a dar sugestões para o aprimoramento do programa. A média de ausências no programa foi de dois encontros, com o máximo de quatro faltas (que corresponde a 30,7%).

 

Discussão

No presente estudo, após três meses de intervenção, o GE apresentou uma redução do peso de 2,03 kg; no IMC, de 0,70 kg/m2; e na CA, de 3,48 cm. No estudo de Christensen et al. (2011), que também teve duração de três meses, a perda de peso média constatada no GE foi de 3,6 kg, e a redução da CA foi de 4,2 cm. Em outras pesquisas (Appel et al., 2011; Wadden et al., 2011) com duração maior, de 24 meses, foi possível averiguar uma redução ponderal, que variou de 2,9 kg a 5,1 kg nos grupos experimentais. Ao analisar ensaios com metodologias semelhantes, percebe-se que as investigações nessa área são heterogêneas, o que dificulta a comparação dos resultados, no entanto é possível notar que a perda ponderal é maior no início dos programas e, em geral, apresenta um ápice aos seis meses de intervenção com estabilização ou recuperação de peso posterior (Fjeldsoe, Neuhaus, Winkler, & Eakin, 2011).

Em outra revisão sistemática, Barrett, Begg, O'Halloran e Kingsley (2018) realizaram me-tanálise com dez ensaios clínicos randomizados, com intuito de investigar as mudanças nos mediadores do estilo de vida promovidas pela terapia comportamental cognitiva integrada à entrevista motivacional em adultos com sobrepeso e obesidade. Eles concluíram que essas estratégias combinadas levaram a melhorias significativas na atividade física, porém com evidências insuficientes para medidas de resultados relacionados a mudanças na dieta. Os autores recomendam que tais estudos incluam um acompanhamento com duração suficiente para determinar os efeitos em longo prazo das intervenções.

Assim, o tempo de três meses proposto na presente pesquisa pode ter sido curto para gerar mudanças significativas na antropometria, sugerindo que resultados mais expressivos na comparação entre os grupos poderiam ocorrer, caso o tempo de duração da pesquisa fosse mais longo. Outra limitação da presente pesquisa foi falta de um seguimento após o término da coleta de dados, uma vez que o tempo curto de acompanhamento pode ter sido um fator relevante para obtenção de resultados objetivos pouco expressivos, considerando que as mudanças de hábito em saúde podem ocorrer de forma mais lenta e gradativa.

Em relação aos exames bioquímicos e à PA, foi verificado que esses dados não apresentaram diferenças estatisticamente significativas, evidenciando que o programa proposto não causou uma alteração significativa nesses parâmetros, quando comparado ao GC ao final do acompanhamento.

Uma possível explicação para esses resultados pode estar relacionada ao uso da lista de substituições de forma inadequada. Adicionalmente, vale destacar que parte da amostra estudada utilizava medicação para controle da glicose, lipídios séricos e/ou PA e, como a adesão à assiduidade do uso da medicação não foi objeto de estudo nesta pesquisa, esses dados podem ter sido influenciados por esse aspecto.

No que diz respeito ao impacto das intervenções propostas na obesidade, Ewart-Pierce, Ruiz e Gittelsohn (2016) afirmam que delineamentos com estratégias com multiníveis e multicomponentes para melhorar as condições de saúde mostram resultados promissores, principalmente quando são capazes de integrar componentes nos níveis político, comunitário e interpessoal. Nesse aspecto, cabe ressaltar que a presente pesquisa, apesar de abordar a obesidade em sua dimensão biopsicossocial, não trabalhou com estratégias no âmbito comunitário e político, o que pode ter afetado nos resultados ainda pouco expressivos quando considerada a dimensão maior do problema.

No entanto, apesar dos parâmetros antropométricos, bioquímicos e metabólicos não terem apresentado diferenças significativas em relação ao GC neste estudo, a análise qualitativa das entrevistas evidenciou mudanças expressivas em aspectos comportamentais e nos hábitos alimentares. Nesse aspecto, a literatura demonstra que pequenas modificações do padrão alimentar, mesmo que não sejam suficientes para alterar o estado de saúde em curto prazo, podem ser alcançadas em programas de educação nutricional e provocar mudanças mais relevantes em longo prazo (Torres, Franco, Stradioto, Hortale, & Schall, 2009).

Os fatores facilitadores do emagrecimento citados pelas participantes se encontram em consonância com a literatura, que afirma que os programas de emagrecimento devem conter elementos psicoeducacionais, como: foco em comportamentos-chave para perda de peso (como ingestão calórica reduzida e aumento na atividade física); ferramentas para o automonitoramento; utilização de perguntas abertas; traçar metas realistas; encontrar estratégias pessoais para aliviar a fome; manter continuidade dos comportamentos saudáveis e lidar com os contextos sociais que envolvam alimentação inadequada; uso de estratégias de solução de problemas; apoio social; identificação de gatilhos para alimentação excessiva; e estratégias de prevenção de recaídas e manutenção do peso (Christensen et al., 2011; Appel et al., 2011; Wadden et al., 2011).

No que diz respeito às dificuldades em emagrecer, o estudo evidenciou que a modificação de hábitos alimentares se constitui um processo complexo, uma vez que não está unicamente associada à vontade intrínseca de mudança e pode envolver sentimentos relacionados à falta de controle. Também Hofmann, Rauch e Gawronski (2007) afirmam que inúmeros fatores podem minar a capacidade de autorregulação do comportamento alimentar, como a pressão dos amigos e a vontade de experimentar um alimento específico. Adicionalmente, Bernardi, Cichelero e Vitolo (2005) afirmam que as restrições e autoimposições das pessoas que fazem dieta parecem ter um efeito rebote, resultando em compulsão alimentar, a qual pode associar-se a consequências psicológicas, como a perda da autoestima e mudanças de humor.

De forma similar, Viana (2002) afirma que é importante que programas de redução de peso enfatizem a moderação alimentar e incluam a ingestão de pequenas quantidades de alimentos considerados "proibidos" como forma de limitar o desejo por esses produtos e controlar a angústia de ter violado a dieta ao ingerir alguma guloseima.

No que diz respeito à avaliação da intervenção, o formato do programa foi considerado adequado na perspectiva das participantes. A literatura acerca do tema "Educação em Saúde" é pouco específica em relação à recomendação de duração e frequência das intervenções. Fjeldsoe et al. (2011), ao realizar uma revisão sistemática para avaliar quais as características de intervenções que tiveram bons resultados na manutenção do peso em longo prazo, concluíram que os melhores desfechos ocorreram em programas com, pelo menos, seis meses de duração, com uma média de pelo menos 13 contatos presenciais, uso de mais de seis estratégias de intervenção, especialmente relacionadas com instruções de como atingir a mudança de comportamento, solicitação sobre as principais intenções dos participantes, identificação das principais barreiras percebidas e oportunidades para comparações sociais.

Nesse aspecto, a proposta do formato grupal do programa foi um ponto considerado como fator positivo e facilitador na perspectiva das participantes. Wilfley, Hayes, Balantekin, Van Buren e Epstein (2018) realizaram uma revisão de literatura sobre as intervenções com-portamentais para perda de peso na obesidade e concluíram que esse tratamento realizado no formato de grupo produz resultados semelhantes ou superiores em comparação aos tratamentos individuais. Os autores comentam que o formato de grupo fornece fatores terapêuticos únicos, como universalidade, altruísmo, comportamento imitativo e aprendizado interpessoal, além de ter um menor custo.

Adicionalmente, Silveira e Ribeiro (2005) afirmam que o grupo consiste em um espaço solidário que permite o acesso à informação, a troca de experiências, o intercâmbio de motivações, o apoio mútuo para pacientes interagirem e superarem dificuldades no processo de tratamento. A comunicação efetiva com os membros da equipe de saúde também é um aspecto relevante no que diz respeito à adesão, uma vez que fatores como a relação profissional de saúde-paciente e o suporte social da equipe de saúde e dos membros de sua rede social são importantes para a adesão às recomendações do tratamento (Queiroz & Araujo, 2009).

A presente pesquisa apresentou um alto número de participantes que abandonaram o acompanhamento (55% no GE e 63% no GC), evidenciando uma dificuldade de adesão desse grupo na manutenção do acompanhamento nutricional. A falta de averiguação dos motivos da desistência de quem abandonou o programa pode ser considerada como uma limitação do presente estudo e sugere-se que investigações futuras analisem esse aspecto a fim de se discutirem estratégias para evitar o abandono em programas de intervenção em saúde.

 

Conclusões

A intervenção nutricional em grupo pautada no modelo cognitivo-comportamental, com duração de três meses, proposta na presente pesquisa, não apresentou diferenças significativas quando comparada ao GC, nas variáveis objetivas (antropometria, exames bioquímicos e pressão arterial). No entanto a análise qualitativa das entrevistas realizadas nos encontros mostrou que o programa auxiliou em mudanças na alimentação no aspecto qualitativo e quantitativo, bem como atingiu seu objetivo de conscientizar as participantes da importância de mudanças mais amplas no estilo de vida para perda de peso. Esses resultados ressaltam a necessidade de enfatizar a dimensão subjetiva do cuidado em saúde na formação dos profissionais envolvidos no tratamento da obesidade. Em longo prazo, tal recurso pode ser relevante para manutenção da saúde física e psíquica, ainda que a obesidade demande um acompanhamento contínuo de forma a evitar a cronificação do quadro e os custos decorrentes de suas complicações.

 

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Recebido em: 24/07/2019
Última Revisão: 05/12/2019
Aceite final: 21/01/2020

 

 

Andreia Neves Duarte: Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB). Mestra em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde.
E-mail: andreiaduarte.nut@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-4770-2435
Elizabeth Queiroz: Doutora em Psicologia. Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília.
E-mail: equeirozz@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6360-6670

^rND^sAlves^nM. G. M.^rND^sAppel^nL. J.^rND^sClark^nJ. M.^rND^sYeh^nH. C.^rND^sWang^nN. Y.^rND^sCoughlin^nJ. W.^rND^sDaumit^nG.^rND^sBrancati^nF. L.^rND^sBarrett^nS.^rND^sBegg^nS.^rND^sO'Halloran^nP.^rND^sKingsley^nM.^rND^sBernardi^nF.^rND^sCichelero^nC.^rND^sVitolo^nM. R.^rND^sChristensen^nJ. R.^rND^sFaber^nA.^rND^sEkner^nD.^rND^sOvergaard^nK.^rND^sHoltermann^nA.^rND^sSogaard^nK.^sEwart-Pierce^nE.^sRuiz^nM. J.^sGittelsohn^nJ.^rND^sFjeldsoe^nB.^rND^sNeuhaus^nM.^rND^sWinkler^nE.^rND^sEakin^nE.^rND^sHofmann^nW.^rND^sRauch^nW.^rND^sGawronski^nB.^rND^sKnapp^nP.^rND^sBeck^nA. T.^rND^sLerario^nA. C.^rND^sLottenberg^nS. A.^rND^sMattos^nR. F.^rND^sLuz^nM. T.^rND^sPontieri^nF. P.^rND^sBachion^nM. M.^rND^sQueiroz^nE.^rND^sAraujo^nT. C. C. F.^rND^sRodrigues^nE. M.^rND^sBoog^nM. C. F.^rND^sSegal^nA.^rND^sCardeal^nM. V.^rND^sCordás^nT. A.^rND^sSilveira^nL. M. C.^rND^sRibeiro^nV. M. B.^rND^sSouza^nN. P. P.^rND^sOliveira^nM. R. M.^rND^sTomiyama^nA. J.^rND^sCarr^nD.^rND^sGranberg^nE. M.^rND^sMajor^nB.^rND^sRobinson^nE.^rND^sSutin^nA. R.^rND^sBrewis^nA.^rND^sTorres^nH. C.^rND^sFranco^nL. J.^rND^sStradioto^nM. A.^rND^sHortale^nV. A.^rND^sSchall^nV. T.^rND^sTsiros^nM. D.^rND^sSinn^nN.^rND^sBrennan^nL.^rND^sCoates^nA. M.^rND^sWalkley^nJ. W.^rND^sPetkov^nJ.^rND^sViana^nV.^rND^sWadden^nT. A.^rND^sVolger^nS.^rND^sSarwer^nD. B.^rND^sVetter^nM. L.^rND^sTsai^nA. G.^rND^sBerkowitz^nR. I.^rND^sMoore^nR. H.^rND^sWilfley^nD. E.^rND^sHayes^nJ. F.^rND^sBalantekin^nK. N.^rND^sVan Buren^nD. J.^rND^sEpstein^nL. H.^rND^1AFF1^nEneida^sSantiago^rND^1AFF2^nSilvio^sYasui^rND^1AFF1^nEneida^sSantiago^rND^1AFF2^nSilvio^sYasui^rND^1AFF1^nEneida^sSantiago^rND^1AFF2^nSilvio^sYasui

10.20435/pssa.vi.1064 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

O trabalho como estratégia de atenção em saúde mental: um estudo documental

 

Work as a mental health care strategy: a documentary study

 

El trabajo como estrategia para la atención de la salud mental: un estudio documental

 

 

Eneida SantiagoI; Silvio YasuiII

IUniversidade Estadual de Londrina (UEL)
IIUniversidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", campus Assis (Unesp-Assis)

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RESUMO

Cartografamos o discurso político em que se articula o trabalho com ações de atenção em saúde. No Brasil, o universo legal da saúde mental que trata do trabalho distingue-se em anterior e posterior à Reforma Psiquiátrica. Antes, juridicamente sustentadas, as atividades de trabalho eram um instrumento de medida da ocupação do tempo livre e de avaliação da eficácia dos tratamentos manicomiais. Após a Reforma, a presença do trabalho como estratégia de atenção é crescente. A produção discursiva legal da saúde mental assumiu diretrizes como a reabilitação psicossocial e a restauração da cidadania, utilizando, como proposta, a (re)inclusão social pelo trabalho. No entanto as políticas trazem uma heterogeneidade conceitual do que se considera trabalho, com poucos esclarecimentos de suas condições concretas, aspectos que dificultam que o trabalho como estratégia de atenção propicie a (re)invenção do sofrimento psíquico intenso.

Palavras-chave: trabalho, política pública, saúde mental, Sistema Único de Saúde, saúde coletiva


ABSTRACT

We map the political discourse in which work is articulated with health care actions. In Brazil, the legal universe of mental health that addresses work is divided in before and after the Psychiatric Reform. Previously, legally supported work activities were an instrument for measuring leisure time occupation and evaluating the effectiveness of asylum treatments. After the Reform, the presence of work as a care strategy has increased. The legal discursive production of mental health has taken on guidelines such as psychosocial rehabilitation and restoration of citizenship, using, as one of the instruments, social (re)inclusion through work. However, policies present a conceptual heterogeneity of what is considered work, with little clarification of its concrete conditions, aspects that make it difficult for work as a care strategy to foster the (re)invention of intense psychic suffering.

Keywords: Work, Public Policy, Mental Health, Brazilian National Health Service, Public Health


RESUMEN

Mapeamos el discurso político en el que el trabajo se articula con las acciones de atención médica. En Brasil, el universo legal de la salud mental que se ocupa del trabajo se distingue antes y después de la Reforma Psiquiátrica. Anteriormente, las actividades laborales con apoyo legal eran un instrumento para medir la ocupación del tiempo libre y evaluar la efectividad de los tratamientos de asilo. Después de la Reforma, la presencia del trabajo como estrategia de atención está aumentando. La producción discursiva legal de la salud mental asumió pautas tales como la rehabilitación psicosocial y la restauración de la ciudadanía, utilizando, como uno de los instrumentos, la (re)inclusión social a través del trabajo. Sin embargo, las políticas aportan una heterogeneidad conceptual de lo que se considera trabajo, con poca aclaración de sus condiciones concretas, aspectos que dificultan el trabajo como estrategia de atención para propiciar la (re)invención del intenso sufrimiento psíquico.

Palabras clave: trabajo, política pública, salud mental, Sistema Único de Salud, salud pública


 

 

Introdução

Dedicamo-nos, ao longo destas páginas, a cartografar a constituição do discurso político que pronunciou as estratégias do trabalho como política de saúde mental a partir do Sistema Único de Saúde (SUS) (Ministério da Saúde, 2004). A categoria trabalho enquanto proposição articuladora de atenção para aqueles mentalmente adoecidos se faz presente desde os primeiros textos legislativos, que abordavam a alienação mental, até os documentos mais recentes, como o do SUS e o da Lei 10.216/2001. Por meio de diálogos firmados com alguns analisadores foucaultianos (biopolítica e normalização), analisamos a composição de forças dessas proposições e os conceitos de trabalho que alimentaram os agenciamentos discursivos, bem como os sentidos que emergiram dessas produções. Levantamos como hipótese que há uma significativa presença da temática trabalho nas legislações e políticas de saúde mental, ao mesmo tempo em que um repertório de conceituações envolvendo tal ação se faz presente no interior e nas adjacências desses escritos. Essas conceituações, que serão cartografadas e por nós analisadas, são a de trabalho, de trabalhar e do sujeito que trabalha. Entendemos por trabalho a atividade orientada para um fim. Por trabalhar, o processo que demanda investimentos objetivos e subjetivos para alcançar a finalidade, e o do sujeito que trabalha, como o sujeito realiza ou se envolve em uma atividade de trabalho, mesmo que essa não seja social e/ou juridicamente reconhecida. Quanto às possibilidades da experiência trabalho em suas intercessões interventivas, somos mobilizados pela análise de que tipo e que condições de trabalho tais documentos consideram terapêuticos.

Para produzir tais indagações, a cartografia foi escolhida. Como enunciação dos estudos realizados, de passeios por percursos ora familiares ora desconhecidos e como possibilidade da valorização de representações das realidades vividas e percebidas, a cartografia se mostrou potente. Encontros e afetações, embora não sendo a finalidade do processo sucessivo de aproximação e distanciamento, são parte integrante do movimento de conhecer. As cartografias se compõem por desenhos de paisagens que se fazem ao mesmo tempo em que se transformam. Dessa forma, neste texto, as cartografias foram construídas a partir de nossas experiências de leituras e análises de documentos jurídicos com o propósito de dar expressividade aos campos de encontro entre trabalho e atenção em saúde mental. Os documentos selecionados foram os textos legislativos de assistência psiquiátrica do fim da Primeira República até a atual Política Nacional de Saúde Mental, aprovada em 2001. Como orientador para nossa trajetória, assumimos os objetivos de interrogar esses escritos sobre o(s) conceito(s) de trabalho apresentado(s), as formas e os sentidos sobre os quais esses conceitos arquitetam o trabalho como estratégia de atenção em saúde mental, as ações que são orientadas por esses conceitos e as possibilidades políticas e subjetivas que são produzidas pelos conceitos proferidos.

 

Trabalho e Produção de Si

Apreendemos, neste artigo, o trabalho em sua dupla possibilidade: enquanto atividade dirigida com o fim de criar valor, sendo calibrada por relações econômicas e produtivas, e também do trabalho em suas potencialidades de subjetivações. Qualquer esboço de definição de trabalho deve, obrigatoriamente, contemplar as dimensões de produção de si e de produção de trocas nos âmbitos materiais, subjetivos e sociais (Dejours, 1993; 2004). Todavia Dejours (2004) sinaliza que não é o trabalho atrelado a dispositivos como emprego ou salário que deve ser priorizado, mas o trabalhar como oportunidade de experiência singular.

Mesmo com uma finalidade, o trabalho oportuniza desafios sobre como se colocar diante deste algo a ser feito, processo que é orientado por normas. As normas podem ser compreendidas como noção que abarca distinções permanentes entre polaridades, alimentando um sistema com pretensões de poder que exige obediência sob mecanismos de coerção que ganham vestes de verdade (Foucault, 1987; 2008). No contexto laborativo, as normas implicam o trabalhador em uma relação que não será de passividade, mas de apropriação. Ao mesmo tempo, as normas têm um caráter dinâmico que as colocam atentas às transformações, para que possam (re)adequar-se, em um jogo de apreensão e normalização das experiências em uma captura para sujeição de qualquer inventividade laboral. As normas que guiam o trabalhar, mesmo quando rasas em sustentações, são rígidas em suas exigências, causando confrontações entre o previamente definido e o posteriormente realizado. De conduta, posturas, resultados e competência, as normas são operadores circundantes construídos por instâncias reguladoras que travestem seus posicionamentos de verdades.

No contexto de vida capitalista, os processos de prescrição, inventividade e (Restabelecimento da norma são a essência da articulação entre trabalho, trabalhar e sujeito que trabalha. Dessa forma, defendemos que o trabalho não é estático, tampouco o trabalhar. Mesmo com a mais rígida orientação para a realização de uma atividade, não há obediência fria às suas imposições. Pelo contrário, são os movimentos constantes e diversos que dão ao trabalhar o imperativo de engenhosidade inventiva, e ao sujeito que trabalha, o ensejo da experiência singular. A positividade do trabalho está nas criações diante das normas, inclusive de novas normas, que são espaços de experimentações subjetivas e de potencialidade para o questionamento das verdades. A possibilidade criadora que o trabalho oferece é de grande relevância para a manutenção da saúde do sujeito que trabalha, porém é fundamental o questionamento sobre "saúde através de qual trabalho?" (Dejours, 1993, p. 102).

A partir da constituição do Estado Moderno e da gênese e do desenvolvimento de novas formas de relação capitalista, notamos cada vez mais a demanda por um homem adaptado aos ideologismos do capital. Foucault (1987; 2008) aponta como a lógica capitalista utiliza intensamente o dispositivo disciplinar como estratégia de organização da vida coletiva, ou seja, impõe normas aos indivíduos como forma de obter docilidade e obediência à ordenação social configurada a partir de formas regulamentadas de vida (Foucault, 1987; 2008). Dessa forma, qualquer processo de subjetivação construído nesse contexto se torna, paradoxalmente, um jogo diante das normas que sujeitam e, ao mesmo tempo, possibilitam uma existência. O capitalismo opera submetendo os indivíduos a formas de controle que não acontecem somente no corpo e pelo corpo biológico dos indivíduos, mas também no corpo social, político, subjetivo e utilitário do trabalhador, tornando-se este obediente, mas, contraditoriamente, ganhando visibilidade.

O trabalhar pronuncia diversos aspectos da vida psicológica, social e política dos indivíduos, sendo oportunidade para a invenção e reinvenção de si. Sua presença nos discursos da saúde não é recente, e sua função vinculante e constitutiva de componentes de práticas, teorias, aparelhos e sujeitos o coloca em posição de ser, potencialmente, uma estratégia de cuidado. No entanto é penoso vincular a possibilidade inventiva do trabalhar aos discursos utilitários do mercado de trabalho contemporâneo, que privilegia produtividade em detrimento da experiência singular e acaba por excluir os que não conseguem ou querem pactuar com isso, ou seja, "como incluir em um mercado de trabalho excludente?" (Santiago & Yasui, 2011). Esse é o mais importante desafio a que o trabalho como estratégia de atenção em saúde mental precisa produzir enfrentamentos, diante de um cenário contemporâneo em que modelos de gestão valorizam posturas e relações em que constrangimentos e excessos de exigências dificultam a experiência singular do trabalho, assim como sua expressividade (Mendes & Araújo, 2012; Gama, Mendes, Lazzarini, & Vieira, 2019).

 

Política Pública e Biopolítica

As discussões sobre políticas públicas ganharam visibilidade nas últimas décadas. No Brasil, a partir das décadas de 1970/1980, vivemos processos de redemocratização da sociedade. O Estado, como importante ator social, foi convocado a criar novas formas de legitimidade para sua intervenção no social. Nesse ensejo, coloca-se a tarefa de conceituar política pública, não havendo consenso na literatura. As políticas públicas são definidas diversamente a partir da perspectiva que se assume. Como escolha de definição mais palpável, nós as compreendemos como ações planejadas do Poder Público com o objetivo de enfrentar situações consideradas problemas e que ganham relevância de alguma ordem em determinado momento histórico (Souza, 2007), ao tentar gerir os embates, imanados e virtualizados, da relação entre Estado, sujeitos de direitos e mercado econômico. Marcadas em um determinado momento histórico, as políticas, assim como as problemáticas das quais tentam dar conta, são evidências do que se julga importante e merecedor de ser foco de atenção e intervenção.

Na perspectiva foucaultiana (Foucault, 1986; 2008), o Estado não é o detentor ou propagador do poder, mas parte de um conjunto relacional em que o governo dos indivíduos é constituído, com suas fronteiras traçadas por sua razão governamental, ou governamentalidade: na soberania do poder em seu governo da morte, no Estado medieval e na sofisticada arte de condução de condutas, no Estado moderno. Com a modernidade, o Estado é solicitado a mediar interesses que evidenciam seus limites de governamentalidade quanto ao governo da vida, colocando o questionamento, para si e para a sociedade, do que é e do que não é da esfera do Estado. Somente na segunda metade do século XIX que a ação estatal, nas sociedades ocidentais, é definida e legitimada por uma racionalidade que promove um questionamento daquilo em que seria útil intervir e daquilo sobre o qual não se deveria agir de modo algum. Em uma emergência da biopolítica, enquanto ação política de legislar sobre o corpo biológico da população (Foucault, 2008), há a extensão desse espaço de exercício do poder para a vida dos indivíduos por meio das legislações e políticas públicas.

A forma de exercer o poder biopolítico é fundamental na emergência dos Estados modernos e do capitalismo, em que os corpos e as vidas, alvos de intervenções contínuas, são mergulhados em campos de visibilidade: natalidade, longevidade e mortalidade como intentos da higiene pública; velhice, acidentes e doenças, da assistência e seguridade social, entre outros. Foucault (2008) sinaliza como que, na biopolítica, as pessoas perdem "o direito sobre o seu próprio corpo, o direito de viver, de estar doente, de se curar e morrer como quiserem" (p. 96). Assim, a letra jurídica versará sobre um fazer viver, preferencialmente, normalizado: moralmente respeitado, medicamente saudável, socialmente seguro. "As políticas públicas se configurariam, em parte, na sociedade biopolítica, como as ações do Estado decorrentes da necessidade de intervir nos fenômenos da população para, ao promover autonomia, atuar conforme os interesses dos fisiocratas" (Guareschi, Lara, & Adegas, 2010, p. 335).

Nos últimos séculos, as ações do Estado instauraram uma rede de tecnologias de poder normalizador e biopolítico, por meio de procedimentos de gestão, modelagem e captura dos indivíduos e da coletividade, em especial de grupos anormais e desajustados. As ações legais e políticas, assim como as instituições sociais e estatais, foram os operadores legitimados da intervenção deste Estado na sociedade por meio do estabelecimento de direitos civis, sociais e políticos, em um processo que é de instauração do Sujeito de Direitos, amparado pelo regulamento de políticas públicas. Temos, desta forma, "um processo que aproxima diretamente Estado moderno, Políticas Públicas e Sujeito de Direitos na construção do elemento subjetivo das políticas públicas" (Guareschi et al., 2010, p. 337). Recentemente, nas tramas neoliberais desse mesmo Estado, o mercado econômico se tornou incisivo no emprego de esforços para a produção de sujeitos ditos autônomos, ao mesmo tempo em que foi fonte de morbidades sociais, constituindo um embate: o sujeito de direitos vê-se, subjetivamente, fixado como um homo oeconomicus. Homo oeconomicus indica, em primeira colocação quase literal, o homem economicamente ativo. Foucault (2008) esclarece ser o homo oeconomicus o homem empreendedor de si no mercado econômico contemporâneo, um homem mercadorizado pela lógica do capital. Nesse arranjo, o homem adere de forma voluntariamente forjada ao mercado econômico (em seus imperativos e exigências) e precisa valorizar e amplificar suas habilidades e capacidades produtivas para se tornar valorizado pelo mercado de trabalho como contribuinte à lógica do capital. Foucault (2008) denuncia a inversão das relações sociais em econômicas para afirmar que a biopolítica, por meio de políticas estatais, agiria incentivando a vida e aniquilando os movimentos considerados arriscados e perigosos (Foucault, 1996; 2008). Seria a emersão do indivíduo governável por meio das leis econômicas associadas às legislações.

Em empréstimo dessas discussões para o contexto da saúde, como política pública, o SUS está em implantação cotidiana, em um processo social de permanente construção, visto que os desafios do viver coletivamente impõem constantemente desafios à gestão em saúde para constituir respostas às demandas, que vão se transformando. Quando resgatamos, nesta discussão, a importância objetiva e subjetiva do trabalho, pensá-lo como estratégia de atenção em saúde e saúde mental torna-se evidente.

 

Sentidos de um Projeto Político que Articule Trabalho e Saúde Mental

Uma reconstituição da história da loucura pelo recorte da relação entre atenção em saúde e trabalho traz a percepção de que a sociedade capitalista constantemente utilizou a aptidão ou inaptidão para o trabalho como importante elemento para a definição de normalidade (Santiago & Yasui, 2011). No universo das instituições psiquiátricas, Saraceno (1999, p. 21) afirma que "o trabalho em manicômios é tão antigo como o próprio manicômio". Quando analisamos os sentidos da estratégia trabalho como terapêutica na assistência em saúde mental, percebemos que eles responderam a chamados vários. Inicialmente, com o intento de ocupação do tempo e das mentes livres dos asilados no manicômio; posteriormente, no intento de prática curativa, sustentada em experiências de laborterapia, praxiterapia e terapia ocupacional orientadas para o disciplinamento da capacidade produtiva como indicativo de condição para a reinserção social; e por fim, guiados por princípios reformadores da assistência psiquiátrica para a atenção psicossocial, como iniciativas de produção de subjetividade e contratualidade social, com as oficinas terapêuticas sendo a modalidade mais presente (Costa & Figueiredo, 2004; Santiago & Yasui, 2011).

Ao abarcarmos os documentos de projetos políticos que articularam trabalho e saúde mental, torna-se importante esclarecer que, neste texto, sustentamos o entendimento de que as legislações e políticas públicas são pautadas, atravessadas e constituídas pela história, não havendo composição discursiva política fora de uma conjuntura histórica e social. No que tange ao universo legal da atenção em saúde mental no Brasil, defendemos que os discursos históricos dirigidos à questão do trabalho como estratégia terapêutica podem ser organizados em duas frentes díspares: uma anterior à Reforma Psiquiátrica, outra posterior. Vejamos.

 

Trabalho como Estratégia de Atenção antes da Reforma Psiquiátrica

Por meio da aprovação do Decreto 1.132, em 1903, temos a instauração da primeira legislação psiquiátrica brasileira e, assim, de jurisprudência específica sobre a alienação. O documento propôs reorganizar a assistência aos loucos mesmo que, em termos concretos, tal assistência ainda não fosse exatamente constituída - era dispersa e variada, sendo permeada por conflitos entre figuras socialmente distintas e autoautorizadas a exercerem posições de avaliar e encaminhar para internação aqueles por elas consideradas mentalmente adoecidos. Com isso, os hospícios, ainda tomados pela lógica caritativa, apresentavam elevados números de internos, que continuavam crescendo vertiginosamente (Amarante, 1996; 2000). Foi nesse contexto que o decreto de 1903 foi elaborado e submetido para aprovação por João Carlos Teixeira Brandão, um psiquiatra eleito deputado federal.

