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Revista EPOS

 ISSN 2178-700X

Rev. Epos vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Ameaças de morte a crianças e adolescentes e as biopolíticas do cotidiano

 

Death threats to children and adolescents and everyday biopolitics

 

 

Marcio Wagner BertasoI; Maria Cristina Campello LavradorII

IMestre em Psicologia Institucional (UFES). Coordenador Técnico do Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte do Espírito Santo. Membro do Centro de Apoio aos Direitos Humanos "Valdício Barbosa dos Santos" (CADH). E-mail: marciobertaso@yahoo.com.br
IIProfessor Doutor do Departamento de Psicologia (UFES) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional (PPGPSI/UFES). E-mail: cristinacampello@uol.com.br

 

 


RESUMO

Analisar os modos de gestão da vida que se afirmam nos encaminhamentos feitos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte do Espírito Santo e, com isto, apresentar um retrato da forma de funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos nesse estado no ponto onde se cruzam atores do SGD, crianças/adolescentes/familiares e o PPCAAM/ES, é a proposta deste artigo.
Compreende-se que, ao encaminhar um caso a um serviço como o PPCAAM, ganham cena inúmeros processos instituídos relacionados à execução de políticas sociais para crianças e adolescentes. Os "encaminhamentos" apontam para práticas que falam de relações entre serviços que podem parecer apenas uma forma burocrática, pela qual se quer passar o "problema" adiante. Porem, sendo analisadas de perto e com atenção às minúcias, percebe-se como são relações que atendem a determinadas formas de governo da vida. Paralelamente, nesse governo da vida cotidiano, destacam-se lutas, resistências e pequenas formas de ação que afirmam a vida.
Muito longe de falar sobre aquilo que não funciona ou daquilo que falta nas relações entre os serviços, foi abordado o que funciona a todo vapor e que opera formas de gestão da vida orientadas para fazer viver alguns e deixar morrer outros.

Palavras-chave: criança e adolescente; sistema de garantia de direitos; direitos humanos; biopolítica.


ABSTRACT

To put in question the ways of life's government who are affirmed when submitted to the Program Protect Children and Adolescents Threatened of Death of Espirito Santo and thus, present a picture of the way of functioning of the Guarantee System of Rights in this State at the point where intersect these agents, child/adolescent/family and the PPCAAM is the purpose of this article.
It is understood that to submit one case to a service such as PPCAAM, numerous instituted processes go to scene, especially to the implementation of social policies aimed at children and adolescents. The act of "to submit" one case puts in the question practices that speaks of relationships between services seem just a bureaucratic form, where you want to pass the "problem" to other service. But being closely analyzed, one realizes that are practices that serve to certain government forms of life are. At the same time, this life's government is affirmed strategies of resistance and small forms of action that link to the affirmation of life.
Far from talking about what doesn't work or what is lacking in the relationships between the services, was approached what works powerfully, and operates forms of life's government to do someone live and let die others.

Keywords: children and adolescents; children's rights; human right; biopolitic.


 

 

Analisar os modos de gestão da vida que se afirmam nos encaminhamentos feitos ao Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte do Espírito Santo (PPCAAM/ES) é o principal objetivo deste artigo.

Um Programa que não só compõe uma política de direitos humanos, mas que solicita especificidades de atuação muito próprias para que atinja seus objetivos, e cuja existência já põe em análise formas de funcionamento sociais que concebem uma categoria de sujeitos "ameaçados de morte". Identifica-se um determinado modo de funcionamento social quando se lança foco nos encaminhamentos feitos ao mesmo, ou seja, quando modos de gerir a vida de uma parcela da população são enunciados com as práticas reproduzidas por atores do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) do Espírito Santo, ao efetivarem o encaminhamento de crianças e adolescentes ao programa de proteção. Nesse contexto, a intenção foi de lançar foco no que é denominado processo de avaliação de novos casos, o qual engloba a interlocução direta com as portas de entrada do Programa (Ministério Público, Conselhos Tutelares ou Poder Judiciário) e com outros agentes que atuam diretamente na garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Este artigo trilha um caminho orientado pelas ações que se afirmam para a vida das crianças, adolescentes e seus familiares no ponto exato onde se cruzam os serviços do SGD, que atendem, acompanham ou identificam situações de ameaça, e a forma de atuação do PPCAAM/ES. Identifica-se que os encaminhamentos realizados ao Programa de proteção são analisadores (LOURAU, 2004a) das instituições que atravessam e produzem os modos de gerir a vida de uma parcela da população que se vê cada vez mais solitária e isolada em sua luta pela existência em meio às políticas públicas. Como campo do processo de análise, foram utilizadas as experiências obtidas na vivência constante daquele ponto de entrecruzamento do PPCAAM, órgãos /serviços e crianças/adolescentes/familiares, registradas nos diários de pesquisa, confeccionados ao longo do trabalho. Juntamente, foi utilizado o banco de dados das solicitações de atendimento do programa. Outra fundamental fonte de informações foi o acesso aos arquivos com todos os registros dos casos encaminhados, especialmente aqueles compreendidos entre os anos de 2009 e 2012, de modo que fosse possível conectá-los com as informações disponíveis no banco de dados. Compreendemos que, ao encaminhar um caso a um serviço tão específico como o PPCAAM, ganham cena inúmeros processos instituídos que se fazem presentes em nossa dinâmica social, principalmente relacionada à execução de políticas públicas sociais direcionadas para crianças e adolescentes em um cenário de articulação entre serviços. Os "encaminhamentos" põem em análise práticas que falam de relações entre serviços que, à primeira vista, podem parecer apenas uma forma burocrática, pela qual se quer passar o "problema" adiante. Mas que se forem analisadas num determinado contexto histórico, vinculadas a relações de poder e dominação que se efetivam por estratégias político-econômicas quase imperceptíveis de tão cotidianas, percebe-se o quanto são relações que atendem a determinadas formas de governo da vida e a estas se encaixam perfeitamente bem.

 

Sobre o PPCAAM

Como estratégia de enfrentamento à letalidade de crianças e adolescentes no Brasil, foi criado, em 2003, o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM). Uma ação governamental executada pelas parcerias da então Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, com estados e sociedade civil, em 13 unidades da federação que apresentam altos índices de letalidade desse público.

Baseado nos dados de 2012, o IHA publicado no ano de 2014, estima que mais de 42 mil adolescentes, de 12 a 18 anos, poderão ser vítimas de homicídios nos municípios brasileiros de mais de 100 mil habitantes entre os anos de 2013 e 2019. Esses, em sua maioria negros, pobres, do sexo masculino e mortos por arma de fogo (SOUZA, LIMA, 2007; WAISELFISZ, 2011; WAISELFISZ, 2014). Essas informações são comprovadas diariamente, conforme atendimentos realizados pelos profissionais do Programa.

