Introdução
Saúde se trata de um direito social inerente à condição de cidadania e deve ser assegurada sem distinção de raça, religião, ideologia política ou condição socioeconômica; por isso, é tida como um valor coletivo e direito de todos. Na atualidade, o conceito de saúde que vigora é o da World Health Organization (WHO, 2020, para. 2), entendendo-a como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”; logo, deve ser vista para além da ausência de doença, sendo relacionada à qualidade de vida, condições que envolvem moradia, educação, alimentação, situação familiar, emprego, ambiente de trabalho, entre outros fatores.
Canguilhem (2009) caracterizou saúde como possibilidade de ultrapassar a norma que define o normal momentâneo, tolerar alterações à norma habitual e instituir normas novas em situações novas. Nas palavras do autor: “A saúde é um conjunto de seguranças e seguros, seguranças no presente e seguros para prevenir o futuro. Assim, como há um seguro psicológico que não representa presunção, há um seguro biológico que não representa excesso, e que é saúde” (p. 78). Nessa direção, entende-se saúde mental (bem-estar mental) como um item essencial à concepção de saúde em sua amplitude (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019).
De acordo com a WHO (2003), a conceituação de saúde mental inclui bem-estar subjetivo, autoeficácia percebida, autonomia, competência, intergeracionalidade e capacidade de realizar-se intelectual e emocionalmente. Além disso, saúde mental é descrita como um estado no qual os indivíduos reconhecem suas habilidades, são capazes de lidar com as tensões da vida e realizarem contribuições para suas comunidades. Portanto, diz respeito ao nível de qualidade de vida cognitiva e emocional de um indivíduo, incluindo sua capacidade de apreciar a vida e procurar alcançar resiliência psicológica, implementando recursos que tenham como resultados menor esforço e melhores condições de saúde (Bleger, 1984). A ênfase na saúde mental desloca-se da doença à saúde e à observação de como os seres humanos vivem em seu cotidiano (Kantorski et al., 2021). Neste sentido, o trabalho deve ser observado como uma das dimensões principais quando pensado em saúde mental, considerando o tempo que as pessoas permanecem em suas funções e a repercussão destas para além do ambiente de trabalho, ou seja, a influência que exercem nas relações afetivas e interpessoais.
De acordo com Traverso-Yépez (2004), o trabalho se constitui um espaço essencial de relações interpessoais, promovendo realização pessoal, desenvolvimento dos conhecimentos e das capacidades, e um espaço de socialização e definição de identidades. Contudo, o trabalho é tanto fonte de prazer como de sofrimento, constituindo-se como vivências que implicam em contradição, mas não são excludentes. Tal contraposição “é guiada por um movimento de luta do trabalhador para busca constante de prazer e evitação do sofrimento, com a finalidade de manter o seu equilíbrio psíquico” (Mendes & Morrone, 2003, p. 27). Embora o sofrimento seja parte inerente da condição existencial, é importante ser evitado, combatido e ressignificado.
Nas discussões da psicodinâmica do trabalho, tem-se considerado o prazer/sofrimento um construto único, cujas partes são estudadas inseparadamente, tido como um recurso natural utilizado por trabalhadores em busca da manutenção da saúde, procurando alternativas de evitar sofrimento e buscar prazer (Oliveira et al., 2021). Assim, o trabalho é proveniente da dinâmica interna das situações e da organização do trabalho, ou seja, é produto dessa dinâmica, das relações subjetivas, condutas e ações dos trabalhadores, relações de poder e questões de responsabilidade (Dejours, 1987).
Ressalta-se que a organização do trabalho é caracterizada pela mobilidade e mutabilidade; e o funcionamento psíquico, pelos mecanismos de mobilização subjetiva, tendo o trabalhador um papel ativo diante das imposições e da possibilidade de transformar concretamente as situações de trabalho para que estas possam trazer benefícios à saúde mental (Mendes, 1995). Diante disso, a impossibilidade de reinventar o trabalho a partir da criatividade, cargas excessivas de trabalho e a dificuldade de trabalhar com aquilo que está posto, seja por questões materiais, psicológicas ou de relacionamentos, podem trazer prejuízos à saúde mental do trabalhador.
