Revista Polis e Psique
ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.9 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2019
ARTIGOS
Loucura e Militância: história de vida resistente na luta antimanicomial
Madness and Militancy: resistant life story in the anti-asylum fight
Locura y Militancia: historia de vida resistente en la lucha antimanicomial
Júlia Carvalho dos SantosI; Fernando YonezawaII; Adriana LeãoIII
IUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil
IIUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil
IIIUniversidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil
RESUMO
Este trabalho, oriundo de pesquisa de mestrado, objetiva analisar os efeitos da participação nos movimentos da luta antimanicomial, a partir de entrevistas realizadas com usuários dos serviços de saúde mental da região metropolitana da Grande Vitória, os quais possuíam histórico de atuação nos espaços de militância. Através de uma prática cartográfica as entrevistas foram realizadas buscando constituir uma relação na qual as experiências fossem contadas e também produzidas naquele espaço aberto à transformação. Assim, ao apresentarmos aqui uma das histórias de vida que compuseram esta investigação, norteados pelos conceitos filosóficos de Deleuze e Guattari, percebemos que a participação militante constitui territórios com possibilidades de resistências, linhas de fuga e transformações na vida dos usuários. A pesquisa aponta para uma ética militante antimanicomial capaz de dar passagem a modos singulares de atuar politicamente.
Palavras-chave: luta antimanicomial; militância; resistência; política.
ABSTRACT
This study, based in a master level research, aims to analyze the effects of the participation in the anti-asylum movement, based on interviews with users of mental health services in the Great Vitória metropolitan region, who had a history of working in militancy spaces. Through a cartographic practice the interviews were carried out seeking to constitute a relation in which the experiences were told and also produced in that opened space to transformation. Thus, when we present here one of the life histories that composed this investigation, guided by Deleuze's and Guattari's philosophical concepts, we perceive that militant participation constitutes territories with possibilities of resistance, lines of escape and transformations in the user's life. The research points to a antimanicomial militant ethics capable of giving passage to singular ways of acting in politics.
Key words: anti-asylum fight; militancy; resistance; politics.
RESUMEN
Este trabajo, oriundo de investigación de maestría, objetiva analizar los efectos de la participación en los movimientos de la lucha antimanicomial, a partir de entrevistas realizadas con usuarios de los servicios de salud mental de la región metropolitana de la Grande Vitória, los cuales poseían histórico de actuación en los espacios de militancia. A través de una práctica cartográfica las entrevistas fueron realizadas buscando constituir una relación en la cual las experiencias fueran contadas y también producidas en aquel espacio abierto a la transformación. Así, al presentar aquí una de las historias de vida que compusieron esta investigación, orientados por los conceptos filosóficos de Deleuze y Guattari, percibimos que la participación militante constituye territorios con posibilidades de resistencias, líneas de fuga y transformaciones en la vida de los usuarios. La investigación apunta a una ética militante antimanicomial capaz de dar paso a modos singulares de actuar políticamente
Palabras clave: lucha antimanicomial; militancia; resistencia; política.
Introdução
Luta antimanicomial e desinstitucionalização da loucura
As Reformas Psiquiátricas foram movimentos políticos e sociais questionadores das práticas e funções dos hospitais psiquiátricos, tendo se iniciado no pós-Segunda Guerra Mundial (AMARANTE, 1995). Utilizamos o plural para designar estes movimentos devido às diferenças práticas e teóricas que proporcionaram distintas transformações na realidade manicomial. Com efeito, Passos (2009) define que o campo das Reformas Psiquiátricas é pleno de controvérsias.
Desse modo, operamos com a distinção conceitual mais corrente que classifica os movimentos de Reformas Psiquiátricas em dois: o primeiro, relacionado ao final da Segunda Guerra Mundial, com a perspectiva de renovar as atribuições da psiquiatria nos hospitais psiquiátricos ao defender que ela havia perdido a sua função terapêutica e deveria retomá-la a partir de uma série de medidas. O segundo movimento definiu-se a partir do debate mais radical referente à função da psiquiatria e do hospital psiquiátrico, questionando o lugar atribuído à loucura, para analisa-la a luz da história e retira-la do vazio social na qual foi lançada (AMARANTE, 1995).