Na prática diária desse trabalho no Espírito Santo, o Programa é constantemente acionado e tem o desafio de acionar serviços para, conjuntamente, executar essa política pública. Desse modo, a efetivação das ações do Programa apenas faz sentido se inseridas no contexto do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes (SGD), conforme estabelecido pela Resolução nº 113, de 19 de abril de 2006, do Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes  (CONANDA), que institui o Sistema de Garantia de Direitos, composto por órgãos e instituições de todo o país, responsáveis pela garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Como auxílio para a compreensão desse quadro alarmante, observamos (Figura 1) que 44% dessas mortes têm como causa o homicídio. A partir desses dados, fica evidente que mesmo no início do século XXI, após avanços normativos e de setores vinculados ao Estado e à sociedade civil, o homicídio ainda é a maior causa de mortalidade de adolescentes no país.

 

 

A partir dos estudos do Mapa da Violência 2014 (WAISELFISZ, 2014), que faz uma análise das mortes por homicídio na década compreendida entre 2002 e 2012, podemos verificar que, em relação a mortes violentas, o Estado do Espírito Santo ocupa o 2º lugar entre as Unidades da Federação (Tabela 1), com uma taxa de 47,3 homicídios a cada 100.000 habitantes. Na tabela comparativa, o ES figurava na mesma posição, no ano de 1998, com uma taxa de 58,4 homicídios a cada 100.000 habitantes. Embora se tenha registrado uma relativa queda no percentual de homicídios, destaca-se a magnitude dos números de mortes por homicídios que se mantém no ES há mais de uma década.

 

 

Especificamente, nos dados referentes a homicídios juvenis (faixa etária dos 15 a 29 anos), Waiselfisz (2014) apresenta que o Espírito Santo ocupa o 2º lugar do país, onde alcançou uma taxa de 101,7 homicídios a cada 100 mil jovens (Gráfico 1).

Percebe-se, portanto, que o Espírito Santo não foi escolhido como um dos primeiros estados a ter implementada a execução do PPCAAM sem um histórico que o credenciasse para tal. Uma análise dos dados publicados no IHA 2009 e 2010 nos permite uma rápida compreensão do quão alarmante são as perspectivas de sobrevivência dos adolescentes e jovens do Espírito Santo. De acordo com a Tabela 2, no Espírito Santo, para cada grupo de mil adolescentes que em 2010 tinham 12 anos, 6,5 serão assassinados antes de completarem 18 anos, ou seja, até 2016, caso as condições existentes em 2010 prevaleçam.

 

 

Esses dados podem ser mais detalhados a partir da definição do risco relativo de homicídio, considerando duas variáveis, por sexo e por cor/raça. Para o primeiro corte, no Espírito Santo, um adolescente do sexo masculino possui cerca de 11 vezes mais chance de ser assassinado do que uma adolescente do sexo feminino, enquanto um adolescente negro ou pardo1 tem cerca de 7 vezes mais chance de ser assassinado do que um adolescente branco, para dados relativos ao ano de 2010 (UNICEF, OBSERVATÓRIO DE FAVELAS, SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2012). Somos conhecedores de que uma ameaça de morte não se produz como algo instantâneo e isolado, pelo contrário, ela se vincula a vários elementos que se interligam, como: o não acesso a políticas de atenção básica nas mais diferentes esferas (saúde, educação, assistência social, lazer, cultura etc.); as poucas iniciativas de implementação de ações preventivas, quer seja no campo da segurança pública, da saúde ou da justiça; o insuficiente investimento em ações de promoção dos Direitos Humanos; entre tantas outras violações de direitos sofridas por esses indivíduos. Assim, qualquer análise sobre uma ameaça de morte direcionada a uma criança ou adolescente necessita ser feita se levando em conta o funcionamento do conjunto de serviços destinados a essa população, suas interlocuções e o que têm produzido.

 

Estado de Governo

Ao discutir o processo de transição do poder soberano para o poder estatal, Foucault (2005) apresenta uma forma de poder que passa a agir sobre a vida, configurando um biopoder. O autor destaca que o poder soberano antecede ao surgimento dos Estados Modernos e se caracterizava pelo poder sobre a morte, ou seja, o soberano decidia sobre quem poderia ser morto. Nos séculos XVII e XVIII surgem as técnicas de poder direcionadas ao corpo individual, tornando-o um alvo (FOUCAULT, 2005). O corpo passa a ser racionalizado, cada vez mais individualizado com técnicas disciplinares que o vigiam, treinam-no e o punem. Contudo, associando-se a essa tecnologia de poder, a partir do século XVIII aparece uma outra que não exclui a anterior, mas, por sua vez, ocupa-se dos mesmos processos disciplinares, mas dessa vez não direcionados ao corpo individual, e sim se ocupando da massa populacional, direcionada não apenas ao "homem-corpo, mas do homem-espécie" (FOUCAULT, 2005, p. 289). Falamos agora de um poder que não é mais soberano, ou seja, não decide mais sobre a morte, "fazendo morrer e deixando viver", este, agora, configura-se como um poder sobre a vida da população, um governo sobre a vida, representando um "fazer viver e deixar morrer" (FOUCAULT, 2005, p. 294). Essa forma de governo da vida se propõe ao aumento da mesma, assim o Estado passa a se ocupar do controle e da regulamentação da vida, pois quanto mais prolongada ela estiver, maior será o poder do Estado. As primeiras formas dessa regulamentação remetem a processos que são intrínsecos à própria vida da população, ou seja, os nascimentos, as doenças, a morte (FOUCAULT, 2005).