Diante do exposto, esta pesquisa enfatizou a categoria de residentes - profissionais de saúde que administram a dupla função: profissional e estudante - que lidam com elementos contraditórios na relação cuidador-cuidado, podendo ter efeitos nocivos sobre a sua saúde. Ao passo que o cuidado exige uma expressão de afeto adequada para lidar com os aspectos da dor e dependência do paciente, ele é também influenciado por fatores como salário, possibilidade de morte do paciente e necessidade permanente de colocar-se como profissional diante da equipe e do paciente, evitando influenciar-se por seus afetos e sentimentos, o que pode acarretar sobrecarga emocional (Bertoletti & Cabral, 2007).
Insta destacar que o programa da residência em saúde foi apresentado como estratégia de reorientação da Atenção Básica para a implantação e reorganização dos serviços públicos embasados pelos princípios e pelas diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) (Rosa & Lopes, 2010). As residências que atuam de forma multiprofissional são iniciativas do Ministério da Saúde (MS) e do Ministério da Educação e Cultura (MEC), criadas a partir da promulgação da Lei nº 11.129, de 2005 (Secretaria Nacional de Juventude, 2005). Estabeleceu-se que a residência multiprofissional em saúde deve constituir-se como um programa de cooperação intersetorial para favorecer a inserção qualificada dos jovens profissionais da saúde no mercado de trabalho (Rosa & Lopes, 2010). Objetiva-se, portanto, formar profissionais em saúde com vista a superar a segmentação do conhecimento e do cuidado integral na atenção em saúde nos setores primário, secundário e/ou terciário. Nessa direção, há dedicação exclusiva desses profissionais, distribuindo a carga horária em: 80% de atividades práticas (atuação multiprofissional direta no campo e com os usuários) e 20% de atividades teóricas ou teórico-práticas (sob a supervisão de preceptor - profissional de serviço - e tutor - docente de instituição de ensino superior) (Casanova et al., 2015). Assim, apesar de as atividades terem orientação, o residente se responsabiliza por suas condutas no campo e se expõe aos possíveis riscos à saúde, porém não tem vínculo empregatício e não conta com benefícios e respaldo da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT).
Diante disso, ao vivenciar o cenário provocado pela pandemia da covid-19, que se tornou um marco histórico para a humanidade a partir de 2019, fez-se imprescindível levar em consideração a saúde mental dos residentes em saúde que, na linha de frente, lidaram com diversos fatores, como: exposição ao SARS-CoV-2 - vírus que desencadeia a doença covid-19 -, carga horária de trabalho excessiva, escassez nos equipamentos de proteção individual (EPIs), medo de serem contaminados e ocasionalmente transmitirem às famílias, dentre outros elementos que podem ter influência direta a aspectos psicológicos e desencadear prejuízos à saúde mental (WHO, 2020). Dessa forma, questionou-se acerca dos impactos psicossociais da pandemia da covid-19 na saúde mental de residentes em saúde que atuam no ambiente hospitalar, objetivando analisar esses impactos.
Método
A natureza desta pesquisa é qualitativa, técnica na qual o investigador faz alegações de conhecimento com base em perspectivas construtivistas, com significados das experiências individuais, sociais e historicamente construídas; objetivando desenvolver uma teoria, padrão, ou ainda perspectivas reivindicatórias/participativas que apresentam conteúdos políticos orientados a questões que visem a mudanças (Creswell, 2007). Por isso, utilizou-se o método da análise temática (Minayo, 2014).
