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Revista EPOS
versão On-line ISSN 2178-700X
Rev. Epos vol.7 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2016
ARTIGOS
Psicologia e governamentalidade: sexo e gênero em debate
Psychology and governmentality: debating sex and gender
Maria Luiza Rovaris CidadeI; Pedro Paulo Gastalho de BicalhoII
IMestra em Psicologia (PPGP/UFRJ). Doutoranda em Psicologia (PPGP/UFRJ). E-mail: malurcidade@gmail.com
IIDoutor em Psicologia (PPGP/UFRJ). Docente de Graduação e Pós-graduação do Instituto de Psicologia (UFRJ). E-mail: ppbicalho@gmail.com
RESUMO
Partindo de três excertos, relacionados a práticas psicológicas implicadas com a temática de sexo/gênero em psicologia, pretende-se abordar, neste artigo, a relação entre psicologia e governamentalidade, atravessada pelo sistema sexo/gênero como um possível analisador. O que se pretende colocar em análise é como o sistema sexo/gênero, mais especificamente relacionado à afirmação da heterossexualidade compulsória e da cisgeneridade como matrizes normativas e seus consequentes ideais regulatórios, convoca-nos a refletir sobre a psicologia e suas redes de reiteração da governamentalidade vigente na modernidade ocidental. Nesse sentido, no campo da problematização das práticas psicológicas, aborda-se, ao longo do trabalho, o tema da governamentalidade numa perspectiva foucaultiana, em intersecção com a noção de produção de subjetividades e as questões de sexo/gênero de base feminista. Pretende-se estabelecer uma discussão de visibilidade de tais problemáticas, para, assim, podermos desnaturalizar concepções e intervenções do campo da psicologia no sentido de potencializar a produção de práticas mais localizadas e libertadoras.
Palavras-chave: psicologia; governamentalidade; cisgeneridade; heterossexualidade compulsória.
ABSTRACT
This study aims to present a methodological articulation between psychology, governmentality and the sex/gender system to analyze how the sex/gender system related to normative matrices and its regulatory ideals claims the compulsory status of heterosexuality and cisgenerity. Three sections related to the theme of sex/gender in psychological practices are presented to achieve this goal. Besides, some relevant questions can be addressed through this research, such as the questioning of psychological practices based on the theme of governmentality in Foucault's perspective; the concept of production of subjectivities; and some related feminist issues of sex/gender. The article's objective and methodology allows the realization of discussions involving the visibility of these themes and the process of denaturalization of some of the concepts presented in Psychology. In this way, it is suggested that the psychology's practices can be more local and emancipatory.
Key words: psychology; governmentality; cisgenerity; heterosexualty.
1. Introdução
Partindo de três excertos, relacionados a práticas psicológicas implicadas com a temática de sexo/gênero1 em psicologia, pretende-se abordar, neste artigo, a relação entre psicologia e governamentalidade, atravessada pelas relações de sexo/gênero como um possível analisador.2 O que se pretende colocar em análise é como o sistema sexo/gênero, mais especificamente relacionado à afirmação da heterossexualidade compulsória e da cisgeneridade como matriz normativa e seus consequentes ideais regulatórios, convoca-nos a refletir sobre a psicologia e suas redes de produção, reiteração e legitimação da governamentalidade vigente na modernidade ocidental.
Denomina-se como "excertos" os fragmentos que são retirados de uma obra, como afirma o dicionário Aurélio (on-line). São mais que meros trechos, pois trazem consigo dimensões da racionalidade moderna ocidental que se pretende tratar ao longo do presente trabalho. Correspondem a partes de uma obra para além de suas dimensões contextuais e/ou textuais: a obra da governamentalidade, que, em suas múltiplas linhas, percorre a produção de sentidos, significados e subjetividades. A psicologia, como rede de saber-poder afirmada como uma verdade e como dimensão científica do governo das condutas a partir do século XIX, traz em suas práticas dimensões do projeto de governamentalidade vigente.
O primeiro excerto diz respeito a práticas de produção de conhecimento em psicologia, relacionada a um manual de psicologia do desenvolvimento que aborda a constituição dos indivíduos em termos de sexo/gênero, mencionado em trabalho anterior (MATTOS, CIDADE, 2016). O segundo está relacionado a um parecer psicológico elaborado para a alteração do registro civil de uma mulher trans no Estado do Rio de Janeiro. O terceiro, por fim, diz respeito a uma entrevista realizada em pesquisa de mestrado,3 especificamente com uma mulher trans, que teve seu registro civil alterado no Estado do Rio de Janeiro, a partir de um fragmento de sua experiência de contato com profissionais da psicologia.
Nesse sentido, toma-se o tema da governamentalidade como disparador teórico para se problematizar a psicologia enquanto rede de saber-poder a partir das questões relacionadas a sexo/gênero. Ao tomarmos o gênero como categoria útil de análise histórica (SCOTT, 1995), pode-se remeter a uma série de questões e problemáticas que nos apontam para dimensões de nossa organização social que permeiam a produção de subjetividades e as condições de desigualdade e segregações relacionadas a sexo/gênero. Os temas que envolvem as discussões em torno da heterossexualidade compulsória, desde a década de 1980, e, mais recentemente, da cisgeneridade, apontado desde os anos 2000 por pessoas trans, inauguram uma série de debates imprescindíveis para avançarmos na temática do nosso tempo em torno das questões de gênero e da política de uma forma ampla.