Ao apresentar seu conceito de governamentalidade, o autor nos apresenta o processo de transição entre o que denomina inicialmente de "a arte de governar" para as "técnicas de governo". Assumindo a forma de uma racionalidade governamental e uma nova prática política que terá como objeto primário o governo do conjunto dos homens, enquanto população. A partir do processo de transição da família, como modelo de governo, para a população, introduz-se na "arte de governar" uma ciência de Estado (a "Estatística"), que permitirá essa conversão em uma técnica de governo. Contudo, o filósofo alerta que a soberania não deixou de desempenhar um papel nessa transição, ela assumiu, contrariamente, um lugar diferenciado, juntamente com a disciplina, uma vez que o papel da soberania, fundado em ordenamentos jurídicos, ocupou-se de formular definições próprias para o governo de Estado, enquanto que a disciplina foi fundamental, pois com esta nova tecnologia não se tratava apenas de gestão da população em nível macro, mas era preciso gerir também seu detalhe, suas minúcias. Foucault (2008) elenca três formas de sociedade que emergiram ao longo da história, que seriam: a de soberania, a de disciplina e a de governo, porém não propõe que uma tenha se sobreposto a outra. "Trata-se de um triângulo: soberania-disciplina-gestão governamental, que tem na população seu alvo e nos dispositivos de segurança seus mecanismos essenciais" (FOUCAULT, 1979, p. 171). Posteriormente, com o desenvolvimento das tecnologias disciplinares e com a sua junção com as tecnologias de regulamentação, teremos a criação do que Foucault chama de "Estado de Governo", no qual a racionalidade política, já contando com a governamentalidade, configurar-se-á como individualização e um princípio totalitário simultaneamente. As relações de comércio e a circulação monetária, atravessadas por concepções liberalistas, exercerão grande influência nas bases da governamentalidade, compondo uma racionalidade política para os Estados Modernos. Nessa perspectiva liberal do livre mercado, as liberdades individuais são importantíssimas para a manutenção desta lógica. Assim, na gênese da estruturação do Estado de Direito, esse surge como um instrumento de mediação dos conflitos surgidos entre as liberdades individuais. Pensando nessa definição de governo dos homens, Foucault fala de uma determinada racionalidade presente no modo de controle sobre a vida dos homens que, inserido no contexto neoliberal contemporâneo atuará diretamente sobre o controle daquilo que prejudica a liberdade do mercado. Assim, o Estado passa a assumir a responsabilidade por esse controle, não permitindo que outras formas de relação que não as mediadas pelo mercado venham a emergir. Scisleski (2010, p. 54) dirá que "está-se no campo da governamentalidade na medida em que se pensa em um direcionamento específico de práticas de governo – quando, por exemplo, se governa as famílias, as crianças, os trabalhadores [...] Isto é, há uma multiplicidade de governos que se dão internamente ao Estado e à sociedade".

Em outras palavras, podemos perceber o impacto da governamentalidade – compreendida como uma racionalidade que se atualiza no conjunto de práticas constituídas e orientadas para o governo de segmentos específicos da população, instumentalizado por práticas que atribuem verdades aos sujeitos.

 

Vida nua, estrutura soberana e Estado de exceção

Como já apresentado, Foucault localiza a inserção da vida na política como fruto de uma transição ocorrida do modelo de "Estado Territorial"/Estado Absolutista para o "Estado de População"/Estado Liberal. Nesse processo, identifica-se a racionalização do governar e a regulamentação da vida através de técnicas políticas – com as quais o Estado assume o cuidado com a população. Juntamente, verifica-se o que Agamben chamou de "tecnologias do eu" – "através das quais se realiza o processo de subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e à própria consciência e, conjuntamente, a um poder de controle externo" (AGAMBEN, 2010, p. 13). Ou seja, táticas direcionadas tanto ao indivíduo quanto à massa populacional, constituindo uma biopolítica, como poder que incide sobre a vida. A partir das definições de vida existentes na Grécia Antiga, a zoé (vida nua) e bíos (uma forma de vida particular, qualificada), é possível acompanhar o processo de tomada da vida pela política conforme proposto por Agamben, que complementa afirmando que a vida nua, ou zoé, foi excluída do contexto da pólis, passando a ser restrita à vida reprodutiva. Importante o destaque que o jurista atribui a esse fato, retomando a importância do reingresso da zoé na pólis: "a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias do pensamento clássico" (AGAMBEN, 2010, p. 12). Desse modo, apresenta como questão central a busca pela identificação, no corpo do poder, do ponto onde essas técnicas de individuação e os processos de totalização se tocam. Segundo Scisleski (2010, p. 59), "investigando qual seria o ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do poder, Agamben encontra o poder soberano como conector dessa ligação". Essa autora indica que Foucault e Agamben não apresentam o mesmo entendimento sobre os conceitos de biopolítica e de poder soberano. Para o segundo autor, a biopolítica não faria referência "apenas a um conceito ou a uma forma com a qual o Estado toma o governo da vida, mas principalmente refere-se a um operador que articula não só a gestão da vida, mas também a gestão da morte" (SCISLESKI, 2010, p. 59).

O filósofo italiano apresenta o conceito de "estrutura da exceção" (AGAMBEN, 2010, p. 14), ao identificar que somente no evento da constituição dos Estados Modernos é que a vida nua seria novamente inserida na política, e conclui que esta inclusão se dá a partir de uma exclusão, ocorrida com o afastamento da vida nua da pólis e que esse processo se mostrou como definidor da política ocidental e é marcado pela característica de uma exclusão-inclusiva, uma estrutura que primeiro exclui, para posteriormente incluir. Tal processo geraria a própria existência da política, fundamentada na relação "vida nua-existência política". Isto afirmaria o desnível existente entre as duas "formas" de vida e configuraria o processo de tomada da vida como objeto pela política, constituindo assim uma biopolítica. O homo sacer é uma categoria resgatada por Agamben da Roma Antiga, que o auxilia na explicação do conceito de vida nua. Homo sacer, ou homem sacro, era associado a um homem malvado ou impuro (FESTO apud AGAMBEN, 2010) e representava um ser destituído de uma vida protegida, poderia ser matável sem que seu executor fosse condenado por isto. Ao mesmo tempo, era uma figura também desprezada para o sacrifício. Ou seja, sua vida não era digna nem para os homens nem para os deuses, não sendo protegido nem pelas leis dos homens nem pelas leis divinas. Na relação com a ordem jurídica, essa figura, por estar desprotegida das leis, seria situada num limite inferior, ou aquém do ordenamento jurídico, sendo, portanto, banida dessa proteção jurídica. Noutro extremo estaria a soberania, como ele enuncia: "o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico" (AGAMBEN, 2010, p. 22). Ele apresenta esse paradoxo para explicar a relação do soberano com o Estado de exceção. Uma vez estabelecida uma ordem, uma norma, uma lei, cabe ao soberano a decisão sobre a manutenção ou não desta norma, através da aplicação ou não de um Estado de exceção, localizando-o ao mesmo tempo dentro e fora desta norma; dentro, na medida em que o ordenamento jurídico lhe confere poderes para suspender a norma, para declarar o Estado de exceção; e fora porque ele, ao decidir sobre a norma na exceção, coloca-se acima dela (SCHMITT apud AGAMBEN, 2010). Assim, o autor relaciona o homo sacer num extremo do ordenamento jurídico, desprotegido dele, e o soberano, no outro extremo, colocando-se acima dele, e observa como ambos se encontram em permanente relação (SCISLESKI, 2010).