A principal referência desse segundo movimento consiste nas Reformas Psiquiátricas Italiana, com críticas radicais à produção das doenças mentais resultantes da exclusão e violência perpetradas no interior dos manicômios. As transformações italianas serviram de base para os movimentos que buscaram produzir mudanças teóricas e assistenciais na relação estabelecida com a loucura para além de uma mera segregação social. As críticas italianas encontraram espaço profícuo no Brasil dentro das discussões do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM) iniciado com a luta por melhores condições de trabalho nos serviços psiquiátricos (AMARANTE, 1995).
No decorrer dos anos as discussões avançaram para além da demanda trabalhista ao agregarem diferentes atores sociais e políticos - como estudantes, usuários e familiares -, e estabelecerem parcerias com demais movimentos sociais, que se mobilizavam pelo fim da ditadura militar para além das pautas específicas (AMARANTE, 1995). Doravante, na década de 1980 o MTSM tornou-se espaço aglutinador da luta pela transformação da realidade dos hospitais psiquiátricos e da loucura no país. E então, em 1987, no II Congresso Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, ocorreram mudanças no aspecto organizativo do MTSM com a inserção da pauta acerca da desinstitucionalização da loucura, ampliando-se as perspectivas para um Movimento da Luta Antimanicomial, cujo lema "Por uma sociedade sem manicômios" afirmava o rumo da luta empreendida nos anos seguintes, com discussões acerca do fechamento dos hospitais psiquiátricos e da reorganização da atenção e cuidado inseridos na comunidade (AMARANTE, 1995).
A desinstitucionalização da loucura propõe, pois, um novo lugar para a subjetividade apreendida na rede discursiva do saber psiquiátrico. Alverga e Dimenstein (2006) discutem que
(...) distintamente de uma reinserção social - que implica, quase sempre, a culpabilização do indivíduo colocado à margem, bem como uma avaliação da falta de adequação social e necessária adaptação ao que lhe marginalizou -, sabe-se que a reforma deve buscar a emancipação, não meramente política, mas, antes de tudo, uma emancipação pessoal, social e cultural, que permita, dentre outras coisas, o não- enclausuramento de tantas formas de existência banidas do convívio social; que passe a encampar todas as esferas e espaços sociais; que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo; e busque a convivência tolerante com a diferença (ALVERGA e DIMENSTEIN, 2006, p. 303).
Nesse sentido, as discussões das Reformas Psiquiátricas não são dirimidas com a concessão de direitos, mas ampliadas em direção à transformação radical da sociedade, considerando "outras rotas possíveis que possam não apenas lutar contra a sujeição fundante da sociabilidade capitalista, mas também instigar a desconstrução cotidiana e interminável das relações de dominação" (ALVERGA e DIMENSTEIN, 2006, p. 303). Nessa dinâmica busca-se restituir o lugar da produção de subjetividade: Palombini e Oliveira (2012) afirmam que a operação radical proposta pelas Reformas Psiquiátricas será a devolução dessa subjetividade louca ao plano de subjetivação, seja na cidade, no território, nas redes sociais. Dito de outro modo, a desinstitucionalização da loucura implica que ela possa estar plenamente inserida como diferença constituinte da produção social, cultural, histórica, afetiva, estética, política etc. A loucura seria, então, mais uma diferença legitimada a fazer diferença no processo de produção de vida na sociedade.
A partir dessas noções percebemos o quão complexo é o processo de desconstrução manicomial, considerando- se, aí, tanto os manicômios de concreto, quanto os mentais. Ora, Lancetti (1991) afirma que "não se inicia a destruição do manicômio se não se violentam os manicômios mentais profissionais e ideológicos, a saber: acreditar que se cura, aderindo a uma teoria e reduzir a política à oposição" (LANCETTI, 1991, p. 146).