Publicada oficialmente como perspectiva conceitual na obra Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity (SERANO, 2007), a noção de cisgeneridade é proposta a partir do exercício de analisar a origem da terminologia -trans-: o outro, o desajuste. Ligações químicas cruzadas espontaneamente, de forma inesperada. O oposto disso, o termo -cis-, também existe no campo da química orgânica: seria a ligação química esperada, a mais comum de se ocorrer entre os elementos. A ligação química "normal". Porém, as moléculas da química orgânica são imprevisíveis. Assim como as subjetividades são imprevisíveis. A cisgeneridade indica a existência de uma norma relacionada ao sistema sexo/gênero que produz efeitos de ideal regulatório, ou seja, expectativas e universalização da experiência humana.
Em termos gerais, o que diferentes ativistas e os movimentos transfeministas têm proposto é que a norma cisgênera é uma das matrizes normativas das estruturas sociais, políticas e patriarcais, cujos ideais regulatórios produzem efeitos de vida e de atribuição identitária extremamente rígidos. A atribuição identitária, de forma compulsória no momento de registro de cada pessoa, define e naturaliza a designação a um dos polos do sistema de sexo/gênero ao nascer, a partir de uma leitura restrita que intersecciona as verdades entre medicina e direito. Além disso, a norma cisgênera afirma que essa designação é imutável, fixa, cristalizada ao longo da vida da pessoa.
Assim, o que se pretende abordar, neste trabalho, é uma série de reflexões que relaciona práticas psicológicas, dimensões de sexo/gênero e governamentalidade. A partir disso, podemos incitar algumas reflexões sobre a dimensão dos efeitos das transgressões de tais normativas, entre eles a culpabilização na produção das subjetividades ditas dissidentes. Nesse sentido, abordaremos ao longo do trabalho o tema da governamentalidade em intersecção com a produção de subjetividades para, logo em seguida, inserirmos o analisador das questões de sexo/gênero no campo da problematização das práticas psicológicas. Assim, pretende-se estabelecer uma discussão de visibilidade de tais problemáticas, para podermos desnaturalizar uma série de concepções e intervenções do campo da psicologia no sentido de práticas localizadas e libertadoras.
2. Antecedentes: Como a psicologia pode comparecer?
Um manual estadunidense de psicologia do desenvolvimento, clássico a diversos textos e concepções relacionadas ao ensino e à produção de conhecimento em psicologia no mundo ocidental. Um parecer psicológico efetivado, a pedido de um juiz, para o andamento de um processo judicial de alteração do registro civil de uma pessoa trans no Estado do Rio de Janeiro. Uma entrevista concedida por uma mulher trans, que teve seu registro civil alterado judicialmente em território fluminense, para pesquisa de mestrado, desenvolvida a partir da análise das trajetórias do Sistema Judiciário em tais processos de alteração do registro civil de pessoas trans.
Os trechos a seguir, os quais denominamos de excertos, como fragmentos de uma obra e não apenas textos isolados, surgem no contato com o campo problemático como atividade de pesquisa. Tendo como horizonte a problematização de decisões judiciais relacionadas aos processos de alteração do registro civil de pessoas trans no Estado do Rio de Janeiro, a pesquisa de mestrado produziu múltiplas conduções por diferentes caminhos, entre os quais uma análise mais minuciosa da intersecção entre psicologia e normas de sexo/gênero se mostrou necessária. Assim, refletindo sobre a produção e reiteração de normas, sejam jurídicas ou de âmbito social mais amplo, e seus estatutos de verdade, passa-se à pergunta: como a psicologia comparece nos territórios dessas múltiplas controvérsias?
Eis os três excertos, a partir dos quais iniciamos a discussão deste trabalho:
a) "Isso é inevitável": O manual de psicologia
Hormônios ou aprendizagem? Os cientistas acreditam que qualquer padrão universal de comportamento tenha uma base neurofisiológica. A espécie humana, como a maioria das outras, divide-se em machos e fêmeas. O gênero biológico fica determinado no momento da concepção. Se o esperma fertilizante carregar um cromossomo "X", o fruto será feminino; se carregar um cromossomo "Y", o fruto será masculino. Isso é inevitável, à exceção da rara anomalia genética ou fetal, onde o fruto possui características reprodutivas de ambos os sexos ou órgãos genitais não diferenciados (LINDZEY; HALL; THOMPSON, 1977, p. 421).
b) "Veste-se como mulher, age como mulher": O parecer psicológico
Alega sentir-se muito constrangida quando é chamada em algum lugar público pelo nome de batismo (sic) (...). Que não vê a hora de fazer a cirurgia, que ela considera prioritário na vida dela e trocar de nome. Interação com a imagem feminina. Veste-se como mulher, age como mulher, é bonita, feminina e muito educada, possui um bom nível de aspiração com relação à vida pessoal e profissional. Informação Relevante Demonstra segurança com relação a determinadas decisões pertinentes a este assunto, é muito tranquila e só mostra ansiedade em relação a demora da decisão (...) (Estudo Psicológico presente em pesquisa de mestrado anteriormente citada).
c) "Ela me pediu desculpas antes de começar a entrevista": A entrevista psicológica
J.: Eu sempre tive sorte. Eu acho que... Eu acho que eu fui uma pessoa agraciada com a sorte. Eu não sei por que. Mas a primeira psicóloga fez uma conversa informal. Eu fiquei cinco minutos na mesa da psicóloga. E a segunda fez umas perguntas padrão, né? Como é que era a minha infância, como é que era minha relação com meu corpo, mas foi uma conversa muito rápida que ela também disse: "Olha, eu acho tão desnecessário isso tudo, mas eu vou seguir o protocolo, desculpa."