A partir dessas ideias, Agamben (2010) identifica que se apresenta uma estrutura de exceção na forma de governar a população, pois não bastaria o processo de inclusão da vida nua na pólis, mas a presença de uma lógica de exceção, expressada pela inclusão daquilo que se exclui, na qual a exceção se torna uma regra. E essa lógica seria a regente da política ocidental moderna, constituindo-se como um paradigma de governo. Quando consideramos os Estados Modernos "democráticos de direito", mesmo que eles não assumam formas totalitárias declaradas, há a presença do controle na vida da população através de práticas sutis, invisíveis e cotidianas, que indicam a presença da lógica de exceção como paradigma de governo, tanto através de ações dirigidas à população mais pobre, quanto às sequenciais violências sofridas com maior incidência por determinados segmentos populacionais. Isto demonstra a configuração de uma relação de abandono desses segmentos no que diz respeito à proteção legal de suas vidas. Uma vez que a lei, mesmo existente, não os protege, caracterizando a noção de bando, que se apresenta exatamente como a força atrativa e repulsiva entre os extremos da exceção soberana, entre o homo sacer e o soberano, entre a vida nua e o poder.

Por fim, a partir do conceito de bando, que configura a relação política originária pelo abandono; da tese da soberania, em que o poder soberano se opõe à vida nua e busca sua produção incessante a partir da exclusão inclusiva; e da afirmação de Agamben (2010, p. 176) de que "o campo [...] é hoje o paradigma biopolítico do Ocidente"; temos os elementos necessários para a conclusão de que o ordenamento jurídico se apresenta cada vez mais na forma de abandono com a vida, empreendendo que, em vez de afirmá-la, nega-a. Que a política ocidental se constituiu, desde o início, como uma biopolítica, engendrando invisíveis práticas de extermínio nas práticas de controle cotidianas. Desse modo, com o auxílio de Foucault e Agamben, torna-se possível compreendermos a existência de categorias políticas que afirmam formas de governar a vida no seu aspecto mais miúdo e cotidiano, constituindo práticas de inclusão ou exclusão e vida ou morte.

 

Instituição criança/adolescente ameaçado de morte

Considerando o ponto onde identificamos uma racionalidade de governo que está posta e configurando esse campo de puro espaço biopolítico, onde as ações representam ações de poder e incidem diretamente sobre a vida. Assim se expressa essa governamentalidade: como uma arte de governar as políticas sociais especificamente e que atravessa e constitui as relações entre Estado e sociedade civil; entre as organizações sociais e serviços; entre usuários e serviços; e atua diretamente na constituição de formas subjetivas de ser usuário dos serviços e formas subjetivas de ser profissional.

E como essa governamentalidade se exerce? A partir da orientação pelo contexto de um modo econômico capitalista neoliberal, em que a existência cada vez mais predominante da lógica da prestação de serviços se apresenta intensamente e é determinante para a manutenção do mercado. Assim, observa-se cada vez mais crescente a existência de corpos-imagem; corpos-vitrines; corpos-empresas, onde a concorrência impera e onde só possui lugar aqueles que são mais rentáveis e mais úteis para a acumulação de capital. Observa-se também a presença dessa lógica nas relações entre os órgãos/setores/organizações, pois a forma de relacionamento estabelecida se ancora naquela lógica da prestação de um serviço. Reduz-se com isso as possibilidades de ações articuladas na execução das políticas sociais, pois as ações são consideradas encerradas quando são passadas adiante, para outros serviços. Com isso, as demandas que se apresentam tendem a assumir e solicitar atenções imediatas, sendo transformadas em demandas emergenciais, moldando essa forma de governar a população emergencialmente. Nesse cenário, o desenvolvimento de políticas sociais compensatórias impera. Tais políticas acabam sendo pautadas por lógicas privatistas e segregacionistas, que atualmente se apresentam de diferentes modos: com a higienização dos espaços públicos por meio do afastamento dos loucos, dos infratores, dos "delinquentes", enfim, daqueles "sem solução" e que não cabem nessa organização socioeconômica nem como consumidores nem como prestadores de serviços. Nesse ponto, o ato de encaminhar um caso, de demandar a atuação de um serviço se apresenta como analisador dessa lógica instituída, ou seja, da adoção de modos privatistas, compensatórios, funcionando também como relação de consumo, em que os serviços/setores passam a se relacionar com outros com a denominação de clientes. Um analisador dessa governamentalidade que se opera na atenção às políticas sociais, em nosso caso, nas políticas orientadas à população infantojuvenil. Quando um encaminhamento se impõe para além de uma demanda por complementaridade de uma ação, quando ele se configura como a possibilidade de se livrar do problema ou, ainda, como a constatação de que "esse problema não é meu, não me afeta". Nesse contexto, o acesso aos direitos funciona como mais uma mercadoria que pode ser ofertada. Assim como num shopping, temos os lugares específicos com a oferta dos serviços, as Casas de Direitos, Balcões da Cidadania, as Casas do Cidadão2 etc. Onde os usuários/consumidores podem passear, sem muito compromisso, em busca daquele serviço disponibilizado no guichê X ou Y. Perde-se a dimensão de direito como fruto de uma conquista/luta. A própria existência do PPCAAM já denuncia o funcionamento dessa lógica, uma vez que se trata de um novo serviço que se faz necessário em um determinado momento histórico para atender a uma demanda direta de proteção à vida – que deve ser o compromisso de todos os serviços, especialmente os de atenção a crianças e adolescentes fundamentados na lógica da proteção integral. Em alguns momentos, essa simples existência tem por produto a setorização da atenção à vida, ou seja, está ameaçado? Então é do departamento do PPCAAM. Não me pertence.

No momento em que se encontram num mesmo ponto o serviço de origem, a criança/adolescente/família e o PPCAAM, percebemos um cenário fértil para a manifestação da lógica de encaminhamentos para prestação de serviços atravessando a criação e execução das políticas públicas, configurando formas de governar a vida de crianças/adolescentes. Considerando que muitas ações executadas por diferentes serviços de atenção à criança e ao adolescente são desenvolvidas se utilizando como principal argumento o "em nome da vida" e cada vez mais se tem observado a ocorrência de ações como internações compulsórias para tratamentos de uso de substâncias psicoativas; afastamentos igualmente compulsórios do convívio de pessoas de afeto – familiares ou não; apelos para alterações na Constituição Federal e da Lei federal nº 8.069/1990 (ECRIAD), contemplando a redução da maioridade penal; a cobrança por punições "mais severas" para adolescentes que cometeram atos infracionais; julgamentos públicos realizados com o auxílio da imprensa, que não ofertam aos réus o direito à defesa etc., compreendemos que ações desse tipo têm servido como exemplo do exercício da atuação de forças que efetuam um poder sobre a vida (biopolítica) bastante integrado com o conceito de campo já apresentado. Nesse campo, os exercícios dessas forças atuam diretamente sobre a vida da população e contribuem para a produção de suas formas de agir cotidianas. Nesse contexto, falamos da existência de processos hegemônicos que naturalizam a ameaça de morte de meninos e meninas, configurando essa instituição criança/adolescente ameaçado de morte.