Em análise, o Decreto de 1903 traz para a competência do Estado a alienação mental, ao mesmo tempo em que faz frágeis delineamentos de uma cidadania dos doentes mentais que se tornam, segundo a letra jurídica, tutelados pelo alienista, este positivado como elo entre os pacientes e a sociedade (artigo 1°) e protetor de ambos. Os loucos, negativados como conhecedores de si, são esvaziados quanto à capacidade de, além de gerir suas vidas, gerir seus bens (artigo 4°). Ações essas guiadas pelo discurso de proteção, desempenhada pelos alienistas e pela instituição asilar. O documento inaugura legalmente a psiquiatrização do louco, o que responde a chamados de um processo de normalização dos doentes mentais. Os processos de normalização são regimes de poder que se constituem por meio de sistemas de correção de indivíduos, objetivando homogeneizá-los a partir de um modelo normativo. Os dispositivos de normalização são instâncias produtoras do deve ser de indivíduos e grupos, que são essencializados e naturalizados, pleitos dos quais fazem parte instituições, como hospitais psiquiátricos, assim como disciplinas (que são conjuntos de saberes), como a psiquiatria e a medicina social (Foucault, 2008). Com a emergência do capitalismo, a gestão da vida e das populações demanda esforços. Táticas são criadas e operadas para colocar limites em uma sociedade em que os corpos ganham valor e visibilidade, sendo necessário controlá-los e administrá-los, para que a sociedade tenha sua existência assegurada. Essa tecnologia de poder foi denominada por Foucault (2008) de biopolítica. Tendo o corpo como objeto e a normalização como objetivo, os dispositivos biopolíticos operam por meio da interferência político-estatal no social e se constituem como táticas: "[A] teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas" (Foucault, 1986, p. 284).

Como potencializadores da vida e do viver, a saúde e a saúde mental ganham destaque - e o arcabouço jurídico alimentará essa posição -, além de se constituírem como respostas às demandas sociais, regulamentando os corpos e os fenômenos coletivos. A partir disso, a discussão que aqui promovemos assume o sentido crítico de que a ação estatal no social, por meio das legislações e políticas, cumpre um papel de patologizar e medicar esse social. Essa função de medicalização social da primeira legislação geral de jurisprudência específica sobre a assistência psiquiátrica pode ser identificada a partir de alguns elementos.

A direta preocupação com a manutenção do social é localizada logo no artigo 1° do Decreto de 1903, quando este sanciona que aquele que comprometer a ordem pública será recolhido aos asilos. Nota-se que o arranjo social é prioridade, justificando o ineditismo da deliberação do texto, que é reorganizar a assistência a alienados, exigindo o esforço de metrificar a questão, que se localiza nas repetitivas solicitações de quantificações sobre os enfermos, as descrições de suas características físicas e de seus indicativos de loucura (artigo 2°) e no detalhamento utilitário organizativo das instituições psiquiátricas que produzirão a assistência aos asilados (artigo 14) (Decreto 1.132/1903). A exigência do levantamento de informações sobre o interno, sua vida e sua doença alimenta o campo de visibilidade que o doente mental adentra legalmente. Sua vida, mas não sua existência, visto que, apesar de solicitar dados que poderiam denotar um interesse por sua particularidade, o documento em nenhum momento lança a iniciativa de dar voz ao alienado: o administrador do asilo assume funções, o juiz de direito, os peritos de polícia e, sobretudo, o alienista, não havendo discurso autorizado do sujeito adoecido que ganha visibilidade jurídica, mas a partir de uma vida tratada como indigna. Especificamente sobre a temática trabalho, esta, ao se restringir à solicitação de poucos dados laborativos quando da internação do indivíduo adoecido, rumina o discurso da valorização social a partir da profissão ou atividade profissional realizada. No entanto, por inaugurar o arcabouço jurídico sobre a loucura, torna-se importante trazer tal decreto para essa discussão, mesmo que ele abarque o trabalho de forma frágil.

Nas décadas seguintes, poucas alterações ocorreram na legislação federal direcionada à questão mental. Em julho de 1934, o Decreto de 1903 foi revogado pelo Decreto 24.559/1934, que dispõe sobre a profilaxia mental, a assistência e proteção aos mentalmente adoecidos. Nesse documento, quando comparado ao de 1903, o modelo assistencial psiquiátrico brasileiro é juridicamente mais bem estabelecido como hospitalocêntrico, com a internação sendo obrigatória aos alienados e, inclusive, aos considerados indivíduos suspeitos que perturbem a chamada ordem e moral pública (artigo 7°). Há, também, a reafirmação da incapacidade do louco, o que consolida o psiquiatra como perito da loucura. Nesse momento, a produção de tecnologias para que o Estado operasse seu projeto de promoção do bem-estar social necessitava da identificação de parcelas vulneráveis da população. Eram segmentos a serem guiados e estimulados para caminhos normalizados: mais saudáveis e moralmente desejáveis. Se a base da biopolítica está nas normas, são as anormalidades que devem ser gerenciadas em processos de recuperação, reabilitação e ressocialização (Foucault, 1987; 2008).

A racionalidade política do Estado se faz presente no Decreto 24.559/1934, que, conforme nossas reflexões, é operado por três importantes aspectos. O primeiro é o contexto social, quando o país inicia um período histórico marcado pelo nacionalismo e por ações de nacionalização dos indivíduos, bem como de restrição às liberdades individuais. Como segundo contribuinte, a partir da década de 1930, a psiquiatria brasileira aproxima-se cada vez mais do alienismo alemão e seu eugenismo com argumentações pautadas por características étnicas e sociais que produziram no país uma releitura do fenômeno da loucura. Como terceiro componente, temos a Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM), que, nas décadas de 1920-1930, sustentou o ideário psiquiátrico preventivista no país, visando à prevenção, à eugenia e à educação moral e mental de indivíduos e grupos familiares (Amarante, 2000).

Em um contexto marcado pelo julgamento das questões individuais e grupais e pela forma como elas poderiam interferir no terreno social, a composição do Decreto de 1934 reflete uma lógica de prevenção em que a potencialidade do risco passa a ser uma preocupação eugenista. Os psiquiatras, em especial por meio da voz da LBHM, faziam apelos para intervenções políticas que pudessem solucionar as questões identificadas, a partir de então, como psiquiátricas. "A medicina mental ratificou em sua definição de doença mental a equação doente mental-perigo social. Sendo assim, a definição jurídica não poderia deixar de reafirmar a sua presença" (Amarante, 2000, p. 189). Se loucura e periculosidade se tornam relacionadas, o tratamento psiquiátrico assume posição de punição. Para Foucault (1996), a noção de periculosidade é evidência analisadora da emergência da norma, em que, mais do que o fato ou o ato, interessa as virtualidades do perigo (Foucault, 1996).

O Decreto 24.559 legalmente indica a estratégia terapêutica chamada assistência familiar, que contribuiu para o modelo institucional conhecido como Colônia de Alienados. Como microssociedades, as Colônias eram espaços de convívio e afetos controlados, livres dos excessos da vida urbana. No virtuosismo da vida rural, famílias substitutivas eram treinadas pelos psiquiatras para, com ensinamentos morais, contribuírem para o restabelecimento dos adoecidos. A dedicação ao trabalho (em especial o braçal) era vista como um empreendimento curativo fundamental nesse contexto. Com internação permanente, os loucos tinham a riqueza econômica de seus trabalhos garantindo seu sustento e sua bagagem moral modelada pelo círculo familiar artificial (Santiago & Yasui, 2011).

As legislações psiquiátricas brasileiras de 1903 e 1934 são exemplos de exercícios de formas oficiais de governo de indivíduos e grupo, narrando o corpo biológico da loucura. Mais do que a assistência psiquiátrica, os textos proferem o bom controle e a modelagem da vida a um modelo cientificamente bem específico de sociedade, sendo documentos exemplos de discursos normalizadores. No âmbito do trabalho-tratamento em saúde mental, afirmamos que, no primeiro decreto, temos os alicerces que, no segundo, são erguidos enquanto operadores laborais com propósitos de ajustamento, com foco não na cura, mas na contenção dos desvios e dos desviantes com o empenho nas atividades de laborterapia, refletindo a adequação social do enfermo. Isso se evidencia quando notamos que as ações de trabalho eram com finalidade de manutenção do próprio manicômio ou, ainda, de internos realizando atividades agrícolas em propriedades rurais próximas ao manicômio, com remuneração para a instituição asilar, e não para o paciente (Amarante, 1996; Santiago & Yasui, 2011).

 

Trabalho como Estratégia de Atenção a partir da Reforma Psiquiátrica

As décadas posteriores aos anos de 1930 presenciaram, de forma cada vez mais intensa, iniciativas reformadoras da assistência psiquiátrica que apontavam o modelo asilar como violento e cronificante. Nos anos de 1950, ineficácia e centralização geográfica e assistencial caracterizavam as políticas de saúde mental no Brasil (Amarante, 2000), que ainda pouco se deixaram influenciar pelas discussões europeias de desinstitucionalização. No fluxo desenvolvimentista que percorria o país, intensificaram-se esforços para o resgate ou organização da capacidade laboral de internos asilados em um adestramento para o trabalho. Objetivos visualizados na organização arquitetônica dos hospícios e a crescente preocupação com a destinação de espaços físicos para a realização de atividades das mais diversas, como trabalhos manuais, agrícolas e, sobretudo, de manutenção da instituição (Amarante, 2000).

Ainda nos anos de 1950, iniciou-se o direcionamento de esforços políticos para corrigir a realidade assistencial psiquiátrica brasileira. Como parte desse movimento, em 1963 aconteceu a III Conferência Nacional de Saúde (CNS), com tema sobre a situação sanitária da população brasileira. Na saúde mental, a III CNS apontou a necessidade de um sistema ambulatorial, além de serviços de praxiterapia extramanicomial (Amarante, 2000). Com a ditadura militar, a partir dos anos de 1960, a assistência em saúde mental foi ampliada em uma organização de psiquiatria de massa calcada em uma política que incluía poucos e excluía muitos. O modelo hospitalocêntrico foi fortalecido pela psiquiatria altamente rentável de uma indústria da loucura (Amarante, 1996; 2000), caracterizada por internações de longa permanência, cronificantes e de preponderância medicamentosa, aspectos que garantiram a retroalimentação do sistema, que somente vivenciou crises a partir dos anos de 1970. Em um contexto de efervescências políticas e sociais, o Brasil foi palco de mobilizações que produziram questionamentos quanto ao modo de vida. Em entrelaçamento, ações até ali preponderantes de assistência psiquiátrica foram descontruídas em suas possibilidades. Os próprios trabalhadores da área reunidos propuseram formas contra-hegemônicas de olhar e cuidar da loucura. Seus questionamentos foram acompanhados por denúncias das condições de tratamento nos manicômios. Da mobilização desses profissionais, foi constituído, em fins da década de 1970, o Movimento dos Trabalhadores da Saúde Mental (MTSM), considerado por Amarante (2000, p. 51) como "ator e sujeito político fundamental no projeto da Reforma Psiquiátrica brasileira". Também em 1970, o MTSM deu origem ao Movimento de Luta Antimanicomial, que nasceu marcado pelo resgate da cidadania daqueles em sofrimento. Entre os esforços para repensar a saúde no Brasil, outras quatro CNS aconteceram até 1980. Espaços de discussão e proposição de diretrizes, suas deliberações orientaram a elaboração de ações prioritárias nos âmbitos do governo, com destaque para a 8ª Conferência, em 1986, e suas contribuições para a instituição do SUS, em 1990. Dessa forma, as CNS se tornaram espaço privilegiado que fomentou a emergência estrutural, teórica e legal de noções caras à atenção em saúde e saúde mental como hoje a conhecemos (Amarante, 1996; 2000).

O SUS foi estabelecido com princípios básicos de universalidade de acesso, integralidade e equidade do cuidado, descentralização dos serviços e participação social em uma nova concepção de saúde (Ministério da Saúde, 2004). Mais tarde, a Lei 10.216, de 2001, dispôs sobre os direitos das pessoas com sofrimento psíquicos intenso e redirecionou o modelo assistencial em saúde mental, ficando conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica. Em um contexto de emergências, Amarante e Torre (2001) afirmam que a configuração e articulação de várias situações compuseram novos caminhos para a saúde pública em um Brasil redemocratizado: duas CNS, em 1987 e 1992; a proposição do SUS, em 1988; e a movimentação de profissionais da saúde mental. A discussão sobre a cidadania dos sujeitos com sofrimento psíquico logo surgiu como uma temática necessária de ser aprofundada.

Com a aprovação da Lei 10.216/2001 e a revogação do Decreto de 1934, foi constituído, finalmente, um instrumento legal federal para a revisão da assistência em saúde mental. Tal lei, ao apresentar princípios fundamentais de direitos humanos para as pessoas em sofrimento psíquico, colocou à luz a preocupação com a vida e a subjetividade delas. A constituição e expressão de sua existência passaram a ser legisladas em discurso que colocou o cotidiano, os laços e as relações sociais em um lugar de reconhecimento legal, com o Estado sendo responsabilizado por tornar a intenção expressa na letra jurídica em gesto (artigo 3°). Com relação ao modelo assistencial proposto, a legislação transformou a anterior centralidade hospitalar em posição de coadjuvante, impondo mecanismos de controle aos hospitais e às internações, que não poderiam mais ocorrer em instituições asilares (artigo 6°). Essa estratégia se baseou na orientação para a integralidade do tratamento, que deveria ocorrer preferencialmente em dispositivos diversificados, comunitários e multidisciplinares, visando permanentemente à reinserção social a partir de um processo de reabilitação psicossocial (artigo 5°). Além disso, com a reconstrução de práticas e saberes com o objetivo da reinserção social, o documento apresentou a alta planejada e reabilitação psicossocial assistida. Os laços familiares e comunitários são citados como dimensões importantes nos processos e, nesse aspecto, a dimensão trabalho é colocada com destaque. Quando o trabalho é nominalmente citado (artigo 2°), ele está atrelado às ideias de positividade por sua importância na vivência pessoal e social com dignidade e cidadania daqueles em sofrimento.

A legislação federal de 2001, como operador biopolítico qualificado de tecnologia de inclusão (Foucault, 2008), tem potencialidade para produzir reinserção social ao apontar estratégias diferenciadas de atenção em saúde mental, mas, enquanto discurso concreto, ela fez orientações e criou princípios de regulação, o que não é pouco, mas sim insuficiente por si só, já que não há transformação social unicamente por meio do discurso ou de um ato formal. Mesmo com a nomeação do Estado e com as expectativas na confecção de políticas específicas, estas podem não se mostrar suficientes, como de fato muitas vezes não o são quando encontram os desafios do cuidado cotidiano, como a literatura evidencia (Saraceno, 1999). Inclusive, um dos pontos de fragilidade da Lei 10.216 pode ser justamente a questão do trabalho em seu papel balizador de reinserção social. O desafio de incluir o sujeito em sofrimento em um mercado de trabalho excludente por excelência é exemplo do embate de forças no âmbito dos discursos e das práticas de se pensar o trabalhar como estratégia de atenção (Santiago & Yasui, 2011), e sobre isso a Lei não chega a versar.

A partir do SUS e da Lei 10.216/2001, uma Política Nacional de Saúde Mental foi constituída. Esta preconizou uma rede de atenção ampliada de base comunitária e territorial em cuidados desinstitucionalizados, auxiliando na construção de um outro lugar social para a loucura, em que as relações de produção e reprodução da vida foram reconfiguradas. A invenção desse outro lugar, que é também o de reinserção social, precisará de estratégias e programas que, no âmbito do trabalho, serão as de cooperativas de trabalho, inclusão social a partir do trabalho e centros de convivências, além de outros. Com isso, a questão do trabalho concretamente ganha espaços para se articular como exercício da cidadania, dos direitos humanos e da produção de subjetividade e contratualidade social.

Pouco após da Lei de 2001, foi realizada a 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM), com discussões específicas sobre o trabalho na saúde mental não manicomial. Nessa Conferência, tendo por base seu relatório final (Ministério da Saúde, 2001), a expressão reabilitação psicossocial entrelaça os esforços para valorizar a complexidade da existência humana, dos quais o trabalhar é considerado por se inscrever no cotidiano das relações sociais e da manutenção de autonomia. No entanto há pouco aprofundamento de que trabalho e de que condições concretas se fala, em um jogo de ele estar presente (nominalmente) e estar frágil (conceitualmente). Nas discussões específicas sobre trabalho, as palavras "reabilitação psicossocial" não são colocadas, mas sua potência para a (re)construção de laços sociais é objetivada, ao afirmar que o "processo de Reforma Psiquiátrica requer a implementação de políticas públicas que garantam e consolidem a criação de Programas de Geração de Renda e Trabalho [...], visando os processos de produção de autonomia e de direitos de cidadania" (Ministério da Saúde, 2001, p. 45). Em suas especificidades, as proposições envolvendo trabalho apresentam como finalidade o mercado formal, em que são sugeridos caminhos, tais como a constituição de leis que incentivem formação e capacitação profissional aos usuários da saúde mental. A presença e os sentidos das atividades de trabalho no contexto da atenção, a partir da Conferência, conduzem-nos para a percepção de um processo de normalização via capacidade laboral, pela transferência do indivíduo da segregação do manicômio para a alienação do mercado de trabalho. Além disso, pelo discurso, o trabalho na saúde mental seria paliativo até o alcance do vínculo formal, no formato de emprego. Outro ponto envolve a variação dos termos no documento. Ora se coloca geração de renda e trabalho, ora geração de trabalho e renda, alimentando o questionamento aqui sobre o que se está priorizando, trabalho ou renda? A ordenação propaga um discurso implícito. Geração de renda e trabalho suscita que o trabalho seja efeito da renda, ou seja, busco ou necessito da renda, por isso, realizo um trabalho. Enquanto geração de trabalho e renda inverta a proposição, com a renda tornando-se efeito de um trabalho, consequência de uma relação entre sujeito e uma atividade que potencialmente pronuncia variados aspectos da vida psicológica, social e política dos indivíduos, oportunizando o que se almeja com o trabalho enquanto estratégia de atenção em saúde: aquele que propicia a invenção e reinvenção de si.

Dos atos legais federais que norteiam a atenção em saúde mental indicando nominalmente a estratégia trabalho, a Lei n. 9.867/1999 é o primeiro. Tal documento dispôs sobre a criação e o funcionamento das cooperativas sociais. Originalmente, o projeto foi de iniciativa do deputado Paulo Delgado e apresentou uma analogia com as experiências da reforma psiquiátrica italiana de empresas sociais. Mesmo com a direta disponibilidade em discorrer sobre as cooperativas sociais, a lei em questão não apresenta uma conceituação, indicando apenas sua finalidade (artigo 1°), a de "inserir as pessoas em desvantagens no mercado econômico, por meio do trabalho, fundamenta[ndo]-se no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração social dos cidadãos" (Ministério da Saúde, 2004, p. 15). Quanto a quem seriam as pessoas em desvantagens, o documento lista perfis variados (deficientes de distintas condições, pacientes psiquiátricos crônicos e de longa permanência, egressos do sistema prisional, adolescentes em idade adequada ao trabalho e situação familiar difícil do ponto de vista econômico, social ou afetivo). A expressão "pessoas em desvantagem" indica uma condição existencial fixa, constituída como uma rotulagem identitária (Ministério da Saúde, 2004). Anos depois, na I Conferência Temática de Cooperativismo Social, realizada em 2010, saiu a proposta, nunca acatada, de substituição do termo para pessoas em situação de desvantagem, como tentativa de privilegiar o dinamismo da existência humana. Em análise, afirmamos que o documento opera com enunciados que agenciam sentidos de um processo de adaptabilidade ao trabalho, como evidenciado no artigo 3°, quando se afirma que as cooperativas sociais organizarão suas atividades quanto aos "horários e jornadas, de maneira a levar em conta e minimizar as dificuldades gerais e individuais das pessoas em desvantagem que nelas trabalharem, e desenvolverão e executarão programas especiais de treinamento com o objetivo de aumentar-lhes a produtividade" (Ministério da Saúde, 2004, p. 16). Nota-se como é protagonista a realização da atividade de trabalho a partir de parâmetros de prescrição produtivista, e não, mais uma vez, o processo de trabalhar em sua potencialidade. Defendemos que não se desconsidere o viés de quais são os resultados materiais do trabalho realizado?, mas esses não podem ser priorizados como única ou primeira medida da experiência trabalho na saúde mental.

No ano de 2000, a Portaria Ministerial n. 106 criou Serviços Residenciais Terapêuticos em Saúde Mental, que, em suas diretrizes, apresentaram a reinserção no trabalho como um dos pontos da reabilitação psicossocial a ser contemplado, em que a experiência trabalho, junto a outras, é reconhecida como auxiliadora na consolidação do abandono do modelo asilar. Para isso, orientam-se três frentes de ações relacionadas ao trabalho: que projetos de reinserção no trabalho sejam constituídos; que parcerias com outros dispositivos institucionais e sociais sejam estabelecidos; e que sejam estimuladas políticas de intercâmbio e cooperação entre Estado e sociedade. Apesar de aparentemente mais ampliado que os documentos anteriores quanto às intersetorialidades que envolvem o trabalho, uma ausência se repete: não há conceituações de trabalho. Inclusive, aqui, também, noções distintas em suas lógicas são utilizadas como sinônimos, por exemplo, a citação de reinserção no trabalho (artigo 4°) e inserção no mercado de trabalho (artigo 14°) (Ministério da Saúde, 2004).

Entre os anos de 2003 e 2005, o suporte financeiro para as ações de reabilitação e inserção social pelo trabalho será tema de textos legais da saúde. A Lei 10.708/2003 tratou das condições de envolvimento dos sujeitos com projetos de trabalho e renda (por meio da instituição do auxílio-reabilitação psicossocial). Já a Portaria Ministerial 1.169/2005 tratou do incentivo financeiro aos municípios que desenvolvessem projetos de inclusão social pelo trabalho. Ambos os documentos, em suas intenções, trazem alguns destaques. Tentam dar materialidade para a manutenção dos projetos e da participação dos usuários neles. Para os municípios e estados brasileiros que colocam tais políticas em ação, a destinação de incentivo financeiro impulsiona o olhar público para a questão. Consideram possibilidades coletivas não capitalistas, como empreendimentos solidários e autogestionários. Propõem diálogos em uma rede intersetorial de serviços e políticas públicas (Ministério da Saúde, 2004).

Uma colocação recorrente nas publicações oficiais nos últimos anos foi a prerrogativa de desenvolver ou apoiar iniciativas intersetoriais que contemplassem o trabalho. Em alguns documentos, inclusive, é citada a prerrogativa de integração da política de saúde com outras. São exemplos de publicações que colocam tal orientação, entre vários possíveis, a Lei Federal 11.343/2006 (que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas) e publicações (Portarias Ministeriais 154/2008 e 2.843/2010) que tratam dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Como destacada iniciativa intersetorial, em 2005, a Portaria Interministerial n. 353/2005 (assinada pelo Ministério da Saúde e Ministério do Trabalho e Emprego) instituiu o grupo de trabalho de saúde mental e economia solidária e estabeleceu atribuições articuladoras entre as áreas. Instaurado com a argumentação de que ambas as políticas, economia solidária e reforma psiquiátrica, possuem eixos similares e potentes para alterar e ampliar as condições concretas de vida de segmentos menos favorecidos, esse grupo de trabalho criou a Rede Brasileira de Saúde Mental e Economia Solidária (artigo 2°), que atuaria com alguns propósitos, como o de constituir canais e redes de consumo de produtos e serviços, fruto das iniciativas e dos projetos de trabalho na saúde mental (Ministério da Saúde, 2010), com condições orientadas e apoiadas pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), criada em 2003 e vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego.

Após cerca de 30 anos de Reforma Psiquiátrica, essa é compreendida como consolidada (Onocko-Campos, 2019). Desde 2006, os recursos com os serviços comunitários se tornaram maiores do que com as instituições psiquiátricas. Muitos hospitais psiquiátricos, compreendidos como ineficientes, foram fechados. Houve a ampliação dos serviços de atenção nos territórios, fortalecidos pela instauração da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) a partir de 2011, contando com a retaguarda do Apoio Matricial. Ocorreu a construção de políticas e serviços voltados para a população com problemas relacionados ao álcool e outras drogas, o que significou a criação de muitos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS ad), também a partir de 2011. Todos exemplos de políticas e dispositivos que direta ou indiretamente contemplam o trabalho como estratégia de atenção em saúde mental. No entanto, nesses anos, também houve uma expansão desigual dos serviços e a insuficiente construção e implementação de estratégias efetivas de participação de usuários e familiares no processo de atenção em saúde mental, além do constante subfinanciamento estatal na saúde mental (Onocko-Campos, 2019). Todavia, em meio aos processos, o trabalho como estratégia de atenção em saúde mental se constituiu potente por meio de experiências práticas inovadoras e bem-sucedidas na promoção do protagonismo e da autonomia dos sujeitos em sofrimento psíquico pela via do trabalho. São exemplos: o Projeto Trabalho, criado em 1989 e existente até os dias de hoje, ligado ao Núcleo de Projetos Especiais do Caps "Prof. Luís da Rocha Cerqueira" (Caps Itapeva), na cidade de São Paulo; e, ainda, o Núcleo de Oficinas e Trabalho (NOT), constituído em 1993 como braço do Serviço de Saúde "Dr. Cândido Ferreira" (Campinas, SP).

 

Algumas Considerações

Não há discurso jurídico ou concretude de uma lei ou política que exista sem a aceitação da sociedade que a reconheça e lhe dê existência na esfera das relações cotidianas. Por isso, Foucault (1986) afirma que a letra jurídica e política é, essencialmente, abstração.

À guisa de nossas considerações, apontamos que a gestão em saúde, a partir de seus ditames constitucionais e de política pública das últimas décadas, tem enfrentado o desafio de legislar no social, sem legislar o social. Legislar no social é reconhecer e respeitar (e não normalizar) formas singulares de vivenciar a saúde e a doença. Para isso, o desafio das políticas públicas é orientar a atenção em saúde a partir de nuances não mercantilizadas de saúde. Em um diagnóstico biopolítico do presente, as políticas públicas como ação estatal têm dificuldade em se desvencilhar das interferências do mercado econômico de racionalidade neoliberal. Dessa forma, o sujeito de direito reformulado como homo oeconomicus torna-se ilusório e normalizadamente autônomo em sua submissão, ao satisfazer as necessidades do mercado, conquistando seu lugar no arranjo econômico, sendo, nessa medida, um indivíduo modulado e ajustado em seu modo de pensar e viver.

No que tange ao discurso jurídico, antes do movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, a legislação de assistência psiquiátrica estava a serviço do objetivo de medicalizar a loucura e o louco, inclusive em suas inserções no social, com o trabalho sendo parte fundamental deste. Nos escritos legais, o foco não era a cura, mas a moralização, com dedicado esforço para a contenção dos desvios e dos desviantes. Quanto às atividades de trabalho no contexto da saúde mental, elas eram um importante instrumento tanto de medida de adequação existencial e social quanto de avaliação de eficácia dos tratamentos aplicados no espaço asilar e manicomial, sendo demarcadas em fenômenos de visibilidade das vidas degeneradas e como medida de adequação social.

A partir do final da década de 1980, com o SUS e a Lei 10.216/2001, o olhar e o entendimento sobre o sofrimento psíquico se ampliaram, incentivando tanto reflexões como experiências práticas diferenciadas quanto ao cuidado produzido na área de saúde mental, contribuindo e exigindo a elaboração, implantação e acompanhamento de políticas públicas. Desses momentos em diante, o doente mental, subjugado a saberes legalmente amparados e institucionalmente estabelecidos, foi reposicionado. No âmbito da dimensão trabalho, a produção discursiva legal e política da saúde mental assumiu diretrizes como a reabilitação psicossocial, utilizando neste processo, como um de seus principais instrumentos, a (re)inclusão social pelo trabalho. Todavia, a partir de então, o desafio é o de como contribuir para a inclusão social a partir do trabalho quando outros grupos, desempregados e subemprega-dos, não a conseguem.

Cartografias das políticas públicas que contemplem o trabalho como estratégia de atenção em saúde mental evidenciaram a falta de uma homogeneidade conceitual de trabalho, das perspectivas do trabalhar, inclusive com um mosaico semântico de termos e expressões por vezes contraditórios, indicando a necessidade de discussões mais detidas dos conceitos e dos contornos teóricos a partir dos quais os discursos serão proferidos. Também estão presentes, nos documentos, referências ao acesso, à competência e à vivência do trabalho como uma jornada de linearidade adaptativa, desconsiderando a dinâmica da produção de si que o trabalhar oportuniza. Há demasiada valorização do mercado formal de trabalho, bem como uma discursividade que conceitualmente aproxima e, por vezes, textualmente identifica trabalho com emprego formal, em uma valorização do trabalho prescrito e atestado que a formalidade do mercado de trabalho tanto valoriza. Mesmo com reconhecido esforço político, infelizmente, a estratégia trabalho no contexto da saúde mental é discursivamente cercada de ambiguidades que não podem ser ignoradas. As políticas públicas certificam direitos, tentam assegurar articulações, porém não se opera uma transformação social unicamente a partir de atos legais. Mas, ao constituírem diretrizes de atuação, tais documentos norteiam, sim, as estratégias construídas no cotidiano dos serviços, como um breve levantamento da literatura sobre experiências exitosas de geração de trabalho e renda no contexto da saúde mental evidenciária.

Um outro pacto social da relação entre sofrimento psíquico e trabalho precisa ser estabelecido. Esse caminho já começou a ser percorrido, mas ainda há uma considerável jornada para que a política pública aprenda a falar sobre os sujeitos sem fazê-los refém: precisa substancializar os indivíduos sem sujeitar sua potência criativa e criadora, precisa apreciar a realidade social sem recriá-la higienicamente, precisa construir formas de tratar os desiguais desigualmente, pois, ao igualizar a diferença, apagam-se as particularidades.

Embora este texto tenha atingido os objetivos propostos, vale ressaltar que sua principal limitação foi a de não conseguir abarcar como o discurso político aqui destacado desdobra-se no cotidiano dos serviços e das práticas de saúde mental, questão que necessita de ampliação de pesquisas e construções teóricas, as quais não foram contempladas aqui, devido aos limites deste texto. Outro ponto ainda se refere ao cenário da vida e do trabalho contemporâneo e como ele tem se mostrado especialmente difícil, com notícias de desmonte dos direitos trabalhistas, esvaziamento das ações coletivas e formalização de relações precarizadas de trabalho, como a jornada intermitente (Krein, 2018) e outras formas laborais, empurrando todos os trabalhadores para relações nocivas e potencialmente adoecedoras (Mendes, 2007). Pensar sobre como essas novas configurações do mundo do trabalho podem reverberar nas experiências de geração de trabalho e renda na saúde mental torna-se uma questão ainda a ser abarcada em um futuro próximo.

No âmbito das políticas e práticas de trabalho e saúde mental, o fim do Ministério do Trabalho e a transformação da Senaes em departamento do Ministério da Cultura, em 2019, fragmentaram as políticas de geração de trabalho e renda - contexto que se torna pior com as modificações nos últimos anos nas políticas de saúde mental, que já são lidas, como afirmado por Onocko-Campos (2019) e com o qual esses autores concordam, como colocando em risco não só a Reforma Psiquiátrica, mas a democracia.