Eu: Ela te pediu desculpas?
J.: Ela me pediu desculpas antes de começar a entrevista. E eu falei assim: tudo bem, faz parte (Entrevista concedida para a pesquisa de mestrado anteriormente citada).
3. Governamentalidade e produção de subjetividades: A psicologia em debate
Transformação epistêmica produzida por Michel Foucault e toda uma geração de intelectuais a partir da década de 1970, o tema da governamentalidade abrange uma série de possibilidades analíticas para além de uma dimensão tradicional de leitura histórica, metodológica e política. Um dos temas percorridos por Michel Foucault ao longo de sua obra, a governamentalidade surge como transformação epistêmica justamente pela ruptura nos modos de pensar o governo, o Estado, a política e a produção dos modos de subjetivação, ou seja, a constituição dos sujeitos nos emaranhados das redes histórico-políticas. Essa dimensão tradicional de leitura enaltece três elementos principais, de uma forma geral, segundo Peter Burke (1992): um elemento relacionado à perspectiva contextual de análise; outro, à perspectiva de descrição de tais análises e um terceiro, à dimensão dos sujeitos engendrados nessas análises.
O primeiro elemento dessa dimensão tradicional, o da perspectiva contextual de análise, relaciona a produção de conhecimento estritamente à esfera política, sendo a política definida como política de Estado. Em segundo lugar, o elemento da perspectiva descritiva perpassa a descrição de eventos, relacionados exclusivamente à política de Estado, em narrativas sucedâneas, cuja verificação de seus desencadeamentos se efetiva em movimentos cíclicos ou dialéticos. Por último, uma certa visão tradicional determina que os sujeitos que compõem tais dimensões analíticas relacionadas à política do Estado são apenas os grandes homens: estadistas, generais, eclesiásticos. Como nos diz Peter Burke, "a história tradicional oferece uma visão de cima", e ao resto da humanidade "foi destinado um papel secundário no drama da história" (1992, p. 3).
O tema da governamentalidade, entre outros, insere-se na crítica a essa perspectiva tradicional de análise justamente pela proposição de múltiplas questões e novas formulações para essas três dimensões. Lemos et al. (2015) abordam a questão das governamentalidades neoliberais4 e marcam que a obra de Foucault estabelece uma crítica fundamental à dimensão dualista que tal perspectiva tradicional de análise emprega entre Estado e sociedade civil. Na obra Segurança, Território e População, curso ofertado no Collège de France entre os anos de 1977 e 1978, o tema da governamentalidade ganha um contorno mais preciso: as práticas de governo são práticas múltiplas para além do governo do Estado e, portanto, a noção de política se complexifica.
Com isso, complexificam-se também as possibilidades narrativas dessas práticas múltiplas de governo, politizando o debate acerca das relações de poder que envolvem a produção do conhecimento da governamentalidade. Por último, as noções de indivíduo, família e população, tão caras à modernidade, descentralizam os sujeitos da história como apenas os grandes homens. Há uma rede de relações de poder, de saberes e de verdades que produzem a moralidade que diz respeito aos indivíduos governarem a si mesmos, a arte de governar adequadamente uma família e a ciência de bem governar o Estado (FOUCAULT, 2008b).
Ou seja:
(...) a partir o século XVI e em todo esse período que vai, grosso modo, do meado do século XVI ao fim do século XVIII vemos desenvolver-se, florescer toda uma considerável série de tratados que já não se oferecem exatamente como conselhos ao príncipe, mas que, entre o conselho ao príncipe e o tratado de ciência política, se apresentam corno artes de governar (FOUCAULT, 2008b, p. 118).
A questão de diferenciação entre essa arte de governar múltipla e complexa e o aconselhamento aos príncipes se efetiva conforme o tema da governamentalidade surge, para Foucault, a partir de textos anti-Maquiavel que aparecem na literatura europeia desde o século XVI. Tais textos, que surgem como críticas à perspectiva fundante da obra de Maquiavel no pensamento moderno da ciência de governar, transparecem no questionamento da ideia de governo por parte exclusiva da figura do soberano. A figura do soberano ou do príncipe maquiavélico é única, numa perspectiva exclusivista, em seu principado, em relação de exterioridade com seus súditos. Essa relação de exterioridade implica uma transcendência do príncipe perante o povo, ou seja, estabelece uma relação virtual e, portanto, frágil à medida que necessita da crença irrestrita do povo perante o soberano.
O que a literatura anti-Maquiavel e, posteriormente, o tema da governamentalidade em Foucault vão apontar é que o problema da governamentalidade é múltiplo e complexo já que estabelece uma relação de continuidade fundamental entre os diversos artifícios da arte de governar, superando as velhas dicotomias entre Estado e sociedade civil e a relação virtualizada de transcendência entre o governante e seu povo. Lemos et al. mostram que: "Tanto a sociedade civil quanto o Estado seriam resultados de composições híbridas, de multiplicidades de práticas de governo das condutas, e não entes, em relação de oposição, em uma lógica binária" (2015, p. 332).