Sob a luz da análise institucional, o conceito de instituição se apresenta pela articulação entre o conjunto de práticas sociais historicamente produzidas por indivíduos, grupos, coletividades e as normas sociais já existentes (LOURAU, 2004a) e implica tanto práticas instituídas quanto instituintes. Considerando a instituição criança/adolescente ameaçado de morte, ousamos apresentar que seu componente instituído se apresenta marcado pela produção histórica desse sujeito "desfiliado", que possui seu lugar na sociedade muito demarcado e próprio. Ao passo que seu componente instituinte se configura tanto no potencial de resistência que essa instituição representa no contexto social contemporâneo – solicitando formas diferenciadas do conjunto de serviços se relacionarem; solicitando atenção diferenciada para uma parcela da população que "mancha" os governos com os índices de homicídio; apontando para o Estado e para a sociedade civil possibilidades de escapes das formas de contenção e de segurança implementadas – quanto naquilo que essa instituição representa de desafios cotidianos para os atores envolvidos diretamente com ela (a rede de serviços que dedica atenção a essa população). Em geral, é no momento que alguns serviços se deparam com o relato das histórias de vida das crianças e adolescentes que emerge a figura "ameaçado de morte". Porém, essa figura já existe há muito, ela apenas não acessa o serviço nominando essa demanda. Ela normalmente bate na porta dos serviços com outras questões: "problemas" na escola; violência familiar; abuso de substâncias psicoativas; fome; atos infracionais. Os "desfiliados", conforme definido por Castel (1991). Todas essas manifestações são anúncios de uma ameaça de morte que se apresenta para essa população. Todas evidenciam que uma forma ameaçado de morte já está em gestação. O passo seguinte é essa forma se deparar com outra – frequentemente habitante da mesma "zona de desfiliação" –, que assumirá o papel de ameaçador, configurando o ato de ameaçar. Constituindo assim uma prática que pode se manifestar sob diferentes categorizações.

A partir das informações constantes no banco de dados do PPCAAM/ES, entre os anos de 2009 e 2012, foram atendidas 546 solicitações de avaliação ao programa, dessas, 86 crianças/adolescentes foram incluídas, 454 não foram e 6 casos estavam em análise ao final de dezembro de 2012. Os dados referentes aos motivos de ameaça apontam para algumas categorias predefinidas nacionalmente ainda no início da implementação do PPCAAM, como: Envolvimento com o tráfico de drogas; Intolerância / Conflito com a comunidade; Gangues / Disputas entre grupos rivais; Exploração Sexual; Abuso Sexual; Violência Familiar; Ameaça Policial; Ameaças provenientes de Milícias; Grupos de extermínio; Testemunha ocular; Testemunha oficial; Conflitos nas instituições de medidas socioeducativas.

Em virtude da existência dessas categorias, os levantamentos realizados localmente apontam para os seguintes dados de motivos de ameaças, conforme se pode observar na Figura 2. Das 546 solicitações de atendimento no período do estudo, em 166 não foi possível a identificação da ameaça, seja porque não ocorreu a entrevista ou porque não foi configurada situação de ameaça de morte à pessoa. Assim, das 380 solicitações restantes, temos o seguinte cenário:

 

 