 

Referências

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Endereço de contato:
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Recebido em: 24/07/2019
Última revisão: 17/12/2019
Aceite final: 21/01/2020

 

 

Eneida Santiago: Doutorado em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp-Assis). Mestrado em Psicologia e Sociedade e graduação em Psicologia, também pela Unesp-Assis. Professora adjunta da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Departamento de Psicologia Social e Institucional, e docente no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia (PPGPSI-UEL). Tem desenvolvido pesquisas na área de Psicologia, Trabalho e Saúde, com ênfase em Saúde Coletiva, Psicologia e Políticas Públicas, Saúde e Processos de Subjetivação e Intersetorialidade, atuando principalmente nos seguintes temas: Políticas Públicas e Gestão da Vida, Processos de Subjetivação e Trabalho, Saúde Mental e Saúde Coletiva, Intersetorialidade e Atenção em Saúde.
E-mail: eneidasantiago2@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5296-4341
Silvio Yasui: Doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Mestrado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Graduação em Psicologia pela Universidade de Mogi das Cruzes. Livre-docente em Psicologia e Atenção Psicossocial pela Unesp. Professor associado da Unesp-Assis. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental, atuando principalmente nos seguintes temas: Atenção Psicossocial, Reforma Psiquiátrica e Saúde Mental.
E-mail: silvioyasui@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5015-6634

^rND^sAmarante^nP^rND^sTorre^nE. H. G.^rND^sDejours^nC.^rND^sDejours^nC.^rND^sGama^nL. P.^rND^sMendes^nA. M. B.^rND^sLazzarini^nE. R.^rND^sVieira^nF. O.^rND^sGuareschi^nN. M. F.^rND^sLara^nL.^rND^sAdegas^nM. A.^rND^sKrein^nJ. D.^rND^sOnocko-Campos^nR. T.^rND^sSantiago^nE.^rND^sYasui^nS.^rND^sSouza^nC.^rND^1AFF1^nVanessa^sMiranda^rND^1AFF1^nVanessa^sMiranda^rND^1AFF1^nVanessa^sMiranda

10.20435/pssa.vi.1070 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Mulheres indígenas de Manaus: construindo políticas afirmativas no SUS

 

Manaus indigenous women: building affirmative policies in SUS

 

Mujeres indígenas de Manaus: construyendo políticas afirmativas en el SUS

 

 

Vanessa Miranda

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo apresentar problematizações entre a atenção diferenciada no SUS e políticas afirmativas conquistadas pela ação de mulheres indígenas na cidade de Manaus, Amazonas. Desde a década de 1970, identificamos na Amazônia Brasileira, região de fértil pluralidade étnica, uma rede de relações de gênero sendo tecida no interior do movimento indígena mais ampliado, criando um saldo organizativo de participação social em ações comunitárias que culminaram nas lutas e conquistas pela consolidação da saúde indígena no SUS. À luz da psicologia sócio-histórica e suas interfaces com a antropologia, história e saúde coletiva, buscamos revalorizar experiências de mulheres indígenas na cidade de Manaus, evidenciando suas contribuições à saúde diferenciada no SUS articuladas a outras políticas afirmativas conquistadas, como o direito à cidade, ao trabalho, direito à cultura e o direito à educação.

Palavras-chave: mulheres indígenas, Psicologia, participação social, atenção diferenciada, SUS


ABSTRACT

This article aims to present problematizations between the differentiated attention in SUS and affirmative policies achieved by the action of indigenous women in the city of Manaus, Amazonas. Since the 1970s, we have identified in the Brazilian Amazon, a region of fertile ethnic plurality, a network of gender relations being woven within the broader indigenous movement, creating an organizational balance of social participation in community actions that culminated in the struggles and achievements for consolidation of indigenous health in the SUS. In light of socio-historical psychology and its interfaces with anthropology, history, and public health, we seek to revalue the experiences of indigenous women in the city of Manaus, highlighting their contributions to differentiated health in SUS articulated with other affirmative policies achieved as the right to the city, to work, the right to culture and the right to education.

Keywords: indigenous women, Psychology, social participation, differentiated care, SUS


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar las problematizaciones entre la atención diferenciada en el SUS y las políticas afirmativas logradas por la acción de las mujeres indígenas en la ciudad de Manaus, Amazonas. Desde la década de 1970, hemos identificado en la Amazonía brasileña, una región de pluralidad étnica fértil, una red de relaciones de género tejidas dentro del movimiento indígena más amplio, creando un equilibrio organizacional de participación social en acciones comunitarias que culminaron en las luchas y logros para consolidación de la salud indígena en el SUS. A la luz de la psicología sociohistórica y sus interfaces con la antropología, la historia y la salud pública, buscamos revaluar las experiencias de las mujeres indígenas en la ciudad de Manaus, destacando sus contribuciones a la salud diferenciada en el SUS articuladas con otras políticas afirmativas logradas, como el derecho a la ciudad, al trabajo, el derecho a la cultura y el derecho a la educación.

Palabras clave: mujeres indígenas, Psicología, participación social, atención diferenciada, SUS


 

 

Introdução

No Brasil, o tema Psicologia e Povos Indígenas vem cada vez mais conquistando espaços de pesquisa, quer seja na academia, quer seja nos movimentos sociais ou na formulação e implementação de políticas afirmativas de setores públicos que consideram o reconhecimento do direito à autodeterminação daqueles povos (Vitale & Grubits, 2009; Ferraz & Domingues, 2016).

Atualmente, a psicologia está diretamente presente na atenção ao cuidado da saúde indígena no Sistema Único de Saúde (SUS), aprimorando metodologias de trabalho que contemplam as especificidades da atenção diferenciada quanto às características do território e terra indígenas, à história das etnias, à prevalência de doenças crônicas transmissíveis e não transmissíveis em cada povo, à saúde mental, à segurança alimentar, às questões de gênero e aos direitos humanos (Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas do Sistema Conselhos de Psicologia [Crepop], 2013; Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [CRP-SP], 2010; Salem, 2010; Miranda, 2015).

Há também a presença de psicólogas(os) que atuam em equipamentos do Sistema Único de Assistência Social (Suas) promovendo ações que visam à garantia do acesso das populações indígenas aos benefícios de transferência de renda, como o Bolsa Família, além do acesso aos benefícios previdenciários, como aposentadoria e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) (Borges, 2016). Na área da educação, a psicologia tem contribuído na defesa das políticas de cotas e inclusão da população indígena em todos os níveis, do básico aos estudos pós-graduados (Salem, 2006).

Entendemos, aqui, por políticas afirmativas, uma pluralidade de processos sociais complexos que buscam definir ações de inclusão em direitos básicos (saúde, educação, trabalho, informação, cultura, alimentação) de minorias excluídas historicamente (povos tradicionais e indígenas, população negra, mulheres e crianças, idosos, população LGBTQIA+, população em situação de rua) na formulação e implementação de políticas públicas. Tais ações afirmativas seguem uma agenda definida por demandas criadas ao longo de décadas nos diversos setores da sociedade brasileira, da qual têm participado diretamente trabalhadores da saúde e educação, especialistas das mais diferentes áreas, movimento negro e indígena, além de lideranças de movimentos de mulheres indígenas. Nesse cenário de criação de políticas afirmativas, a despeito do preconceito e do racismo da classe dominante presente também nesse meio de disputas e luta de classes, é crescente o protagonismo de experiências de participação social de movimentos de mulheres indígenas de todo o Brasil, com destaque ao protagonismo de Associações de Mulheres Indígenas situadas na região norte da Amazônia Brasileira (Projeto Nova Cartografia Social. Série: Movimentos Sociais e Conflitos Sociais nas Cidades da Amazônia, 2008).

Em Manaus, capital do estado do Amazonas, experiências de mulheres indígenas envolvidas em movimentos sociais na cidade combinam suas práticas de artesanato às lutas de valorização da sua cultura e seu reconhecimento profissional como artesãs, participando diretamente de espaços de comercialização em feiras situadas em diferentes pontos da cidade. Hoje, a presença de indígenas de etnias diversas marca socialmente locais de trabalho consolidados na memória urbana, como a feira de artesanato da Avenida Eduardo Ribeiro, feiras e projetos da Fundação Amazonas Sustentável (FAZ), feira do Parque do Mindu, uma Maloca em espaço permanente no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), quiosques em shopping centers, loja do Instituto Socioambiental (ISA), feira da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), feira do Museu da Amazônia (Musa) no Largo São Sebastião, Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, entre outros espaços conquistados em Manaus de exposição permanente da cultura indígena local, como o Centro Cultural Povos da Amazônia, Museu Amazônico da Ufam, Museu do Indio e o Musa, localizado na Reserva Adolpho Ducke da cidade de Manaus.

Estudos sobre a trajetória de mulheres indígenas organizadas em associações em Manaus, como a Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism) e Associação de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn), observam que a prática do artesanato é articuladora das lutas pela demarcação e manutenção das Terras Indígenas, pela atenção diferenciada no SUS, pela educação e pelo direito ao trabalho, constituindo a presença organizada daquelas mulheres na cidade em desdobramentos de políticas afirmativas promovidas por órgãos públicos do estado. Contudo, trata-se ainda de escala restrita de atendimento, se considerarmos o volume das demandas dos povos locais (Miranda, 2017; Chernela, 2011).

A história de formação de associações de mulheres indígenas, na cidade de Manaus e nos demais estados brasileiros, remete-nos a uma rede de relações de gênero que vem sendo tecida desde os anos 1970 no interior do movimento social indígena. Entre os anos de 2007 e 2008, o antropólogo Luís Roberto de Paula (2008, pp. 60-61) mapeou 34 associações de mulheres indígenas distribuídas entre os estados da federação, dezoito delas foram localizadas no estado do Amazonas. Sacchi (2003), em estudo anterior ao de Paula, afirma que na Amazônia Brasileira

[. . .] estão situadas a maior parte das organizações femininas e apenas duas surgiram na década de 1980, caso da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (AMITRUT), todas as demais foram fundadas a partir de 1990. Além dessas, outras organizações de Mulheres passam a assumir um papel mais significativo no movimento indígena: como a Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé/AMISM. (Sacchi, 2003, pp. 96-97)

Ricardo Verdum (2008) aponta que, no início do período de redemocratização da política brasileira, em meados da década de 1980, as mulheres indígenas organizadas em associações passaram a participar de processos amplos de reivindicações de direitos junto ao Estado brasileiro, enriquecendo o coletivo dos movimentos sociais indígenas e fortalecendo-o internamente, colocando-o no centro da discussão de novas pautas e políticas afirmativas. Nesse sentido, processos de auto-organização desenvolvidos pelas mulheres indígenas têm delimitado ações comunitárias por gestão participativa na saúde indígena do SUS quanto à saúde reprodutiva, à segurança alimentar, ao enfrentamento da violência contra a mulher e à prevenção do alcoolismo. Tais ações coexistem com atividades voltadas ao etnodesenvolvimento, como a produção do artesanato indígena e de outros saberes-fazeres tradicionais voltados, por exemplo, à arte do grafismo, do trançado de palha, da confecção de utensílios de uso doméstico, da produção de gêneros alimentícios e manutenção de rituais.

No texto "Mulheres Indígenas: Representações", Cristiane Lasmar (1999) apresenta um panorama da presença de estudos etnográficos de gênero realizados na Amazônia Indígena a partir dos anos de 1970 e 1980. Para a autora, a etnologia amazônica experimentou nesse período uma expansão teórica considerável, marcada pelo sentido da "politização e organização crescentes das populações ameríndias, assim como pelo acúmulo e sofisticação da produção etnográfica", que "têm levado os pesquisadores a uma reflexão mais profunda acerca das formas de sociabilidade próprias aos habitantes" da Amazônia Indígena (Coelho de Souza, 1995, como citado em Lasmar, 1999, p. 144). Problematizando desdobramentos teórico-metodológicos da etnografia de gênero nas sociedades ameríndias, Lasmar constata que o condicionamento do pensamento promovido pelo inculcamento da ideologia do "Bom Selvagem" e da imagem do "bárbaro" conformou um conjunto de representações estereotipadas acerca do elemento feminino na etno-história. Desse modo, defende a autora que garantir visibilidade e dar voz às mulheres indígenas é a possibilidade de ressignificar e colocar em pé de igualdade os fazeres femininos no interior das ciências humanas, repensando o espaço das mulheres indígenas, quer seja na cena mítica, quer seja na cena da organização político-social de diferentes etnicidades.

Nesse campo de disputas marcado pela divisão de classes, a resistência de mulheres indígenas no campo e na cidade se organiza para enfrentar as constantes tentativas de perspectivas administrativas em gestões públicas de governo e da classe dominante para reproduzir sistematicamente um meio social de exclusões, inclusive pelo ocultamento da presença política desses sujeitos históricos na participação e conquista da sua própria inclusão no SUS, pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Sasisus), estabelecido pela Lei Sérgio Arouca n. 9.836 (1999), e na criação da Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai), no ano de 2010. Alinhados à defesa da luta histórica dessa população, estão muitos professores, alunos, famílias, mulheres, homens, crianças, idosos e idosas, indígenas e não indígenas, bem como profissionais da área da saúde, que, pelo debate da revalorização dessas experiências, inclusive no campo da formação profissional, na área da pesquisa e na constituição de novos processos de trabalho, associam-se pela reivindicação de espaços de convívio na cidade, pelo direito à participação social e construção de políticas públicas, sem exclusões étnicas (Miranda, Santos, & Azevedo, 2016; Campos, 2003).

O tema em estudo neste artigo, o da construção da sociabilidade de mulheres indígenas em torno de políticas afirmativas articuladas à atenção diferenciada no SUS, na cidade de Manaus, merece que tais discussões acerca de problemas e possibilidades pelo campo da pesquisa em psicologia e saúde possam ser enfrentadas e explicitadas, pois pretende-se, aqui, revalorizar as experiências de participação social desses sujeitos históricos nos processos de formação de políticas públicas direcionadas à população indígena local.

Dados publicados em 2010 pelo censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tendo-se pela primeira vez incluído os quesitos de etnia e de língua falada, preencheram importante lacuna, evidenciando a existência de notável sociodiversidade indígena no país. Como resultado dessa investigação, apontou o referido censo a ocorrência de 274 línguas indígenas faladas por indivíduos pertencentes a 305 etnias diferentes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2012, pp. 85-90).

Atualmente, o Brasil conta com uma população de 896 mil indígenas, sendo que, desse total, 517.383 indivíduos vivem em terras indígenas, e 379.534 residem fora de áreas demarcadas, tanto no meio rural como no espaço urbano. A região norte, ainda segundo o censo de 2010, indica a presença de 342.836 indígenas em seu território, o maior contingente dessa população em âmbito nacional, quando, desse total, 251.891 pessoas encontram-se em áreas demarcadas, e 90.945 em outras localidades (IBGE, 2012, p. 55). O Amazonas é o estado da Federação com o maior número de habitantes indígenas, 183.514, sendo que 129.529 residem nas terras indígenas, e 53.985 encontram-se fora dessas áreas (IBGE, 2012, p. 169). Sem afirmar quaisquer linhas explicativas a partir de argumentos demográficos, o que se apresenta pelos dados numéricos acima é o então aparecimento dessa população, historicamente excluída também dos anuários estatísticos, contribuindo para a construção ideológica da sua invisibilidade. Tal fato, além de encontrar apoio em formas inúmeras da

exclusão social, pode ser respaldado, igualmente, por dados censitários, sendo, essas, fontes históricas que precisam também ser problematizadas. É de se apostar que a continuidade do conjunto de políticas de inclusão instituídas nos últimos anos no país, como também pela luta no campo do direito à saúde, à cultura e à memória indígenas, venha a consolidar números cada vez mais aproximados da sua presença na realidade social brasileira, lugar em que ser índio é ainda sinônimo do que "já não é mais".

É nesse contexto sócio-histórico que a Psicologia enquanto ciência e profissão tem proposto, junto aos Povos Indígenas do Brasil, uma construção dialógica que integre em sua prática a defesa e a garantia do direito constitucional à autodeterminação dos povos indígenas, conforme artigo 4°, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil (1988); dos direitos sociais, previstos no artigo 5° da mesma Constituição; da Lei n. 9.836 (1999), que dispõe sobre a organização, diretrizes e princípios do Sasisus; e da Portaria n. 2.759, do Ministério da Saúde (2007), que estabelece diretrizes gerais para a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas.

 

Aporte Teórico-Metodológico

A metodologia de levantamento dos materiais e a seleção das fontes aqui apresentadas seguem em parte resultados de pesquisa de mestrado concluído em 2015, baseada na análise documental de registros arquivados na Amism (Miranda, 2015). Tais registros foram produzidos pelas próprias mulheres artesãs da associação, que, desde 1992, muitas na condição de migrantes da Terra Indígena Andirá-Marau, iniciaram em Manaus as primeiras articulações que culminaram na fundação da associação.

Entre os anos de 1993 e 1995, as reuniões realizadas por famílias Sateré-Mawé moradoras no bairro da Redenção deram início a pequenas ações locais, impulsionando a confecção do artesanato e a realização de um ciclo de viagens à Terra Indígena Andirá-Marau, com o intuito de mobilizar mulheres Sateré-Mawé nas aldeais.

Fundada a Amism em 1995, na aldeia Ponta Alegre do rio Andirá, com sede na cidade de Manaus, esse coletivo de mulheres segue, até os dias de hoje, com sua organização sociopolítica em torno da confecção e comercialização do artesanato e defesa dos direitos indígenas.

Por sua vez, o conjunto de políticas públicas e levantamento bibliográfico apresentado neste artigo, na área dos direitos humanos e da saúde indígena no SUS, segue problematização inspirada na metodologia do Crepop (Conselho Federal de Psicologia, 2012).

Também contribui para o olhar aqui alcançado acerca do tema a minha experiência profissional como psicóloga e servidora pública da Secretaria de Saúde de Estado do Amazonas (Susam), na cidade de Manaus, atendendo diretamente a população indígena urbana (mulheres, homens, crianças e idosos de diferentes etnias) no Programa de Adesão ao Tratamento Antituberculose do Centro de Referência em Pneumologia Sanitária Cardoso Fontes, serviço de saúde do estado pertencente à atenção secundária do SUS.

A partir dessa trajetória de pesquisa acadêmica e exercício profissional, as análises pensadas para este artigo encontram na Psicologia Sócio-Histórica aporte teórico-metodológico para a revalorização da participação social de mulheres indígenas como sujeitos históricos, buscando identificar, nas ações registradas em relatórios de encontros temáticos, reuniões e apresentações públicas, aspectos subjetivos presentes nas políticas afirmativas articuladas à atenção diferenciada no SUS.

Para Gonçalves (2003), a Psicologia Sócio-Histórica busca compreender dimensões subjetivas dos fenômenos sociais no movimento histórico-dialético, entendendo que, nas contradições inerentes ao sistema capitalista, a subjetividade também é forjada na sua face de resistência ao liberalismo, engendrando sujeitos históricos capazes de transformarem a realidade e de se transformarem em busca de projetos emancipatórios rumo à autonomia dos sujeitos.

O indivíduo se constitui como sujeito no capitalismo e como sujeito histórico a partir das contradições desse mesmo capitalismo. [. . .]. A dimensão subjetiva se constitui por diversas mediações. Entre elas, a ideologia e as concepções de sujeito e subjetividade. Nossa proposta é que se trabalhe, no campo social das políticas públicas considerando que subjetividades constituídas no processo social e histórico podem ser produzidas na direção desejada. Ou seja, considerando que intervenções no campo das políticas podem contribuir para que se produzam experiências subjetivas que favoreçam subjetividades transformadas e transformadoras da realidade. (Gonçalves, 2003, p. 150)

Nessa perspectiva, Gonzalez Rey (2003) acrescenta que o processo de constituição da subjetividade não deve ser tomado por um psiquismo ou individualidade descolada das determinações da realidade social. Nesse aspecto, Furtado (2011) defende que a dimensão subjetiva da realidade se constitui a partir da historicidade das relações de produção e da luta de classes, engendrando sujeitos históricos que resistem à opressão e à exploração, criando valores coletivos e individuais que aspiram por políticas públicas de igualdade, autonomia e solidariedade.

Olhando por esse prisma, o trabalho de organização e resistência de mulheres indígenas em Manaus revela aspectos da dimensão subjetiva na luta por direitos transformada em conquistas por políticas afirmativas na saúde indígena no SUS contra as relações de exploração. Nesse sentido, observamos que o processo de construção de igualdade em relações de gênero, conquistada pelas experiências de participação social de mulheres indígenas, bem como no interior do movimento indígena mais ampliado em Manaus, é expressão do reconhecimento de dimensões subjetivas pertencentes à diversidade étnica na tessitura da atenção diferenciada no SUS. Um processo longo e árduo, mas que, apesar de todas as adversidades e ameaças constantes dos direitos indígenas já conquistados no Brasil, continua em curso graças à resistência organizada do movimento social indígena pela defesa da saúde e da democracia.

 

Relações de Gênero, Mulheres Indígenas e a Atenção Diferenciada no SUS

A historiografia dos movimentos sociais tem renovado esforços no sentido de recuperar práticas políticas também pelas sutis formas de organização e solidariedade forjadas no caminho dessas lutas (Antonacci, 1994; Sader, 1988; Silva, 1996), constituindo essa memória importante patrimônio histórico da cidade, quando sujeitos históricos aparecem também por seus gestos, olhares, singelezas e silêncios, sendo significativas todas essas dimensões subjetivas nas conquistas de políticas afirmativas articuladas à saúde diferencial no SUS.

A trajetória dos movimentos sociais de mulheres indígenas de Manaus, pela sua participação política e social, tem ampliado os debates acerca da criação e formulação de iniciativas de políticas afirmativas em prol da saúde indígena, afirmando as mulheres indígenas, nesse campo, como agentes sociais envolvidos na defesa de seus modos de vida como cultura. Importante revalorizar formas e estratégias de luta de mulheres indígenas na organização dessas iniciativas. Registros documentais de reuniões, encontros temáticos e de projetos, como veremos a seguir, evidenciam perspectivas, conforme salienta Sawaia (2014), de um "sofrimento ético-político", dimensão subjetiva que não se separa da seriedade e do compromisso com que aquelas mulheres realizam sua caminhada de luta, quando também suas condições de mãe e esposa estão presentes.

Em 2002, lideranças dos movimentos sociais de mulheres indígenas de Manaus e outras cidades brasileiras reuniram-se em Encontro organizado pela Fundação Nacional do Indio (Funai) sobre Políticas Afirmativas, com o intuito de discutir e traçar diretrizes para a formulação de políticas públicas voltadas à mulher indígena. Consta no relatório final do referido Encontro, documento compilado e comentado pela antropóloga Rita Laura Segato (2002), que mulheres indígenas de vários estados brasileiros discutiram ampla e abertamente "a diversidade dos seus problemas no âmbito da saúde, educação, preservação dos costumes e do meio ambiente, trabalho, situação econômica [. . .] e experiências relativas à maternidade e criação dos filhos" (Segato, 2002, p. 4). No que tange às questões concernentes às "relações de gênero", o relatório apresenta ainda categorias de análise (discutidas entre as participantes) que expressam realidades históricas quanto à condição da participação das mulheres indígenas e não indígenas na esfera de decisões públicas, como

os pares de binômios: dominação/subordinação - autonomia/dependência; grau de participação; autonomia de participação e participação nas decisões; prestígios e valor associados ao feminismo e ao masculino; espaço doméstico/espaço público- esfera do-méstica/esfera pública. (Segato, 2002, p. 15)

Sobre a temática das relações de gênero, a antropóloga inglesa Marilyn Strathern (2006) estudou aquelas relações em sociedades melanésias, buscando delimitar a partir da antropologia comparativa modos de troca/dádiva que evidenciassem processos de formação nos planos da ideologia, da política e da produção. Ademais, o conceito de gênero elaborado pela autora expressa dinamicidade para a análise de dimensões subjetivas presentes nos movimentos de mulheres indígenas.

[. . .] categorizações de pessoas, artefatos, eventos, sequências etc., que se fundamentam em imagens sexuais - nas maneiras pelas quais a nitidez das características masculinas e femininas tornam concretas as ideias das pessoas sobre a natureza das relações sociais. (Strathern, 2006, p. 20)

A inevitável presença das relações de gênero nas sociedades melanésias, bem como nas ocidentais, fizeram com que Strathern empreendesse um movimento de aproximação e distanciamento entre o feminismo e as antropólogas feministas, afirmando que "não se pode falar no 'feminismo' como um fenômeno unitário" e que "o pensamento feminista, polifônico, por necessidade política, acomoda a antropologia como 'uma outra voz'" (Strathern, 2006, pp. 54-76). A leitura de Strathern sobre o feminismo impõe distanciamentos e possibilidades de aproximação entre o movimento feminista e os movimentos sociais de mulheres indígenas, que alcançaram uma pluralidade de dimensões pela sua própria criação, não podendo ser reduzidos, como aposta Santos (2012), a um único ponto de partida de formação histórica e antropológica.

Em 2004, na cidade de Manaus, lideranças dos movimentos de mulheres indígenas e pesquisadores envolvidos nos processos sociais de garantia de direitos em saúde e políticas públicas de gênero reuniram-se em Encontro com o objetivo de apresentar e avaliar realidades locais, no contexto pan-indígena da Amazônia Brasileira, do Peru, Colômbia, Equador e Venezuela, enfrentadas no âmbito do direito à saúde reprodutiva (Fiocruz Amazônia, 2004). Sobre a apropriação das relações de gênero na saúde indígena, a liderança Valéria Tiriyó, do Parque do Tumucumanaque, no Pará, fez as seguintes considerações, durante o Encontro referido acima:

[. . .] a gente esteve aqui durante dois dias discutindo a questão de gênero, saúde indígena e saúde reprodutiva e, dessas discussões todas, saíram algumas propostas que queremos encaminhar para a Conferência Nacional da Mulher. Mas antes de mais nada queremos que isso passe na Conferência da Mulher Indígena que está sendo planejada. Para nós temas como a questão de gênero não são fáceis. O que é gênero para nós mulheres indígenas? Essas foram algumas palavras que para nós são novas, foram introduzidas. (Tiriyó, V., Transcrição Fiocruz Amazônia, 2004)

A discussão proposta por Valéria Tiriyó nos faz pensar que as dimensões subjetivas do movimento social de mulheres indígenas se constituem por mediações que atravessam tanto sentidos da construção de gênero para este grupo quanto as conquistas na Amazônia brasileira alcançadas pela participação social de mulheres na formulação e implementação da atenção diferenciada da Saúde Indígena no SUS.

As falas das mulheres indígenas, representantes de associações de mulheres naquele Encontro, evidenciam que as formas de sociabilidade e organização próprias desses movimentos, em torno de melhores condições de vida e saúde, partem da experiência do enfrentamento cotidiano, vivido e debatido em ações comunitárias que tratam da violência contra a mulher nas relações de gênero atravessadas pela exploração dos fazendeiros, entrada do garimpo nas terras indígenas e o alcoolismo.

Em 1970 começamos com a organização. Surgiu a ideia de nos organizarmos através de grupos de corte e costura. Nesses encontros a gente aproveitava para trocar ideias sobre como estávamos vivendo, como poderíamos fazer para ajudar os homens. Por quê? Porque com a entrada dos fazendeiros, dos garimpeiros invadindo nossas terras estava judiando com todo mundo. Como falei desde o início, nós não somos contra os brancos; nós somos só contra aqueles que ficam nos explorando. Então é esse tipo de pessoa que machuca nosso sentimento. Enquanto os homens não se preocupavam com a vida tinha muito alcoolismo. Desde o início eu falava que não vou parar de falar sobre o alcoolismo. Antes a gente não tinha voz para dizer que não podia comprar. (Cruz, I., Transcrição Fiocruz Amazônia, 2004)

A narrativa de Ivete Cruz, então coordenadora da Organização de Mulheres Indígenas de Roraima (Omir), remonta a situações-limite de sofrimento psíquico e mental enfrentadas pelas mulheres indígenas, evidenciando relações de dominação e subordinação na divisão social de classes, "porque com a entrada dos fazendeiros, dos garimpeiros invadindo nossas terras estava judiando com todo mundo". Ivete diferencia, em seu depoimento, a experiência humana entre "nós [mulheres e homens indígenas]" e "os brancos", a qual é atravessada pela luta de classes nas complexas relações de contato interétnico, e explica: "Como falei desde o início, nós não somos contra os brancos; nós somos só contra aqueles que ficam nos explorando".

As condições históricas de expropriação de territórios indígenas, como a "entrada dos fazendeiros, dos garimpeiros invadindo nossas terras", enfrentada por Ivete e seus pares, incidem violentamente nos modos de vida de suas famílias, trazendo com isso problemas crônicos de saúde, como o alcoolismo: "enquanto os homens não se preocupavam com a vida tinha muito alcoolismo. Desde o início eu falava que não vou parar de falar sobre o alcoolismo". É possível ainda depreendermos da fala de Ivete que as "relações de troca", forma social da cultura indígena que garante a esses sujeitos históricos sentimento de identidade étnica e de pertencimento, quando atravessadas por condições de alijamento e de exploração do trabalho, são negativamente ressignificadas em vivências interétnicas e relações de gênero injustas e desiguais.

Nossos produtos eram trocados por bebida dos brancos. Nossas criações sempre foram trocadas, nossos trabalhos mesmo, nossos produtos como farinha e as coisas que nós fazemos, eram trocadas. Nós mulheres trabalhamos mais do que os homens. Somos as primeiras a acordar e as últimas a dormir. Nós fazíamos essas coisas mas não tínhamos como dizer para os homens: "não venda porque sou eu quem trabalha; sou quem faço tudo". Eles dizia: "mulher não pode mandar em mim". (Cruz, I., Transcrição Fiocruz Amazônia, 2004)

Importante salientar que categorias de análise como "fatores de risco" e "condições de vida" são consideradas no presente artigo "expressões históricas". Utilizadas em estudos epidemiológicos e de saúde coletiva, essas categorias visam explicitar os Determinantes Sociais em Saúde (DSS) envolvidos historicamente nos processos de saúde-doença de indivíduos, grupos e coletividades (Buss & Pellegrini Filho, 2007), superando por essa perspectiva "as aproximações metodológicas que conduzem a uma naturalização da sociedade e dos fenômenos da cultura" (Leonardi, 2000, p. 13).