Foucault (2008b) nos fala que a arte de governar estabelece, pelo menos, quatro problemas de governo: 1) o problema do governo de si mesmo, a partir do retorno ao estoicismo e da razão como dimensão fundante do indivíduo moderno; 2) o problema do governo das almas e das condutas, com a Reforma e Contrarreforma religiosas e a instalação da severidade moral, mesmo que a um nível superficial e generalizante; 3) o problema do governo das crianças e o surgimento da pedagogia e das instituições escolares como aparatos disciplinares e docilizantes das subjetividades em produção; e, por fim, 4) o problema do governo do Estado com as noções de população, polícia, saúde e administração públicas.
O autor ainda retoma que, a partir da mudança paradigmática entre o governo do príncipe e a arte de governar sob a lógica da governamentalidade, há o destrinchamento de duas modalidades principais da arte de governar: uma ascendente relacionada à razão de Estado e a outra descendente, a polícia como controle dos homens e de suas coisas, como as tradições, a família e as propriedades.
l. (2008) conceituam que a razão de Estado buscava determinar as necessidades do próprio Estado em relação aos demais elementos a serem governados. A polícia, anteriormente à instituição propriamente dita, era entendida como conjunto de objetivos, instrumentos e objetos internos do Estado para o controle e manutenção dos homens e riquezas.
Assim, nessa rede complexa de indivíduos e populações, tradição e moralidade, instituições disciplinares e relações econômicas, faz-se a governamentalidade. Lemos et al. (2015) a definem, mais precisamente, como o modelo de existência referente a um:
(…) conjunto constituído por instituições, procedimentos, análises e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população e opera por meio da produção de uma economia política (a assunção da população à categoria de análise como constituição de um campo de saber específico do governo), utilizando-se dos dispositivos de segurança como instrumentos técnicos essenciais (LEMOS et al., 2015, p. 332).
A partir do século XVIII, com a entrada de novas questões referentes a reordenamentos das relações de poder e da arte de governar em torno do liberalismo como modelo econômico, político e social no Ocidente, o tema da governamentalidade ganha novos agenciamentos. Ao adentrar os territórios do biopoder o poder sobre a vida a governamentalidade se insere de uma forma mais incisiva nas linhas mais finas e tênues da produção de subjetividades. Em A Defesa da Sociedade, Foucault (2010) aborda que entre os séculos XVII e XVIII surgem técnicas de poder direcionadas ao corpo, o corpo individual. Mecanismos de individualização, disciplinarização e docilização dos corpos produzem subjetividades e sujeitos adequados e serializados ao trabalho, dimensão que reorganiza a vida social no Ocidente em torno do capitalismo a partir da Revolução Industrial inglesa.
No século XVIII, surge uma nova dimensão de análise, relacionada ao poder não disciplinar:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo a vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie (FOUCAULT, 2010, p. 204).
Com o refinamento do liberalismo, produz-se subjetividades de forma massificada para além dos corpos disciplinados e dóceis. Aliados ao sistema capitalista, berço do liberalismo, os modos de subjetivação são processos que constituem objetos e modos de existir hegemônicos (GUATTARI; ROLNIK, 1996), aliados à arte de governar em sua multiplicidade individual, moral e institucional. Tal produção hegemônica de subjetividades articula e produz novas articulações através de sistemas hierárquicos, de valores, de submissão, (BICALHO, 2005) que têm como um dos vetores fundamentais a positivação de redes de saber-poder institucionalizados com certa noção de verdade: a ciência.
Assim, a psicologia e a pesquisa científica em psicologia surgem do berço da governamentalidade liberal ocidental (FOUCAULT, 1994; FERREIRA et al., 2008). Para se delinear técnicas de governo aliadas à arte de governar, a psicologia se apresenta como saber-poder essencial. A psicologia que reconhecemos hoje, enquanto campo múltiplo de produção de conhecimento e de práticas de intervenção que circundam as subjetividades e experiências humanas, consolidou-se enquanto ciência, ou seja, produziu e foi produzida com a afirmação de um estatuto de verdade a partir da racionalidade científica, nos fins do século XIX e início do século XX nos Estados Unidos e na Europa ocidental.
Segundo Foucault (1994), no século XIX, a prática objetiva e neutra de observação de fenômenos a partir de uma metodologia científica positivista teve como efeito a produção de certo resto: as emoções do pesquisador, que poderiam causar interferência na observação dos fenômenos. Surge aí a necessidade de se estudar e compreender as próprias emoções, a fim de que os treinamentos sejam ofertados aos observadores para que sua interferência fosse mínima, se possível nula, em seu trabalho de descrição dos fenômenos, como nos casos dos laboratórios instituídos por Wundt na Alemanha e por Binet na França. Em sua faceta hegemônica, a psicologia se consolida historicamente com a legitimidade do saber psicológico enquanto desenvolvimento da técnica, da positivação de testes, da psicometria, de laboratórios experimentais e da noção de replicabilidade de resultados, além da elaboração de laudos e pareceres sob certa noção de verdade e da afirmação da possibilidade de alteração de comportamento pela via terapêutica.