Participantes
Contou-se com a participação de residentes de programas multiprofissionais das áreas profissionais de Farmácia, Nutrição e Psicologia. Elegeram-se tais categorias não médicas por elas nem sempre receberem reconhecimento social enquanto membros da equipe, como outros profissionais da área da saúde, mesmo atuando de forma direta e indispensável para promoção, prevenção, educação e recuperação da saúde dos usuários. Assim, corrobora-se com Rosinha et al. (2021), ao pontuarem que, muitas vezes, essa falta o reconhecimento pode até causar prejuízos na comunicação com os demais profissionais. Ademais, nesse cenário, essas áreas atuaram de forma direta no enfrentamento, por isso seus conselhos profissionais publicaram resoluções e estruturaram planos de ação, haja vista os efeitos da pandemia e os impactos socioeconômicos e na saúde.
A Resolução CFP nº 04/2020, publicada pelo CFP, regulamentou a prestação de serviços psicológicos por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC) excepcionalmente durante a pandemia (CFP, 2020). A Resolução CFF nº 681/2020, elaborada pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), determinou os procedimentos ad referendum do Plenário em decorrência do novo coronavírus (covid-19) (CFF, 2020). Já o Conselho Federal de Nutrição (CFN) publicou a Resolução CFN nº 648/2020, que dispõe sobre a inscrição nos Conselhos Regionais de Nutricionistas (CRNs) de egressos dos cursos superiores em Nutrição reconhecidos em caráter provisório pelo MEC e, neste contexto, a adoção de teletrabalho por CRNs (CFN, 2020).
Consideraram-se como critérios de inclusão: atuação em programas de residência multiprofissional na região sul do Brasil - região onde as autoras atuam profissionalmente -, especificamente em ambiente hospitalar, durante o período de pandemia da covid-19, e ser do sexo feminino, visto que há uma trajetória de feminização no ambiente hospitalar e, historicamente, atribui-se o cuidado como natural às trabalhadoras no campo da saúde (Travisan, 2018). Portanto, excluíram-se da pesquisa residentes do sexo masculino e as residentes que não estavam com trabalho ativo no campo, não eram atuantes no ambiente hospitalar e faziam parte de programas de outras regiões.
O quantitativo de participantes seguiu o critério de saturação que, segundo Minayo (2014), refere-se a um momento no trabalho em que a coleta de novos dados não traz mais esclarecimentos ao objeto estudado; por isso, suspendeu-se a inclusão de novos participantes quando os dados apresentaram repetição. Assim, realizaram-se sete entrevistas com mulheres residentes de programas multiprofissionais, sendo três psicólogas (Rosa, Amarílis, Camélia), três farmacêuticas (Violeta, Hortênsia e Íris) e uma nutricionista (Orquídea). As idades das participantes variaram entre 22 e 27 anos, e os programas contemplados foram os de residência multiprofissional em cuidados intensivos e em urgência e emergência, presentes em três instituições de três cidades do estado do Paraná, embora a divulgação tenha sido feita para todos os programas do sul do país em grupos de WhatsApp.
Instrumento
Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas on-line, aplicadas individualmente, privilegiando o uso da narração como estratégia de investigação. Portanto, coletaram-se dados emergentes, com o objetivo principal de desenvolver temas a partir destes (Creswell, 2007). Para Minayo (2001), a entrevista é o procedimento mais usual no trabalho de campo qualitativo e, por meio dela, o pesquisador busca obter informações contidas na fala dos indivíduos; tem por característica a coleta dos fatos relatados pelos indivíduos que vivenciam uma determinada realidade; é um processo de interação social, no qual o entrevistador busca obter informações do entrevistado (Haguette, 1995). O tipo de entrevista semiestruturada emprega um formato no qual o informante tem a possibilidade de discorrer sobre suas experiências a partir do foco principal posto pelo entrevistador, ao mesmo passo que permite que o entrevistado dê respostas livres e espontâneas (Lima et al., 1999).
Aspectos éticos
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa e registrada sob o parecer nº 3.146.657 e emenda nº 3.971.051. A fim de garantir sigilo e anonimato, os nomes das participantes foram adaptados para nomes fictícios de flores, a saber: Rosa, Amarílis, Camélia, Violeta, Hortência, Íris e Orquídea.