  • 7 casos tiveram por motivo o envolvimento de crianças/adolescentes em redes de Exploração Sexual. Geralmente, esses casos passam a ser ameaçados quando a rede é denunciada ou é descoberta pela polícia, ou quando a pessoa ameaçada acaba se deparando com a necessidade de registro de sua história, como o caso de adolescentes que demandaram atendimentos em saúde e durante esses acompanhamentos relataram seu envolvimento com as redes. Registram-se algumas características dessa categoria de ameaça de morte: primeiramente, a dificuldade de ganharem visibilidade, pois mesmo que em algumas situações a exploração aconteça com o conhecimento de familiares, quando não com sua conivência, dificilmente esses se dispõem a acompanhar o difícil percurso que envolve acompanhamento em serviços especializados, não discriminação da pessoa explorada, cuidados para sua não revitimização etc. Em relação aos casos encaminhados ao PPCAAM/ES, outra observação foi a preocupação da justiça com o valor de prova que tais meninas possuíam, não importando muito, com alguma exceção, as condições de fragilização psíquica e de saúde em que se encontravam. Salvo exceções, dispensou-se muita atenção durante o período de coleta de provas e depoimentos, ou seja, àquilo que interessava à justiça, e de resto, que seria toda a gama de cuidados e atenção especializada dispensados à adolescente pelos demais serviços da rede, delegou-se aos ‘serviços' a atenção àquele corpo.
  • O registro de uma pessoa que foi ameaçada por grupo de extermínio. Sobre esse motivo, o único caso registrado refere-se a uma situação ocorrida fora do Espírito Santo. Entretanto, consideramos que demandas referentes a essa situação de ameaça podem estar reprimidas ou sendo camufladas, especialmente quando consideramos a história recente do Espírito Santo em relação aos grupos de extermínio;
  • 71 crianças/adolescentes foram ameaçadas por intolerância ou conflitos na comunidade de origem – consideramos esse dado um dos mais significativos do contexto atual ao qual está inserido o público-alvo das políticas sociais, pois ele nos apresenta uma ameaça que se impõe pela necessidade de afastamento daquela forma de vida do seu espaço de convivência. Sua presença ali não é mais tolerada, seja pelo cometimento de pequenos e reiterados furtos na vizinhança, seja pela sua condição de usuário de drogas, seja pelo seu histórico de conflitos com outros moradores. Essa forma de ameaça denuncia a presença de um funcionamento social que fragiliza as relações comunitárias, esvaziando os processos coletivos de atenção/resolução dos problemas apresentados por esses meninos e meninas e o que resta é o banimento dessa vida daquela localidade, depositando exclusivamente nessas crianças/adolescentes a única responsabilidade por tudo o que lhes ocorre. Embora se mostre com números relativamente inferiores a outras formas de ameaça, compreendemos que esse motivo sintetiza todos os demais, ele se torna a expressão máxima da desfiliação, convertida na necessidade de aniquilação de formas de vida que não cabem na dinâmica social atual;
  • 2 casos de conflitos internos em instituições de cumprimento de medidas socioeducativas e que se estenderam para o espaço externo das unidades.
  • 3 casos de ameaça policial. Essas formas de ameaça retratam o misto de perversidade e crueldade presente na prática de alguns policiais, pois, de maneira geral, referem-se a casos em que os adolescentes estiveram em conflitos com os policiais e ou atingiram algum policial durante o conflito ou, ao ser apreendidos, passaram por sessões de torturas e não foram mortos diretamente pelos policiais, porém estes se utilizaram do artifício de passar com os adolescentes dentro das viaturas por localidades dominadas por grupos do tráfico ou ligados a outras atividades criminosas, como forma de relacionar a presença da polícia naquela região à figura daquele adolescente, tornando-o alvo dessas organizações, que, por sua vez, tornam-se potenciais finalizadores do serviço iniciado pela polícia.
  • 33 crianças/adolescentes ameaçados por disputas entre grupos rivais. Trata-se de casos que podem ou não estar diretamente envolvidos a grupos vinculados ao tráfico de drogas de determinadas regiões. Às vezes, apenas pelo fato de o adolescente ser morador de uma determinada região dominada por um grupo X, ao circular por outra região ou ao se deparar com componentes do grupo Y, ele passa a ser ameaçado.
  • 4 casos cujo motivador da ameaça foram situações de violência familiar, compartilhados entre adolescentes que foram ameaçadas por seus companheiros, cuja ameaça de morte foi o estopim para a denúncia dos mesmos, mas que já vinham sofrendo violências há muito. Uma forma direcionada particularmente a adolescentes do sexo feminino que já constituem relacionamento estável com algum companheiro. Porém, foi observado o registro também de casos em que a violência é praticada pelo pai/padrasto, tendo como característica central a figura masculina como agressor. O destaque para a frágil atenção a essas formas de violência contra a mulher, mesmo adultas, que ainda vivem os impactos de uma cultura machista, centrada no poder do homem, e não contam com estratégias e ações efetivas de suporte para suas demandas. Basta observar que o Espírito Santo se apresenta como o estado com maior índice de homicídios de mulheres no país, com uma taxa de 9,8 homicídios por 100 mil habitantes (WAISELFISZ, 2012, p. 11).
  • 19 crianças/adolescentes ameaçados pelo fato de terem sido testemunhas oculares de alguma situação comprometedora e, por isso, se tornaram alvos. Geralmente, esses casos se referem a testemunhos de crimes cometidos e que não são oficializados, permanecendo na invisibilidade.
  • 11 casos de crianças/adolescentes que eram testemunhas oficiais em processos judiciais e isto lhes gerou ameaça. Uma característica marcante desta forma de ameaça é a participação do Ministério Público, que habitualmente não se apresenta como órgão com grandes solicitações, mas quando solicita atendimento do PPCAAM, o faz como estratégia de garantia da manutenção de sua prova testemunhal, ou seja, a vida daquele adolescente se reduz à sua possibilidade de colaboração com a justiça. Há de se considerar também que alguns casos não são encaminhados ao PPCAAM porque é acionado anteriormente o PROVITA,3 que se ocupa especificamente de casos de testemunhas, mesmo se tratando de adolescentes.
  • 6 casos caracterizados por outras formas de ameaça, que se configuram, majoritariamente, por situações de vingança. Histórias que poderiam se enquadrar em qualquer das outras categorias, mas que, ao ser apresentadas aos profissionais, ganharam contorno pessoalizado que aponta para a existência de um conflito de ordem particular que proporcionou situações de ameaças.
  • Por fim, o motivo de ameaça que mais se destaca no gráfico apresentado na Figura 2: o envolvimento com o tráfico, ocorrido em 223 casos dos 546 encaminhados. A situação está sendo relatada por último, pois suscita diversas análises que passamos a discorrer a partir de agora.

Primeiramente, ao visualizarmos um número tão discrepante entre os demais motivos de ameaça e o envolvimento com o tráfico de drogas, nossa atenção se volta para o que está sendo denominado "envolvimento com o tráfico de drogas". Observamos com os noticiários e com aquelas informações veiculadas na imprensa que o "tráfico de drogas" tem assumido a quase totalidade da responsabilidade pelos eventos criminosos que ocorrem. Tudo vai para a conta do tráfico – esta instituição que engloba um conjunto de práticas ilícitas, que possui regras próprias de funcionamento e uma hierarquia específica e muito rígida. Também é uma organização que se enquadra perfeitamente bem ao modelo econômico dominante.

O tráfico é uma empresa capitalista das mais eficientes e completamente adaptada à realidade neoliberal que se instalou no Brasil na década de 1990. É uma empresa concentradora de renda, altamente lucrativa, que utiliza mão-de-obra barata. É uma empresa que se estabeleceu num espaço onde ela não tem nenhuma preocupação com exigências legais ou cobranças de impostos. É uma empresa com forte produção de alienação do trabalho, onde a mão de obra não tem a menor idéia do quanto rende a empresa. E o efeito social disso é terrível (FREIXO apud SIMAS, 2009, p. 55).