Tais práticas, entre outras, possuem um grau de hegemonia aliada à arte de governar na medida em que a psicologia ganha contornos de especialidade: algo específico em seu campo de saber, e mais nenhum outro, pode afirmar verdades sobre o sujeito, para o sujeito e para algum outro que convoca essa avaliação. Essa noção de verdade se constitui como efeito da produção e reiteração de procedimentos e normas, como a norma jurídica (FOUCAULT, 2013), e de uma concepção unívoca de sujeito, balizada pelos ideais androcêntricos e masculinos (HARAWAY, 1995; NARDAZ; KOLLER, 2006), cujo desenvolvimento se efetiva segundo princípios básicos, mantenedores da ordem biopolítica e dos ideais de governamentalidade que balizam a história ocidental.
A psicologia surge como ciência dos indivíduos, da conduta, da vida privada (FERREIRA et al., 2008). E, ainda hoje, agencia-se nessa perspectiva em múltiplos contextos. É o que vemos, por exemplo, nos excertos mencionados anteriormente: uma dimensão de desenvolvimento encerrada no indivíduo e suas condicionantes ditas biológicas, uma noção de homem e a legitimação de uma rede de saber-poder que, por exemplo, mesmo ao promover a autorização da retificação do registro civil de pessoas trans, produz-se por meio de uma racionalidade médico-jurídica vinculada aos pressupostos de registro e controle da população: a ordem biopolítica.
Nesse sentido, a psicologia, em sua multiplicidade de concepções, é produtora de subjetividades. Assim, a ciência psicológica afirma formas de ser e de viver, em consonância com suas concepções, que balizam tanto a formação profissional, quanto a prática de psicólogas e psicólogos em diferentes contextos, seja no campo das políticas públicas, no trabalho clínico, organizacional, educacional, social e/ou em outras instituições. A psicologia, hegemonicamente, produz e transparece a arte de governar em torno do governo de si e das condutas.
Após a Segunda Guerra Mundial, período no qual a psicologia passa a ser institucionalizada de forma massiva no mundo ocidental, os ideais de governamentalidade são acirrados: o surgimento da sociedade de segurança refina as táticas de governo das condutas. Uma sociedade empresarial e judiciária (LEMOS et al., 2015) marca o advento do neoliberalismo como governamentalidade biopolítica. Dessa forma, podemos identificar que a psicologia também se refina: é regulamentada como prática profissional no Brasil na década de 1960 e passa a se fazer presente e a ser ensinada em um número cada vez maior de universidades, não apenas nos cursos de psicologia, como em licenciaturas, Direito, Medicina e Ciências Sociais.
Assim, o tema da governamentalidade na psicologia se torna cada vez mais complexo: no governo das crianças, com a reiteração normativa de padrões e estereótipos de desenvolvimento dos sujeitos, que também se efetiva na intervenção e patologização das transgressões a qualquer normativa; no governo das almas e das ações dos indivíduos, desde a definição original da psicologia como "ciência da alma" no século XIX até as contemporâneas tentativas de implicação de fundamentalismos religiosos contemporâneos nas práticas psicológicas; e, por fim, no governo por parte do Estado, quando visualizamos todas as questões referentes à atuação normativa e normalizadora da psicologia nas mais variadas esferas do Estado, como investigado em pesquisa de mestrado mencionada anteriormente (CIDADE, 2016).
É nessa encruzilhada, portanto, e nas múltiplas fronteiras que se estabelecem entre as diferentes esferas da governamentalidade, que o governo de si e das condutas também se produz e se efetiva nos emaranhados da produção de conhecimento em psicologia e das práticas psicológicas. Nesse sentido, uma questão se torna fundamental para a continuidade de nossa discussão: se tomarmos o sistema sexo/gênero como analisador, como proposto por Lourau (1993), o que pode emergir como problemática das práticas psicológicas no contexto da discussão sobre governamentalidade?
4. Gênero, psicologia e governamentalidade em debate
Do que visualizamos hoje através do significante "estudos de gênero", surge uma diversidade de concepções, ativismos políticos, posições epistêmicas, práticas profissionais e experiências de vida. A partir de uma interdisciplinaridade de campos de saber, de ativismos de movimentos feministas e na efetivação de serviços, instituições e práticas profissionais que visam à garantia dos direitos e protagonismo de mulheres e, mais tardiamente, de pessoas trans, os estudos de gênero produzem, potencializam e protagonizam uma série de ações e tensionamentos nas políticas públicas na contemporaneidade.
O termo "gênero" foi afirmado pela primeira vez pelo psicólogo John Money, em 1955, devido à necessidade de se explicar o fenômeno da socialização dos papéis sexuais, baseados em uma diferenciação da experiência humana a partir das noções de "sexo" e "identidade sexual" (CASTEL, 2001). Com a constatação de experiências dissidentes da ordem binária "homem" e "mulher" e sua consequente expectativa de conjugalidade, ou seja, baseado em um status de anormalidade, a experiência de pessoas não heterossexuais é atribuída a graus de perversão, as crianças intersexuais são "corrigidas" cirurgicamente dias após seu nascimento e a experiência de pessoas trans é registrada e interpretada pela ciência moderna com a constituição da noção de "identidade de gênero" patologizada.