Procedimentos de coleta de dados
Tendo em vista a indicação pelo MS de distanciamento social durante o período da realização da coleta - julho de 2020 -, a pesquisa se deu de forma virtual, fazendo uso de entrevistas on-line via videoconferência, por meio da plataforma de comunicação Google Meet. Destaca-se que as entrevistas foram realizadas fora do horário de trabalho dos residentes, em ambiente domiciliar.
Procedimentos de Análise de Dados
Utilizou-se a técnica de análise temática, que é considerada um método analítico qualitativo que consiste em descobrir os núcleos de sentido que fazem parte de uma comunicação, na qual presença e frequência devem ser consideradas em relação ao objeto analítico -estabelecido (Minayo, 2014).
A análise temática se desenvolve em três etapas, sendo a primeira a pré-análise, que consiste na escolha de documentos a serem avaliados, de acordo com as hipóteses e os objetivos da pesquisa. Ocorre de acordo com a leitura intensa do material e a constituição do corpus que se correlaciona com a temática estabelecida, considerando critérios de exaustividade, representatividade e homogeneidade, e, por fim, formulação e reformulação de hipóteses e objetivos, a fim de realizar correções e novas indagações. Na sequência, deve-se realizar a exploração do material por meio de operação classificatória, que objetiva eleger categorias (expressões e palavras significativas), regras de contagem e categorias responsáveis pela identificação dos temas. Por último, desenvolve-se o tratamento dos resultados obtidos e a interpretação (Minayo, 2014).
Resultados e Discussões
Nesta pesquisa, a partir análise aprofundada das entrevistas, identificaram-se os temas mais frequentes nas falas das participantes e outros que se salientaram devido ao caráter de relevância e representatividade ao público de residentes, o que resultou em quatro categorias de análise: Inter-relação entre trabalho, aspectos psicossociais e saúde mental das residentes; pandemia da covid-19 e imposição a mudanças; sentimentos e cuidado de si; e desenvolvimento de habilidades para lidar com o sofrimento psíquico. Estas estão apresentadas a seguir.
Categoria 1: Inter-relação entre trabalho, aspectos psicossociais e saúde mental das residentes
Diante da pandemia, muitos necessitaram de cuidados no que tange à saúde mental, principalmente trabalhadores da área da saúde que, na linha de frente, lidaram com aspectos como sobrecarga de trabalho, alterações na rotina e protocolos, além da elevada carga de estresse, somada às demandas de ações de enfrentamento à covid-19. Diante disso, ressalta-se a importância de olhar para a inclusão dos residentes neste grupo, haja vista que, por mais que estejam inseridos em um programa educacional, já são profissionais, e a carga horária do programa de pós-graduação está destinada majoritariamente ao trabalho em campo, constituindo-se uma presença importante na equipe de saúde. Portanto, embora os trabalhadores estejam submetidos a condições similares de trabalho, a experiência é vivenciada de modo singular (Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], 2020b).
Teixeira et al. (2020) apontam que, durante a pandemia da covid-19, perceberam-se aumentos consideráveis de profissionais de saúde com sintomas de depressão, ansiedade, insônia e angústia. Nesta pesquisa, todas as participantes consideraram que a pandemia causou mudanças significativas no ambiente de trabalho e gerou impactos na saúde mental devido às condições precárias a que ficaram expostas. Camélia apontou: “meu nível de estresse e das pessoas com quem eu trabalho aumentou muito, praticamente em todas as outras pessoas com quem eu trabalho . . . Então, é o tempo inteiro em estado de alerta, preocupação, medo”. Ao passo que Rosa afirmou: “[no trabalho] eu já tinha ficado muito tempo em alerta, então eu chego em casa e muitas vezes não consigo relaxar mais, tenho sentindo muita dor de cabeça, me sentido um pouco mais triste em alguns momentos também”.