Exemplo dessa concepção de pesquisa, que articula noções de história à saúde coletiva, podemos encontrar no extenso relatório situacional sobre fatores de risco e transmissão do vírus HIV/aids apurados a partir das condições de vida entre índios e não índios em fronteiras Amazônicas do Brasil. Tal estudo, realizado sob a coordenação do historiador Victor Leonardi (2000), com objetivo de embasar diretrizes para políticas de prevenção do Ministério da Saúde, assinala duas preocupações teóricas aqui ratificadas, a primeira

foi a de não fazer das ciências médicas e biológicas um paradigma para se estudar os fenômenos sociais e culturais. Embora preocupado em buscar inter-relações entre saúde e processos sociais, evitei as aproximações metodológicas que conduzem a uma naturalização da sociedade e dos fenômenos da cultura. Nem sempre é fácil romper com esse modelo naturalizado de sociedade quando o tema é doença, que também faz parte da biologia, mas é o que tentei fazer ao longo deste livro. A segunda preocupação foi a de não abordar o fenômeno do contato interétnico de forma dualista: "instituições modernas versus costumes tradicionais". Apesar das especificidades étnicas, todas as sociedades envolvidas no contato são sociedades contemporâneas, e em relação a elas não se pode utilizar categorias classificatórias como aquelas que dividem as sociedades humanas em "avançadas", "atrasadas", segundo o maior ou menor grau de "progresso" nelas contido. (Leonardi, 2000, p. 19)

Ainda que o foco do presente artigo não esteja voltado diretamente às principais epidemias que têm acometido mulheres, crianças e homens indígenas de diferentes povos, o aporte de estudos que abordam a atual situação de saúde de povos indígenas do Brasil, como o realizado por Leonardi (2000), contribui para confrontarmos fontes de informação e documentação e a realidade social, oferecendo parâmetros de análise para a revalorização de experiências de participação social de mulheres indígenas nos processos de resistência, luta e reivindicação pela atenção diferenciada no SUS. Leonardi (2000), analisando relatórios de demarcação de terras pesquisados em arquivos documentais da Funai, observa que neles são anexados os seguintes documentos:

ofícios, cartas e abaixo assinados enviados pelos próprios índios- no decorrer dos anos de 1970, 1980 e 1990-, isso tornou essa documentação duplamente interessante, pois os índios não se limitam a reivindicar terra e fornecem, em cada nova petição, informações precisas sobre invasões de suas áreas por fazendeiros, ou por garimpeiros, e as situações de contato daí decorrentes, dando até mesmo o nome do "branco" que invadiu, ou roubou madeira, ou distribui bebida alcoólica em comício eleitoral, ou espancou índio, ou estuprou índia, ou é dono de prostíbulo em corrutela na qual algumas índias se prostituem. (Leonardi, 2000, p. 19)

Valdelice Verón, liderança indígena Guarani-Kaiowá do estado de Mato Grosso do Sul, durante a abertura da 2- Mostra Nacional de Psicologia realizada em 2012, fez importantes considerações sobre a realidade social enfrentada por seu povo e pelos demais povos indígenas do Brasil.

Hoje, é um dia muito importante porque nós estamos construindo essa homenagem, essa homenagem não é só pra mim. Essa homenagem também são pras pessoas, os caciques que tombaram na luta pela sobrevivência, que tombaram na luta pela vida, pela vida do povo indígena Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. E hoje nós estamos construindo um diálogo intercultural, um diálogo de conhecimento junto com a psicologia. É o que nós estávamos precisando, é o que nós estamos necessitando no momento. Construir um diálogo, como a companheira aqui disse: "um diálogo, realmente, que seja das pessoas da base", das pessoas que estão ali na linha de frente, das mulheres, das crianças, das pessoas da população da rua. Vidas que querem sobreviver, vidas que querem viver o outro dia, vidas que querem viver o amanhã. Então, essa homenagem são pro cacique Marçal de Sousa que tombou pela sua terra, são pro cacique Marcos Véron (meu pai) que também tombou na luta pela terra, são pros professores indígenas Angelindo e Dorival que tombaram na luta pela sobrevivência. São pro cacique Zezinho, da terra indígena Laranjeira Inhãnderu, que foi atropelado por um carro (falaram que era acidente), pro cacique Amilton Lopes que até o ano passado nós estávamos aqui em São Paulo falando pros desembargadores, falando pros juízes que quando vem papel de lá pra cá, não assinar mais o nosso despejo. Porque nós estávamos sendo jogados na rua, na beira das estrada. Hoje, das sete pessoas que viemo no ano passado, nós estamos cinco já. (Véron, V., transcrição minha, 2012)

A presença pública de Valdelice, sua fala política, faz-nos pensar sobre a história das mulheres indígenas do ponto de vista de sua participação social nos processos de formação e consolidação das políticas públicas destinadas aos povos indígenas no país. A narrativa de Valdelice é discurso histórico, rendendo homenagens a todos os "caciques que tombaram na luta pela sobrevivência". Valdelice transforma sua história de luta em diálogo, buscando evidenciar a presença de mulheres, crianças, população em situação de rua, "pessoas que estão ali na linha de frente" e que reivindicam direito à vida "falando pros desembargadores, falando pros juízes que quando vem papel de lá pra cá, não assinar mais o nosso despejo". Em outro momento da sua apresentação, Valdelice explicita o quanto a política de demarcação de terras está diretamente relacionada à saúde de seu povo e de sua comunidade.

Não dá pra atacar um comprimido anti-etanol num índio que você vê bêbado. Você não sabe, porque a dignidade deles tá lá embaixo. [todos aplaudem nesse momento da fala de Valdelice]. Eu digo que está a saúde mental, mas a saúde mental nossa está lá na terra, a terra é a essência da vida pro povo Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. [. . .] É assim que aconteceu com nós, e hoje nós estamos reunindo como membro pra retomada das terra tradicional, se reunindo nós vamo voltá, nós vamo retomá a nossa terra. Não adianta essas pessoas que se dizem civilizadas falá que nós queremo guerra, então vai te guerra. Nós não queremo guerra, nós tamo retomando esse pedacinho de terra pra nossa sobrevivência, pra nossa vida, pra construção de nossa autonomia, pra construção, pra reestruturação de nossa organização porque nas reservas indígena, área reservada pra índio nós não conseguimo respirá. Nós não temos autonomia, nós não temo dignidade. Lá nas terras indígena retomando, Sr. Paulo Maldos, lá nós temos de volta a nossa organização própria. Nós construímo de volta nossos saberes próprio, o nosso saber tradicional, o nosso modo de ser, a nossa dignidade, a nossa autonomia de volta. Sorrimos de volta, apesar de ter, de serem morto os nosso bisavô, os nosso avô, o nosso pai. (Véron, V., transcrição minha, 2012)

Assim como Leonardi localizou nos arquivos da Funai ofícios, cartas e abaixo-assinados escritos pelos indígenas que dão "informações precisas sobre invasões de suas áreas por fazendeiros, ou por garimpeiros, e as situações de contato daí decorrentes", Valdelice, por meio de sua fala, teceu igual percurso político, reivindicando direitos pelo cumprimento da Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (Portaria n. 2.759, de 25 de outubro de 2007, do Ministério da Saúde), não pela ação assistencialista da distribuição de "um comprimido anti-etanol", mas antes pelo direito de sua comunidade criar e manter formas de organização coletiva e saberes tradicionais em terras indígenas, que antes eram habitadas por seus parentes e que "tombaram" por elas. Assim, "sorrimos de volta, apesar de ter, de serem morto os nosso bisavô, os nosso avô, o nosso pai", conclui Valdelice.

A concretização de parte das políticas afirmativas na saúde indígena do SUS é fruto de saldo organizativo de experiências sociais de indígenas do país, presentes entre essas mulheres também as indígenas de Manaus. Pela análise sócio-histórica de documentos (registros fotográficos, ata de fundação, atas de assembleias, relatórios de encontros e cartas) preservados no Arquivo da Amism, Miranda (2015) conclui que as atividades regulares daquela Associação contribuíram como força modeladora do social para a conquista do que hoje compreendemos ser a articulação entre políticas afirmativas e a atenção diferenciada no SUS. A luta contra o alcoolismo e o enfrentamento da violência contra a mulher indígena, contra a desnutrição de crianças e os altos índices de mortalidade materna e da primeira infância atravessam todo o histórico da Amism, desde a ata de fundação nos anos 1990 até os dias de hoje, reafirmando pelo trabalho comunitário a continuidade da confecção de artesanato e a manutenção de modos de vida na cidade.

No aprimoramento desses dispositivos de participação e controle social atrelados às dimensões subjetivas das relações de gênero presentes no interior do movimento indígena mais amplo, acompanhamos a formalização de necessidades reivindicadas pelos movimentos de mulheres indígenas em Manaus em políticas afirmativas que contemplam as especificidades da saúde diferenciada no SUS.

 

30 Anos de SUS

20 Anos do Subsistema de Saúde Indígena (Sasisus)

Pouco mais de uma década após a instituição da Lei Orgânica da Saúde n. 8.080 (1990) do SUS, e com a Constituição de 1988, foi aprovada a Lei Sérgio Arouca n. 9.836 (1999), que incluiu os artigos 19A a 19H na Lei n. 8080 (1990). O conteúdo da Lei Arouca define as diretrizes do Sasisus, formado hoje por 34 Distritos Sanitários Especiais (DSEIs) distribuídos nas quatro regiões do Brasil, buscando atender a critérios de territorialidade, de diversidade étnica e planejamento de ações com equipe de saúde multiprofissional, de acordo com dados epidemiológicos de incidência e prevalência de doenças transmissíveis e não transmissíveis entre a população indígena de cada região. A Lei n. 9.836 (1999) também previu a participação social de indígenas em instâncias de controle social nos Conselhos Distratais de Saúde Indígena (Condsis), nos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional de Saúde, nas Conferências de Saúde do SUS e Conferências de Saúde Indígena.

Na primeira e segunda década dos anos 2000, mulheres indígenas organizadas em movimentos sociais participaram ativamente de Encontros locais em Manaus, regionais e nacionais, tendo conquistado também, nesse período, assentos no Conselho Municipal da Saúde, Conselho Estadual da Saúde e Conselho Estadual da Mulher. Suas reinvindicações nesses espaços mantiveram a luta pelo reconhecimento da atenção diferenciada no SUS, principalmente nos equipamentos de saúde (atenção básica e secundária) da rede pública de saúde de Manaus, que são mais comumente utilizados pela população não indígena em geral. Nem toda a população indígena amazonense vive em terras indígenas, aldeias urbanas ou assentamentos indígenas rurais ou urbanos cobertos territorialmente pelos seis DSEIs do estado (DSEI Manaus, DSEI Alto Rio Negro, DSEI Alto Rio Solimões, DSEI Médio Rio Purus, DSEI Médio Rio Solimões e DSEI Parintins). Há um número considerável de famílias que se autodeclaram indígenas e que residem pelos diversos bairros periféricos da capital. Essa presença indígena na cidade, de grupos étnicos que moram em área urbana, passou a ser parcialmente atendida, como afirmam as autoras Miranda, Santos e Azevedo (2016), a partir da participação social do movimento indígena local articulada à implantação de políticas públicas no âmbito estadual e municipal, como o Incentivo à Atenção Especializada dos Povos Indígenas (IAE-PI) e o Incentivo à Atenção Básica dos Povos Indígenas (IAB-PI).

Nos anos 2000, as reivindicações dos movimentos sociais indígenas em Manaus convergiram para uma possibilidade real de aplicabilidade da lei de recursos públicos previstos à saúde indígena no âmbito direto da gestão em saúde municipal e estadual. Dessa forma, para além dos recursos destinados aos DSEI, os estados e municípios brasileiros passaram a contar com recursos específicos para o cumprimento integral das políticas de saúde indígena previstas no Subsistema de Saúde Indígena, como o IAE-PI e o IAB-PI. (Miranda, Santos, & Azevedo, 2016, p. 117)

No entanto, a aplicabilidade desses recursos, tanto na esfera estadual quanto municipal, não alcança, na maioria das vezes, as demandas locais por atenção diferenciada. É nesse aspecto que a participação social de mulheres e homens integrantes de Associações e movimentos indígenas em Manaus tem pressionado a gestão pública local para o cumprimento do que já foi conquistado em termos constitucionais.

Em 2008, esteve em Manaus uma equipe de especialistas da Plataforma Dhesca Brasil para inspeção de violações de direitos humanos no atendimento da atenção diferenciada da população indígena local. A visita foi motivada por contato realizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e por pesquisadores da Coordenação de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), que apresentaram à Plataforma Dhesca Brasil (2008) violações das condições de saúde sofridas pelos indígenas da Amazônia brasileira. A visita se deu em período anterior ao da implantação da Sesai, momento em que a saúde indígena estava sob a gestão da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão público federal, assim como a atual Sesai.

Os problemas verificados, e que são as causas das violações ao direito à saúde indígena encontradas, vão desde a própria lógica organizacional dos serviços de saúde oferecidos pelo Estado, até a atenção concreta à saúde dos povos indígenas, em especial no Estado do Amazonas. (Plataforma Dhesca Brasil, 2008, s.p.)

A inspeção que ocorreu no DSEI Manaus, na Funasa e Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai), também visitou a aldeia Sateré-Mawé, no bairro da Redenção, e a aldeia Tikuna, no bairro Cidade de Deus, onde foram constatadas más condições de saúde ambiental, como a falta de saneamento básico e difícil acesso à rede de transporte urbano. Sobre a percepção dos indígenas que vivem em áreas urbanas, o documento fez a seguinte afirmação:

Os índios que migram para a cidade de Manaus estão à margem do sistema de atenção à saúde indígena no Brasil, em decorrência da má organização dos serviços da FUNASA que ignora os indígenas que habitam áreas urbanas. Isto se deve ao fato de que, ao se integrarem ao espaço urbano, os índios passam a ocupar um curioso papel social na medida e que não são mais reconhecidos como índios, mas também não são considerados cidadãos como todos os demais. (Plataforma Dhesca Brasil, 2008, s.p.)

Desde a criação do IAE-PI em 1999 até a missão de inspeção efetuada pela equipe da Dhesca Brasil, mudanças aconteceram na afirmação da atenção diferenciada no SUS. A criação da Sesai no ano de 2010, como já mencionamos, é uma delas. A realização da III, IV e V Conferência Nacional de Saúde Indígena (CNSI) nos anos de 2001, 2006 e 2014, respectivamente, do ponto de vista dos princípios da participação social e da equidade no SUS, é outra conquista significativa concretizada. Mas é a partir da III CNSI (2001) que, conforme observamos pelos relatórios finais, a participação social de mulheres indígenas nessas instâncias de decisão é confirmada, bem como aparecem as suas demandas pela atenção diferenciada em propostas e em moções de repúdio acerca das dificuldades e dos agravos à saúde enfrentados.

Nós, Delegados na III Conferência Nacional de Saúde Indígena, nos manifestamos a favor da construção de um novo Modelo de Assistência à Saúde às Mulheres Indígenas, garantindo: atendimento diferenciado voltado para as diversas realidades das comunidades em todo Brasil; Programa de atendimento à saúde integral da mulher nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, exames preventivos de câncer da mama e de colo uterino, participação da mulher nas ações de saúde, acesso a acompanhamento de pré-natal, criação de um programa de capacitação das parteiras tradicionais visando a valorização do parto natural e criação de um sistema de vigilância nutricional adequado à realidade de cada povo. (III CNSI, 2001, s.p.)

Ministério da Saúde realizará, com apoio da Funasa, atividades de educação permanente para a formação das mulheres indígenas e sua integração às equipes multidisciplinares de saúde indígena e às atividades de saúde da mulher e da criança. Deve garantir a contratação de parteiras tradicionais, agentes indígenas de saúde e agentes indígenas de saúde bucal do sexo feminino, para as equipes multidisciplinares indígenas. (IV CNSI, 2006, p. 126)

No relatório final da V CNSI (2014), precisamente na seção que trata do perfil dos participantes, a presença das mulheres é tão destacada quanto o aumento do número total de delegados indígenas em relação à realização da IV CNSI.

vamos mais além na transparência [. . .] esmiuçando e apresentado essa paridade e participação conforme resultados [. . .] que rompem os paradigmas culturais da participação de gênero (com uma razão entre sexo de aproximadamente 1:2, em outras palavras, uma delegada para cada dois delegados). (V CNSI, 2014, p. 194)

Trata-se aqui da expressão social e politicamente consolidada de um saldo organizativo de décadas dos movimentos de mulheres indígenas, o resultado de dimensões subjetivas presentes nas relações de gênero transformadas e transformadoras em pequenas/grandes conquistas de ações afirmativas pela atenção diferenciada no SUS. São conquistas históricas que avançaram a experiência de cidadania na região, demarcando novos patamares de direitos e igualdades sociais e econômicas em 500 anos de resistência indígena no Brasil.

 

Financiamento

Este artigo contou com apoio de bolsa concedida pelo Conselho Nacional Científico e Tecnológico (CNPq).

 

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Endereço de contato:
Vanessa Miranda
Policlínica Cardoso Fontes (SES/AM)
Rua Lobo D'Almada, 222, Centro
Manaus, AM. CEP: 69010-030
E-mail: vangmira@hotmail.com

Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 03/12/2019
Aceite final: 17/01/2020

 

 

Vanessa Miranda: Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Psicologia: Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Mestre em Saúde, Sociedade e Endemias na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas e Fiocruz Amazônia. Psicóloga da Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas (SES/AM), na cidade de Manaus.
E-mail: vangmira@hotmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7570-3155

^rND^sAntonacci^nM. A.^rND^sBorges^nJ. C.^rND^sBuss^nP. M.^rND^sPellegrini Filho^nA.^rND^sChernela^nJ. M.^rND^sFerraz^nI. T.^rND^sDomingues^nE.^rND^sLasmar^nC.^rND^sMiranda^nV.^rND^sMiranda^nV.^rND^sSantos^nF. V.^rND^sAzevedo^nP F. da S.^rND^sPaula^nL. R.^rND^sSacchi^nA.^rND^sSantos^nF. V.^rND^sSawaia^nB. B.^rND^sSilva^nM. A.^rND^sVitale^nM. P.^rND^sGrubits^nS.^rND^1AFF1^nIsabela Guimarães^sAlves^rND^1AFF1^nLisandra Espíndula^sMoreira^rND^1AFF1^nMarco Aurélio Máximo^sPrado^rND^1AFF1^nIsabela Guimarães^sAlves^rND^1AFF1^nLisandra Espíndula^sMoreira^rND^1AFF1^nMarco Aurélio Máximo^sPrado^rND^1AFF1^nIsabela Guimarães^sAlves^rND^1AFF1^nLisandra Espíndula^sMoreira^rND^1AFF1^nMarco Aurélio Máximo^sPrado

10.20435/pssa.vi.1072 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Saúde de mulheres lésbicas e bissexuais: política, movimento e heteronormatividade

 

Lesbian and bisexual women's health: politics, movement and heteronormativity

 

La salud de mujeres lesbianas y bisexuales: política, movimiento y heteronormatividad

 

 

Isabela Guimarães Alves; Lisandra Espíndula Moreira; Marco Aurélio Máximo Prado

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva discutir as políticas públicas de saúde voltadas para as mulheres lésbicas e bissexuais no Brasil, em diálogo com as demandas apresentadas pelo movimento em sua história. Percorremos brevemente o histórico de consolidação do movimento lésbico e resgatamos as políticas públicas voltadas para cuidado em saúde dessas mulheres. A partir das análises dos quinze documentos selecionados, buscamos compreender quais os discursos reproduzidos em suas elaborações e seus efeitos nas práticas de cuidado em saúde, e identificamos uma série de entraves em suas efetivas implementações. Refletimos sobre o processo de precarização dos corpos de mulheres lésbicas e bissexuais e as heteronormatividades reproduzidas nesse percurso de luta por direitos, produzindo uma série de invisibilidades dentro do movimento, como a invisibilidade de mulheres bissexuais e de mulheres negras. A análise documental e as mudanças recentes na política brasileira apontam para a necessidade de reformulação no cuidado oferecido a essas mulheres e criação de formas de resistência para manutenção dos direitos conquistados.

Palavras-chave: lesbianidade, bissexualidade, movimentos sociais, políticas públicas, saúde


ABSTRACT

This article aims to discuss the public health policies directed toward lesbian and bisexual women in Brazil, dialoguing with the demands presented by the movement through its trajectory. We briefly presented the lesbian movement consolidation history and revisited the public policies for the healthcare of lesbian and bisexual women. From the analyses of the selected fifteen documents, we intended to comprehend the discourses reproduced on their elaboration and their effects on the healthcare practices, identifying a series of difficulties on the effective implementation of these policies. We pondered over the precarization of the lesbian and bisexual women's bodies and the reproduced heteronormativities along their pursuit for rights, producing a series of invisibilities inside the movement, such as the bisexual or black women invisibility. The documental analysis and the recent changes in Brazilian politics indicate the necessity of modifications in the healthcare provided to those women and the creation of resistance paths in order to maintain the conquered rights.

Keywords: lesbians, bisexuality, social movements, public politics, health


RESUMEN

Este artículo tiene como objectivo reflexionar acerca de las políticas de salud para mujeres lesbianas y bisexuales en Brasil, en conversacion con las demandas presentadas por el movimiento en su historia. Recorremos brevemente por la historia de consolidación del movimiento lesbiano y rescatamos las políticas públicas de cuidado en salud de mujeres lesbianas y bisexuales. Después de analizar los quince documentos seleccionados, buscamos comprender los discursos reproducidos en sus elaboraciones y sus efectos en las prácticas de cuidado en salud, y desde elles identificamos una serie de obstáculos en sus efectivas implementaciones. Reflejamos sobre el proceso de precarización de los cuerpos de mujeres lesbianas y bisexuales y las heteronormatividades reproducidas en el camino de lucha por derechos, que produjo una serie de invisibilidades dentro del movimiento, como la invisibilidad de mujeres bisexuales y de mujeres negras. El análisis documental y los cambios recientes en la política brasileña indican la necesidad de reformulación en el cuidado ofrecido a esas mujeres y la creación de formas de resistencia para la manutención de los derechos alcanzados.

Palabras clave: lesbianidad, bisexualidad, movimientos sociales, políticas públicas, salud


 

 

Introdução

O presente artigo objetiva discutir as políticas públicas de saúde voltadas para as mulheres lésbicas e bissexuais, compreendendo as tensões que se fizeram presentes na construção dessas políticas e as questões que permanecem sobrepondo barreiras para sua efetiva materialização. Para tal, percorreremos brevemente o histórico do movimento de mulheres lésbicas e bissexuais e as demandas que foram sendo construídas por elas e culminaram na criação de uma série de políticas públicas e cartilhas voltadas para o cuidado em saúde dessa população.

As primeiras questões pontuadas pelas organizações formais de mulheres lésbicas e bissexuais já tinham como pauta principal a saúde dessas mulheres. Queixas como a invisibilidade lésbica nos espaços de cuidado à saúde, o despreparo profissional no momento de atendimento e a consequente evasão dessa população nesses contextos, pertinentes ainda hoje, foram priorizadas desde o início pelo movimento. A partir do diálogo entre ativistas e gestoras de saúde, muitas das demandas levantadas pelas mulheres lésbicas e bissexuais foram aparecendo paulatinamente nas políticas e cartilhas publicadas pelas gestões governamentais de cada época.

Os documentos analisados neste texto datam de 1984 até 2014; desde então, nos anos mais recentes, vivenciamos uma inconstância política no país, com o avanço de movimentos neoconservadores, tornando o cenário econômico e político desfavorável para a expansão de políticas sociais (Machado, Lima, & Baptista, 2017). O contexto político atual se caracteriza por uma forte ofensiva contra os direitos sociais conquistados nos últimos anos, dificultando ainda mais a garantia de visibilidade e respeito no âmbito da saúde das mulheres lésbicas e bissexuais.

Apesar de demarcarmos o avanço nas conquistas do movimento lésbico e bissexual até o ano de 2014, esse caminho se mostrou cheio de entraves na efetiva implementação das políticas e dos planos nacionais voltados para o cuidado em saúde dessas mulheres. Com base nas análises feitas das próprias políticas em diálogo com os movimentos sociais e as produções acadêmicas sobre o campo, é possível identificar que os avanços nas políticas públicas foram insuficientes para a melhoria no cuidado oferecido às mulheres lésbicas e bissexuais.

A aproximação desses documentos com alguns conceitos butlerianos (Butler, 1999; 2011; 2015) nos permite refletir sobre as heteronormatividades reproduzidas na busca pelo reconhecimento como sujeitas de direito. Butler, em entrevista a Prins e Meijer (2002), ao refletir sobre os corpos abjetos como aqueles que não são sequer imagináveis dentro da inteligibilidade normativa, dá-nos pistas sobre os porquês de determinados corpos serem mais ou menos visíveis e legítimos, aqui especificamente no campo da saúde de mulheres lésbicas e bissexuais. Desse modo, o diálogo com Butler nos possibilita caminhar reflexivamente pela consolidação do movimento lésbico e pela construção das políticas públicas de saúde voltadas para essas mulheres.

 

Notas sobre o Movimento de Mulheres Lésbicas e Bissexuais

A conquista de um espaço político e social exclusivamente voltado para mulheres1 lésbicas e bissexuais começou a aparecer na esfera pública em meio à redemocratização do país.

Até então, as pautas discutidas por essas mulheres se misturavam às questões do movimento feminista e homossexual2 marcadas pelo caráter secundário que suas demandas eram colocadas. Rememorar alguns pontos da criação desse movimento, bem como as demandas que foram sustentando essa organização, ajuda-nos a refletir sobre as políticas e práticas em torno do cuidado em saúde voltado para mulheres lésbicas e bissexuais.

Para começar a remontar a história do movimento dessas mulheres, voltamos à década de 1970, quando o movimento homossexual passou a ser entendido enquanto movimento social na arena política (Carrara, 2010; Facchini, 2003). Apesar de haver registro de associações homossexuais anteriores, os encontros, a partir de então, começaram a se organizar em torno de uma militância e, assim, ao final da década de 1970, tivemos o surgimento do Grupo Somos (Facchini, 2003).

Nesse momento, ficou marcada a pouca representatividade lésbica, como relata Marisa Fernandes (2018), ao registrar que, em uma das reuniões do grupo, havia dez lésbicas e oitenta gays. Com a centralidade do Movimento Homossexual Brasileiro (MHB)3 nas demandas dos homens gays e a reemergência do movimento feminista (Carrara, 2010), as mulheres do MHB criaram um grupo dissidente, chamado Grupo Lésbico Feminista (LF), que em 1981 foi substituído pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (Galf).

A aproximação com o movimento feminista foi vista com descontentamento por algumas militantes do movimento lésbico, afirmando haver uma despolitização das questões lésbicas (Martinho, 2006). No entanto foi por essa via que pautas defendidas pelo movimento lésbico alcançaram espaço no cenário político brasileiro.

A luta, no âmbito da conquista de direitos, teve como foco demandas referentes à saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, tema do presente artigo. A disputa por direitos reprodutivos e sexuais, em diálogo com as pautas do movimento feminista, e as questões em torno da transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) no sexo entre mulheres nortearam as primeiras conquistas do movimento.

A partir de 1991, com a criação da Rede Nacional Feminista de Saúde (RFS), uma série de questões relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres passaram a ser articuladas em âmbito nacional, possibilitando a discussão de temas antes negligenciados, como o reconhecimento de violência sexual, racial e doméstica como violação de direitos humanos (Rede Feminista de Saúde, 2015).

A integração de uma rede de organizações governamentais, não governamentais, ativistas e pesquisadoras feministas proporcionou à RFS forte presença na construção das políticas públicas brasileiras (Rede Feminista de Saúde, 2015). Dos vários dossiês publicados por elas, o de 2006 foi especificamente voltado para mulheres lésbicas e bissexuais e apontou para a invisibilidade desse grupo na área da saúde (Facchini & Barbosa, 2006). O dossiê discute uma série de especificidades que permeiam o cuidado em saúde de mulheres lésbicas e bissexuais.

Pautas há tempos levantadas por ativistas do movimento lésbico foram amplamente discutidas no dossiê a partir da apresentação de pesquisas acadêmicas, ainda que fundadas majoritariamente em produções internacionais. Temas como o despreparo médico para atender mulheres lésbicas e bissexuais ou a falsa crença de que o sexo entre mulheres não transmite ISTs e que, portanto, as deixaria isentas de se protegerem durante suas relações sexuais (Pompeu, 2001) foram esmiuçados no dossiê e demonstraram a escassez de produção na arena acadêmica brasileira.

Ainda que tenha havido avanços no campo, textos recentes (Fernandes, Soler, & Leite, 2018; Soares, Peres, & Dias, 2017; Silva, 2015) ainda fazem referência à ineficiência dos serviços de saúde oferecidos a essas mulheres. Os efeitos dessa ineficiência são inúmeros, como: as mulheres continuam sem acesso a informações acerca das especificidades de proteção no sexo lésbico e, por consequência, de como podem cuidar da sua saúde de forma efetiva; muitas delas relatam experiências ruins ao procurarem um profissional de saúde; devido à desinformação dos profissionais de saúde acerca da saúde da mulher lésbica e bissexual, elas acabam não frequentando esses espaços; e efeitos na saúde mental das mulheres, em casos decorrentes de violências já vividas, relacionadas à sexualidade (Fernandes et al., 2018).

Pensando nos discursos e realidades produzidos por e nesse caminho da saúde de mulheres lésbicas e bissexuais, a seguir revisitaremos as políticas públicas brasileiras4 que fazem menção ou são voltadas a essas mulheres, em diálogo com o campo acadêmico e ativista, para refletir sobre os efeitos de tais políticas na atenção à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais.

 

As Políticas Públicas de Saúde

Os quinze documentos apresentados e analisados nesta seção, listados nas tabelas 1 e 2, foram selecionados a partir do resgate histórico das demandas configuradas pelo ativismo lésbico, ou seja, buscamos as políticas que se estruturaram em decorrência das articulações do movimento lésbico tanto com o movimento feminista quanto com o movimento LGBT+ para dar visibilidade às pautas que essas mulheres identificavam como prioridade para a sua saúde, de modo que os seguintes textos foram incluídos no escopo da pesquisa: "Assistência Integral à Saúde da Mulher: Bases da Ação Programática" (1984); "Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher - Princípios e Diretrizes" (2004); "Plano Nacional de Políticas para as Mulheres" (2005); "Chegou a Hora de Cuidar da Saúde" (2006); "Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia da Aids e outras DST" (2007); "II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres" (2008b); "Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Aids e Outas DST - Versão Revisada" (2009); "Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais" (2012); "Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais" (2014).

Os outros seis documentos adicionados ao recorte histórico que apresentamos aqui dizem respeito à estruturação do modelo de saúde pública e também apareceram como cruciais para a construção das políticas de saúde para as mulheres lésbicas e bissexuais, sendo quatro deles: Constituição da República Federativa do Brasil (1988); 12- Conferência Nacional de Saúde (2003); 13ª Conferência Nacional de Saúde (2008a); e a Lei n. 8.080 (1990). Ainda, a Resolução n. 614 (2019) e o Decreto n. 9.795 (2019) foram incluídos nas análises, uma vez que representam as mudanças que estão por vir na estrutura regimental do Ministério da Saúde sob a nova gestão governamental do Brasil, as quais incidem diretamente nas políticas e práticas de saúde voltadas para mulheres lésbicas e bissexuais.

Os documentos selecionados foram lidos e repensados a partir de uma epistemologia feminista, política e eticamente atenta às "oportunidades para propor melhores problemas do que aqueles dos quais partimos" (Harding, 1993, p. 12), em outras palavras, Harding (1993) propõe uma produção de conhecimento que desestabilize categorias analíticas já postas, possibilitando acessar aquilo que ainda não foi visibilizado. Em diálogo com o ativismo lésbico, que teve e tem como pauta a visibilidade de suas demandas na arena política, acadêmica e social, buscamos compreender quais discursos foram produzidos e reiterados pelas políticas de saúde mencionadas nos parágrafos anteriores e que possibilidades de cuidado em saúde foram visibilizadas em detrimento de outras. Assim, apresentaremos este histórico entremeado às reflexões teóricas produzidas por nossas análises.

A saúde no Brasil começou a ser delineada como a conhecemos hoje em 1988, a partir da Constituição Federal (Brasil, 1988) e, junto dela, do Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 1990) (Rede Feminista de Saúde, 2008) e da Lei n. 8.080, que regula as ações e os serviços de saúde em todo o território nacional. Embora seja importante apontar que, na história da saúde pública brasileira, foram fundamentais, antes de 1988, alguns marcadores que colaboraram para a constituição de um modelo público de assistência e cuidado à saúde (Bertolli Filho, 2001).