Simas (2009) apresenta um breve resgate do crescimento do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, especialmente a partir da década de 1970 até o final da década seguinte. Segundo ele, com o fortalecimento dos grupos do tráfico de drogas e com o fim da Ditadura Militar, a "opinião pública" passa a cobrar por ampliação da força repressiva e, já inserida nos projetos neoliberais, também a questionar os investimentos nas "questões sociais", operando um deslocamento, em que o inimigo público número um deixaria de ser a figura do subversivo da Ditadura Militar para ser o traficante de drogas. Nesse contexto, começa a ser mais compreensível os números de motivos de ameaça observados nos casos encaminhados ao PPCAAM/ES. Percebe-se que se trata de um "vilão" que preenche muito bem este posto e se apresenta facilmente para ocupar o lugar de algoz, tanto nos discursos dos adolescentes/familiares, quanto nos dos órgãos encaminhadores e muitos serviços e, também, nas escutas dos profissionais do PPCAAM. É muito fácil o tráfico de drogas dominar a cena e assumir toda e qualquer responsabilidade pelas mazelas desses meninos. Nessa perspectiva, o "envolvimento com o tráfico" e, mais especificamente, o "traficante" tornam-se o porta-voz-bode-expiatório de um arranjo social que preconiza o extermínio. E com a associação aos demais motivos de ameaça observados nos casos encaminhados ao PPCAAM/ES, não seria só o traficante que ameaça o adolescente para manter sua disciplina, mas o Estado, na figura de vários de seus agentes, que o expõe ao risco de morte por não saber lidar com uma forma de vida que ele próprio ajudou a produzir. Uma vida cuja ameaça é menos intensa pelo seu agente ameaçador e muito mais pelos efeitos das formas de governo que lhes são dispensadas. Especificamente para a população que mais aciona as políticas públicas sociais, e coadunadas com essa instituição criança/adolescente ameaçado de morte, percebe-se tais ações cooperando para a formulação de sujeitos ditos aterrorizantes que necessitam estar longe de seus territórios, porque, seguindo a lógica, passariam a representar risco iminente para si e para todos aqueles que ali habitam. Com a configuração dessa instituição criança/adolescente ameaçado de morte, os encaminhamentos ao PPCAAM trazem consigo referências a duas grandes categorias: (1) uma criança/adolescente apresentada como "vítima", a partir de sua ameaça de morte, especialmente referente aos casos de abuso/exploração sexual, violência familiar, testemunhas oficiais; e (2) a criança/adolescente ameaçada caracterizada como "menino/a-problema-perigoso/a", uma vez que a sua permanência em qualquer comunidade ou local passa a ser entendida como ameaça tanto por atrair seus algozes quanto por assumir a característica aterrorizante que sua ameaça lhe atribui, devido às suas "aprontações". Essa categoria seria vinculada aos casos em que o motivo de ameaça é atribuído, como julgamento moral, a posturas individuais da criança/adolescente e recai especialmente para aqueles em que há situações conflituosas e envolvimento com o tráfico. A existência dessas categorias dispara uma questão: como garantir a prioridade absoluta, a garantia de direitos, conforme previsto no ECRIAD, para um sujeito que é classificado ao mesmo tempo como vítima e algoz? Esse duplo, presente na constituição desse modo de vida ameaçado, opera inconsistências nos órgãos de defesa de direitos dessa população. Lidar com essas facetas desregula os protocolos dos serviços e embaralha as posturas dos agentes, já acostumados a funcionar numa lógica em que o ‘bom' merece o ‘bem' e o ‘mau' merece ser descartado. Um claro julgamento de ordem moral que evidencia o preconceito e o tratamento dispensado a essa população. Sobre a primeira categoria, ousamos a afirmação de que se trata de uma ameaça muito menos perigosa pelo potencial ofensivo de seu ‘novo' ameaçador, porém muito mais pelos efeitos das ‘negligências' de seus agentes interlocutores. Pois tanto a Política Nacional de Assistência Social (2004) quanto o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006) asseveram que, para que a família e a sociedade possam proteger seus membros, precisam ter acesso às políticas públicas de responsabilidade do Estado (CONANDA, 2009).

Afirmamos isso ao nos deparar, por exemplo, com situações de adolescentes que, atualmente com 16, 17 anos de idade, seguem sendo acompanhados por inúmeros serviços desde seus 6, 7 ou 8 anos de idade e, em virtude da grande eficácia do Estado de exceção passaram a agregar em suas histórias de vida, depois de oito ou dez anos de acompanhamento por Conselhos Tutelares, Escolas, Unidades de Saúde, Varas da Infância, e tantos outros serviços componentes do SGD, uma situação de ameaça de morte. Quando isto se estabelece, a suposta ameaça ganha um meio propício para seu desenvolvimento: o seio dos serviços públicos, geralmente de atenção primária,4 independente do setor de atuação. Os lugares onde os relatos desses meninos e meninas deveriam ganhar eco para serem superados, fundados em suas demandas efetivas, acabam sendo, exatamente, onde as ameaças se constituem e/ou se fortalecem; começa assim a se moldar a segunda categoria. E o adolescente que, naquele momento, seria apenas o vetor das brechas deixadas pelo Estado em sua atenção à população, uma grande falha no "Estado de bem-estar social", passa a ser o vetor do mal para aquela comunidade, personificado por sua potencial condição de atrair seus ameaçadores para aquele território e por simbolizar tudo que pode ser produzido naquele ambiente, o que inclui a possibilidade de morte. Produzindo um desejo de afastamento naquela comunidade/serviço, uma necessidade de isolamento daquilo que lhes representa perigo, ou ainda, daquilo que lhes ameaça a vida.

[...] o que se quer matar é um perigo, ou melhor, os que se tornaram perigosos para a vida de uma parte da população. A morte respaldada pelo biopoder coincide com a eliminação do que ameaça uma forma de vida (LAVRADOR, 2005, p. 9-10).

Operacionaliza-se, com isso, a lógica do encaminhamento, ou seja, habitando no contexto de execução de políticas sociais, conforme já detalhado acima, e diante de uma "instituição criança/adolescente ameaçado de morte" que desregula e desafia o funcionamento do "meu serviço", naturaliza-se o passar o "problema adiante", mesmo havendo condições para sua resolução. Como esse "problema" carrega consigo a definição "ameaça de morte", e com a existência do PPCAAM como um serviço criado e com a atribuição específica de lidar com "ameaçados de morte", fecha-se o fluxo e o encaminhamento se justifica, inclusive dando continuidade ao que vem sendo produzido na relação Estado e sociedade civil, ou seja, o quanto os processos de produção de modos "privatistas" são habilidosamente replicados pelos serviços e se constituem como analisador dessa atual relação. Vivenciamos os impactos de encaminhamentos deslocados de vínculos, uma consequência da fragilização do processo de participação na sociedade atual. Nesse complexo cenário, vivenciamos os encaminhamentos como analisadores desse conjunto de práticas que atravessam diferentes estabelecimentos e serviços. Põem em análise: as dificuldades de um Estado se relacionar com as organizações da sociedade civil e vice-versa; a forma existente no direcionamento de ações das políticas sociais (focalizadas, privatistas e refilantropizadas), inclusive seus baixos investimentos financeiros; as fragilidades presentes nos serviços destinados a determinadas parcelas da população; a postura do Estado diante da existência dessa nova instituição que se molda, que é a criança/adolescente ameaçado de morte; as lutas históricas, as conquistas já postas em cena no campo da garantia do direito de crianças e adolescentes; sobretudo, a tensão permanentemente presente no cotidiano de lutas pela garantia da atenção integral a crianças e adolescentes. Se, de um lado, os serviços ainda não dão conta de se organizarem intersetorial, interinstitucional e intermunicipalmente, conforme previsto na resolução do CONANDA nº 113/2006; por outro, as demandas apresentadas pelos usuários certamente se apresentam compostas dessa intersetorialidade, atravessam abruptamente os limites dos órgãos de atendimento e escancaram a nossa incapacidade de interlocução para além dos protocolos.

 

Uma outra biopolítica

Ressaltamos que, no mesmo processo de constituição dessas políticas, as demandas dos usuários dos serviços, em toda sua complexidade, evidenciam que, junto com os exercícios de dominação cotidianos, localizam-se estratégias de resistência, inerentes a toda e qualquer relação de poder.

Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto... é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte (NEGRI apud PELBART, 2003, p. 26).

Destarte, ao falarmos dessas várias relações entre serviços, intrasserviços, entre serviços e usuários, preferimos localizá-las no Entre, no estado permanente de tensão entre o poder sobre a vida e a potência de vida, configurando esta nova biopolítica.

Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano, a vida ao mesmo tempo se pulveriza e se hibridiza, se dissemina e se alastra, se moleculariza e se totaliza. E ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana. Daí a inversão, em parte inspirada em Deleuze, do sentido do termo forjado por Foucault: biopolítica não mais como o poder sobre a vida, mas como a potência da vida (PELBART, 2003, p. 23).

Essa é nossa aposta ao identificar os encontros como estratégias de resistência à lógica apresentada. Por encontros, compreendemos as possibilidades de interação que vão para além dos simples formalismos de reuniões ou fóruns. São aqueles momentos em que: um trabalhador se dispõe a estar com o outro; a interferência que o outro provoca em nós nos sacode, leva-nos a experimentar algo que nunca antes havíamos experimentado; quando o atendimento realizado com determinado usuário do meu serviço produz algo maior que uma relação usuário/prestador de serviço, produz a vontade de decisão, o desejo e a capacidade de transformação das singularidades (NEGRI, 2005), implicando a criação de espaços comuns. Encontros que nos convidem a "despedirmo-nos do absoluto", conforme nos relata Suely Ronlnik (1995).

Ao afirmar nossa imersão nesta luta de forças, precisamos estar constantemente atentos aos atravessamentos das forças do mundo (ZAMORA, 2008). Desse modo, dispor-se ao novo, dispor-se a se corresponsabilizar com aquilo que se produz conjuntamente pode servir como um disparador que ponha em funcionamento redes que se afirmem quentes, vivas e que carreguem consigo esta potência da vida. A partir daí, as solicitações para atendimento de outros serviços funcionarão como composição e não como um repassar de um problema que nos enfraquece e nos despotencializa.

 

Considerações finais

A leitura daquilo que vem à tona quando um componente do Sistema de Garantia de Direitos encaminha uma criança ou adolescente a uma política tão específica e excepcional como o PPCAAM/ES permite a percepção de uma complexa trama presente na realização deste ato, muito mais profundo do que um mero encaminhamento. Uma tomada de decisão política que traz consigo um conjunto de interesses, intenções, alternativas e falta de alternativas, expectativas e contradições. Uma decisão que fala, sobretudo, da falta de opções de uma população que é constantemente invisível e que, a partir do momento em que é encaminhada a um programa como o PPCAAM, carrega consigo, em seus corpos, as marcas dos serviços pelos quais passaram antes e os vários desejos desses mesmos serviços com este encaminhamento: a oportunidade de garantia da vida; a possibilidade de tornar visível essa população para que ações efetivas lhe sejam direcionadas; a busca pela garantia de uma testemunha oficial em um processo; a tentativa de construção de rede; a determinação judicial; a punição; a intenção de que se tornem invisíveis; a preocupação de que não morram sob sua responsabilidade; a expulsão de um território; a transferência de um "problema"; e inúmeras outras.

Observamos como a atuação numa perspectiva cada vez mais privatista e ilhada compõe um cenário que reforça o paradigma do Estado de exceção. Onde uma constante privatização da capacidade resolutiva das questões sociais, produzidas por essa racionalidade de governo neoliberal, permite a compreensão também do movimento do conjunto de serviços existentes para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, que assume uma característica semelhante quando adota práticas privatistas de resolução de suas questões. A existência da lógica de exceção se reflete no abandono dessa população marcada para a morte, como os índices de homicídios comprovam. Paralelamente, todo esse processo é permeado por lutas cotidianas. Essa luta de forças cria uma tensão permanente entre a existência cada vez mais intensa de um Estado de exceção e a invenção de alternativas e saídas desse campo, apontando para a afirmação de processos democráticos e eticamente comprometidos com a produção de vida. Como afirmação de outros modos de funcionamento de um Sistema de Garantia de Direitos, identifica-se a estratégia da corresponsabilização entre os serviços. A atenção ao exercício ético na condução dos atendimentos, em que o foco seja deslocado dos processos e procedimentos internos de cada serviço e possa se centralizar na vida das pessoas atendidas, não num simples fazer viver a qualquer custo e de qualquer jeito, mas na afirmação de modos de vida mais fortalecidos, autônomos e possibilitados de participarem de suas próprias decisões. Não propomos uma simples reorganização de procedimentos de serviços, mas um realinhamento dos mesmos a partir do abandono dos meros protocolos cotidianos para se atentar à construção de políticas públicas realmente intersetoriais, que não desqualifiquem nem operem revitimizações na população atendida, mas atuem comprometidas com a vida em suas mais diversas manifestações.

Estaremos longe, portanto, de uma nova ética afirmativa dos direitos enquanto não enfrentarmos o risco das revoluções, não mais das macrorevoluções, sempre fadadas ao fracasso, e sim das rupturas das revoluções moleculares de nossas práticas cotidianas de poder (COIMBRA, LOBO, NASCIMENTO, 2008, p. 96).

Este trabalho, por fim, não tem a pretensão de apresentar saídas ou soluções mágicas. Contrariamente – sendo um recorte da prática de todo um grupo, de trabalhadores do PPCAAM, das políticas públicas, de ONGs, de agentes do poder público e da própria população que resiste –, ele se propôs, por meio da análise de práticas vivenciadas nos encaminhamentos ao PPCAAM, a continuar nessa tensão que habita a conquista de direitos de todo e qualquer povo. Pretende-se um chamado a repensarmos nossas práticas e compreendermos o quanto elas evidenciam modos de gestão da vida.

 

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1Notas

Para o cálculo dessa proporção, os autores do IHA (UNICEF; OBSERVATÓRIO DE FAVELAS; SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, 2012) agruparam as categorias negro e pardo e fizeram o comparativo com o agrupamento das categorias branco e amarelo.

2 Casa dos Direitos e Casa do Cidadão são os nomes de dois espaços públicos disponíveis à população em Vitória/ES, onde a mesma pode acessar serviços, como tirar documentos, registros civis, ou acessar Conselhos de Direitos. Balcão da Cidadania é o nome de um projeto desenvolvido no município de Serra/ES com características semelhantes aos demais.

3 PROVITA – Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas.

4 Destacamos os serviços de atenção primária, exatamente pelo fato de serem as Portas de Entrada para as ações de atendimento do estado. Por atenção primaria aqui, não pretendemos dar exclusividade aos serviços de saúde, já que esta terminologia é mais frequentemente usada para este setor. Nosso foco de atenção se concentra em todos os serviços que não dependem de outros meios intermediários para a população acessá-los. Como exemplo, citamos: Escolas, Conselhos tutelares, CRAS, Unidades Básicas de Saúde, Pronto atendimentos em geral, delegacia de polícia, entre outros.

 

 

Recebido em: 25/5/2016
Aprovado para publicação em: 15/6/2016

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