O uso incorreto de EPIs foi abordado pelas entrevistadas como um dos pontos que prejudicou o desenvolvimento do trabalho. Nesta direção, Teixeira et al. (2020) comentam que os profissionais envolvidos com o enfrentamento da pandemia estiveram expostos cotidianamente ao risco de adoecer pela covid-19, tanto pelo risco de contaminação como também por fatores associados às condições de trabalho. Além disso, problemas como cansaço físico, estresse psicológico, insuficiência e negligência com relação às medidas de proteção e cuidado à saúde desses profissionais reduziram a capacidade de trabalho, influenciando na qualidade da atenção prestada aos pacientes e prejudicando a saúde mental dos profissionais.
Como ilustração, em uma das instituições, logo no início da pandemia ocorreu um surto de covid-19 entre os profissionais, causando sentimentos de medo e desamparo. Sobre isso, Amarílis relatou: “eu me senti muito mal, eu não queria voltar, porque eu sabia que tinha pego porque a instituição não me proporcionou segurança no trabalho”. Já Orquídea revelou que “foi realmente uma pressão essa questão do EPI, tinha pressão da gestão do hospital para que a gente não usasse esse EPI, se reclamasse ou dissesse que o EPI tava errado, era rechaçado, ameaçado de levar advertências”. Por fim, Hortênsia disse: “eu penso que se a gente tivesse naquele momento os EPIs necessários, talvez esse medo não tivesse sido tão grande, porque os riscos seriam menores”.
Outro aspecto destacado foi o atraso na bolsa-remuneração no início da pandemia. Orquídea disse: “me senti usada, trabalhar no meio desse negócio [pandemia] e sem receber, estava bem ruim. Eu estava ficando muito estressada, estava afetando a minha vida pessoal”. Diante disso, muitos residentes tiveram a manutenção de suas necessidades básicas ameaçadas, tal como Violeta, já que há exigência de dedicação exclusiva para que possam receber a remuneração pela especialização. Por último, o assédio moral advindos por parte das instituições, tutores e preceptores de alguns programas de residência foi outro fator levantado pelas entrevistadas. Amarilis relatou: “durante a paralisação, tinha tutor que ficava ligando para a gente, dizendo que poderíamos ser prejudicados, que medidas seriam tomadas por conta disso”. Violeta complementou que “os tutores diziam que devíamos voltar, que isso [ficar sem receber] fazia parte do trabalho”. Nesse sentido, notou-se o que Marques, Filho, Paula e Santos (2012) evidenciam: quando profissionais sofrem assédio moral, como foi exemplificado por parte das residentes entrevistadas, tendem a apresentar mais chances de desenvolver transtornos psiquiátricos, como depressão clínica, alcoolismo, ideação suicida e sintomas de transtorno do estresse pós-traumático.
Categoria 2: A pandemia da covid-19 e a imposição de mudanças
O contexto pandêmico acarretou várias mudanças no trabalho e na rotina das residentes de saúde. Durante as entrevistas, as participantes discorreram sobre as modificações em seus processos de trabalho, porém elas tiveram posicionamentos diferentes. Orquídea apontou que teve desejo de desistir da residência, relatando: “eu queria largar tudo, eu não queria mais fazer residência… eu estava ficando muito estressada”; o que remete à afirmação de Dejours (1987) sobre o trabalho ser algo que pode levar o ser humano ao sofrimento psíquico, dependendo do ambiente em que ele se encontra.
Amarílis alegou que seu trabalho foi prejudicado por ter perdido a autonomia de realizar busca ativa dos pacientes, passando a atender apenas a pedidos de consulta, demandas que muitas vezes não são identificadas de forma adequada pela equipe de trabalho. A residente expôs: “assim como hoje nós temos menos trabalho, tem equipes que estão trabalhando o dobro, o triplo, que estão sobrecarregados, porque alguns [profissionais] pediram demissão, muitos residentes adoeceram, e aí as pessoas ficam sobrecarregadas”. Em suma, as residentes destacaram alterações nos usos de EPIs e protocolos, sobrecarga de trabalho para algumas categorias profissionais, alterações de setores de trabalho e inserção do trabalhador em novas equipes. Estes aspectos foram considerados negativos à saúde mental e desestabilizadores dos processos de trabalho, devido à submissão incondicional às demandas da organização do trabalho, indo além das condições físicas, psicológicas e sociais do trabalhador (Mendes, 2007).