Desde então, entendemos a saúde como um direito social, de acesso a todos, assegurada como competência dos poderes públicos (Brasil, 1988). Paralelamente, dois fatores também tiveram forte influência na forma como as políticas no Brasil foram sendo construídas: o viés materno-infantil das políticas de atenção à saúde das mulheres no cenário internacional (Rede Feminista de Saúde, 2008) e a resposta brasileira à epidemia da aids (Calais & Perucchi, 2017).

As políticas públicas brasileiras se alicerçaram em duas pautas estreitamente relacionadas à invisibilidade lésbica. Se, de um lado, as lésbicas eram cobradas por serem mulheres, engravidarem e usarem seus corpos como o destino biológico prediz, de outro, não eram consideradas mulheres, como afirma Wittig (2012), por se distanciarem de uma cultura heterossexual; e, como a gravidez só seria possível nessa lógica, a maternidade não existiria como possibilidade para essas mulheres. A ideia do sexo lésbico como preliminar do sexo heterossexual, o sexo de verdade, isentava-as de qualquer risco relacionado à epidemia de aids. Assim como o sexo lésbico não existia, a lésbica, como sujeita abjeta (Butler, 1999), não existia no campo inteligível da norma.

Nesse âmbito de disputa discursivo, em que determinadas vidas são vistas ou não pelas políticas produzidas pelo estado, o movimento feminista lutava por avanços relacionados aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Até meados de 1980, a visão materno-infantil predominava no país (Rede Feminista de Saúde, 2008), materializando-se na construção dos primeiros programas voltados à saúde das mulheres, elaborados nas décadas de 1930, 1950 e 1970, que traduziam uma visão restrita sobre a mulher, baseada em sua especificidade biológica e no seu papel social de mãe e doméstica (Brasil, 2004). Duas lógicas operavam até então, havia uma postura de incentivo à natalidade e uma legislação que preconizava a maternidade, em detrimento da autonomia das mulheres sobre seus corpos (Rede Feminista de Saúde, 2008).

Em resposta ao cenário econômico mundial, as políticas de controle de natalidade em países em desenvolvimento começaram a operar; dessa forma, modificou-se o objetivo final do aparelho estatal, mas a via de controle permaneceu a mesma: os corpos das mulheres. O movimento feminista se posicionou contrário a essas práticas autoritárias e, em consonância com a reforma sanitária da década de 1980, surgiu o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, o Paism (Rede Feminista de Saúde, 2008). O documento procurou romper com a concepção materno-infantil e a lógica de controle à autonomia delas, mas ainda propôs resoluções majoritariamente voltadas aos métodos contraceptivos e gravidez (Brasil, 1984).

Uma das fortes críticas ao feminismo, retomando o conceito de corpos abjetos de Butler (1999), era de visibilizar e legitimar demandas de um grupo específico de mulheres, como se fossem uma unidade. No entanto outros corpos ficavam, e ficam, de fora dessas pautas e avanços, como as mulheres lésbicas e as mulheres negras. Anzaldúa (2005), em 1987, já apontava para o lugar fronteiriço de uma mulher que é ao mesmo tempo lésbica e não branca, colocada nesse limbo em que não existe em um lugar nem em outro, dentro dessa lógica binária. Sueli Carneiro (2003) discutiu a necessidade da incorporação das questões raciais às discussões e demandas organizadas pelo movimento feminista. Especificamente em relação à saúde, a autora discorre sobre a invisibilidade das condições de saúde das mulheres negras brasileiras, a conversa inexistente sobre doenças étnicas/raciais e a esterilização maciça da população negra.

Na década de 1990, com a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (Cipd) no Cairo, em 1994, e a Conferência Mundial sobre Mulheres em Beijing, em 1995, a saúde reprodutiva e a saúde sexual foram colocadas e legitimadas como um direito às cidadãs e como um dever do Estado (Facchini, 2008; Rede de Saúde Feminista, 2008). O caminho por uma afirmação dos direitos reprodutivos e sexuais aconteceu tanto no âmbito internacional como nacional. No Brasil, paralelamente à luta pela liberdade e autonomia dos corpos das mulheres no campo da saúde reprodutiva e sexual, ocorreu, segundo Calazans, Pinheiro e Ayres (2018), a consolidação do Programa Nacional DST/Aids (PN-DST/Aids).

Em meio a esse cenário, o Movimento Lésbico estava com caminhos abertos para pensar articulações na esfera governamental referentes aos direitos dessas mulheres, especificamente no campo da saúde. Em 1996, com a participação de 100 lésbicas, aconteceu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas (VI Senale, 2006), justamente com o suporte do Ministério da Saúde via o PN-DST/Aids, e parece ter havido uma mescla da busca por visibilidade política das lésbicas com a procura por visibilidade diante das DSTs, colocando a demanda por saúde e direitos sexuais como prioridade nas reivindicações do movimento (Almeida, 2009).

A parceria do movimento lésbico com o PN-DST/Aids, além do Senale, propiciou a elaboração do Grupo Matricial, uma instância de diálogo permanente entre o Ministério da Saúde e o movimento lésbico. Apesar da sua importância política na década de 1990, as demandas de saúde produzidas por ele não obtiveram as respostas estatais esperadas e a aproximação do movimento com o Ministério da Saúde não aconteceu sem atritos entre algumas militantes, que não viam sentido na associação das lésbicas à discussão da aids (Almeida, 2009).

Os Senale que aconteceram nos anos seguintes, em 1997, 1998 e 2001, assim como o primeiro, pautaram temas referentes à saúde das mulheres lésbicas (Facchini & Barbosa, 2006; Fernandes et al., 2018). As temáticas centrais dos quatro primeiros Senale, em ordem cronológica, foram: Saúde, Visibilidade e Organização; Saúde e Cidadania; Saúde e Visibilidade; e Cidadania, Visibilidade, Saúde e Organização (VI Senale, 2006). A aposta de visibilidade pela via da saúde se torna evidente com essa sequência de encontros sobre o mesmo tema, que continuaram acontecendo nos anos seguintes, em outros eventos promovidos pelo movimento lésbico. Em 2004, com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Pnaism), houve a construção de uma seção direcionada às lésbicas, denotando um avanço em relação ao Paism de 1984, que não fazia menção alguma às questões do movimento lésbico. Assim, foram citados pontos importantes discutidos no último Senale, em 2003, e na agenda política dessas mulheres, como: os atendimentos ginecológicos heteronormativos oferecidos às mulheres, a ideia de que mulheres lésbicas não estão em risco em relação ao câncer de colo de útero, a vulnerabilidade em relação às DSTs pelas mulheres lésbicas profissionais do sexo, a violência intrafamiliar à qual adolescentes lésbicas podem estar expostas e o acesso à inseminação assistida na rede do SUS (Brasil, 2004).

A publicação da política nacional com algumas das pautas do movimento lésbico significava um avanço na conquista da visibilidade política, no entanto permaneciam como desafio os caminhos viáveis para a implementação de mudanças a partir dos problemas expostos, já que o documento não trazia propostas sobre isso em seu Plano de Ação. As informações expostas no texto da política assinalavam tópicos importantes defendidos pelo movimento e que geravam uma série de complicadores para o cuidado efetivo dessa população, todavia algumas críticas podem ser feitas. O texto da Pnaism discorre sobre a vulnerabilidade em relação às ISTs, mas somente para as mulheres lésbicas profissionais do sexo. Em sequência, a temática da violência aparece, porém também restrita a um público específico, as adolescentes.

No campo acadêmico, a temática da saúde das mulheres lésbicas e bissexuais ganha visibilidade no lançamento do dossiê, em 2006, por Facchini e Barbosa (2006), em que as autoras apresentam uma revisão da literatura, discutindo as especificidades no cuidado voltado às mulheres lésbicas e bissexuais, as violências sofridas, a incipiência do serviço de saúde oferecido a elas e consequente evasão nos espaços de cuidado institucional. As autoras o fazem com produções acadêmicas internacionais, demarcando a escassez na produção brasileira sobre o tema.

Em textos mais recentes, as questões apresentadas no dossiê ainda se fazem presentes. Segundo Soares, Peres e Dias (2017), os dados epidemiológicos relacionados à temática são escassos e as produções acadêmicas existentes denunciam a evasão nos serviços de saúde (Soares, Peres, & Dias, 2017; Silva, 2015). A vulnerabilidade dos corpos lésbicos em relação aos cânceres de colo de útero e de mama (Watermann & Voss, 2015; Cochran & Mays, 2012) é majoritariamente discutida por autores internacionais, assim como o despreparo profissional para atendê-las (Curmi, Peters, & Salamonson, 2014), reiterando mais uma vez a incipiência da produção no que se refere à saúde de mulheres lésbicas e bissexuais.

Ainda em 2006, a convite do PN-DST/Aids, foi lançada a cartilha "Chegou a Hora de Cuidar da Saúde". Uma publicação curta, que perpassa alguns temas relacionados à saúde das mulheres lésbicas e bissexuais, como o direito de viver a homossexualidade, a descoberta da sexualidade na adolescência, o racismo. A cartilha fala da saúde de modo integral, ao trazer a alimentação, exercícios físicos e o uso de drogas em uma perspectiva de redução de danos, como caminhos de cuidado possíveis, e explora a saúde sexual e reprodutiva, quando fala das visitas periódicas a ginecologistas, da prevenção de cânceres de mama e colo do útero, da gravidez e das DSTs (Brasil, 2006).

A visibilidade das lésbicas na arena política, como exposto no histórico até aqui, está em constante disputa. Há momentos de oscilação na priorização e legitimação das demandas nos documentos publicados pelo governo federal, a exemplo do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), tanto o I, lançado em 2005 logo após a publicação do Pnaism, quanto o II, em 2008. Os PNPM I e II se fundamentam em pontos como a igualdade, o respeito à diversidade e a autonomia das mulheres (Brasil, 2005; Brasil, 2008b). Segundo Calderaro (2011), é possível observar um avanço em relação aos dois planos, uma vez que o segundo, de 2008, traz ações específicas voltadas para as mulheres lésbicas, reconhecendo a orientação e as práticas sexuais como determinantes no cuidado em saúde.

O mesmo aconteceu com o Plano Integrado de Enfrentamento da Feminização da Epidemia de Aids e outras DST de 2007. O documento, pautado na promoção da saúde sexual e saúde reprodutiva, buscava nortear a implementação de ações relacionadas ao diagnóstico e tratamento de DSTs e da aids especificamente para mulheres. No texto, a vulnerabilidade de mulheres lésbicas e bissexuais aparece, no entanto não são descritas possibilidades de ação voltadas a ela (Brasil, 2007). Em 2009, a partir da discussão com diversos grupos de mulheres, foi publicada uma versão revisada do plano, com agendas afirmativas pautadas nos diversos contextos de vulnerabilidades, como as mulheres lésbicas e bissexuais, as transexuais, as prostitutas, entre outras (Brasil, 2009).

Mais adiante, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (2012), em uma tentativa de visibilizar questões de saúde LGBT+, buscando reconhecer os efeitos da discriminação e da exclusão nesse âmbito. Na descrição, a política fala sobre a trajetória de invisibilidade das mulheres lésbicas tanto no Grupo Somos como nas ações de prevenção à aids, caminho alterado ao se aproximarem do movimento feminista, propiciando a emergência desse debate no âmbito da conquista de direitos (Brasil, 2012). Um dos marcos da política de saúde LGBT+, discutidos nas Conferências Nacionais de Saúde que ocorreram em 2003 e 2007 (Brasil, 2003; Brasil, 2008a), foi a inclusão da orientação sexual e identidade de gênero como determinantes sociais de saúde.

Dos temas específicos relacionados à saúde da mulher lésbica e bissexual descritos na política, aparecem as questões já citadas neste texto, relacionadas à prevenção de cânceres ginecológicos, ao acesso a um tratamento qualificado, bem como ao cuidado a questões relacionadas à saúde mental (Brasil, 2012). Mas permanece a demanda do movimento de mulheres lésbicas e bissexuais, presente desde as primeiras organizações do movimento homossexual: as pautas da agenda política de mulheres lésbicas e bissexuais seguem diluídas e invisibilizadas em meio às do movimento como um todo.

Em resposta a essa lacuna, o livreto de Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (2014) discute os determinantes de vulnerabilidades na assistência à saúde e repensa elementos para a proposição de um cuidado que garanta a integralidade na atenção à saúde dessas mulheres. Alguns dados e indicadores de saúde apresentados exploram as questões há muito pautadas pelo movimento, como o acolhimento insuficiente nos atendimentos oferecidos, a saúde da mulher focada na reprodução, a importância da educação e formação de profissionais e a discussão de como conversar sobre a orientação sexual de um modo acolhedor, pensando que esse pode ser um tema tabu (Brasil, 2014).

Apresentamos até aqui o resgate histórico das políticas de cuidado em saúde voltadas para as mulheres lésbicas e bissexuais, já apontando algumas normatividades e tensões na forma como tais políticas têm sido organizadas e implementadas. A seguir, dissertaremos sobre os resultados de nossas análises, retomando alguns pontos já discutidos e explorando outras inquietações.

Um dos temas discutidos no livreto de Atenção Integral à Saúde de Mulheres Lésbicas e Bissexuais (2014), ainda invisibilizado na trajetória do movimento lésbico, está relacionado às mulheres bissexuais. As reflexões apresentadas fazem menção à falta de espaço para a identidade bissexual dentro do movimento LGBT+, que se estende para o apagamento nas pesquisas sobre saúde voltadas para essa população. Para além da invisibilidade, o documento aborda o estigma em torno da sexualidade bi, muitas vezes colocada como "vetores" de DSTs (Brasil, 2014). Em 2016, na oitava edição do Senale, vinte anos após o primeiro encontro, o termo bi foi adicionado à sigla Senale, que a partir de então se nomeou Senalesbi, dando protagonismo às questões específicas das mulheres bissexuais (Fernandes, 2018).

As produções acadêmicas sobre a temática da bissexualidade corroboram o exposto no livreto. Segundo Alberto (2018) e Pamplona e Dinis (2013), os discursos sobre bissexualidade comumente giram em torno de um privilégio, por terem acesso tanto a homens quanto mulheres. Em contrapartida, Alberto (2018) discorre sobre as ideias estereotipadas da bissexualidade como identidade transitória ou indecisão e a suposta promiscuidade dessas pessoas, discursos que minimizam essa identidade, colocando-a num lugar abjeto.

A invisibilidade bissexual dentro do movimento lésbico, das produções acadêmicas e na construção das políticas públicas chama atenção para a reprodução da heteronormativida-de (Berlant & Warner, 1998) na busca por direitos na arena política. Como norma estru-turante da nossa sociedade, a heteronormatividade é reproduzida nos diversos contextos em que nos organizamos como grupo, e, por mais que algumas identidades e performativi-dades (Butler, 1999) sejam periféricas nessa norma, elas acabam por reiterar essa suposta coerência heteronormativa, em que esperamos que um determinado sexo corresponda a uma determinada orientação sexual, que, por consequência, deve manter determinadas práticas sexuais, todas em conformidade com o gênero que se performa.

Em diálogo com essa lógica que nos regula, outro ponto de tensionamento surge na tentativa de visibilizar as demandas do movimento lésbico: a criação do termo epidemiológico MSM para se referir a mulheres que fazem sexo com mulheres, mas que não se identificam como lésbicas ou bissexuais. Como uma tentativa de ampliação das demandas de saúde lésbicas, a proposição do termo epidemiológico MSM5 (mulheres que fazem sexo com mulheres), importado de pesquisas no cenário internacional, pretendia ampliar o alcance numérico das políticas de saúde, no entanto ela não foi bem recebida pelo movimento (Almeida & Heilborn, 2008). Segundo os autores, há pouca tolerância entre as ativistas lésbicas brasileiras com mulheres que mantêm relações sexuais com outras mulheres, mas não se autorreferem como lésbicas. Soares, Peres e Dias (2017) argumentam que o termo reduz um universo plural do que é ser lésbica, composto por afetividades, saúde, cultura, a um comportamento sexual.

Indo além nas reflexões acerca das normatividades produzidas nas políticas públicas brasileiras, Meinerz (2011) discute sobre a lésbicas que não performam a feminilidade esperada à categoria mulher. A autora reflete sobre como uma expressão de gênero localizada mais próxima do masculino é vista com maus olhos, exceto quando são performances andróginas, que se associam ao rompimento da norma de forma transgressora. As caminhoneiras, dykes ou bofinhos são colocadas no escopo da masculinidade grosseira, desleixada e despreocupada com o estético (Meinerz, 2011). As reflexões acerca desse estigma permearam também o movimento lésbico. Almeida (2005) descreve as ponderações das ativistas, quando elas afirmam que as lésbicas vão além do modelo dual lady/dyke, em que uma se aproximará de performances mais femininas e outra mais masculinas, reproduzindo o modelo binário e heteronomartivo descrito por Butler (1999). Meineirz (2011) reflete sobre como essa foi uma estratégia do movimento para se afastar de estereótipos que desencadeiam preconceitos, além de ser um posicionamento crítico a comportamentos machistas que reproduzem hierarquias de gênero.

A questão racial também perpassa os tensionamentos do movimento lésbico e bissexual, que em resposta criou o I Seminário Nacional de Lésbicas Negras: Afirmando Identidades, em 2006 (Fernandes, 2018). O encontro, segundo a autora, propiciou diálogo entre orientação sexual, identidade de gênero e o debate antirracista no país, uma agenda necessária para discutir questões pertinentes à mulher negra dentro do feminismo, como já apontado por Carneiro (2003), e do movimento lésbico e bissexual.

Para além das questões heteronormativas reproduzidas no percurso das políticas públicas construídas para afirmar os direitos das lésbicas no âmbito da saúde, as demandas das mulheres lésbicas e bissexuais, pontuadas desde os primeiros encontros dessas mulheres organizadas enquanto movimento social, relatando o despreparo profissional e a consequente evasão das mulheres nos serviços de saúde, mantêm-se como questão até hoje. As ações propostas nas políticas públicas direcionadas à melhora na formação de profissionais de saúde não surtiram efeito. Rodrigues (2018), em revisão bibliográfica sobre a temática, discorre sobre as idas à ginecologista com frequência irregular, os receios em falar da orientação sexual em consultas, a falta de reconhecimento das práticas sexuais entre mulheres, além dos encaminhamentos equivocados nas consultas em relação a exames preventivos, por exemplo.

Os documentos produzidos pelo governo federal, em diálogo com o movimento social lésbico e bissexual, e os textos acadêmicos apresentados até aqui possibilitaram remontar o histórico das políticas públicas de saúde voltados para esse público, bem como os efeitos relacionados ao cuidado oferecido a elas em espaços institucionais de saúde. A partir do exposto, conseguimos acessar uma série de tensões e demandas encontradas nas políticas de saúde para mulheres lésbicas e bissexuais, produzidas nos encontros e em disputas com as pautas defendidas pelo movimento feminista, negro e LGBT+.

Apesar das demandas do movimento lésbico e bissexual aparecerem nos textos dos vários documentos públicos apresentados aqui, é possível questionar o quanto da precariedade e vulnerabilidade (Butler, 2011) dessas mulheres consegue alcançar reconhecimento, por exemplo, em meio aos profissionais de saúde. O ponto aqui é questionar o porquê da distância entre os textos contidos nas políticas, em que parece haver um avanço no cuidado oferecido às mulheres lésbicas e bissexuais, e o cotidiano das que procuram de alguma forma cuidar da própria saúde, em que comumente acessam desinformação e discriminação por parte dos profissionais.

O conceito de precariedade de Butler (2011) ajuda a pensar no processo discursivo e social em que vamos colocando determinadas identidades e performatividades no campo do humano e outras no do não humano. Conforme o enquadramento, certos sujeitos e populações são lançados à condição precária, "condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à morte" (Butler, 2015, p. 46). Ou seja, algumas populações são entendidas como sujeitos de direito, legítimos para reivindicarem condições justas no acesso à saúde, e outras são compreendidas como abjetos e suas demandas não são sequer enxergadas pelo sistema de saúde.

É possível analisar que somente na precarização das vidas de mulheres lésbicas e bissexuais é que produzimos uma política de cuidado. Política que está posta nos documentos, mas que nem sequer chega como informação para essas mulheres, considerando-se a veiculação de informação como uma ferramenta fundamental na manutenção de hierarquias já postas. Além disso, tamanha a abjeção desses corpos, que profissionais de saúde não compreendem essa forma de vivenciar a sexualidade como legítima para acessar algum tipo de cuidado.

 

Considerações

Objetivando revisar as políticas de saúde voltadas para mulheres lésbicas e bissexuais, este texto buscou compreender, a partir de uma epistemologia feminista, as condições de possibilidade para a emergência dessas políticas e as tensões que colocam diferentes sujeitos e bandeiras em disputa. Esta breve sistematização permite algumas reflexões sobre complexos movimentos políticos das últimas décadas.

Alicerçados pelo arcabouço teórico produzido por teóricas feministas ao longo dos anos, foi possível revisitar criticamente a construção dessas políticas públicas de saúde entremeadas aos caminhos do ativismo lésbico brasileiro. Assim, fomos apontando para uma série de tensões que se .construíram nesse percurso, como a invisibilidade de mulheres negras e lésbicas dentro do próprio movimento feminista ou o apagamento da bissexualidade no movimento lésbico. O silenciamento de determinados corpos e performatividades não aconteceu por acaso, mas sim operado por uma lógica heteronormativa, que visibilizou algumas vidas em detrimento de outras

Com embates políticos que levam em conta enquadramentos de gênero, sexualidade, raça, entre outros, o movimento de mulheres lésbicas e bissexuais reivindica espaço em políticas de saúde direcionadas para mulheres - historicamente centradas na saúde reprodutiva - e em políticas voltadas para a população LGBT+ - marcadas inicialmente pelo controle à epidemia da aids. A partir desses tensionamentos, algumas bandeiras específicas passam a ganhar espaço em documentos e cartilhas.

As políticas públicas de saúde, portanto, ainda se mostram insuficientes quando pensamos nas problemáticas de sua construção e nos desafios de sua implementação. Ainda assim, estávamos em um momento político de abertura para o diálogo com movimentos sociais, mas recentemente temos visto uma transformação nesse campo de debate, como anunciado no início deste texto. Com a extinção das Secretarias de Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres, com um corte orçamentário significativo nas questões pertinentes às mulheres (Gonçalves & Abreu, 2018) e mudança da estrutura do Departamento de ISTs, Aids e Hepatites Virais para Departamento de Doenças e Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Decreto n. 9.795), percebemos mudanças significativas na forma como o governo tem encarado o cuidado à saúde das mulheres e, especificamente neste artigo, das mulheres lésbicas e bissexuais.

Na Resolução n. 614, de fevereiro de 2019, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) afirma a garantia da atenção integral da saúde da mulher e das pessoas LGBT+, no entanto alterações estruturais, como as propostas no Decreto n. 9.795, apontam para uma precarização ainda maior dos direitos das mulheres lésbicas e bissexuais, de modo que, para além de reformular as apostas de cuidado apresentadas nos documentos abordados aqui, as análises precisam ir além das que percorremos até então. Os retrocessos no campo da conquista de direitos sociais têm operado em uma nova gramática que exige de nós um esforço em pensar outras formas de resistência, especialmente quando fazemos referência a identidades e performatividades historicamente negligenciadas e silenciadas.

 

Financiamento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- Brasil (CAPES), Código de Financiamento 001.

 

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Endereço de contato:
Isabela Guimarães Alves
Av. Antônio Carlos, 6627
Belo Horizonte, MG. CEP 31270-901
E-mail: alves.isabelag@gmail.com

Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 30/09/2019
Aceite final: 23/11/2019

 

 

Isabela Guimarães Alves: Psicóloga. Especialista em Oncologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG. Bolsista de Mestrado Capes, pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). Pesquisa nos campos de gênero e sexualidade, saúde e direitos humanos.
E-mail: alves.isabelag@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9358-8525
Lisandra Espíndula Moreira: Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicóloga pela UFRGS. Professora no curso de Direito e na Pós-Graduação em Psicologia da UFMG.
E-mail: lisandra.ufmg@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9356-3416
Marco Aurélio Máximo Prado: Pós-doutor pela Universidade de Massachusetts/Amherst. Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH/UFMG). Pesquisador pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
E-mail: mamprado@gmail.com
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3207-7542

 

 

1 Neste texto, o termo mulheres é utilizado fazendo referência às mulheres cisgêneras.
2 Hoje denominado Movimento LGBT+.
3 As referências utilizadas neste texto, que fazem menção ao surgimento do Movimento Homossexual Brasileiro, estão centradas no eixo dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, apresentando uma visão local e parcial de um movimento mais amplo.
4 Algumas políticas apresentadas aqui, como o Plano Nacional de Políticas para Mulheres, não estão mais em vigência. No entanto sua análise é importante por representar construções e movimentações históricas, que estão em constante mudança.
5 Em tentativa análoga à proposta pelo movimento gay de homens que fazem sexo com homens (HSH) e que, mesmo que apareça mais frequentemente, foi também alvo de uma série de questionamentos.

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10.20435/pssa.vi.1073 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Saúde mental de crianças e adolescentes: a rede na clínica-escola

 

Mental health of child and adolescents: the network in the school clinic

 

La salud mental de niños y adolescentes: la red en la clínica-escuela

 

 

Carla Renata Braga de SouzaI; Lucas de Oliveira Saraiva LeãoI; Patrícia Régia Oliveira de AraújoI; Matheus Tierry Borges Lima LopesI; Tais BleicherII

ICentro Universitário Católica de Quixadá (Unicatólica)
IIUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

O presente trabalho objetiva compreender a configuração da rede de cuidado em saúde mental da infância e adolescência em Quixadá, Ceará, partindo dos pacientes atendidos na clínica-escola de psicologia do Centro Universitário Católica de Quixadá. Trata-se de uma pesquisa documental e de natureza quantitativo-exploratória. Os dados foram analisados a partir do modelo estatístico descritivo. A clientela é, predominantemente, de meninos, de 4 a 12 anos, residentes no município de Quixadá e que não estão e nem estiveram em outros serviços de saúde, educação ou assistência social para tratar da queixa apresentada. Diante disso, acreditamos que a clínica-escola tem um grande valor social, dando o suporte aos equipamentos da rede, uma vez que a rede formal de cuidados não possui uma instituição de referência nesse tipo de atendimento.

Palavras-chave: saúde mental, assistência à saúde, criança, adolescente, Psicologia Clínica


ABSTRACT

This research aims to understand the configuration of the mental health care network of children and adolescents in Quixadá, Ceará, starting from the patients attended at the psychology school clinic of the Centro Universitário Católica de Quixadá. It is a documentary and quantitative-exploratory research. The clientele are predominantly boys, aged 4 to 12 years, resident in Quixadá city, and who are not and have not been to other health, education, or social assistance services, to deal with the complaint. Given this, we believe that the school clinic has a great social value, supporting the equipment of the network since the formal care network does not have a reference institution in this type of care.

Keywords: mental health, health care delivery, child, adolescent, Clinical Psychology


RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo comprender la configuración de la red de atención de salud mental de niños y adolescentes en Quixadá, Ceará, a partir de los pacientes atendidos en la clínica-escuela de Psicología del Centro Universitário Católica de Quixadá. Es una investigación documental y cuantitativa-exploratoria. La clientela es predominantemente de niños, de 4 a 12 años, residentes en la ciudad de Quixadá y que no están y no han estado en otros servicios de salud, educación o asistencia social para tratar de la queja presentada. Ante eso, creemos que la clínica escolar tiene un gran valor social, ofreciendo respaldo al equipo de la red, ya que la red de atención formal no tiene una institución de referencia en este tipo de atención.

Palabras clave: salud mental, atención de la salud, niño, adolescente, Psicología Clínica


 

 

Introdução

A ideia de que existe um momento da vida qualitativamente diferente da idade adulta, a infância, é recente na história da humanidade, e mais ainda a de que exista uma adolescência (Ariés, 1981). Mesmo assim, a forma como as compreendemos sofre constantes alterações durante o tempo. De qualquer maneira, a ideia por trás do conceito de infância passa pela ideia de prevenção: em zelar pela formação da nação futura. A criança passa a ser vista com um olhar voltado para o futuro e para sua contribuição na formação de uma nação "civilizada" (Brasil, 2014; Sinibaldi, 2013). Mais recentemente, no Brasil, entende-se criança e adolescente como indivíduos biopsicossociais em desenvolvimento e que, portanto, necessitam de um campo próprio de assistência (Brasil, 2014). Na construção dessa assistência à criança e ao adolescente, é defendida a necessidade de uma clínica ampliada, de modo que o cuidado seja ofertado dentro de uma base interdisciplinar e intersetorial, na medida em que o contexto de desenvolvimento desse sujeito é constituído pela articulação de diversas instituições, como família, escola, cultura, justiça, entre outros (Delfine, Bastos, & Reis, 2017).

Nessa perspectiva, consideram-se esses indivíduos não apenas como meros objetos alvos de uma intervenção estatal. Eles devem ser reconhecidos como indivíduos singulares, com valor social, acolhidos e escutados pelos dispositivos, capazes de ser corresponsáveis pelas suas demandas, influenciando na construção da rede de atenção à saúde mental (Taño & Matsukura, 2015).

Atualmente, as populações infantil e juvenil em sofrimento psíquico intenso são acolhidas na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que é composta por um conjunto de serviços da saúde e de outros setores. Esse modelo foi estruturado a partir do aparato político-jurídico do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Brasil, 1990). Com isso, houve o início de uma preocupação em assegurar a assistência e a proteção como um direito universal e um dever nacional, com atenção especial a esse público (Delfini, Bastos, & Reis, 2017).

Para a implantação de qualquer modalidade de equipamento ou serviço de saúde, são estabelecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo Ministério da Saúde alguns parâmetros. Desse modo, os territórios vão se construir a partir das preconizações das políticas em saúde. Tendo em vista os diversos serviços de saúde, é esperada a organização desses por meio de uma rede. Entende-se por rede uma malha de relações entre equipamentos e instâncias, que busca descentralizar o poder hierárquico das instituições/dispositivos, por meio da intersetorialidade (Santos, 2006). Nesse sentido, a rede busca unir todos os dispositivos e as suas potencialidades, a fim de produzir uma atenção integral (Eslabão, 2017; Delfine, Bastos, & Reis, 2017).

Para assimilar a configuração desta rede e a sua contribuição no cuidado à saúde mental de crianças e adolescentes, é necessário compreender antes que o sujeito portador de transtorno mental, conforme a denominação utilizada neste documento, tem seus direitos à proteção resguardados pela Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001 (Brasil, 2001). Esta lei estabelece que o Estado é responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental, sendo que, segundo a Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (Brasil, 2011), é o SUS que deve promover uma assistência integral ao sujeito que apresenta sofrimento psíquico e dependência de álcool ou outras drogas, por meio da Raps, composta por diversos equipamentos, dos mais variados níveis de atenção e complexidade.

Entre os serviços da Raps, o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) é o serviço especializado. Este é um serviço constituído por uma equipe multiprofissional, apresentado em diversas modalidades. O modelo infantojuvenil - Capsi - é responsável por atender crianças e adolescentes que apresentam sofrimento psíquico grave ou dependência de crack ou outras drogas. Sua existência está condicionada, pelo Ministério da Saúde, aos municípios com um porte populacional igual ou superior a 70 mil habitantes.