Portanto, as práticas das Reformas Psiquiátricas são sustentadas antes de tudo por uma política no sentido da dimensão inventiva dos processos de subjetivação, os quais se fazem presentes no constante embate com forças que buscam conservar uma subjetividade dominante. Essa dimensão inventiva composta por uma ética-estética e política é apresentada por Guattari (2012) como um paradigma distinto do paradigma cientificista. Assim, a ética não diz respeito a uma apropriação de códigos morais impostos de forma transcendente, mas a uma criação processual de valores e critérios para a vida, a partir das experimentações cotidianas. A estética diz respeito à produção artística da vida, seus modos de organizar, expressar e ocupar espaços, tomando os processos de subjetivação como movimentos criativos e não apenas como receptores de uma já dada subjetividade. E a política toca na forma como esses processos de subjetivação são apropriados pelo indivíduo numa relação consigo mesmo, implicando esses movimentos éticos e estéticos a cada momento ao escapar das endurecidas relações de saber-poder, inventando novos modos de existência (GUATTARI, 2012). Cabe ressaltar que, se nos ancoramos nestas concepções para atuar no campo da saúde mental é por apostarmos que seja este um posicionamento e modo de ação capaz de incluir a multiplicidade de modos de vida existentes, entre estes, os assim entendidos modos desarrazoados. Trata-se de apostar numa maneira de atuar pautada em ampliar concepções de mundo e de vida, ao invés de promover exclusão, restrição e marginalização. Portanto, não se trata de uma posição em favor de um sistema teórico-técnico, mas defensora da possibilidade de existência de uma multiplicidade de modos possíveis e capazes de fomentar tais aberturas e potencializações.
O Movimento da Luta Antimanicomial há cerca de 30 anos tem pautado na sociedade brasileira a desinstitucionalização da loucura, constituindo-se em um espaço capaz de mobilizar resistências aos efeitos da lógica excludente com o qual ainda se olha para os sujeitos considerados loucos. E a participação dos usuários da saúde mental nesse espaço é assegurada mediante o exercício de uma prática comum as políticas públicas conquistadas após anos de lutas coletivas, sobretudo, ao final da Ditadura Civil-Militar que massacrou o país entre os anos de 1964 a 1985. A constituição de 1988 considerada "cidadã" garante mecanismos de participação popular capazes de sustentar a realidade democrática iniciada no país com o final desse estado de exceção. Segundo Soalheiro (2012) o complexo processo da Reforma Psiquiátrica brasileira e os desdobramentos do Movimento da Luta Antimanicomial possibilitaram a emergência dos usuários da saúde mental como sujeitos políticos
(...) que vai desde a sua vinculação a atividades coletivas na novas instituição de cuidado, passando pela representação em instâncias deliberativas locais, até a inserção em associações para lutar pelos seus direitos. Pessoas que, a partir de sua experiência particular com a loucura e o sofrimento psíquico, deparam-se com as questões relativas a essa condição e partem para a prática política" (SOALHEIRO, 2012, p. 32).
Dessa forma, o Movimento da Luta Antimanicomial consiste no lugar do embate político que coloca as discussões das Reformas Psiquiátricas no plano da luta social e coletiva. Entendemos o Movimento da Luta Antimanicomial como mobilização coletiva com características de movimento social, tendo em vista que a luta pelo fim dos manicômios assenta-se sobre discussões que atravessam todo o campo social, afetando práticas econômicas, políticas, sociais e culturais. Desse modo, não há uma análise da loucura, melhor dizendo, da produção da loucura sem colocar em cena a composição atual das relações sociais e das respectivas lutas que pretendem transformá-las.
Torna-se importante, portanto, analisar o funcionamento dos espaços de militância. Neles há uma aposta de que os espaços de lutas sociais podem potencializar a produção de modos de vida e a liberação da loucura como diferença constituinte destes modos; para além das restrições do Movimento da Luta Antimanicomial a uma função específica afirmamos "a construção coletiva do protagonismo (...) e a criação de formas concretas que produzam um usuário-ator, sujeito político (TORRE e AMARANTE, 2001, p. 84)". A constituição de existências abertas às dimensões criativas dos processos de subjetivação constitui o ponto de interesse deste trabalho, ao afirmar a potência da loucura fora das artimanhas desqualificantes às quais foi submetida pelo discurso de doença, ou falta de razão.
Assim, propomos aqui tematizar1 a prática militante presente nos movimentos da luta antimanicomial, a partir da história de vida de um usuário da saúde mental atuante nestes movimentos. Visamos investigar de que modo tais espaços e movimentos de luta se tornam capazes de produzir transformações de fato nas vidas de um usuário; ademais, desejamos compreender de que modo, estranhamente, os movimentos de luta também reproduzem a lógica excludente e desqualificante da loucura.