Contudo, também foram levantadas alterações tidas como positivas, como mais empatia e sensibilidade no cuidado para com os pacientes, mais união, cuidado e fortalecimento de vínculos entre os profissionais, fatos que foram atribuídos às experiências semelhantes e ao compartilhando das dificuldades, o que é ilustrado por Hortênsia: “a gente conseguiu ultrapassar esse momento criando uma intimidade, sabe? Parece que agora a gente pode contar uns com os outros”. Nesse sentido, os relatos das residentes mostraram que há inseparabilidade entre as vivências de prazer e sofrimento no trabalho, as quais são expressas por meio de sintomas específicos relacionados ao contexto socioprofissional e à estrutura de personalidade dos indivíduos.
Ademais, notou-se que as trabalhadoras se mostraram ativas diante do ambiente do trabalho, ou seja, foram capazes de buscar proteção diante dos efeitos negativos e patológicos à saúde mental (Dejours, 1987). Para além disso, destacou-se a cooperação como estratégia de mobilização coletiva que representa um modo de agir a fim de ressignificar o sofrimento, realizando a gestão das contradições desse contexto e ressignificando a organização de trabalho como fonte de prazer (Bueno & Macêdo, 2012).
Categoria 3: Sentimentos e cuidado de si
Os sentimentos prevalentes descritos pelas entrevistadas foram: medo, estresse, culpa, solidão, preocupação, tristeza e ansiedade, corroborando Teixeira et al. (2020), quando apontam que o medo de ser infectado, a proximidade com o sofrimento dos pacientes ou a morte destes, informações incertas sobre recursos, solidão e preocupações com entes queridos foram aspectos que exemplificaram o sofrimento psíquico e o adoecimento mental dos profissionais de saúde. Esse fato, novamente, evidenciou a importância dos residentes no contexto hospitalar, pois, ainda que classificados como profissionais em treinamento, estes atuam predominantemente em campo, assim como os demais profissionais. Portanto, contribuem na organização e execução dos serviços em saúde e compartilham das dores e angústias dos demais profissionais, sem a adjeção de benefícios trabalhistas.
A fim de ilustrar a vivência diante da pandemia, Camélia pontuou que “a pandemia afetou a saúde mental de todo mundo, ficou todo mundo mais estressado, mais irritado”. Outra residente relatou solidão por manter-se longe da família por vários meses. Ademais, Rosa relatou sua percepção perante a situação de suspeita de covid-19: “expor isso pra equipe foi uma coisa muito difícil . . . percebi que quando voltei as coisas estavam estremecidas, algumas pessoas me olhando de nariz torcido”. Violeta acrescentou comentando sobre o medo de ser contaminada, por pertencer ao grupo de risco. Estes afetos expressos pelas residentes ilustraram a afirmação da WHO (2020) ao destacar que a exposição ao vírus tende a desencadear fatores prejudiciais à saúde mental de profissionais de saúde.
Dentre os sentimentos expressos, o medo se destacou, apresentando-se nas falas das entrevistadas Orquídea, Camélia, Violeta, Amarilis e Rosa, cujo relato diz: “eu ficava pensando na possibilidade de passar alguma coisa pra eles [família], principalmente pra ele [pai], por ser do grupo de risco”. Todas as falas confirmaram o apontamento da Fiocruz (2020b) sobre os maiores medos dos profissionais de saúde: ser infectado e/ou de se infectar e transmitir a infecção aos membros da família ou pessoas queridas.