Assim, a noção de "gênero" está inicialmente vinculada a uma perspectiva identitária, fundamentada na manifestação de papéis sexuais diferenciados, constituída a partir da concepção dualista da separação de mente e corpo: o gênero é tido como algo cultural, de ordem de expressão identitária vinculada a aspectos subjetivos ou intrapsíquicos, em detrimento do aspecto supostamente biológico do corpo. Assim sendo, essa interpretação inicial invisibiliza uma questão central da sociedade moderna: são constituídas, enquanto matrizes normativas e ideais regulatórios, duas normativas compulsórias que se atravessam e coexistem: a heterossexualidade compulsória (RICH, 2010; BUTLER, 2013) e a cisgeneridade (SERANO, 2007; KAAS, 2011; VIVIANE, V.; 2012).
Essas matrizes normativas e ideais regulatórios produzem efeitos extremamente rígidos de inteligibilidade e ininteligibilidade a partir da expectativa que se efetiva no ato de designar como "masculino" e "feminino" cada pessoa que nasce, sob uma racionalidade médico-jurídica que visualiza e classifica os sujeitos a partir do órgão genital. À heterossexualidade compulsória está atrelada a expectativa exclusivista de desejo e conjugalidade entre pessoas de sexo/gênero tido como opostos. A cisgeneridade, como já mencionado, abarca a designação compulsória em termos de sexo/gênero a cada sujeito que nasce, sob uma racionalidade médico-jurídica. É a dimensão produtiva do poder (FOUCAULT, 2010) que incita e faz circular uma série de discursos e regulações nos mais diferentes níveis da sociedade, indo a fundo na regulação dos corpos e da produção de subjetividades.
Nesse sentido, pode-se verificar tentativas de reiteração de tais normativas nos três excertos mencionados no início deste trabalho. A inevitabilidade das designações em "macho" e "fêmea", citada no trecho do manual de psicologia de Lindzey, Hall e Thompson (1977), além da designação compulsória supostamente afirmada no momento da concepção, fornece-nos subsídios para pensarmos no grau de verdade que segmentos da psicologia atestam a tal designação compulsória. A naturalização das identidades de gênero percorre múltiplos caminhos nos territórios psi, especialmente quando colocamos em análise a elaboração de documentos de profissionais da psicologia no que diz respeito aos processos de alteração do registro civil de pessoas trans. Vestir-se como mulher, agir como mulher, ser feminina e muito educada são características fundamentais associadas à feminilidade esperada mencionadas em um dos documentos analisados.
Ao longo do século XX, desde a década de 1960, intelectuais e movimentos feministas passam a questionar tal essencialização e naturalização, inserindo muitos desses conceitos em terrenos de problematização e análise crítica. O termo "gênero" passa por processos de ressignificação e redirecionamento, indicando uma variedade outra de formulações e produção de sentidos. Essa multiplicidade de conceitos e referenciais teóricos é atravessada pela crítica à patologização e essencialização do gênero, já que a perspectiva médico-jurídica naturaliza certa noção de coerência entre sexo-gênero-desejo (BUTLER, 2013) e atesta à anormalidade as experiências dissidentes. Simone de Beauvoir (1970) inaugura uma série de reflexões ao indicar o caráter de produção histórica da noção de "ser mulher" e de constituição da feminilidade na sociedade contemporânea, que tem a perspectiva masculina como valor universal e o status da feminilidade como outro, relativo à diferença perante o universal.
Nesse sentido, desde a década de 1960, surge uma série de reflexões cuja perspectiva central é apontar o sexo/gênero como categoria fundamental de análise do campo social (RUBIN, 1986; HARAWAY, 1995; SCOTT, 1995). O âmbito relacional do sistema sexo/gênero constitui campos discursivos e históricos de relações de poder que trata de produções e experiências identitárias, do binarismo "homem" e "mulher" enquanto afirmação normativa, além de performatividades, experiências, papéis, expressões, expectativas e dissidências. A ativista indígena e escritora boliviana Julieta Paredes (2010), no contexto do feminismo comunitário latino-americano, enfatiza que o recorte de gênero para análise não pode se constituir como uma categoria descritiva, atributiva ou determinada por uma essência. A autora boliviana enfatiza que gênero é uma categoria relacional, que denuncia em seu cerne a condição produzida historicamente pela via da subordinação das mulheres, já que o campo de produção de subjetividades é permeado por hierarquias e relações de poder.
A filósofa Judith Butler (2013), com uma perspectiva pós-estruturalista, traz em sua obra o questionamento da dualidade natureza x cultura que historicamente afirmou o gênero como algo cultural, dito produzido socialmente em uma perspectiva simplista. A autora trata do gênero em seu aspecto performativo, enquanto performatividade, diferente das interpretações que empregam ao gênero uma noção de performance ou de papel. Baseada em leituras do linguista Austin (1990), que trata da performatividade da linguagem como produtora de mundos e subjetividades, Butler redimensiona as discussões de gênero ao campo de problematizações sobre a inseparabilidade entre natureza e cultura, a dimensão constitutiva da linguagem e os mecanismos psíquicos do poder, na tensão constante entre o gênero como produtor de ontologias e de categorias identitárias, ao mesmo tempo que se constitui pela via da performatividade permeada pelas impossibilidades de categorizações e por possibilidades de invenção e resistências.