Percursos metodológicos
Prática cartográfica e histórias de vida
Segundo Deleuze e Guattari (2012a) todo o indivíduo e toda sociedade são atravessados por diferentes linhas, ao mesmo tempo, de modo molar e de modo molecular. No plano molar são produzidos como sujeitos em uma sociedade que atua por totalizações, hierarquizações e segmentaridades, a partir das referências ao modo padrão que, no ocidente, é o homem, branco, racional e consumista (DELEUZE e GUATTARI, 2012b). A primeira linha, molar, é responsável pelas binarizações que forjam, nesse plano social, determinações identificáveis, como adulto x criança, homem x mulher, louco x racional, escola x família, social x individual, público x privado; a segunda linha surge como uma flexibilidade a esse padrão, produzindo pequenas modificações com passagens e desvios para além das durezas da primeira linha (DELEUZE e PARNET, 1998); e a terceira linha, molecular, nomeada linha de fuga, produz furos nas durezas oriundas das primeiras linhas, fazendo vazar resistências a essas organizações totalizantes. As linhas podem, a qualquer momento, desacelerar-se numa molaridade totalizante, ou passar a vibrar numa intensidade que permita ativar sua produtividade molecular, ou seja, sua capacidade de recomposição, criação, desvio, abertura. Segundo Rolnik (2011) "toda e qualquer formação do desejo no campo social se dá através do exercício ativo dessas três linhas, sempre emaranhadas, sempre imanentes umas às outras" (ROLNIK, 2011, p.52). A cartografia constitui o ato de desemaranhar essas linhas captando suas bifurcações abertas pelo/ao tempo, forjando paisagens delineadas no campo social como modos de existências singulares produzidos no movimento incessante das linhas, pois "nesse percurso nada mais é fixo; nada mais é origem, nada mais é centro, nada mais é periferia, nada mais é, definitivamente, coisa alguma" (ROLNIK, 2011, p. 61). Dessa forma, os movimentos percorridos e produzidos pela cartografia são constitutivos de uma micropolítica, prática que atua no nível molecular, o qual não diz respeito a "(...) uma diferença de tamanho, escala ou dimensão" (ROLNIK, 2011, p. 59); diversamente, a ação micropolítica, ao atuar no nível molecular, age no incessante processo de produção de realidade, a qual é composta simultaneamente por todas essas linhas de naturezas e consistências diversas. A micropolítica considera, por isso, que essa trama de linhas é sempre complexa e multidimensional, compreendendo elementos de natureza econômica, tecnológica, biológica, histórica, política, ecológica, afetiva etc.
A prática cartográfica na entrevista constitui o manejo ético que visa intervir "para fazer com que os dizeres possam emergir encarnados, carregados da intensidade dos conteúdos, dos eventos, dos afetos ali circulantes. A fala deve portar os afetos próprios à experiência" (TEDESCO, SADE, CALIMAN, 2013, p. 304). Assim, uma entrevista realizada a partir da posição ético-política cartográfica afasta-se da lógica binária do tipo "questão-resposta", pois o que ocorre nesse espaço de conversa não diz respeito a uma troca ou assimilação de dados, mas a um agenciamento entre os sujeitos ali presentes, que se torna então algo que "está entre os dois, fora dos dois, e que corre em outra direção" (DELEUZE e PARNET,1998, p. 15). Segundo Aragon (2007) em um encontro cria-se um "mundo- próprio" que não corresponde a "uma mistura de individualidades ou como uma unidade de conjunto, mas como o surgimento de uma partitura inédita que ultrapassa o constituído num movimento paradoxal de virtualização e atualização" (ARAGON, 2007, p. 56).
Ora, lembremos que, no século XX, diferentes áreas do conhecimento promoveram uma ruptura com a forma representacional dominante na Filosofia, arte e política. As investigações foucaultianas acerca das maneiras como os sujeitos passam a existir nas diferentes sociedades, a partir da noção de "modos de subjetivação", entendidos como os "diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos" (FOUCAULT, 1995, p. 273), romperam com a tradicional discursividade voltada às dicotomias sujeito x sociedade e história x verdade. A concepção transversalista dos modos de subjetivação concebe a subjetividade de duas formas: a que se vive "tal como a recebe" pelos processos efetuadas nas relações de poder- saber; ou a sua reapropriação na produção de singularizações (GUATTARI e ROLNIK, 2000), as quais apontam para a criação de figuras complexas e singulares a cada momento.