Um dado relativo a duas residentes ganhou relevância com relação à saúde mental destas, pois elas relataram a necessidade de retomar o uso de medicamento devido a sintomas físicos e sentimentos relacionados à ansiedade, demonstrando que a vivência de exposição à pandemia potencializou psicopatologia prévia, agravando o quadro clínico. Isto posto, Valenzuela Anguita et al. (2019) destacam a multidimensionalidade da dimensão do cuidado humano e, por conseguinte, a necessidade de o trabalhador desenvolver a capacidade de cuidar de si, não só do outro, a fim de que seja possível o exercício complexo do cuidar de “nós”.
Santos et al. (2018) destacam que o ato de cuidar é a alma das organizações de saúde e que este produz saúde, por isso argumentam que todos os atores em situação - gestão, equipe de trabalhadores e usuários - deveriam requerer agir em prol da integração das diferentes tecnologias de trabalho. Isto é, estabelecer relações mais próximas e menos segregadas entre as tecnologias duras que envolvem ações que demandam recursos técnicos, maquinários e instrumentos para realizar exames e consultas especializadas; as tecnologias leve-duras que abrangem o conhecimento técnico acerca do agir no trabalho vivo; e, não menos importante, as tecnologias leves que privilegiam as relações, as experiências vividas em ato por cada profissional de saúde e as singularidades de todos os atores sociais.
Nesta direção, percebe-se que o ambiente hospitalar, por compor o nível de alta complexidade, recorre mais intensamente ao uso de tecnologias duras devido às demandas de consultas especializadas. Percepção esta que leva a inferir que há predominância do cumprimento de procedimentos técnicos prescritos, alto consumo de máquinas, instrumentos e medicamentos. E, por consequência, menor envolvimento com as demais tecnologias, o que acarreta prejuízos à produção do cuidado integral que também demanda potencial criativo no fazer do trabalhador em saúde, muitas vezes, reduzindo a compreensão de indivíduos complexos com variados determinantes no seu processo de saúde-doença.
Categoria 4: Desenvolvimento de habilidades para lidar com o sofrimento psíquico
Desenvolver habilidades com vistas à adaptação psicológica e ao cuidado integral é essencial, a fim de auxiliar os indivíduos a lidarem com o sofrimento psíquico gerado pelo contexto pandêmico. Durante as entrevistas, as residentes expuseram as principais estratégias utilizadas por elas para lidarem com o momento, a saber: seguir o distanciamento social, leitura, assistir a filmes/seriados, psicoterapia, relaxar, manter uma rotina bem estabelecida, fazer chamadas de vídeo, praticar exercícios físicos, investir na formação profissional, cozinhar e filtrar as informações a que se tem acesso por meio das mídias sociais.
Com relação à última estratégia, a Fiocruz (2020a), na época, confirmou que se resguardar do excesso de informações alarmistas veiculadas pelas mídias poderia ser utilizado com vistas a dirimir o estresse inerente aos períodos de adaptação, acrescentando que cuidar do sono e ter uma alimentação saudável também são estratégias de autocuidado.
Violeta adicionou que mudanças na rotina e organização prática da casa -auxiliaram-na a lidar com seus sentimentos perante a pandemia, afirmando: “eu tenho uma área suja e uma área limpa na minha casa, onde eu não entro nem com calça, nem sapato para o resto da área limpa”. Em complemento, Orquídea relatou que “foi aí que eu comecei a ter confiança nos meus cuidados: em lavar a minha mão; sempre passar álcool em gel; não entrar com a roupa do hospital dentro de casa”.
Diante dessas falas, visualizou-se que cuidados de organização e higiene, além de coibir a disseminação do vírus, favorecem à organização psíquica e ao processo de adaptação psicológica. Além disso, algumas residentes consideraram que reuniões familiares e permanecer perto de pessoas queridas também foram estratégias que auxiliaram no enfrentamento do sofrimento psíquico, por fortalecer a rede de apoio (Fiocruz, 2020a).