A discussão a respeito da linearidade sexo-gênero-desejo enquanto expectativa, de normativa social, insere uma série de questões no campo dos estudos de gênero. Retirar o sexo/gênero do aspecto cultural em detrimento de um dado biológico, ou seja, de um sexo natural e imutável, reinsere a questão sob a ótica da produção histórica de racionalidades que normalizam e normatizam experiências em detrimento de outras, num campo de relações de saber e poder. A psicologia, enquanto campo de produção de conhecimento e de práticas profissionais, é um dos campos que trata diretamente das questões relativas às subjetividades, também em suas diferentes concepções de relações e questões de gênero, tanto numa perspectiva psicopatológica e essencialista, como também ao inserir o gênero como categoria crítica de análise.
A partir desse entrecruzamento entre o tema da governamentalidade e as questões que envolvem as relações de sexo/gênero, podemos ensaiar algumas aproximações, especialmente no que diz respeito à atuação da psicologia no trânsito entre as duas temáticas. Em pesquisa de mestrado mencionada, uma das pessoas entrevistadas narra um dos momentos da entrevista psicológica para retificação de seu registro civil. Ela descreve a abordagem psicológica como uma abordagem informal, pautada em perguntas-padrão. Mas de qual padrão se trata? Afirma-se, assim, a especificidade da psicologia nesse contexto: as perguntas sobre a infância e a relação da pessoa trans com seu próprio corpo.
Assim, retomando a discussão acerca da governamentalidade, podemos colocar em análise o sistema sexo/gênero como um disparador das múltiplas forças da arte de governar. O problema do governo das almas e das condutas, ao tomarmos a psicologia como ciência dos indivíduos e da vida privada, localiza uma suposta designação imutável da identidade de gênero no momento da concepção, numa certa noção de continuidade entre aparato morfológico e redes de saber-poder médico-jurídicas. Com isso, cria-se uma série de expectativas em termos da conduta dos indivíduos "machos" e dos indivíduos "fêmea", baseadas na manutenção de certos estereótipos, que balizam a cisgeneridade e a heterossexualidade como normas sociais. A situação de excepcionalidade, localizada apenas como raras anomalias genéticas ou fetais no excerto, ilustra a impossibilidade de transgressão a essa designação compulsória, já que o assentamento em um corpo biológico é fato dado, naturalizado. Normas que não aparecem como normas, tamanho seu grau de naturalização, compõem o cenário de uma governamentalidade que produz e regula as condutas.
Consequentemente, o problema do governo das crianças surge como questão fundamental. Uma pedagogia da sexualidade se afirma, ao longo da modernidade, como dispositivo normativo de silenciamento e produção de corpos dóceis. Por mais que, em uma análise mais apurada sobre a sexualidade, Foucault (2012) nos mostre que há uma proliferação discursiva intensa em torno da temática do sistema sexo/gênero, é tarefa da psicologia, no campo das sexualidades e identidade de gênero, normalizar os corpos e as experiências, normatizar padrões de comportamento e patologizar as dissidências de tais normativas. Não é à toa que as perguntas sobre a infância se tornam um padrão nas entrevistas psicológicas para a retificação do registro civil de pessoas trans no Sistema Judiciário. Afinal, o que ocorre na infância de uma pessoa trans que determina sua condição? É nessa linearidade determinística que a arte de governar insere na infância o fundamento das normas sociais. Normas que modelam corpos e segregam as experiências transgressoras no que diz respeito às identidades de gênero compõem o cenário de uma governamentalidade que produz e regula a infância.
O problema do governo do Estado perpassa aí como uma importante questão quando entendemos, a partir dos sentidos que o tema da governamentalidade faz operar sobre a dimensão múltipla da política, que as normas relativas ao sistema sexo/gênero perpassam concepções e direcionamentos de políticas públicas as mais diversas. Concepções de operadores estatais, incluindo-se juízes e profissionais da psicologia envolvidos no julgamento de processos jurídicos os mais diversos, podem contribuir para a reiteração de certas normas e para a segregação das dissidências. Por direcionamentos de políticas públicas, por exemplo, temos certos impedimentos do acesso a direitos básicos por parte de pessoas trans, como a negativa do uso do nome social em instituições públicas. Pessoas essas que tampouco adentram as notificações de violência pelo sistema tradicional de investigação. Normas que invisibilizam quem as transgride, retirando a condição de humanidade de certos sujeitos em detrimento de outros, compõem o cenário de uma governamentalidade que produz e regula violência e exclusão.
Por fim, o que supostamente surge como a primeira dimensão de análise de Michel Foucault, o problema do governo de si mesmo. No campo tensionado que insistem em sobreviver experiências dissidentes da cisgeneridade, a segunda pergunta-padrão de um profissional da psicologia ressurge: qual a relação com seu próprio corpo? Nesse sentido, como podemos pensar práticas de si que envolvam outras dimensões que não apenas as relativas às normativas sociais, designadas compulsoriamente a toda experiência? Assim, surge o tema da culpabilização das dissidências. Para Baratta (2013), qualquer forma de transgressão das normas sociais representa uma ofensa aos interesses comuns e fundamentais aos cidadãos, essenciais ao funcionamento da vida em sociedade. Esse estabelecimento de interesses comuns e fundamentais se efetiva a partir do princípio do interesse social, interesse comum balizado pelas normas que garantem a vida em sociedade.