Portanto, afirmamos o pesquisar como produção de conhecimento coletivo baseado no encontro entre as pessoas envolvidas, com dados teóricos e/ou empíricos, e também, como um problema político ao dobrar-se sobre as transformações produzidas pela própria pesquisa nas existências dos sujeitos (PASSOS e BARROS, 2015). Nesse sentido, as transformações ocorridas na vida de sujeitos participantes dos espaços sociais do Movimento da Luta Antimanicomial foram analisadas por meio da partilha de suas vivências, experiências, expectativas, pois, ao propor investigar os efeitos da participação política nas transformações dos modos de vida desses sujeitos compreendeu-se a importância das suas histórias acerca dos fatos vividos desde o momento que sucumbiram à trama psiquiátrica até os dias de hoje. Assim, as entrevistas funcionaram como máquina de contar histórias abertas a uma dimensão fabuladora, isto é, à possibilidade de fazer do relato contado uma outra versão, a qual, em si, promove a transformação desses fatos supostamente vistos como real.
Dessa forma, interseccionamos o plano genético da cartografia como criadora de mundos com a construção fabuladora das pessoas acerca das suas vidas. Logo, contaremos uma história que não possui conteúdos encerrados sobre si mesma, pois se abrem nela espaços de problematizações, invenções e acontecimentos narrativos.
A história que se segue percorreu os caminhos de um usuário da saúde mental por entre o movimento da luta antimanicomial. Escolhemos ouvir João das Dores (nome fictício) por acompanhar sua atuação nos espaços institucionalizados do Movimento da Luta Antimanicomial do Espírito Santo, como o Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial, vinculado ao Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (MNLAM). Começamos a frequentar esses espaços ainda na época da graduação, e sempre o víamos participando das reuniões, colocando suas opiniões, compartilhando de outros espaços institucionalizados de exercício político, como o Conselho Municipal das Pessoas com Deficiência, ou o Fórum Capixaba em Defesa do SUS. Por um bom tempo, o movimento estudantil de psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) esteve próximo ao Núcleo Estadual da Luta Antimanicomial traçando estratégias de lutas, produzindo atos e eventos relacionados à luta pelo fechamento dos manicômios, que ainda resistiam na região. Essa parceria aproximou-nos de João das Dores, que diversas vezes transitou pelo Centro Acadêmico, e pelos espaços da universidade, seja para "trocar uma idéia", ou ir as reuniões do Fórum de Saúde, que ocorriam na maioria das vezes na sede do sindicato dos professores. Em um dado momento da entrevista, quando partilhávamos relatos acerca das experiências dos encontros nacionais do MNLAM dos quais João das Dores participou, ele entre risos, afirmou que havia aprendido a debater conosco (movimento estudantil); segundo ele, na articulação de ideias éramos muito bons.
Nesse sentido, quando decidimos discutir a participação política dos usuários da saúde mental e os efeitos dessa nos modos de subjetivação desses sujeitos optamos por conversar com alguém que tivesse histórias para contar devido a frequência ativa nos espaços do movimento da luta antimanicomial.
E por saber do engajamento de João das Dores, por vê-lo e ouvi-lo constantemente próximo à militância o convidamos para escutar suas histórias e produzir outras a partir do conhecimento permitido por essa partilha de experiências.
A entrevista foi realizada em uma tarde, em uma sala de aula da UFES, após o convite feito via telefone. Os questionamentos propostos para esse espaço não possuíam características de perguntas fechadas, mas consistiam de tópicos que pudessem nos orientar no percurso das histórias narradas por João das Dores, como as experiências no processo de adoecimento/internação psiquiátrica; o acompanhamento no CAPS; a participação nos espaços sociais e políticos do Movimento da Luta Antimanicomial; e seus desdobramentos para outros espaços de militância.
Para além de perguntas feitas de forma serializada, ou das respostas de João das Dores a essas questões interessava-nos a articulação entre os relatos ali contados e a reflexão acerca dos mesmos. A criação de um espaço comum no qual pudéssemos partilhar nossas experiências e expectativas com a militância, principalmente, a antimanicomial. Estivemos juntos em alguns lugares, como o encontro nacional do MNLAM em Niterói (2014), diversas reuniões do Fórum de Saúde, algumas do Núcleo Estadual, entre outros eventos, havia ali um lugar comum de militante da luta antimanicomial, assim como, diferenças na ocupação desses espaços. João das Dores trouxe constantemente em seu discurso a existência de lugares demarcados: os pronomes "ele" ou "eles", ou "nós", apareciam quando se tratava dos usuários de saúde mental, e "vocês" quando a referência se fazia aos profissionais/trabalhadores da saúde mental e estudantes, que futuramente ocupariam esse lugar.