Nesse cenário, Íris disse: “como moro longe, converso com meus pais por chamada de vídeo”. Tal estratégia foi fortemente estimulada pela Fiocruz (2020a), ao afirmar que a construção de redes de apoio entre colegas, família ou comunidade, mesmo que por meio do uso de ferramentas digitais, é um importante recurso para o bem-estar psíquico e emocional.
Em complemento, Íris afirmou que, durante o período pandêmico, apreciou melhor o tempo e as companhias no trabalho, reconhecendo a importância de “aproveitar esse tempo que a gente tem para estar junto”. Por fim, Orquídea salientou a importância do cuidado voltado à dimensão profissional como uma estratégia de enfrentamento ao sofrimento, dizendo: “a gente também precisa de acompanhamento, a gente também sente medo, a gente também tem problemas psicológico e físico”. Afirmação esta que corrobora a proposição de Shojaei e Masoumi (2020) com relação à importância das intervenções de suporte voltadas à saúde mental dos profissionais da saúde expostos à pandemia da covid-19.
Considerações Finais
A covid-19 gerou dificuldades às residentes em saúde, que, para além das questões orgânicas, passaram a encarar aspectos de reorganização do trabalho e reestruturações do ambiente hospitalar, o que colaborou diretamente para elevar a carga psíquica do cotidiano das profissionais e gerar impactos psicossociais relevantes à saúde mental. Dentre tais impactos, insta destacar: sobrecarga nas atividades de trabalho e mudanças frequentes na rotina; sintomas de estresse patológico; agravamento de quadros de ansiedade preexistentes; sentimentos de medo e preocupação; e sensação de desamparo.
Ademais, salienta-se que esta pesquisa se apresentou como veículo de denúncia ao identificar relatos concernentes ao atraso na bolsa-remuneração no início da pandemia e às ameaças recebidas pelas residentes quanto ao uso incorreto dos EPIs ou a quaisquer manifestações de oposição ao trabalho sem EPI, o que se configura como assédio moral.
Nesse sentido, ressalta-se a importância de mostrar o quanto os profissionais de saúde necessitam desenvolver mais habilidades com vistas à adaptação psicológica e ao cuidado, perpassando pelo diálogo, trabalho em equipe e pela gestão. Nesta pesquisa, as residentes mostraram que foram criando estratégias de cuidado, tais como: compartilhamento de experiências; cuidado com aspectos básicos da saúde; resguardo do excesso de informação alarmista; aproximação de colegas de trabalho e amigos; e o apoio de familiares. Além disso, destacaram que a melhoria da comunicação, a cooperação e as trocas de experiências em seus trabalhos se mostraram fundamentais para a minimização do sofrimento no contexto pandêmico.
Diante do exposto, notou-se que a pandemia da covid-19 desencadeou mais efeitos adversos que promotores à saúde mental de residentes atuantes em ambientes hospitalares, evidenciando a necessidade do cuidado integral vivenciado consigo, com o outro, com o mundo e com o próprio modo de cuidar; considerando os aspectos teórico-práticos devido à natureza híbrida - formação e atuação profissional - dos programas de residência.
Assim, destacam-se os limites metodológicos desta pesquisa e, por isso, sugere-se que pesquisas futuras possam não apenas coletar dados e analisar os principais temas das entrevistas, mas que venham a desenvolver intervenções promotoras de saúde mental com residentes em saúde, atuando preventivamente diante de adoecimentos e agravos. Isto porque residentes assumem uma função de relevância à equipe de saúde, desenvolvendo ações efetivas no ambiente hospitalar, tal como contribuem ao avanço científico, produzindo e atualizando conhecimentos devido à interface acadêmica inerente às residências, o que demonstra a necessidade de investimento por parte dos órgãos brasileiros responsáveis nos programas de residência.
No mais, destaca-se o caráter de originalidade desta pesquisa, que se propôs a enfatizar um público de profissionais do gênero feminino que assumiu funções essenciais, especificamente durante a pandemia da covid-19, porém que pouco tem visibilidade nas produções científicas, como têm sido as mulheres residentes em saúde nas áreas de Psicologia, Farmácia e Nutrição.