O atendimento integral compreende uma atenção que se propõe a acolher o sujeito em sua complexidade, "ampliando a compreensão sobre as formas de cuidar ao incluir as redes não formais do usuário" (Kemper, Martins, Monteiro, Pinto & Walter, 2015, p. 996). Essa rede informal deve ser compreendida como relações com dispositivos próprios de cada território que desempenha um papel dentro da comunidade (Gerhardt et al., Cardoso, Oliveira & Piani, 2016).

Diante do exposto, o estudo traz como cenário de pesquisa a composição da Raps de Quixadá, sendo este o maior município do sertão central cearense, refletindo uma realidade encontrada em seus arredores.

Alguns fatos históricos precisam ser mencionados para que se possa ter uma compreensão mais vívida da realidade pesquisada. Severo Júnior (2014, citado por Bleicher, 2015) discorre que, no período anterior ao ano de 1993, o município de Quixadá não tinha o serviço dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e de nenhuma outra modalidade de assistência psiquiátrica. Quando era preciso ser feito algum tipo de atendimento especializado, os pacientes que chegavam ao Hospital Eudásio Barroso em crise seguiam a trajetória de encaminhamento ao Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), na capital do estado. Atualmente, o município já conta com os equipamentos Caps Geral e Caps AD, em que os pacientes podem dar entrada ao serviço via encaminhamento ou por demanda espontânea.

A criação do Caps Geral de Quixadá é um marco dentro da Reforma Psiquiátrica no Ceará, influenciando no caminho que os usuários percorriam em busca de tratamento, no Sertão Central. O município diversificou a sua oferta de serviços, com a criação do Caps AD, mas, no entanto, não houve implantação de Capsi em Quixadá ou nas cidades circunvizinhas, desta forma, não apresentando programas e serviços especialmente dedicados a esse público. O que havia era a Associação de Pais e Amigos de Pessoas Especiais de Quixadá (Apapeq), que, embora possa coincidir com algum público de um possível Capsi, não foi criado em articulação com a Raps do município (Bleicher, 2015).

Essa situação, somada às características de cada cidade e região, pode se desdobrar em uma construção diversificada de Raps, especialmente para o público com idade inferior a 18 anos. A partir disso, o itinerário terapêutico dos usuários da rede surge como instrumento apropriado para conhecer esses dispositivos específicos, considerando instituições e serviços diversos.

O itinerário terapêutico se propõe a mapear a trajetória percorrida pelos indivíduos em busca de cuidados à saúde e perpassa a compreensão dos serviços existentes em uma determinada rede e dos termos de acessibilidade que os acompanham, indo desde a construção do percurso até a forma como a pessoa vivencia o serviço de saúde (Pinto & Freitas, 2018).

Para tanto, é necessário ter um ponto de partida para mapear o percurso do usuário, além de possibilitar o conhecimento dos equipamentos que compõem a rede de atenção do território pesquisado. Com isso, a presente pesquisa tomou a clínica-escola de psicologia do Centro Universitário Católico de Quixadá (Unicatólica) como esse ponto inicial.

As clínicas-escolas são ligadas a uma instituição de ensino, em que o aluno realiza a prática clínica visando ao aperfeiçoamento de sua formação profissional, por meio do contato com situações e contextos, que possibilitem pôr seus conhecimentos teóricos em prática. Os atendimentos são realizados pelos alunos do curso de Psicologia, sendo supervisionados por um profissional psicólogo, em que são oferecidos atendimentos à comunidade com valores gratuitos ou reduzidos, para adultos, adolescentes e crianças, tendo como um dos objetivos contribuir para a formação clínica do aluno (Rosário & Neto, 2015).

Esta pesquisa surge a partir do interesse em compreender como se estrutura a rede de atenção e cuidado em saúde mental destinada a crianças e adolescentes de Quixadá, mediante uma crescente demanda de sofrimento psíquico que vem acometendo essa população, juntamente ao surgimento e crescimento de diversos diagnósticos em transtornos mentais nessa faixa etária, além do descompasso existente entre a necessidade de cuidados em saúde mental para esse público e a disponibilidade de oferta de serviços especializados dentro do território (Desviat, 2015; Benetti, Ramires, Shneider, Rodrigues & Tremarin, 2007; Assis, Avanci, Pesce & Ximenes, 2009).

Apoiado nessa indicação, o presente estudo tem por finalidade compreender como se configura a rede de cuidados formais e informais de atenção à saúde mental da infância e da adolescência, a partir dos pacientes atendidos pelo serviço da clínica-escola de Psicologia do Centro Universitário Católica de Quixadá, de forma a identificar como essa instituição se articula com os outros dispositivos que compõem a rede, possibilitando, dessa forma, o surgimento de novas reflexões a respeito do papel desempenhado pelos serviços dessa clínica-escola dentro da rede de saúde mental do município.

 

Metodologia

A fim de se alcançar o objetivo desta pesquisa, propõe-se uma metodologia de estudo documental quantitativo-exploratório, que faz uso de fontes impressas ou não impressas como ferramenta para estudos e levantamento de dados que, posteriormente, serão filtrados pelos pesquisadores, delimitando o campo de estudo (Severino, 2007).

A pesquisa tem como cenário o município de Quixadá e os demais que recorrem ao Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) do Centro Universitário Católica de Quixadá, criado em 2009, com o objetivo de complementar a formação profissional dos estudantes do curso de Psicologia, por meio da prática do estágio profissionalizante (Costa, Carneiro, & Nogueira, 2014).

Nessa clínica-escola, todos os atendimentos e serviços oferecidos são gratuitos e supervisionados por psicólogos docentes da área. Os pacientes são, inicialmente, acolhidos pelo plantão psicológico, que é responsável, também, pelos encaminhamentos iniciais realizados. Uma ficha é criada com os dados básicos de cada paciente atendido. Ao ser realizado o primeiro atendimento dos pacientes encaminhados para psicoterapia e psicodiagnóstico, é efetuada a abertura de um prontuário contendo os dados colhidos nas entrevistas preliminares (Costa, Carneiro, & Nogueira, 2014).

Dentro desse eixo, entre os meses de setembro a dezembro de 2018, foi realizado um levantamento de informações referentes às crianças e aos adolescentes que estiveram em acompanhamento no serviço, no período de janeiro a dezembro do referido ano. Para isso, a fonte de pesquisa utilizada foi a consulta direta dos prontuários de cada paciente, especificamente utilizando a ficha de triagem como fonte de coleta. Essa ficha é preenchida nos primeiros atendimentos, apresenta informações referentes à identificação, data de nascimento, dados sociodemográficos, demanda e antecedentes pessoais, sociais e familiares. A partir dos registros encontrados, foram colhidas as seguintes variáveis: idade, sexo, configuração, local onde reside, fonte encaminhadora, se está ou esteve em acompanhamento em algum serviço de saúde, assistência social ou educacional.

Para o tratamento dos dados coletados, optou-se por analisá-los a partir do modelo estatístico descritivo; com isso, foram elaboradas planilhas e tabelas, utilizando-se de médias e porcentagens para categorizar e quantificar as informações (Silvestre, 2007).

Como critérios de inclusão da pesquisa, foram utilizados: a permissão dos pais ou responsáveis para o manuseio das informações contidas no prontuário para fins de pesquisa - esta certificação foi feita a partir da verificação da assinatura do termo de consentimento presente no prontuário; o paciente ser menor de 18 anos; e o paciente ter estado em atendimento no ano de 2018. Como critérios de exclusão, foram determinados: a não concessão dos pais para a utilização dos dados presentes no prontuário do jovem; estar em atendimento no plantão psicológico; estar em lista de espera; estar desativado ou acima da faixa etária de 18 anos.

Os dados aqui apresentados foram colhidos a partir da pesquisa "A rede de atenção e cuidado na saúde mental de crianças e adolescentes em Quixadá", realizada conforme as normas e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Católica de Quixadá, sob protocolo n. 2.632.135.

 

Resultados e Discussões

A clínica-escola conta com 200 prontuários de crianças e adolescentes, no entanto somente 146 prontuários foram analisados, uma vez que 54 responsáveis não concordaram em compartilhar as informações dos atendimentos para produções e eventos científicos. Desse modo, os dados que aqui serão apresentados são de pacientes que tiveram o consentimento de seus responsáveis para o uso das informações e que também foram atendidos no ano de 2018.

Conforme a Tabela 1 abaixo, ilustrada a partir de cinco faixas etárias, destaca-se uma incidência maior de crianças de sete a nove anos, 34,93% (51), seguidas das crianças de 10 a 12 anos, com 23,29% (34), e das com quatro a seis anos, com 18,49% (27), entre os prontuários analisados. Em relação ao gênero das crianças, os resultados apontaram uma predominância maior de meninos, 59,59% (87), que as meninas, 40,41% (59), atendidos pelo serviço. Entretanto, na faixa etária entre dez e doze anos, observou-se que não houve diferença em relação à procura por atendimento. Essa diferença aumenta nos dois grupos etários iniciais da infância, os meninos compõem 34,25% (50) nos grupos de quatro a nove anos. Essa diferença somente não ocorre na faixa etária de 16 a 18 anos, quando há uma procura maior de adolescentes do sexo feminino, 6,16% (9), que os do sexo masculino, 2,74% (4).

Outros estudos confirmam essa diferença entre os gêneros na busca de atendimento em saúde mental, em que há um maior índice de crianças do sexo masculino com transtornos psíquicos, apresentando encaminhamentos referentes à hiperatividade, agressividade, problemas de conduta e dificuldade de aprendizagem, queixas frequentemente observadas pelos pais e na escola (Cunha, Borges, & Bezerra, 2017; Maravieski & Serralta, 2011; Delvan, Portes, Cunha, Menezes & Legal, 2010). Então, levantamos a hipótese de que o mesmo possa estar ocorrendo na clínica-escola, pois o número crescente de chegada é de meninos, os quais estão nos primeiros anos de vida escolar.

Na Tabela 2, é apresentada a localidade onde o público da pesquisa reside. Com os resultados, é possível observar que, mesmo com a clínica-escola atendendo, em sua maioria, crianças e adolescentes que residem no município de Quixadá, 96,58% (141), há habitantes de outras cidades que também buscam os serviços dela.

 

 

Na Tabela 3, observam-se informações referentes ao sistema integralizado de atenção e cuidado à queixa que os levaram até o SPA. Nesse item, foi analisado se os usuários estavam ou já estiveram sob o cuidado de serviços de saúde, assistência social ou educacional. Percebe-se que a maioria, 58,22% (52), não está ou esteve inserida em outros tipos de serviços para tratar dessa demanda. Para esses pacientes, o SPA funciona como único lugar de tratamento ou como porta de entrada para a rede de saúde mental do município, pois não foram encaminhados por outros profissionais ou serviços.

Os resultados das tabelas 1, 2 e 3 são relevantes para conhecer a população que busca atendimento no SPA do centro universitário, podendo auxiliar em um melhor entendimento a respeito do importante papel desempenhado pela clínica-escola para esse público.

Na mesma direção de outros estudos, observou-se que a clientela da clínica-escola é composta, em sua maioria, por crianças do gênero masculino (Tabela 1) (Bernardes-da-Rosa, Garcia, Domingos & Silvares, 2000; Maggi, et al., 2016; Santos 2006), período em que, não raro, há um aumento por buscas de serviços de atendimento decorrentes de dificuldades escolares, mas esses sintomas podem vir a representar outros aspectos de vulnerabilidade (Santos, 2006).

Ao olharmos para o alcance territorial no qual o SPA atua, observa-se que, embora a maioria dos pacientes seja residente em Quixadá, o serviço também atende cidades circunvizinhas, como Ibicuitinga e Quixeramobim, mostrando o reconhecimento do serviço prestado pela clínica-escola como referência para a comunidade.

A sua clientela apresenta uma faixa etária predominante dos 4 aos 12 anos, em sua maioria meninos em período escolar, período ao qual se atribuem vulnerabilidades biológicas, físicas e psíquicas. Ao associar esses dados à Tabela 3, verifica-se uma predominância de 58,22% (85) de pacientes que não estão e jamais estiveram em acompanhamento por algum serviço de saúde, assistência social ou educacional. A partir desses dados, observa-se uma situação preocupante, uma vez que essa população necessita de uma atenção especializada e integrada. Entre os determinantes de saúde mental, a exposição a adversidades nos primeiros anos de vida é um fator de vulnerabilidade, sendo consideradas as principais adversidades a extrema pobreza, baixos índices de nutrição, conflitos e insegurança (Kieling, 2014; Dua, et al., 2016).

Na Tabela 4, são apresentadas informações a respeito do histórico desses pacientes referente a algum tipo de cuidado em saúde mental. O valor total da tabela apresenta uma somatória que difere das demais, e isso se dá pelo fato de que há usuários que têm em seu histórico mais de um lugar de cuidado.

 

 

 

Notou-se que mais da metade dos pacientes atendidos não haviam procurado outro serviço antes da clínica-escola. Confirmaram-se os dados trazidos pela Tabela 3, na qual 58,22% dos pacientes não estão ou estiveram em outros serviços de saúde, assistência social ou educacional. Diante disso, entende-se que ele tem sido o primeiro lugar buscado pelos pacientes e seus cuidadores, demonstrando que a população compreende que a clínica-escola faz parte da Raps, embora isso ocorra de maneira não formal.

Por mais que alguns serviços que compõem a Tabela 4 não sejam equipamentos que desempenhem exclusivamente funções de cuidado em saúde mental, é importante pensar nesses outros dispositivos como um modo de atuação integral. O cuidado em saúde mental conversa com os outros saberes, sendo importante trabalhar sob um olhar integral, considerando os diversos aspectos da vida usuário, integrando os vários equipamentos/serviços (Brasil, 2014).

Na Tabela 5, podemos observar variadas formas de chegada ao SPA, em que destacamos que a maioria dos pacientes (45,89%) chegaram à clínica-escola de Psicologia da Unicatólica por demanda espontânea, sendo possível analisar, novamente, a posição de referência que esse serviço representa para a comunidade. Na sequência, temos o Caps (23,97%) e a Atenção Primária (8,90%) como destaque entre os serviços que mais encaminham pacientes para o SPA, em que se nota a articulação entre os serviços formais da Raps com a clínica-escola. A porcentagem e somatória dos dados não se enquadram ao valor de cem por cento pelo fato de alguns pacientes possuírem mais de um encaminhamento até chegarem à clínica-escola: Caps e Policlínica, Escola e Caps, Demanda espontânea e Caps, Psicopedagoga e Caps. Observa-se que o Caps vem atuando por meio da perspectiva da intersetorialidade, ao se comunicar com os demais equipamentos.

Por mais que a clínica-escola não seja um serviço vinculado ao SUS e nem possua base territorial, percebemos que os equipamentos da RAS se articulam ao coordenarem os usuários em encaminhamentos ao SPA, incluindo-o dentro de uma rede que visa promover a atenção integral do sujeito. Da mesma maneira, o SPA passa a funcionar como porta de entrada para encaminhamentos para a rede, uma vez que grande parte dos seus usuários não tinha passagem anterior nos serviços públicos de saúde mental do município.

Para a realização da atenção integral à saúde mental infantojuvenil, é necessária a constituição de uma rede integrada de diversos serviços e setores, que se articula para desenvolver a assistência, contribuindo para promoção de saúde e prevenção de maiores complicações, incluindo os serviços da atenção primária, da educação e também da assistência social. Além de disso, podemos citar outras instituições que fazem parte dessa rede de cuidados, de uma maneira informal, como as igrejas, que também dão suporte às famílias (Barata, Nóbrega, Jesus, Lima & Facundes, 2015).

A partir dos resultados, é possível visualizar a configuração de uma Rede constituída por dispositivos formais e informais que operam na manutenção psicossocial do município, onde se torna possível discutir a importância do suporte oferecido por profissionais e instituições que não estão formalmente inseridos na Rede, mas que se interligam com os serviços e são buscados pelos pacientes e seus familiares, quando se faz necessário o atendimento em saúde mental.

É fundamental ressaltar que, além do reconhecimento por parte dos pacientes e seus familiares, os profissionais também identificam a clínica-escola como uma instituição de cuidados. Isso pode se dar tanto pelo fato de o SPA ocupar um lugar de referência em atendimentos a crianças e adolescentes como pela precariedade da rede municipal de saúde relacionada aos cuidados infantojuvenis.

 

Conclusão

Diante do exposto, verifica-se que, a partir da falta de dispositivos que possam oferecer serviços integralmente especializados para o atendimento do público infantil e adolescente - como o Capsi -, a clínica-escola de psicologia do Centro Universitário de Quixadá, mesmo não estando formalmente inserida dentro da Rede de Atenção à Saúde do município, vem ganhando espaço e reconhecimento - tanto pela população quanto pelas instituições -, no que confere o seu atendimento a esse público, já que muitos buscam o serviço sem passar por outro equipamento.

Dentro dessa composição, é possível destacar esse local como um ponto de referência até para cidades vizinhas, como Ibicuitinga e Quixeramobim, que também se deparam com a constituição de uma rede de saúde mental sem serviços especializados para o público infantil e adolescente.

Esses dados preliminares nos mostram que a clínica-escola compõe a Raps do município em uma condição dupla. Embora ela tenha por finalidade oferecer um serviço à comunidade e, portanto, promover um cuidado especializado dentro da rede formal, isso não acontece institucionalmente quando tratamos de Sistema Único de Saúde, apesar de, informalmente, ser referenciada pelo município e pelas outras duas cidades, incluindo os próprios usuários que buscam o serviço de maneira espontânea.

Diante disso, acreditamos que o SPA tem um grande valor social, pois desempenha uma importante função dentro da sociedade, por acolher parte da demanda de cuidados a crianças e adolescentes, dando o suporte que se faz necessário no município, uma vez que a rede formal de cuidados não tem uma instituição que seja referência nesse tipo de atendimento. Nesse sentido, é importante que avance na integração formal junto à Raps do Sertão central cearense, no sentido da construção conjunta de planejamento das políticas públicas, construção de fluxos de serviços e sua hierarquização.

A partir dos resultados obtidos com a pesquisa, conseguimos compreender, parcialmente, como se articula a rede de cuidados em saúde mental de Quixadá e do seu entorno, identificando instituições e profissionais que atuam de maneira formal ou informal na oferta de serviços a crianças e adolescentes, tendo como ponto de partida a clínica-escola. É possível que a realidade de Quixadá apresente características que se apresentam em outros municípios brasileiros. Destacam-se: a importância dos serviços, projetos e ações de extensão e pesquisa de universidades, centros universitários e faculdades para as Redes de Atenção Psicossocial e demais redes do SUS; a ausência total de psicoterapia para crianças e adolescentes na rede pública de saúde; e a não integração oficial da universidade nas Raps. Diante desse cenário, defende-se que uma verdadeira Raps, intersetorial e integral, deve incluir as intervenções realizadas pelas instituições de ensino superior em seus processos de trabalho, seguindo uma lógica de gestão clínica do cuidado.

 

Financiamento

O presente artigo é resultado de uma pesquisa financiada pelo Programa de Iniciação Científica (PIC), do Centro Universitário Católica de Quixadá (UNICATOLICA).

 

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Endereço de contato:
Carla Renata Braga de Souza
Rua Senador Machado, 195, apto. 2206
Mucuripe, Fortaleza, Ceará. CEP 60165-170.
E-mail: carlarenatabs@gmail.com

Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 04/11/2019
Aceite final: 21/01/2020

 

 

Carla Renata Braga de Souza: Doutora e mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Psicanalista. Psicóloga pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Docente Universitária e coordenadora da Especialização em Saúde Mental, pesquidora na Universidade Católica de Quixadá (Unicatólica). Membro do Programa de Extensão Clínica, Estética e Política do Cuidado(CEPC) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro da Clio - Associação de Psicanálise.
E-mail: carlarenatabs@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2592-4547
Lucas de Oliveira Saraiva Leão: Pós-graduando em Psicologia do Trânsito e Psicologia Organizacional pela Faculdade Dom Alberto. Psicólogo pela Universidade Católica de Quixadá (Unicatólica). Atua no Projeto Virando o Jogo pela Vice-Governadoria do Estado do Ceará.
E-mail: saraiva750@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1038-6368
Patrícia Régia Oliveira de Araújo: Pós-graduanda em Saúde Mental e Psicóloga pela Universidade Católica de Quixadá. (Unicatólica). Atua no Núcleo da Coordenadoria de Alternativas Penais de Quixadá, CE.
E-mail: patriciaoa@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1865-506X
Matheus Tierry Borges Lima Lopes: Acadêmico de Psicologia pelo Centro Universitário Católica de Quixadá (Unicatólica). Bolsista voluntário do Programa de Iniciação Científica (PIC) da Universidade Católica de Quixadá (Unicatólica). Extensionista do Núcleo de Estudos em Avaliação Psicológica da Unicatólica e do Programa de Extensão Clínica, Estética e Política do Cuidado da Universidade Federal do Ceará (UFC)
E-mail: matheustierrybll@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3468-188X
Tais Bleicher: Doutora em Saúde Coletiva. Mestre em Psicologia Clínica e Cultura. Psicóloga. Professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica, assessora da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), líder do grupo de pesquisa, certificado pelo CNPq: Núcleo de Estudos e Pesquisas Psicossociais de São Carlos; e coordenadora do Programa de Extensão Vida Universitária e Saúde Mental. Compõe a comissão institucional de estudo da Política de Saúde Mental da UFSCar.
E-mail: taisbleicher@hotmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-0056-3749

 

 

2 Associação de Pais e Amigos de Pessoas Especiais de Quixadá (Apapeq), uma das únicas instituições na região do Sertão Central cearense que fornece apoio a pessoas deficientes e suas famílias, tendo como missão promover e articular ações de defesas, direitos e orientações, prestando serviço e apoio à família, direcionados à melhoria da qualidade de vida e à inclusão da pessoa com necessidades especiais no âmbito social.

^rND^sAssis^nS. G.^rND^sAvanci^nJ. Q.^rND^sPesce^nR. P.^rND^sXimenes^nL. F.^rND^sBarata^nM.^rND^sNóbrega^nK.^rND^sJesus^nK.^rND^sLima^nM. L.^rND^sFacundes^nV. L.^rND^sBenetti^nS. P. C.^rND^sRamires^nV. R. R.^rND^sSchneider^nA. C.^rND^sRodrigues^nA. P. G.^rND^sTremarin^nD.^rND^sBernardes-Da-Rosa^nL. T.^rND^sGarcia^nR. M.^rND^sDomingos^nN. A. M.^rND^sSilvares^nE. F. M.^rND^sCardoso^nM. R. O.^rND^sOliveira^nP. T. R.^rND^sPiani^nP. P. F.^rND^sCunha^nM. P.^rND^sBorges^nL. M.^rND^sBezerra^nC. B.^rND^sDelfini^nP S. S.^rND^sBastos^nI. T.^rND^sReis^nA. O. A.^rND^sDelvan^nJ. S.^rND^sPortes^nJ. R. M.^rND^sCunha^nM. P.^rND^sMenezes^nM.^rND^sLegal^nE. J.^rND^sDesviat^nM.^rND^sDua^nT.^rND^sTomlinson^nM.^rND^sTablante^nE.^rND^sBritto^nP.^rND^sYousfzai^nA.^rND^sDaelmans^nB.^rND^sDarmstadt^nG. L.^rND^sKemper^nM. L. C.^rND^sMartins^nJ. P A.^rND^sMonteiro^nS. F. S.^rND^sPinto^nT. S.^rND^sWalter^nF. R.^rND^sKieling^nC.^rND^sBaker-Henningham^nH.^rND^sBelfer^nM.^rND^sConti^nG^rND^sErtem^nI.^rND^sOmigbodun^nO.^rND^sRahman^nA.^rND^sMaggi^nA.^rND^sRosa^nA. M.^rND^sScherer^nC. G.^rND^sBisol^nC. A.^rND^sWendland^nJ.^rND^sPoletto^nL. B.^rND^sMoreira^nP M.^rND^sMaravieski^nS.^rND^sBarcellos Serralta^nF.^rND^sPinto^nJ. T. J. M.^rND^sFreitas^nC. H. S. M.^rND^sRosário^nA. B.^rND^sNeto^nF. K.^rND^sSantos^nP. L.^rND^sSinibaldi^nB.^rND^sTaño^nB. L.^rND^sMatsukura^nT. S.^rND^1AFF1^nVanessa Santos^sLemos^rND^1AFF1^nCristina^sLhullier^rND^1AFF1^nVanessa Santos^sLemos^rND^1AFF1^nCristina^sLhullier^rND^1AFF1^nVanessa Santos^sLemos^rND^1AFF1^nCristina^sLhullier

10.20435/pssa.vi.1076 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

A Psicologia na atenção básica e a saúde coletiva

 

Psychology at primary care and public health

 

La psicología en la atención básica y la salud colectiva

 

 

Vanessa Santos Lemos; Cristina Lhullier

Universidade de Caxias do Sul (UCS)

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RESUMO

O objetivo do artigo é descrever os desafios do profissional da psicologia na atenção básica à saúde. Trata-se de uma pesquisa de delineamento qualitativo, exploratorio e descritivo. Foram analisados 10 artigos publicados entre 2001 e 2017 em revistas científicas pertencentes às bases de dados do Portal de Periódicos da Capes. Os artigos apresentavam relatos de experiência de profissionais da psicologia que atuam na atenção básica à saúde e foram analisados na perspectiva da análise de conteúdo proposta por Laville e Dionne. Os resultados apontam a necessidade de o profissional da psicologia adotar uma visão ampliada de saúde na perspectiva da saúde coletiva. Deste modo, pode se desenvolver um atendimento integral à saúde por meio de atuação humanizada, preventiva e ampliada na atenção básica. Mais ainda, busca-se a transformação na formação dos profissionais da psicologia e a elaboração de diretrizes norteadoras mais claras e objetivas para a saúde mental na atenção básica.

Palavras-chave: Psicologia, atenção básica à saúde, saúde mental, saúde coletiva


ABSTRACT

The article aims to describe the psychologist's challenges in primary care health. We conducted a qualitative, exploratory, and descriptive research. We analyzed ten scientific articles, published between 2001 and 2017 at the Portal de Periódicos da Capes. These articles subject were psychologist's narratives of work at primary care health. They were analyzed from the perspective of Laville and Dionne's analysis of content. Results point to the necessity of a board perspective of health by the psychologists and the development of a collective health approach to mental health. Thus, we were capable to enable preventive, humanized attention to health in all dimensions at primary care. Furthermore, there is a need for necessary changes in psychologist's formation and objectives policies guidelines to mental health at the primary care.

Keywords: Psychology, primary care, mental health, collective health


RESUMEN

El artículo objetiva describir los desafíos del profesional en psicología en la atención básica à la salud. Se ha hecho una investigación cualitativa, exploratoria y descriptiva. Fueron analizados diez artículos publicados entre 2001 y 2017 en lo Portal de Periódicos da Capes. Estos artículos presentaban narrativas de actuación de profesionales de la psicología en la atención básica à la salud y fueran analizados en la perspectiva del análisis de contenido de Laville e Dionne. Los resultados apuntan la necesidad de una visión ampliada de salud en la perspectiva de la salud colectiva por los psicólogos. Con esto, es posible crear una asistencia integral à la salud con una actuación humanizada, preventiva y ampliada en la atención básica. Y más, se necesita transformar la formación de los profesionales de psicología y elaborar directrices más claras y objetivas para la salud mental en la atención básica.

Palabras clave: Psicología, atención básica, salud mental, salud colectiva


 

 

Introdução

A atenção básica constitui-se de um conjunto de ações em saúde localizadas nos territórios, voltadas à promoção e à prevenção de saúde. Ela é o principal meio de acesso aos serviços de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) e conta com projetos que visam à abrangência e ao acesso da população a esses serviços (https://atencaobasica.saude.rs.gov.br/programas-e-acoes). Um dos programas que contribuem para essas finalidades, além das ações dos agentes comunitários, é a Estratégia de Saúde da Família (ESF). Esta objetiva o atendimento interdisciplinar da população, sendo um dos projetos da Política Nacional de Atenção Básica (Ministério da Saúde, 2013).

A saúde coletiva caracteriza-se como uma prática sanitária, que se utiliza de distintos saberes com o intuito de ampliar as bases epidemiológicas e sociais (Campos, 2000). Atua com base na integralidade, questionando o paradigma biomédico e promovendo a autonomia do usuário em relação à sua saúde. Essa prática deve ser proposta desde a formação profissional, para que torne parte da atuação comprometida com o social (Bernandes & Guareschi, 2010; Campos, 2000).

Diante do compromisso da saúde pública com a saúde coletiva, buscando integralidade e interdisciplinaridade, houve a regulamentação da Estratégia Saúde da Família, pela Portaria n. 648/GM (Ministério da Saúde, 2006). Nesta, a saúde mental não se encontra considerada. Contudo a assistência à saúde mental deve ser trabalhada no cotidiano da atenção básica, sendo o sofrimento psíquico algo que vai além dos diagnósticos, considerando-se a subjetividade, as diferenças culturais e o atendimento humanizado (Ministério da Saúde, 2013).

Desse modo, há a exigência da mudança do modelo hegemônico para um cuidado multidisciplinar compartilhado, ressaltando a necessidade de uma formação profissional adequada a esse princípio de intervenção (Ministério da Saúde, 2009).

Com o apoio matricial, a atenção básica à saúde mental passou a ter mais espaço na rede (Ministério da Saúde, 2013). O matriciamento atua no suporte técnico e pedagógico dos serviços de saúde, ampliando as relações entre funcionários e usuários. Os investimentos financeiros para esse fim começaram a partir da criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs), possibilitando a formação de uma equipe com profissionais de diferentes áreas apoiando tecnicamente as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) que atuam com a ESF diretamente nos territórios (Ministério da Saúde, 2008).

O principal desafio para a atenção básica é transformar o paradigma de atendimento individual em uma reforma que possibilite "cuidados primários, como um conjunto de valores e princípios para orientar o desenvolvimento dos sistemas de saúde" (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2008, p. 9), promova inovações que possibilitem cobertura universal, promova emancipação do usuário, necessidade de reforma nas políticas públicas e uma liderança do Estado mais inclusiva, "baseada em negociação e participação, mais adequada à complexidade dos sistemas de saúde contemporâneos" (OMS, 2008, p. 9).

A qualidade de vida e o estresse estão relacionados ao surgimento de doenças mentais. Mesmo considerando a complexidade do termo qualidade de vida, vale pensar sobre o impacto desta na saúde. Segundo estudo realizado com 1.466 pacientes que frequentam a assistência básica de saúde no estado de São Paulo e do Rio de Janeiro, foi possível mostrar a relação da qualidade de vida e o adoecimento psíquico na população de baixa renda, considerando variáveis como estresse, estrutura familiar, relações sociais, problemas de saúde, mudanças e rompimentos abruptos, violência, entre outros (Silva & Santana, 2012). De acordo com pesquisa publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2014), em 2013, a região Sul e a Sudeste apresentaram maiores índices de depressão no país. Cerca de 12,6% da população do Sul do país tem diagnóstico de depressão, fato que acaba se manifestando na rede de atenção básica em saúde.

Com o psicólogo consolidando seu espaço na atenção básica, surgem desafios a serem superados. Inicialmente, há os estigmas diante da profissão psicólogo. Com base no estudo dirigido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2011), pode-se perceber que tanto usuários quanto profissionais da saúde ainda não compreendem a prática psicológica como fundamental nas intervenções à saúde. A pesquisa aponta que o estigma do setting terapêutico dificulta o entendimento das formas de atuação e das intervenções psíquicas dentro da saúde pública (CFP, 2011).