Nesse sentido, a entrevista operou também uma análise das nossas práticas atuais, os modos como ocupamos os espaços de militância, e a forma como produzimos nossas mobilizações sociais.
A trama de João das Dores - Uma vida militante antimanicomial
Na contramão de um suposto enquadramento a realidade tal como se apresenta já constituída buscamos durante a entrevista atentarmo-nos para a força criativa presente nos modos de subjetivação de João das Dores. Assim, em meio à pesquisa surgiu um personagem cujas histórias compuseram outras versões de resistências em uma realidade antimanicomial. Para além das suas dores ele nos mostrou sua perspectiva com a militância iniciada no Movimento da Luta Antimanicomial logo após sua inserção no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o qual frequentou ao longo dos últimos 22 anos. Destaque-se que os primeiros trabalhadores com o qual teve contato no CAPS eram militantes que partilharam com ele uma "convivência de carinho e união" colaborando na constituição desse corpo político, que "não consegue mais desistir" da luta.
"e quem me ajudou muito foi a minha equipe, que hoje em dia tô colocando como a melhor do planeta, melhor do mundo."
A vida para alguns é teimosia. João das Dores contou que os seus "problemas psiquiátricos" tiveram início com um encontro nada agradável com um agente público de segurança. "Quantos jovens negros ou quase brancos, de tão pobres", são tratados como vidas abjetas nas periferias do Brasil e sentem cortar na carne essa navalha? João das Dores sentiu em sua vida essa navalha. Não entrou para as estatísticas de homicídios cometidos pela polícia, mas, segundo João das Dores foi a partir desse momento que passou a apresentar um quadro de depressão, medo, delírios, surtos. Uma vida transtornada no encontro com o abuso de poder. João das Dores teimou em sobreviver.
"(...) e uma policial a paisana acabou com a minha vida... Meu deu a coronhada que afetou mais a memória, eu não gravava, não tinha acesso a minha memória, eu tinha falha (...)"
Curiosamente, ao se referir as pessoas que não tiveram uma experiência com o enlouquecimento (internações psiquiátricas, surtos, acompanhamento nos serviços de saúde mental) chama-as de "cidadãos comuns". Em um primeiro plano coloca-se em um lugar distinto dessas para posteriormente reconhecer que com a ajuda da militância e do CAPS's pôde vislumbrar- se, em partes, como um "cidadão comum".
Nessa primeira versão essa história talvez remeta a uma pessoa tentando encaixar-se nos padrões impostos, tentando sujeitar-se a modelos; contudo, João das Dores percorre outras linhas ao dar passagem à sua possibilidade de constituir- se um cidadão comum. Apesar do "(...) preconceito que existe no mundo todo" o Movimento da Luta Antimanicomial o ajudou "a quebrar com o preconceito" ensinando-o "a convivência também, o diálogo, aprendi a falar, aprendi a conversar, aprendi a respeitar, aprendi ser um cidadão comum." João das Dores parece ter extraído das atribuições dos cidadãos comuns aquelas que poderiam corroborar com o seu exercício político.
"(...) aprendi muita coisa, muito no Movimento da Luta, o Paulo Delgado, a [lei] 10.216, de lá para cá fui aprendendo, o próprio movimento das leis, e junto com o fulano que é o presidente nosso, e nós mexe com política, política pública, além de política pública mexe também com.... como está os lugares, mexer com os portadores de deficiência (...)
Uma vida marcada pela violência de forma precoce, um jovem trabalhador incapacitado para as ações mais banais do dia-a-dia. Precisou, aos poucos, reorganizar-se; as dificuldades encontradas por não ser, ou não se sentir, um cidadão comum o havia deixado calejado, até o momento que aprendeu a "dor e a delícia de ser o que é".
Ao longo do período que esteve acompanhado no CAPS experimentou a vergonha, por ser taxado de louco e não conseguir executar ações do seu cotidiano e do seu gosto pessoal, como viajar, porque antes do ocorrido "era, tipo andarilho, sair conhecer os lugares, não tinha medo, não tinha". Algo que ficou em pausa por um bom tempo, até conseguir retomar com o auxílio da militância: João das Dores relembra a ida ao X Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial e o XI Encontro Nacional de Usuários e Familiares do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial (Niterói/RJ-2014), para o qual saiu um ônibus fretado do Estado com um público bem diversificado. E ele foi para Niterói com um ônibus convencional: "(...) ai eu ia com um paciente nosso, mas ele não foi, passou mal, e eu surpreendi e eu achei maravilha, não achei um bicho de sete cabeças, consegui vencer a autonomia de um cidadão, né? se um cidadão né? [sic] Que a equipe confiou, tava lá, única coisa que minha mãe reclamou em casa foi que ninguém me pegou na rodoviária até lá, eu fui andando, eu liguei antes, né? Quando eu liguei, porque eu cheguei primeiro que vocês (. ). É cheguei primeiro que vocês, fui perguntando, como diz o ditado "quem tem boca vai a Roma", né?"