A culpabilidade engendra processos de produção de subjetividades que vão muito além dos processos de exclusão das experiências transgressoras por parte da sociedade. Implica dimensões subjetivas na tentativa de normalização e de adequação, que podem implicar dimensões de sofrimento, autopunição e segregação por parte dos próprios sujeitos com relação às suas experiências e desejos. Nesse sentido, temos como tarefa, no campo da psicologia, pensarmos e atuarmos sobre esses múltiplos efeitos normativos, segregativos e de sofrimento, dos quais muitas vezes somos protagonistas. Como podemos pensar práticas psicológicas e a produção de conhecimento em psicologia que perpasse por outras vias, de resistência, de afirmação da multiplicidade e do protagonismo da autoatribuição por parte dos próprios sujeitos sobre suas próprias experiências?
Temos como desafio ultrapassar o pedido de desculpas ofertado pelo profissional de psicologia, mencionado em um dos excertos. Afinal, como podemos nos articular com esses sujeitos, para diminuirmos a distância e afirmarmos outras artes possíveis, que não as artes de governar?
5. Gênero e transgressão: Quais vias de libertação podemos inventar?
Nos caminhos e descaminhos deste trabalho, pudemos articular uma série de questões que envolvem o tema da governamentalidade, a psicologia e o sistema sexo/gênero. Assim, pretendeu-se estabelecer uma discussão de visibilidade de tais problemáticas, para podermos desnaturalizar uma série de concepções e intervenções do campo da psicologia. Então, como produzir sentidos de práticas libertadoras, que supere as antigas dicotomias? Além disso, como superar as vias determinísticas e universais que a psicologia historicamente produziu, direcionando nossa produção de conhecimento em práticas localizadas, contextuais, com ênfase nas singularidades?
Sem direcionar a respostas prontas, aposta-se nas direções que a ideia de invenção nos convoca. Michel Foucault (2013), quando se apoia na noção de Nietzsche da palavra invenção (Erfindung), afirma que é diametralmente oposta à noção de origem (Ursprung). Para o autor, a invenção "é, por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável" (FOUCAULT, 2013, p. 25). Algo é inventado e adentra campos de visibilidade permeados por relações de poder. "Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada. Foi igualmente por puras obscuras relações de poder que a religião foi inventada" (FOUCAULT, 2013, p. 25).
Se é a partir da invenção e de políticas de poder e visibilidade que se produz também o conhecimento, se não há um ponto de origem, os pontos da produção de conhecimento são múltiplos e não demarcam origens únicas. Nesse sentido, a produção de conhecimento não é uma releitura das coisas do mundo, tampouco uma representação esquemática do mundo em si. Não há em-si. O conhecimento, a partir da perspectiva da invenção, negando-se a determinação de origens, é uma forma de violação das coisas a conhecer (FOUCAULT, 2013), ao mesmo tempo que produz novas coisas. É na ênfase do complexo que este trabalho pretende se inserir, complexidade que também envolve a psicologia em seus múltiplos agenciamentos quando aposta em outras práticas que não a busca pela verdade dos fatos.
Se a governamentalidade é definida a partir das artes de governar, quais outras invenções são possíveis? Seguindo junto com os feminismos e os movimentos sociais de pessoas trans, temos algumas possibilidades de rearticulação e resistência. Práticas mais libertárias de cuidado de si, da lida e do entendimento com as crianças, da afirmação das diferenças nas condutas e da garantia de direitos perante o Estado são cada vez mais necessárias. Na última década, a psicologia, enquanto profissão, tem comparecido mais na aliança com essas reivindicações, especialmente com o lançamento da Nota técnica sobre o processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans, do Conselho Federal de Psicologia (2013), na qual se posiciona a partir do paradigma da despatologização das experiências de pessoas trans. Que possamos visibilizar nossas implicações nos processos normativos para que possamos nos libertar, na medida do possível, de nossas próprias amarras.
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1Notas
1 Utiliza-se o termo "sexo/gênero" e não apenas "gênero" como um posicionamento ético, político e epistêmico. Em 1975, Gayle Rubin propõe o uso do termo "sistema sexo/gênero" (RUBIN, 1986). Para a autora, a noção que concebemos de "sexo" é produção social e, portanto, o estabelecimento de um sistema composto entre sexo/gênero corresponde a uma série de arranjos e rearranjos a partir dos quais a sociedade transforma a sexualidade em produtos da atividade humana (RUBIN, 1986).
2 A ideia de analisador partiu da inspiração da análise institucional francesa. Enquanto elementos ou acontecimentos especiais, os analisadores permitem fazer surgir, com mais força, uma dimensão analítica. Fazem aparecer a instituição invisibilizada, a hegemonia afirmada enquanto natureza (LOURAU, 1993).
3 Nomes (im)próprios: Registro civil, norma cisgênera e racionalidades do Sistema Judiciário. Dissertação apresentada no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2016.
4 Segundo os autores, entende-se como governamentalidade neoliberal as dimensões contemporâneas da governamentalidade, ao se potencializarem os dispositivos de segurança e as modalidades empresariais e judiciárias de funcionamento da sociedade, das relações e da produção de subjetividades.
Recebido em: 30/4/2016
Aprovado para publicação em: 10/6/2016