Outro desafio encontrado foi aliar a saúde mental e a atenção básica à saúde, atuando de forma integral, como precede o "princípio do SUS de integralidade, com objetivo de organizar o sistema e trabalhar com ações preventivas" (Spink & Matta, 2010, p. 45), além de modificar a cultura que rotula o doente mental, construindo um olhar para esse sujeito como pessoa que sofre (CFP, 2011; Spink & Matta, 2010).

Há ainda que se considerar a falta de políticas públicas que estabeleçam diretrizes para o fazer psi no cuidado da atenção primária, auxiliando e norteando o trabalho (CFP, 2011). Dessa forma, constata-se a urgência na criação de políticas públicas que acolham as demandas sociais da atualidade, além do reconhecimento da importância e do papel do profissional psicólogo na atenção básica à saúde como profissional que está na saúde pública como agente de saúde coletiva, lutando pela cidadania diante das propostas governamentais em saúde (Bernardes & Guareschi, 2010).

A partir do exposto, o artigo propõe-se a descrever os desafios do profissional da psicologia na atenção básica à saúde, tomando como ponto de partida a perspectiva desse nível de atenção como prática coletiva e integradora.

 

Método

A pesquisa realizada teve delineamento qualitativo, de caráter exploratório e descritivo. Considera-se a investigação exploratória, pois se buscou construir gradativamente uma compreensão dos dados, de modo a esclarecer o objetivo proposto (Gil, 2010; Laville & Dionne, 1999). O aspecto descritivo da pesquisa constituiu-se na elaboração de um panorama das publicações sobre a temática escolhida em um dado período de tempo (Gil, 2010).

Foram utilizados 10 artigos escritos em língua portuguesa publicados em revistas científicas que fazem parte do Portal de Periódicos da Capes. Foram utilizados os descritores: saúde pública, saúde mental na atenção básica e psicologia na atenção básica.

Os critérios de seleção dos artigos foram os seguintes:

1) relatos de experiência de psicólogos que atuam na atenção básica em UBS e nas equipes de Nasf, nas regiões do Sul e Sudeste do Brasil. Optou-se por focar nessas duas regiões do país, visto que essas apresentam os maiores índices de transtornos mentais leves diagnosticados na atenção básica;

2) artigos publicados entre 2001 e 2017. O marco de 2001 corresponde à data de promulgação da lei da Reforma Psiquiátrica brasileira, que reestrutura os serviços de atenção à saúde mental no país.

Os artigos selecionados apresentam-se na Tabela 1.

Após a seleção dos artigos, foi feita a codificação deles, permitindo a sistematização e a estruturação das ideias relevantes para a análise (Gibbs, 2009).

Foi elaborado um primeiro grupo de categorias, assim nomeadas: 1) transformação na atuação do psicólogo; 2) formação insuficiente dos psicólogos para a atuação na saúde pública; 3) políticas públicas que direcionam o fazer psi; 4) integralidade no quesito saúde; 5) mais investimentos à saúde; 6) modelo biomédico ultrapassado; 7) tratar a saúde mental no senso comum. No decorrer do processo de análise dos dados, foi realizada uma revisão das categorias, reagrupando-as em duas categorias nomeadas de Desafios para o Psicólogo na Atenção Básica e Visão Ampliada de Saúde.

A análise do conteúdo dos artigos foi realizada com base nos passos propostos por Laville e Dionne (1999). Utilizou-se do sistema de categorização no modelo misto e buscou-se elaborar a compreensão dos dados por meio da construção interativa de uma explicação (Laville & Dionne, 1999).

 

Resultados

Desafios para o Psicólogo na Atenção Básica à Saúde

Nos 10 artigos analisados, destaca-se a importância do compromisso social do profissional da psicologia na atenção básica à saúde. Esse compromisso social encontra-se atrelado à perspectiva de saúde coletiva (Archanjo & Schraiber, 2012; Cintra & Bernardo, 2017; Costa & Olivo, 2009; Freire & Pichelli, 2013; Hori & Nascimento, 2014; Jimenez, 2011; Klein & Oliveira, 2017; Ferreira Neto, 2008; Parise & De Antoni, 2014; Sundfeld, 2010). Segundo os artigos, o compromisso social não se constitui como uma área de atuação específica, mas sim como um posicionamento ético e político, causador de transformações a partir da mobilização do saber profissional (Archanjo & Schraiber, 2012; Cintra & Bernardo, 2017; Costa & Olivo, 2009; Freire & Pichelli, 2013; Hori & Nascimento, 2014; Jimenez, 2011; Klein & Oliveira, 2017; Ferreira Neto, 2008; Parise & Antoni, 2014; Sundfeld, 2010).

Klein e Oliveira (2017), no Artigo 9, após acompanhar o trabalho de uma equipe que atua no Nasf em São Paulo, destacam a perspectiva territorial como base primordial nas intervenções, chamando a atenção para uma realidade de atuação profissional que diverge do ideal proposto pelo SUS. Na entrevista com três psicólogos que atuam em UBS de Campinas, Cintra e Bernardo (2017), no Artigo 10, analisam se as práticas da psicologia estão em consonância com a atuação em saúde coletiva como esperado pelo SUS, mostrando a possibilidade de efetivar e ampliar o modelo clínico, com intervenções contextualizadas na comunidade. O compromisso social também aparece no Artigo 5 (Archanjo & Schraiber, 2012), no qual as autoras entrevistaram 17 psicólogos da atenção básica com o objetivo de compreender as mudanças e as necessidades diante da atuação desses profissionais na saúde pública, trazendo a necessidade de serem incluídas na atenção básica práticas clínico-sanitárias e melhor articulação e regulamentação político-institucional.

Sobre o papel social do psicólogo, o Artigo 4, escrito por Jimenez (2011), traz a experiência de grupos para discussão de casos entre equipe de uma UBS da grande São Paulo, de forma a refletir sobre a importância do psicólogo nesse contexto, potencializando o entendimento sociocultural atrelado à saúde, por meio da atuação nos Nasfs. Nesse sentido, o Artigo 3, de Sundfeld (2010), contribui com a necessidade de o psicólogo ser inserido na atenção básica com o intuito de efetivação da clínica ampliada por meio de matriciamento, promovendo a atuação em saúde coletiva.

No Artigo 6, Freire e Pichelli (2013) entrevistaram 10 psicólogos que trabalham como apoiadores matriciais em João Pessoa, PB. Os entrevistados defendem essa postura técnica do psicólogo, apostando na transformação social ao estimular o usuário na busca pelo seu próprio bem-estar, por meio de uma função ativa no seu plano de intervenções em saúde.

Essa ação deve ser pensada como um direito e um dever do sujeito, como refere o Artigo 7 (Parise & De Antoni, 2014). Nesse, foram entrevistados seis psicólogos da atenção básica com o objetivo de compreender o entendimento de cada profissional sobre suas práticas. Os autores destacam que uma atuação voltada à saúde coletiva, atenta às necessidades e aos recursos do próprio território, permite o surgimento de novas formas de saber e de fazer, fortalecendo o vínculo dos usuários à saúde, de forma a construir um "espaço de resistência às formas de disciplinarização" (Parise & De Antoni, 2014, p. 1094), apostando na emancipação do coletivo, construindo uma "clínica viva" (p. 1095), movimentando o desejo do sujeito, atrelado à qualidade de vida, abrindo-se para o cuidado e promovendo o cuidar (Parise & De Antoni, 2014).

No Artigo 4, Jimenez (2011) afirma que, quando as práticas são descontextualizadas, tendemos à "patologização dos indivíduos colocando o trabalho psicológico a serviço da manutenção da desigualdade, da injustiça e da reprodução da violência" (p. 136). Sobretudo, a análise dos artigos mostra que esse fazer pautado no social exige um posicionamento que necessita ser construído desde a formação dos profissionais, pois esse olhar só é possível diante de uma desconstrução do saber. O psicólogo deve estar disponível para aprender e entender diferentes realidades, buscando intervenções adequadas e corresponsabilizando os demais envolvidos.

As autoras Freire e Pichelli (2013), no Artigo 6, concluem que os psicólogos que atuam no eixo público ainda se distanciam desse compromisso social, estando atrelados a um fazer clínico e individual. Observa-se tal distanciamento nas falas destacadas do Artigo 2 (Costa & Olivo, 2009): "Bom, eu acho que a minha prática, no momento, como é iniciante, está mais voltada para o atendimento clínico. Então, eu atendo crianças, adolescentes, adultos (psicóloga 3)" (p. 1387); ou ainda: "Quando eu iniciei, a gente começou pelos grupos, me inseri em todos os grupos que tinham. Depois disso, parti para o atendimento individual. Estavam me pedindo nos grupos e a demanda estava grande para atendimento clínico, mas esse não era nosso objetivo inicial (psicóloga 2)" (p. 1387).

Há também o entrave entre o compromisso curativo e preventivo das UBSs, gerando nos funcionários uma confusão diante das demandas exacerbadas. No Artigo 5 (Archanjo & Schraiber, 2012), alguns entrevistados apontam que a demanda de ações voltadas para a "doença é muito maior do que de saúde" (p. 358), não tendo muito espaço para intervenções preventivas. A "exigência é para que se atenda o maior número de pessoas" (Archanjo & Schraiber, 2012, p. 358), apontando esse fato como uma exigência política e territorial.

Dessa forma, em meio a essa desconstituição de papéis e compromissos, a função do psicólogo não é bem compreendida na atenção básica. O profissional não tem clareza nem há diretrizes suficientes que respaldem sua função nessa esfera. Assim, os funcionários e os usuários acabam esperando que o psicólogo atue em formato individual, ou ainda como um profissional "quebra-galho", que está ali para intervir em todas as demandas emergentes, como aparece na fala de uma entrevistada no Artigo 5: "[...] um pouco como bombeiro, tem alguém surtando, corre chamar o psicólogo, é interessante que nessa hora eles não chamam o médico, que é o detentor do poder" (Archanjo & Schraiber, 2012. p. 359).

Diante disso, pode-se pensar na importância de novas referências para a profissão do psicólogo, principalmente no que tange à prática em saúde coletiva dentro do setor público. No Artigo 9, Klein e Oliveira (2017), após entrevistarem psicólogos que atuam em equipes Nasf no município de São Paulo, chamam a atenção para o "excesso de liberdade (p. 3)", referindo-se à falta de diretrizes que viabilizem o trabalho e a construção de práticas con-textualizadas de projetos importantes como o Apoio Matricial e a equipe Nasf, por exemplo, sem o intuito de burocratizar os serviços.

Os entrevistados na pesquisa do Artigo 9 mostram entendimentos divergentes em relação a esses projetos. Muitos ainda não têm a compreensão da sua função, como pode-se perceber nas falas extraídas do artigo: "Compartilhado com a Estratégia, engraçado isso... né? A gente é apoio para a Estratégia e trabalha mais com o Nasf, é isso mesmo. Com a Estratégia a gente faz pouca coisa, são poucos os trabalhos que a gente faz [juntos] (E4)"; ou então: "Antes, quando eu entrei, eu achei que seria uma coisa muito mais assistencia-lista, hoje eu acho que o meu maior papel é de ser matriciadora, sabe, de explicar, mesmo que seja explicar 200 mil vezes a mesma informação, mas acho que é isso de ensinar essas pessoas a trabalharem de uma forma, enfim [...] (E6)" (Klein & Oliveira, 2017, p. 5). Diante dessas falas, pode-se pensar na importância da desconstrução do saber, distanciando-se da fantasia de "o poder do psicólogo", com uma postura de inserção, aberta ao conhecimento e ao valor das diversidades sociais, assumindo a profissão como um agente de transformação e construção social, apreciando a cidadania e o respeito mútuo.

No Artigo 1, Ferreira Neto (2008) percebe a promoção de saúde como geradora de transformação social e ainda ressalta a necessidade de um atendimento interdisciplinar, destacando esse aspecto como o bem maior da atenção básica. Contudo o autor aponta que esse reconhecimento e prática ainda não estão internalizados nas equipes técnicas de forma geral. Ainda há muita coisa para se refletir e construir, e uma mudança crucial é a integralidade da saúde e o compromisso social do servidor público, internalizando uma prática em saúde coletiva (Ferreira Neto, 2008).

 

Visão Ampliada de Saúde

A busca pela integralidade na saúde ainda carece de investimentos e de profissionais capacitados, conforme aponta o Artigo 10 (Cintra & Bernardo, 2017). Outro aspecto descrito no artigo é a fragmentação do cuidado em saúde como uma das principais deficiências da atenção básica em saúde (Cintra & Bernardo, 2017).

Os Artigos 8 (Hori & Nascimento, 2014) e 9 (Klein & Oliveira, 2017) destacam a falta de harmonização dos gestores com a integralidade e a sobrecarga de trabalho como dificultado-ra de uma atuação coletiva em saúde. Já os Artigos 5 (Archanjo & Schraiber, 2012) e 7 (Parise & De Antoni, 2014) indicam a necessidade de transformação da formação acadêmica do profissional como principal meio para exercer a integralidade em saúde. E Freire e Pichellli (2013), no Artigo 6, apontam o modelo biomédico, ainda enraizado na atenção básica, como um fator que dificulta o processo de intervenções coletivas em saúde.

Os Artigos 3 (Sundfeld, 2010) e 4 (Jimenez, 2011) utilizam-se do conceito de complexidade para refletir sobre a atuação integral em saúde, chamando a atenção para práticas em saúde coletiva como principal estratégia na transformação do paradigma individualizante. Da mesma forma, os Artigos 1 (Ferreira Neto, 2008) e 2 (Costa & Olivo, 2009) destacam essa mudança de paradigma, começando com a formação acadêmica do profissional.

O levantamento feito a partir das reuniões de equipe observadas no Artigo 8 (Hori & Nascimento, 2014) também dá a dimensão da falta de preparo para integralidade na atenção básica. Como fatores que justificam esse despreparo, está a formação insuficiente para atuação na área pública dos profissionais ou falta de capacitações e suporte técnico efetivo para atuar nesse nível de atenção. "A presença de diversos profissionais de diferentes áreas foi insuficiente para qualificar as discussões; em alguns momentos, foi visível clima de constrangimento, desconfiança e distanciamento entre as equipes (Hori & Nascimento, 2014, p. 3566)", fragilizando o olhar ampliado para saúde, de forma a desmotivar os profissionais para práticas coletivas.

A integralidade na saúde corresponde à prática de voltar o fazer profissional para atender às necessidades subjetivas do coletivo, considerando a saúde um estado integral de bem-estar e qualidade de vida, conforme indicam Costa e Olivo (2009) no Artigo 2. "Eu acho que a gente deveria pensar numa saúde mental que pudesse incluir mais as pessoas na comunidade, no seu bem-estar familiar, e não uma coisa separada, excluída, que vem consultar, e é o que está sendo feito na realidade em saúde primária no PSF (psicóloga 4)" (Costa & Olivo, 2009, p. 1391). No Artigo 4, Jimenez (2011) chama a atenção para a importância de um cuidado integral, sem separar saúde mental de saúde.

Também é importante ressaltar a importância de uma compreensão ampla no processo de saúde, considerando o sofrimento um sintoma social, pois "as pessoas sofrem por mazelas que são produzidas socialmente [...] dilemas sociais chegam fantasiados de sofrimento psíquico e é por isso que é fundamental ter a dimensão do social no cuidado em saúde" (Cintra & Bernardo, 2017, p. 890); ou ainda, no Artigo 5, (Archanjo & Schraiber, 2012): "as demandas de saúde estão cada vez mais associadas a demandas sociais e [...] o psicólogo é o 'termômetro mais sensível da demanda social'" (p. 359).

Nas citações acima, percebe-se a necessidade de desconstrução da hegemonia do saber, para atuar de forma humanizada e contextualizada. Esse movimento de saúde coletiva é um fator complexo, que exige uma reformulação da formação dos profissionais, assim como um interesse pela humanização da equipe técnica na atenção básica.

Archanjo e Schraiber (2012), no Artigo 5, notam que o interesse pela atuação na saúde pública não estava relacionado a um posicionamento de interesse social, e sim à estabilidade profissional e financeira: "[...] acho que tem duas, duas coisas né, uma é salário garantido, né, porque o, o consultório dependia de ter clientes, de ter indicação, [...] tem acho que outra coisa que, um pouco, é, tem um [s/c] tradição" (p. 357).

Para obter efetividade no quesito saúde, é preciso sair do paradigma de atendimentos individualizados e com foco na cura de sintomas. Ampliar o entendimento sobre saúde de forma integral e investir na atuação pautada em saúde coletiva sem "distinção entre saúde e saúde mental [...] (E4)" (Parise & De Antoni, 2014. p. 78).

Pensando nessas mudanças de atuação e envolvimento com a saúde, Sundfeld (2010) coloca, no Artigo 3, que "a reforma da assistência pressupõe a reforma do pensamento de seus atores: profissionais e comunidade e, sobretudo, um sim às incertezas e inventividade do cotidiano" (p. 1094), além de entender essas mudanças em saúde pública, com foco em saúde coletiva, como "uma prática à espera de teoria" (Ferreira Neto, 2008, p. 112), diferenciando-se do modelo clínico, individualizado, considerando saúde mental como algo indissociável à saúde.

Outro apontamento importante nos artigos é a questão da medicalização como conduta de tratamento corriqueiro na UBS (Jimenez, 2011). "O foco das ações em saúde é centrado no uso exagerado de medicamentos [...] sem possibilitar um espaço de escuta para esse sofrimento como forma de evitar o desenfreado sistema de medicamentação" (Freire & Pichelli, 2013, p. 168).

Com a Reforma Psiquiátrica, deixa-se de ter um olhar para patologização, apostando no funcionamento adaptativo do sujeito por meio de serviços substitutivos que estimulem essa visão de saúde com olhar humanizado. "O objeto a ser abordado deixa de ser a doença, abarcando os fatores sociais, culturais, políticos e econômicos como determinantes do processo de adoecimento. Consequentemente, os meios de trabalho migram das práticas predominantemente medicamentosas para o sujeito como agente fundamental do tratamento" (Jimenez, 2011, p. 131).

 

Discussão

Com base na análise das fontes selecionadas, apresentada nos Resultados, percebe-se a necessidade de qualificar o processo de formação dos psicólogos que atuam na atenção básica, visando a intervenções coletivas e integradoras, principalmente no que se refere ao compromisso social desses profissionais diante de suas intervenções. O fato de o profissional da psicologia trabalhar com sujeitos que pensam, agem, transformam a cultura e a sociedade evidencia a complexidade e a diversidade de sua atuação. Assim, há o dever, enquanto profissionais de saúde, em assumir uma postura ética que preconize a responsabilidade social (Codo & Lane, 1989; Dimenstein, 2001).

Também foi possível perceber que o papel do psicólogo na saúde pública não está claro, nem para a legislação vigente nem para a classe profissional. Isso fragiliza a atuação desse profissional, desqualificando seu potencial principalmente no que se refere à atenção básica de saúde. Boing e Crepaldi (2010) apontam, em seu estudo documental, que as políticas públicas vigentes não incluem de forma clara e efetiva o psicólogo. Quando há o profissional psicólogo inserido na atenção básica, suas intervenções acabam em atendimentos individualizados, justificados pela resistência da equipe diante de outras propostas de intervenção (Dimenstein, 2000).

Essa transformação do modelo biomédico para uma perspectiva coletiva de se produzir saúde, principalmente na atenção básica, corresponde à principal premissa da saúde coletiva (Campos, 2013), apostando em uma prática horizontal e integrada. Na pesquisa realizada para este artigo, integralidade é um conceito-chave na construção de uma atenção básica plural e efetiva. Fica evidente que a fragmentação da saúde impede a ampliação do conhecimento ante o ser humano, desconsiderando os atravessamentos históricos e culturais desse saber (Codo & Lane, 1989; Dimenstein, 2000). Segundo Codo e Lane (1989), as fronteiras entre as áreas do conhecimento devem ser permeáveis, permitindo a integralidade e a intersetorialidade para uma compreensão qualificada da complexidade que são as interações do indivíduo com o social.

De acordo com o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2011), uma das dificuldades da atuação do psicólogo na atenção básica à saúde é a concepção de profissionais e gestores sobre o entendimento do processo saúde e doença. O conceito de saúde vai além da ausência de doença, trata-se de um bem-estar integral, considerando aspectos físicos, sociais e mentais (https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5263:opas--oms-apoia-governos-no-objetivo-de-fortalecer-e-promover-a-saude-mental-da-popula-cao&Itemid=839). Sendo assim, a atenção à saúde mental deve ser considerada uma prática de significância dentro dos núcleos de atenção básica, não sendo tratada como um aspecto paralelo à saúde. O profissional psicólogo necessita buscar e concretizar seu espaço neste âmbito primário, em virtude do seu conhecimento diante do desenvolvimento humano e social, além de compreender e viabilizar relações pessoais de qualidade e promover a saúde considerando a subjetividade e o ambiente como um todo.

A formação acadêmica é significativa nessa transformação do modelo biomédico e Dimenstein (2000) sugere ampliar a argumentação a respeito da formação do profissional na graduação com o uso de referências mais atualizadas. Aponta que a graduação não prepara para uma "intervenção adequada aos espaços territoriais, locais que demandam um alto grau de potência de resposta/ação, de articulação intersetorial, de mobilização de parcerias e de estratégias específicas" (Dimenstein, 2000, p. 62).

 

Conclusões

Entende-se que a adoção do paradigma da saúde coletiva na atenção à saúde é considerada como a possibilidade mais eficaz para que se torne efetivo o cuidado integral preconizado pelo SUS. Isto porque esse paradigma favorece o desenvolvimento saudável da população, ao incluir a saúde mental na atenção, bem como transforma a assistência por meio das ações humanizadas.

Evidenciou-se que o objetivo do psicólogo que atua na atenção básica de saúde é a proposição de intervenções coletivas e integradas na busca de uma comunidade mais autônoma e consciente, evitando uma assistência curativa em saúde fundamentada na medicalização. Com o profissional de psicologia inserido na atenção básica, também são afetados os modos de atuação dos servidores, ampliando o entendimento sobre saúde, diminuindo estigmas e mediando as relações com o usuário e entre as equipes.

Para se alcançar os objetivos mencionados, é necessária uma revisão das diretrizes que fundamentam as práticas do psicólogo na atenção básica. Tendo a noção do prolongado período para esse processo de reformulação da legislação, sugere-se que essa assistência seja desenvolvida nos Nasfs, que estão constituídos nas regulamentações do SUS, viabilizando o movimento em prol da saúde coletiva.

Com o psicólogo atuando nas equipes Nasf de forma direcionada ao apoio técnico no território, é possível, com uso de diálogos, capacitações e apoio ao profissional de saúde em intervenções complexas, dar suporte e promover ações em saúde coletiva, além de auxiliar na humanização do atendimento, com a promoção de uma escuta qualificada e criação de vínculo profissional, facilitando a adesão do usuário aos tratamentos.

Dessa forma, direciona-se para ações em saúde coletiva, trabalhando a partir da clínica ampliada, como preveem as normativas do SUS, de forma a gerar menos gastos com a saúde pública, levando em consideração a diminuição de medicalização e menores índices de adoecimento. Pode-se inferir, com isso, a ampliação dos recursos financeiros para práticas em saúde coletiva.

Outra possibilidade de promover maior assistência e organização do sistema são as parcerias entre instituições de ensino e rede pública, com estágios acadêmicos que possibilitem experiências em saúde coletiva, somadas ao apoio dos estagiários de diferentes áreas, integrando ensino e aprendizagem à formação - uma forma de promover compromisso social do profissional com práticas que permitam conhecer a diversidade e a realidade das demandas encontrada nos territórios.

 

Referências

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Vanessa Santos Lemos
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Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 23/10/2019
Aceite final: 21/01/2020

 

 

Vanessa Santos Lemos: Psicóloga. Docente no curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
E-mail: at.psi.zoi@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7078-6059
Cristina Lhullier: Doutora em Ciências na área de Psicologia. Professora da Graduação em Psicologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
E-mail: cris.lhullier@yahoo.com.br
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-5440-2916

^rND^sArchanjo^nA. M.^rND^sSchraiber^nL. B.^rND^sBernardes^nA. G.^rND^sGuareschi^nN. M. D. F.^rND^sBoing^nE.^rND^sCrepaldi^nM. A.^rND^sCampos^nG. W. D. S.^rND^sCampos^nG. W. S.^rND^sCintra^nM. S.^rND^sBernardo^nM. H.^rND^sCosta^nD. F. C. D.^rND^sOlivo^nV. M. F.^rND^sDimenstein^nM.^rND^sDimenstein^nM.^rND^sFreire^nF. M. S.^rND^sPichelli^nA. A. W. S.^rND^sGibbs^nG.^rND^sHori^nA. A.^rND^sNascimento^nA. D. F.^rND^sJimenez^nL.^rND^sKlein^nA. P.^rND^sOliveira^nA. F. P. L.^rND^sFerreira Neto^nJ. L.^rND^sParise^nL. F.^rND^sDe Antoni^nC.^rND^sSilva^nD. F.^rND^sSantana^nP. R.^rND^sSpink^nM. J.^rND^sMatta^nG. C.^rND^sSundfeld^nA. C.^rND^1AFF1^nDaniel Goulart^sRigotti^rND^1AFF2^nDaniele Pompei^sSacardo^rND^1AFF1^nDaniel Goulart^sRigotti^rND^1AFF2^nDaniele Pompei^sSacardo^rND^1AFF1^nDaniel Goulart^sRigotti^rND^1AFF2^nDaniele Pompei^sSacardo

10.20435/pssa.vi.1078 DOSSIÊ "PSICOLOGIA E SAÚDE COLETIVA"

 

Apoio matricial e produção de autonomia no trabalho em saúde

 

Matrix support and the production of autonomy in health work

 

Apoyo matricial y la producción de autonomía en el trabajo de salud

 

 

Daniel Goulart RigottiI; Daniele Pompei SacardoII

ICentro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta)
IIUniversidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Como diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS), o Apoio Matricial busca ampliar a capacidade analítica dos trabalhadores de saúde e sua corresponsabilização nas ações desenvolvidas nos serviços. Objetivou-se compreender sua influência para a autonomia dos apoiadores no trabalho em saúde, por suas percepções. Analisaram-se narrativas elaboradas a partir de grupos focais e os resultados mostraram o processo de trabalho dos apoiadores matriciais sustentado em três eixos: autonomia, fragmentação do trabalho/cuidado e processos de gestão, associados à proposta do SUS de produzir trabalhadores criativos e capazes de analisar seu contexto. Revelaram-se a ampliação de autonomia para desenvolver o trabalho cotidiano; o reconhecimento da contradição entre a integralidade e a fragmentação do trabalho e do cuidado; e o impacto das formas de gestão na produção desses sujeitos. Finalmente, apontamos para a necessidade de maiores investimentos institucionais no Apoio Matricial como política efetiva de ampliação de compromisso e autonomia dos trabalhadores e de processos de cogestão.

Palavras-chave: apoio matricial, processo de trabalho em saúde, autonomia profissional, integralidade em saúde


ABSTRACT

As a guideline of the Brazilian National Health Service (SUS), the Matrix Support seeks to expand the analytical capacity of health workers and their co-responsibility in the actions developed in the services. The objective was to understand its influence on the autonomy of supporters in health work by their perceptions. We analyzed narratives elaborated from focus groups, and the results showed the work process of the matrix supporters sustained in three axes: autonomy, fragmentation of work/care, and management processes, in association with SUS proposal to produce creative and capable workers to analyze its context. It was revealed the expansion of autonomy to develop daily work, the recognition of the contradiction between the comprehensiveness and fragmentation of work and care, and the impact of management forms on the production of these subjects. Finally, we point to the need for greater institutional investments in Matrix Support as an effective policy of increasing commitment and autonomy of workers and co-management processes.

Keywords: matrix support, health work process, professional autonomy, integrality in health


RESUMEN

Como directriz del Sistema Único de Salud (SUS), el Apoyo Matricial busca ampliar la capacidad analítica de los trabajadores de la salud y su corresponsabilización en las acciones desarrolladas en los servicios. Se objetivó comprender su influencia para autonomía de los apoyadores en el trabajo en la salud, por sus percepciones. Se analizaron narrativas elaboradas a partir de grupos focales, y los resultados mostraron el proceso del trabajo de los apoyadores matriciales sostenido en tres ejes: autonomía, fragmentación del trabajo/cuidado y procesos de gestión, asociados a la propuesta del SUS de producir trabajadores creativos y capaces de analizar su contexto. Se revelaron el aumento de autonomía para desarrollar el trabajo de rutina, el reconocimiento de la contradicción entre la integridad y la fragmentación del trabajo y del cuidado, y el impacto de las formas de gestión en la producción de esos sujetos. En último lugar, indicamos la necesidad de grandes inversiones institucionales en el Apoyo Matricial como política efectiva de aumento de compromiso y autonomía de los trabajadores y de procesos de cogestión.

Palabras clave: apoyo matricial, proceso de trabajo en la salud, autonomía profesional, integralidad en salud


 

 

Introdução

Desde sua implantação em 1989, o Sistema Único de Saúde (SUS) vem se institucionalizando por meio de diversas práticas, tanto na gestão quanto na assistência à saúde mais diretamente, entre as quais destacamos o Apoio Matricial, objeto deste estudo.

O Apoio Matricial foi implantado inicialmente como uma experimentação em diversas cidades cujos gestores apostaram nessa estratégia para o desenvolvimento da atenção em saúde, tais como Campinas e Paulínia, SP; Betim e Belo Horizonte, MG; Quixadá e Sobral, CE; Recife, PE; Aracaju, SE; e Rio de Janeiro, RJ (Campos, 1999; Castro, Oliveira & Campos, 2016). Posteriormente, foi incorporado como diretriz para a atenção à saúde pelo Ministério da Saúde, como forma de enfrentar o desafio de implantar ações em saúde que promovam cuidado dos sujeitos e coletivos de forma integral, em oposição à fragmentação ainda bastante presente no trabalho em saúde no SUS (Brasil, 2012).

Seguindo a proposta fundamental do Método da Roda, ou Paideia, desenvolvido por Campos (2015), que busca promover o encontro concreto entre diversos trabalhadores de saúde, como uma reunião, o Apoio Matricial constitui-se como uma ferramenta para análise de seu cotidiano de trabalho. Campos (2015) defende que, a partir da análise compartilhada de seu contexto, os trabalhadores de saúde consigam organizar-se para a construção de coletivos mais autônomos que enfrentem o modo dominante de gestão autoritária, produtivista e fragmentadora predominante nos serviços de saúde, produzindo-se, nesse processo, dialeticamente como sujeitos. Na perspectiva desse autor, tais coletivos se organizam como estratégias metodológicas, localizadas num tempo e lugar, para que as equipes interfiram concretamente nos sistemas produtivos, de forma a impor a cogestão dos processos de trabalho, diminuir ou eliminar o autoritarismo da gestão institucionalizada, garantir a participação dos usuários, trabalhadores e gestores envolvidos nos processos de produzir saúde, bem como distribuir igualmente o poder de decisão entre eles (Campos, 2015).

O Apoio Matricial é, portanto, ao mesmo tempo, um arranjo para gestão do trabalho e uma estratégia para compartilhamento de conhecimentos, conforme Campos (1992; 1999) e Campos e Domitti (2007). Consiste essencialmente em criar espaços potentes de diálogo entre distintos profissionais da saúde, os especialistas apoiadores matriciais e os da atenção básica, para, a partir do compartilhamento de um determinado núcleo de conhecimento, construir intervenções que ampliem a comunicação e o campo de atuação de todos os profissionais, intervindo na organização dos serviços e dos processos de trabalho em saúde (Campos & Domitti, 2007; Figueiredo & Onocko Campos, 2009; Gomes, 2006; Castro et al., 2016; Castro & Campos, 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017).

Dessa forma, espera-se que possa auxiliar no reconhecimento das diversas situações que chegam às equipes de saúde como demandas, possibilitando distinguir as que são individuais das coletivas; as que são do cotidiano da vida e que podem ser acolhidas pelas equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e por outros recursos sociais da comunidade daquelas que demandam atuação especializada em saúde. Aproximando-se as equipes de diferentes níveis de atenção, seria produzida uma permeabilidade em seus campos de atuação, favorecendo, assim, a corresponsabilização para novas ofertas de promoção de saúde (Castro & Campos, 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017).

O Apoio Matricial intervém diretamente no processo de trabalho em saúde, definido por Peduzzi e Schraiber (2008) como a prática cotidiana dos trabalhadores de saúde imersos na produção e no consumo de serviços de saúde, bem como a dinâmica que acontece entre o objeto, o instrumento e a atividade dessa prática. Além disso, tal trabalho tem como característica somente existir no momento de sua produção e em função dessa, isto é, nas práticas de cuidado constituídas na relação entre o agente trabalhador/produtor e o agente usuário/consumidor; nas palavras de Merhy (2013), é o "trabalho vivo, em ato", em que a essência do trabalho em saúde é a própria ação. Nesse sentido, o trabalhador de saúde é, ao mesmo tempo, instrumento, recurso e sujeito na ação de trabalhar, pois também insere nesse processo, na medida do possível, seus próprios projetos, pessoais e coletivos, ao que já estava previsto como projeto e finalidade do trabalho em saúde (Peduzzi & Schraiber, 2008).

Podemos compreender, então, que essa atividade implica necessariamente dimensões objetivas e subjetivas para sua realização. Entre as objetivas, temos a própria ação de trabalhar materializada nas diversas formas de cuidado. Já as subjetivas implicam dimensões nem sempre conscientes para os trabalhadores. Para González Rey (2012), a subjetividade é um fenômeno singular e particular de cada sujeito na sua relação com o mundo objetivo e suas próprias percepções desse mundo, que não se separa da realidade objetiva, mas dá sentido a ela, num movimento dialético, e, portanto, contribui para determinar a produção de ações e novas percepções dos sujeitos acerca da sua realidade e de como a vivenciam. Ou seja, é um processo ativo, mais que uma instância ou um lugar mental.

Dessa forma, o trabalho em saúde pode ser compreendido também como um processo que produz, ao mesmo tempo, sujeitos em parte autônomos e em parte alienados. Campos (2015) defende a ideia de que a alienação presente nos processos de trabalho em saúde no SUS está relacionada a formas de gestão tayloristas, influenciadas pelas ideias de F. W Taylor (1990), criador de um método de organização do trabalho designado por ele como científico, que transferia dos trabalhadores para os gerentes da empresa o conhecimento de todas as etapas da produção, fragmentando o trabalho em nome de maior produtividade. No caso da saúde, a gestão dos serviços de saúde caracteriza-se por uma racionalidade gerencial hegemônica, fundamentada no taylorismo, portanto com uma verticalização do poder dos gestores (Campos, 2015; Vargas & Macerata, 2018). Isso impediria aos trabalhadores o exercício da cogestão e a apropriação de seu trabalho e, consequentemente, de dar algum sentido a esse como sendo de sua própria produção. Essa atribuição de sentido se daria pelo reconhecimento de si mesmo naquilo que produziu e a satisfação decorrente do próprio ato de produzir, o que poderia ser tanto em nível individual quanto coletivo, produzindo nesse processo maior autonomia, por se perceber ativo e criativo em sua produção. Essa ideia aproxima-se de Dejours (1992), quando este define que o não reconhecimento de seu trabalho como uma obra gera sofrimento nos trabalhadores. Sousa e Batista dos Santos (2017), ao estudarem esse tema em Dejours, também apontam para a impossibilidade de se encontrar sentido no trabalho pela organização desse na realidade atual, fazendo com que os trabalhadores não se reconheçam na direção de seu próprio trabalho, atendendo somente às demandas.

Reafirma-se, então, que, como qualquer outro, o trabalho em saúde é fundamental para a construção de identidades e subjetividades dos trabalhadores, na medida em que, conforme Navarro e Padilha (2007), constitui-se como "fonte de identificação e de autoestima, de desenvolvimento das potencialidades humanas, de alcançar sentimento de participação nos objetivos da sociedade" (p. 14).

Nesse sentido, o modo de produção e a organização do trabalho também interferem e são determinantes no processo de subjetivação dos trabalhadores, na medida em que, para sobreviver psiquicamente e como sujeito, esses têm de se adaptar às imposições típicas do modo de produção capitalista e da organização taylorista do trabalho impregnados nos processos de trabalho em saúde e evidenciados pela ênfase na produtividade, pela fragmentação, pela gestão autoritária e pela dissociação entre o fazer e o sentido desse fazer (Campos, 2015; Dejours, 1992; Sousa & Batista dos Santos, 2017). Assumindo-se que esses elementos (modos de produção, organizações do trabalho, sujeitos e subjetividades) são produzidos histórica e ideologicamente, da mesma forma o são as necessidades em saúde que devem ser atendidas pelo trabalho em saúde, as quais, em nossa sociedade capitalista, são transformadas em mercadorias, e o valor de uso do trabalho em saúde é convertido em valor de troca, perdendo-se a relação de sentido entre o trabalho e sua utilidade, que passa a ter seu valor definido a partir da lógica de mercado, fragmentando o processo de cuidar em saúde e aprofundando a alienação no modelo privatista de saúde (Campos, 2015; Peduzzi & Schraiber, 2008).

Dessa forma, defende-se aqui que é preciso opor-se a essa situação, considerando que devem ser constituídos processos de trabalho que ampliem a autonomia dos sujeitos envolvidos na produção de bens e serviços de saúde, trabalhadores, gestores e usuários, como um dos objetivos centrais do sistema de saúde (Onocko Campos & Campos, 2012). Para Campos (2015), uma forma seria a valorização e o fortalecimento de processos que produzam participação e corresponsabilização, em cogestão.

Portanto, o objetivo do presente artigo é compreender se a realização do Apoio Matricial tem produzido maior autonomia nos apoiadores matriciais em Campinas, SP, cenário da pesquisa realizada, e se contribui para ampliar a cogestão do processo de trabalho e, consequentemente, maior corresponsabilização pelo cuidado em saúde.

 

Método

Este estudo é decorrente de uma pesquisa de mestrado profissional, desenvolvida no Departamento de Saúde Coletiva/FCM/Unicamp, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, pelo parecer n. 1.016.685.

Foram participantes deste estudo 53 trabalhadores da rede pública de saúde de Campinas, SP, matriculados no Curso de Especialização em Apoio Matricial do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp, entre maio de 2014 e outubro de 2015. A maior parte desses traba-lhadores-alunos já atuava como apoiadores matriciais na época da realização da pesquisa e foram convidados no início do referido curso de especialização a participarem de um grupo focal cujo objetivo era conhecer as percepções dos alunos acerca de temas previamente delineados num roteiro, incluindo questões sobre o Apoio Matricial. Tal escolha do momento foi intencional para evitar possíveis interferências pela apresentação dos conteúdos e conceitos ao longo do curso. A técnica dos grupos focais, conforme Minayo (2014), busca o entendimento de diferentes percepções e atitudes que se revelem durante a discussão do grupo sobre o tema em questão.

Ressalta-se que este estudo era parte de uma pesquisa mais ampla, "Avaliação do Método de Apoio Paideia como Estratégia de Educação Permanente para Profissionais do SUS", sob responsabilidade do Coletivo de Estudos e Apoio Paideia (Departamento de Saúde Coletiva/FCM/Unicamp), e os grupos focais discutiram o tema Apoio Matricial a partir de um roteiro que buscava atender a mais pesquisas em andamento, além da que originou este artigo. Devido à quantidade de participantes, foram organizados três grupos focais, com cerca de 17 pessoas por grupo, e as sessões foram gravadas e transcritas na íntegra. De todo o material obtido pelos grupos focais nas transcrições, foram selecionados para análise apenas os trechos que respondiam aos objetivos do presente estudo.

Para a análise dos dados, foram seguidas rigorosamente quatro etapas, nesta sequência: 1) leitura das transcrições, em que se fez uma primeira separação de trechos dos discursos individuais nos grupos focais e sua organização por núcleos argumentativos; 2) a partir destes, identificaram-se ideias-chave, separando-as e as reagrupando por eixos temáticos que se desvelaram nesse processo, sendo selecionados três para este artigo: Autonomia, Fragmentação do Trabalho e do Cuidado e a Relação com Processos de Gestão; 3) construíram-se então narrativas distintas para cada eixo temático, na terceira pessoa do plural, de acordo com Onocko Campos e Furtado (2008), procurando contemplar ao máximo a variedade e complexidade de opiniões e compreensões que surgiram nos grupos focais, mesmo quando eram contraditórias; e 4) interpretação dos resultados à luz do referencial teórico e do cotejamento com a revisão bibliográfica realizada, em que as narrativas e as discussões conseguintes procuraram dialogar com as histórias vividas no cotidiano pelos participantes.

Foram observados todos os aspectos éticos envolvidos na pesquisa com seres humanos, conforme o proposto pela Resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.

 

Resultados e Discussão

Os resultados apresentados aqui mostraram que a produção do processo de trabalho dos apoiadores matriciais em Campinas sustenta-se em três importantes dimensões constituintes do fazer, tomadas aqui como categorias de análise: a autonomia; a fragmentação do trabalho e do cuidado; e a relação com processos de gestão. Tais dimensões ou categorias associam-se e fundamentam a proposta de construção de processos de trabalho do SUS que façam emergir os sujeitos trabalhadores em sua potência criativa e com capacidade de análise de sua realidade de trabalho, em que pesem a ampliação de sua autonomia para o desenvolvimento do seu trabalho cotidiano; o reconhecimento da contradição entre a integralidade e a fragmentação do trabalho e do cuidado; e o impacto percebido das diversas formas de gestão sobre a emergência desse sujeito trabalhador.

Autonomia

Em relação à produção de autonomia, observamos o que Onocko Campos e Campos (2012) afirmam como coprodução e ampliação da autonomia pelas relações entre os sujeitos, na medida em que, nas narrativas, suas características pessoais, somadas a fatores externos de sua realidade, deixam marcas no Apoio Matricial desenvolvido, sendo possível reconhecê-los no trabalho realizado.

Visto que a constituição do sujeito e do mundo sempre dependerá da relação dialética entre o sujeito e as condições objetivas, sociais e históricas, as ações do matriciamento foram identificadas com a apreensão e transformação da realidade, tal como descrito por Campos (2000) e Onocko Campos e Campos (2012).

Na narrativa a seguir, percebe-se a liberdade para experimentar formas de realizar o Apoio Matricial, construindo-o de acordo com as realidades e necessidades encontradas nos territórios das unidades:

O jeito como começamos a fazer o Apoio Matricial em Campinas não tinha um método a priori, e aprendemos fazendo, de acordo com o entendimento de cada um, e reconhecendo que cada território tinha características distintas e demandas específicas.

Dessa forma, os apoiadores matriciais perceberam a possibilidade para criar seu trabalho ao mesmo tempo em que se o fazia, construindo e se apropriando de uma metodologia que não estava colocada, inicialmente, num processo dialético, em que as possibilidades são produzidas a partir da ação, cujos sentidos são atribuídos a cada momento, como resultado da ação e da percepção de cada trabalhador.

Não há definição de formas preestabelecidas de se realizar o Apoio Matricial, mas encontra-se nos próprios guias institucionais a constituição de um espaço dialógico entre equipes e profissionais, como uma "proposta de intervenção pedagógico-terapêutica" (Chiaverini et al., 2011, p. 13), numa expectativa de o Apoio Matricial se compor por ações criativas e transversais, decisões compartilhadas, e com potencial de provocar mudanças nos envolvidos (Brasil, 2007; Brasil, 2004; Chiaverini et al., 2011). Nesse sentido, para Bispo Júnior e Moreira (2017), o Apoio Matricial atuaria também na lógica da educação permanente em saúde, como estratégia para suprir a precariedade da formação acadêmica dos profissionais em saúde no Brasil para, entre outros temas, a corresponsabilização e o trabalho em equipe.

Ao propor o Apoio Matricial, Campos (1999) esperava que este pudesse ser utilizado pelos trabalhadores da forma o mais livre possível, e que se buscasse reunir nas ações desenvolvidas tanto o que fosse necessário ser feito quanto os elementos de interesse pessoal dos trabalhadores, como forma de ampliação da autonomia dos profissionais, promovendo e produzindo sujeitos livres e responsáveis, corresponsáveis pela assistência e pela gestão e organização do trabalho. Entretanto, naquele momento, ele sugeriu algumas ações para a produção do cuidado, tais como atividades grupais, atividades físicas, até mesmo artísticas, não em caráter de definição de um modo de fazer, mas sim como possibilidades para os profissionais (Campos, 1999). A isso, Cunha e Campos (2011) chamaram de "cardápio de atividades" (p. 964), sugerindo a ideia de se poder escolher, entre as várias opções, a que mais convier no momento.

Assim, permitir-se vivenciar o não saber e as incertezas do como fazer o Apoio Matricial parece ter produzido nos apoiadores transformações subjetivas, como o saber produzido pela experiência transformadora de que nos fala Bondía (2002), na qual os acontecimentos afetam os sujeitos, transformam-se neles de forma singular e particular e os transformam em novos sujeitos. A partir da expressão "aprendemos fazendo", relatada pelos apoiadores, relacionamos essa experiência com o que Campos, Cunha e Figueiredo (2013) definem como o objetivo da função apoio, ou seja, a produção de sujeitos livres, e com o processo de subjetivação de acordo com González Rey (2012), em que o sentido da realidade se produz pela relação com ela.

Outro trecho das narrativas também esclarece esse modo de se produzir criativamente e coletivamente o trabalho em saúde pelo Apoio Matricial e como tal ação é percebida como transformadora do olhar e da potência dos trabalhadores para maiores graus de autonomia, como preconizado por Campos (2015):

Quando nos encontramos com as equipes para o matriciamento, nossas percepções sobre os problemas também são afetadas no contato com as outras formas de ver e compreender os mesmos problemas ou situações dos outros profissionais. Assim, temos percebido que é possível ampliar as possibilidades para o enfrentamento desses problemas, no cotidiano. Para nós, o matriciamento é construir junto conhecimento e soluções para os problemas, é ensinar e aprender. Diferente das capacitações relativas a temas específicos, o apoio matricial é percebido por nós como mais interessante porque nos permite maior liberdade para compor o trabalho.

Essa seria uma premissa do próprio trabalho em saúde, que deveria sempre constituirse como um processo que permita a novidade, a criação, "encaminhando o trabalho para a produção de vida, de cuidados e cidadania, pois é no dia a dia que os trabalhadores e suas práticas são vivenciadas e reproduzidas" (Camuri & Dimenstein, 2010, p. 811).

Em consonância com essa liberdade para criar, percebida mais individualmente, os encontros dos matriciadores com as equipes, seja nas reuniões instituídas ou não, aparecem nas narrativas como espaços potentes para a transformação da relação dos trabalhadores com suas práticas, como observa-se nos trechos a seguir:

As reuniões das equipes são percebidas por nós como o momento por excelência do matriciamento, como encontro entre nós e os profissionais matriciados, e vemos que é uma característica do modo de fazer matriciamento em Campinas.

(...) e reconhecendo que cada território tinha características distintas e demandas específicas. O que fizemos, então, foi discutir os casos com as equipes de cada local para pensar quais ações eram mais adequadas para cada território e para os seus usuários. Além disso, entendíamos que precisávamos fazer uma ponte entre as equipes e as especialidades.

Alguns de nós percebemos que é mais fácil construir ações quando compartilhamos os problemas e pensamos juntos as saídas com a equipe. Isso é possível quando participamos frequentemente do cotidiano dessa equipe.

As reuniões foram percebidas como espaços de compreensão ampliada dos casos discutidos e construção coletiva de soluções para esses problemas, permitindo a todos a apropriação do fazer o cuidado em saúde, valorizando e integrando os diversos núcleos de saber. Tornaram-se os espaços coletivos estratégicos para a cogestão, com tempo e lugar definidos, dos quais Campos (2015) nos fala.

Para os apoiadores matriciais, tanto a sua compreensão dos significados do Apoio Matricial quanto a forma como o executam são pautadas pelo princípio do fazer coletivo, em relações nas quais todos os sujeitos envolvidos se permitem afetar uns pelos outros, reconhecendo em si e no outro seus conhecimentos e suas práticas com limites e potências singulares, reconfigurando-se para ambos as visões sobre os problemas e ampliando os olhares sobre as soluções possíveis. Produzem-se então, nesse encontro, subjetividades, pois, segundo González Rey (2012) e Campos (2015), a constituição do sujeito se dá na relação permanente entre dois planos, o interno e o externo ao indivíduo, que se interferem e se recriam continuamente.

Dessa forma, nos resultados que obtivemos, o matriciamento parece alcançar o objetivo esperado por Campos (1999; 2015) de ser uma ferramenta potente para ampliar a autonomia dos profissionais como sujeitos livres e responsáveis, na medida em que puderam assumir corresponsabilidade pela assistência prestada e pela gestão e organização do trabalho.

As narrativas evidenciam a essência do matriciamento como a criação desses espaços de diálogo entre distintos profissionais, a partir do compartilhamento de um determinado núcleo de conhecimento, para construir intervenções que ampliem a comunicação e o campo de atuação de todos os profissionais (Campos & Domitti, 2007; Figueiredo & Onocko Campos, 2009, Castro & Campos, 2016).

Nesse sentido, o matriciamento preconiza a promoção da interlocução entre os profissionais para atender a dois objetivos: a) organizar os serviços e processos de trabalho, como uma estratégia para possibilitar que as diversas situações que chegam às equipes sejam percebidas em suas diferenças e nas diferentes necessidades que demandam; e b) tornar as especialidades mais próximas das equipes da atenção básica, permeando seu campo de atuação e favorecendo a corresponsabilização por essas demandas (Gomes, 2006).

Os encontros referidos pelos apoiadores matriciais possibilitam a descoberta de potenciais da própria equipe da atenção básica para resolver problemas, como vemos no seguinte trecho:

Temos visto que as discussões de caso no matriciamento geralmente produzem soluções a partir das condições da própria equipe matriciada, nem sempre envolvendo uma ação direta nossa, e reconhecemos a potência do PSF [Programa de Saúde da Família] para lidar com os problemas.

Evidencia-se aqui a função de compartilhamento de saber do Apoio Matricial, para que outros profissionais das equipes possam incorporar em suas ações de campo esses saberes, produzindo intervenções (Campos, 2000; Campos & Domitti, 2007). Quando os sujeitos estão implicados com o processo de cogestão, da sua interação surgirão propostas de ações para resolver os problemas, ofertadas tanto pelos apoiadores quanto pelos outros trabalhadores, que não devem perder seu caráter reflexivo, isto é, de voltar seu pensamento também para esse processo de cogestão, analisando sistematicamente sua sustentabilidade e os resultados (Campos et al., 2013).

Para que se efetive a possibilidade de cogestão, é preciso que se constitua uma grupalida-de nos coletivos, como intenção do apoiador matricial, promovendo a criação de possibilidades para que os membros do grupo se identifiquem entre si e com o próprio grupo, tendo como eixo um objetivo ou projeto em comum. Ou seja, esses espaços coletivos produzidos pelos encontros no Apoio Matricial revelam sua característica de transicionalidade, operando como intermediários, mediadores entre o mundo interno daqueles coletivos (reuniões) e o mundo externo (problemas de saúde), tornando possível a experimentação de outras formas de fazer e onde se analisa o resultado para obter mais aprendizado (Campos et al., 2013).

Fragmentação do Trabalho e do Cuidado

A fragmentação do trabalho se revelou nas dificuldades existentes para o cuidado compartilhado e para o diálogo nas equipes matriciadas ou dentro das próprias equipes, apontadas nas narrativas, que vêm ao encontro do que é observado em diversos estudos (Campos, 1999; Gomes, 2006; Cunha & Campos, 2011; Campos et al., 2013; Castro e Campos, 2016; Castro et al., 2016; Bispo Júnior & Moreira, 2017; Vargas & Macerata, 2018). Esses afirmam que, atualmente, uma das características marcantes do trabalho em saúde é sua fragmentação, evidenciada por processos de trabalho reducionistas e restritivos, calcados no modelo biomédico e sustentados pela concepção de processo saúde-doença que nega sua produção histórica e social.

Tal concepção a-histórica embasa a formação profissional, percebida como dicotomizante e como produtora e reprodutora de cuidado fragmentado (Bispo Júnior & Moreira, 2017). Encontramos ressonância dessa percepção na afirmação de Cunha e Campos (2011) de que a própria formação dos profissionais de saúde incentiva a disputa entre as profissões, negando sua complementaridade, e investe para que cada núcleo de saber seja considerado "senão suficiente na intervenção terapêutica, pelo menos protagonista" (p. 967).

Há, porém, nas narrativas, uma aposta de que o matriciamento possa desvelar essa contradição e auxiliar a superá-la, na percepção de que as reuniões e os encontros de matriciamento têm sido fundamentais para a ampliação do olhar clínico, resultando em diminuição da fragmentação do cuidado. Essa expectativa está em acordo com a proposta da política, pois, em relação à assistência, o Apoio Matricial pretende enfrentar o desafio de implantar ações em saúde que promovam cuidado dos sujeitos e coletivos de forma integral, em oposição à fragmentação (Brasil, 2012).

Nota-se uma grande fragilidade para a sustentação dos princípios inovadores para o cuidado propostos pela prática do matriciamento, e mesmo os defendidos pelo próprio SUS. Ao se depararem com as diferenças de concepção acerca do cuidado, os apoiadores matriciais retornavam aos seus núcleos de saber como um movimento defensivo e que lhes garantia maior segurança quanto ao que fazer. As narrativas a seguir ilustram esse movimento:

Vemos que ainda há encaminhamentos externos que são diflceis de serem tratados em rede, de forma integrada, quando envolvem outras políticas, mas o que é do nosso núcleo é mais fácil de resolver. No nosso cotidiano, vemos que ainda está presente a concepção de saúde-doença como elementos separados.

Há entre nós uma percepção de que o olhar da maioria dos profissionais, inclusive o nosso, para as pessoas, é segmentado, e não conseguimos enxergar o sujeito em sua integralidade. Acreditamos que isso justificaria a dificuldade no compartilhamento do cuidado. Sabemos que a compreensão de saúde-doença considerando a integralidade e a subjetividade ainda é um desafio e que pode ter relação com a formação dos profissionais de saúde, que é insuficiente para resolver os problemas.

Podemos notar aqui algumas contradições, como um retorno à prática fragmentada de produzir o cuidado, indo no sentido oposto à diretriz da integralidade, e a forte influência do modelo biomédico presente nas práticas e nos saberes dos profissionais. É contraditório na medida em que os movimentos se direcionam para o rompimento dos modelos fragmentadores, mas essencialmente esses ainda formam a base de sustentação das práticas de cuidado, desconsiderando o processo de coprodução.

É evidente que estamos falando aqui de um campo de disputa entre modelos de atenção, mas que carregam em si elementos ideológicos, sendo, em última análise, uma disputa por poder, no sentido de domínio do saber sobre a compreensão do processo saúde-doença. Campos (2015) nos alerta para o fato de que os modelos teóricos ganham certa autonomia em relação aos grupos, que passam a aderir a eles sem o devido distanciamento crítico, tomando-os como verdades fundamentais. Entretanto, neste caso, observamos que falar sobre isso já é um movimento para o restabelecimento da crítica por parte dos profissionais sobre seu próprio trabalho e para o reconhecimento de que a adesão ao modelo biomédico também é problematizada por vários trabalhadores no seu cotidiano.

Relação com Processos de Gestão

Campos (2015) afirma que a falta de interesse em participar dos processos de gestão de seu trabalho revela o êxito da função alienante da gestão sustentada em moldes tayloristas. De acordo com Matos (1994), a fragmentação do sujeito e do cuidado pode ser percebida como um dos elementos do trabalho em saúde que contribuem para processos de alienação dos trabalhadores, visto que seu fazer cotidiano, seu ofício e seu investimento profissional passam a ser realizados de modo técnico e frequentemente desprovido de significado social.

Para Onocko Campos (2007), essas posturas individuais são resultado da internalização e reprodução de processos alienantes diante do novo, e seria uma função de gestão, aqui referida como a gerência dos serviços de saúde, direcionar a organização do trabalho para a produção de maior autonomia e criatividade, diminuindo a alienação.

Outro aspecto importante das formas de gestão para o Apoio Matricial é como este é reconhecido como ação de saúde nos serviços de saúde, como nas narrativas a seguir:

Por isso, achamos que é preciso que o coordenador compreenda que o Apoio Matricial também é trabalho. Isso dá um incentivo.

Parece que muitos deles só veem como trabalho os atendimentos e, se você não está atendendo porque foi matriciar, parece que não está trabalhando.

De acordo com Campos (1999) e Campos et al. (2013), a forma de organização dos serviços de saúde em que o trabalho multiprofissional e a construção de relações transdisciplinares são dificultados e quase impedidos de acontecer também produz a fragmentação. Isto é, além de uma dimensão de assistência, há uma dimensão da gestão influenciando no Apoio Matricial, no sentido de um processo subjetivo e dinâmico que possa produzir condições para acontecimentos e/ou ações (Onocko Campos & Campos, 2012).

Some-se a isso o fato de que, no município de Campinas, o Apoio Matricial não é diretriz municipal desde 2005, não havendo mais investimentos reais para que tal ação se realizasse (Castro & Campos, 2016). A despeito disso, de acordo com esses autores e com os resultados obtidos pela pesquisa que originou este artigo, o Apoio Matricial vem acontecendo por iniciativa dos próprios trabalhadores e de parte dos gestores, visto sua penetração no processo de trabalho desde sua implantação no município. Nas palavras de Castro & Campos (2016, p. 1626), "percebe-se que o Apoio Matricial manteve-se incorporado ao discurso e às práticas de diversos profissionais da atenção básica e especializada".

Nas narrativas, a agenda aparece como um instrumento de gestão utilizado ora para facilitar o acontecimento do Apoio Matricial, ora como um impeditivo, a depender do olhar do gestor local para essa ação no cotidiano do serviço de saúde. Entretanto, os participantes deste estudo afirmaram que assumem, na maior parte das vezes, a gestão de sua própria agenda, como ilustrado por este trecho de uma narrativa:

Percebemos o Apoio Matricial, hoje em dia, como dependente de nossas disponibilidades individuais para acontecer, principalmente no que diz respeito a reservar horários em nossas agendas para realizar o apoio junto às equipes que matriciamos. Se nós não insistirmos e não administrarmos nós mesmos nossas agendas, elas serão tomadas pelos atendimentos em nossas especialidades.

Essa autonomia, destacada também em outros estudos (Castro & Campos, 2016; Castro et al., 2016), contudo, tem um limite, e, na medida em que o Apoio Matricial pode ser contemplado nas agendas dos profissionais, podemos reconhecer nas narrativas a função necessária de suporte da ação de gestão para a constituição de relações intersubjetivas que permitam experimentar as diferenças de forma construtiva (Onocko Campos, 2007).

 

Considerações Finais

Neste artigo, buscou-se responder se o Apoio Matricial influencia na produção de maior grau de autonomia dos trabalhadores apoiadores matriciais e se amplia a cogestão dos processos de trabalho, gerando maior corresponsabilização pelo cuidado em saúde.

Os resultados obtidos apontaram para o que vem se consolidando na literatura científica sobre o tema, de forma a corroborar achados de outros estudos, e reafirmam o Apoio Matricial como produtor de novos trabalhadores-sujeitos e novas realidades para o processo de trabalho em saúde, afastando-se do modelo taylorista, fragmentador do trabalho e de seu produto, o cuidado em saúde.

Observamos que os resultados indicaram o Apoio Matricial como importante ferramenta para a produção de maiores graus de autonomia nos processos de trabalho em saúde, descritos como a liberdade para criar o modo de fazer o próprio trabalho, incorporação do sentido de seu trabalho e de seus resultados e maior implicação com as diretrizes que norteiam o SUS, bem como com a produção de saúde.

A autonomia dos trabalhadores também se evidenciou em processos de cogestão no cotidiano do trabalho entre apoiadores matriciais e profissionais das UBS, concretizados nos encontros organizados entre os profissionais, percebidos como bastante potentes para construir novas possibilidades de ações de saúde e de afirmação do protagonismo dos trabalhadores na organização do próprio trabalho, com ampliação de corresponsabilidade.

Entretanto, mesmo que as narrativas tenham revelado a potência do Apoio Matricial para a desconstrução do trabalho fragmentado, a fragmentação do trabalho em saúde ainda predomina nas práticas dos profissionais, fundamentadas pelo modelo biomédico e por processos de gestão produtivistas e autoritários, que tendem a impedir a autonomia e criatividade dos trabalhadores, bem como sua constituição como sujeitos. A disputa por modos de gestão democráticos tem sido o cotidiano dos apoiadores matriciais em Campinas, conforme os resultados deste estudo, contrapondo-se à forma como a municipalidade tem conduzido a gestão do Apoio Matricial, não mais reconhecido como diretriz institucional. Esse campo de disputa demonstra a expectativa dos apoiadores matriciais por uma melhor articulação entre si e os serviços, constituindo uma rede de verdade, e evidencia o campo dinâmico de forças que se constitui como o terreno por excelência do fazer o Apoio Matricial.

Como limites deste estudo, trata-se de um estudo qualitativo de uma realidade específica, o município de Campinas, em um determinado momento histórico, não sendo possível realizar generalizações, mas sim compreendê-lo no contexto delimitado desta pesquisa. Entretanto, espera-se que esses resultados possam contribuir para o fortalecimento das políticas orientadas para a construção de práticas em saúde no SUS que sejam democráticas e geradoras de sujeitos com maior autonomia, apontando para a necessidade de maiores investimentos institucionais no Apoio Matricial como política efetiva de ampliação de compromisso, autonomia dos trabalhadores e de processos de cogestão.

 

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Endereço de contato:
Daniel Goulart Rigotti
Rua Clóvis Bevilacqua, 185, sala 7
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Recebido em: 30/07/2019
Última revisão: 20/02/2020
Aceite final: 08/05/2020

 

 

Daniel Goulart Rigotti: Mestre em Saúde Coletiva: Políticas e Gestão em Saúde. Professor da Graduação em Psicologia do Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta).
E-mail: dgrigotti@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8757-6931
Daniele Pompei Sacardo: Doutora em Saúde Pública. Professora do Programa de Mestrado Profissional Saúde Coletiva, Política e Gestão em Saúde.
E-mail: danielesacardo@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-2688-1905

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