Interessante vermos aqui uma das linhas de potência que a vida de militância de João das Dores encontrou: a retomada de certa errância, que aponta ter sido característica singular de sua vida anterior. Vemos, pois, que a luta trouxe "linhas antimanicomiais" para a vida de João das Dores, na medida em que lhe permitiu vencer vergonhas, retomar atividades que julgava potentes e ver-se agindo com a liberdade de "um cidadão comum", circulando por espaços e cidades, interagindo com outras pessoas quando necessário, encontrando meios próprios para conseguir chegar ao local que desejava.
João das Dores não está mais frequentando o CAPS, teve alta, mas segue visitando o espaço para conversar com os amigos que fez lá. E, também, continua representando os usuários nas vendas da economia solidária. Percebemos que algo que outrora foi visto como constrangedor para ele, fazer acompanhamento em um serviço de saúde mental, deixou de ser no momento que parou de se lamentar por "não ser..." para ver-se como um sujeito capaz de viver diferentes experiências de um jeito singular. Assim, quando ele afirma "nem usuário [da saúde mental] eu sou mais, sou militante", vislumbramos o terreno fértil possibilitado pelo encontro entre essas duas posições, pois reconhece a importância do Movimento da Luta Antimanicomial na superação de alguns preconceitos, incluindo o próprio em relação a si mesmo, e as transformações vividas
"...por um lado bom, a única coisa que eu vejo assim que você vê resultado, que você vê a gente lutar com garra, vencer, vai viajar, representação nacional, agora tô trabalhando, isso o movimento da luta foi pra mim..."
Mas, também, apresenta queixas em relação a um certo isolamento do Movimento da Luta Antimanicomial, pontuando a ausência dos usuários da saúde mental dos espaços políticos do Movimento da Luta Antimanicomial.
"(...) seria bom se todo mundo fizesse isso, hoje em dia você vê poucos no Movimento da Luta, você conta mais profissionais e pouco usuários."
Segundo ele, os demais usuários poderiam se beneficiar de experiências transformadoras tal como ele mesmo vivenciou, visto que são espaços propícios a novas articulações, como deixou nítida a sua experiência com as viagens para os encontros do movimento da luta antimanicomial.
"(..) é pro pessoal aprender a não ficar em um lugar só, circular tudo..."
João das Dores destacou também a importância de uma maior articulação do Movimento entre as pessoas que participam, e com a sociedade, haja vista que, apesar de tanta mobilização continuam a ocorrer diversas mortes.
"(...) que nem eu agora, né? Fiquei sabendo que teve mais uma morte no hospital, até quando a gente luta, vence, ainda tem mais morte (...). Um movimento que tem convênio com o cemitério, parece que é isso. "
Indagamos com João das Dores sua perspectiva acerca dos motivos que levavam a ausência dos usuários desses espaços: a falta de vontade, surgiu como um fator preponderante; disse ainda que a ida às reuniões deveria ser algo obrigatório, já que o usuário de saúde mental vai estar no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) naquele horário.
Aqui, nos acautelamos com a fala de João das Dores, pois acreditamos que respostas com um certo teor culpabilizante ou que tornam a questão da participação dos usuários da saúde mental nos espaços políticos como algo de escolha individual são frágeis por manterem o debate no âmbito personalista. E, de acordo com Figueiró e Dimenstein (2010) esse descolamento dos usuários de saúde mental dos espaços políticos corresponde a uma problemática atual do campo das Reformas Psiquiátricas, as quais, mesmo avançando no âmbito dos investimentos nos equipamentos de saúde mental e recursos humanos, segue com dificuldades de aumentar ou tornar efetiva a participação política dos usuários nesse processo, que acaba ganhando um tom de atenção técnica e especializada (FIGUEIRÓ e DIMENSTEIN, 2010). Em 2010 durante a IV CSMI-I2 ocorrida no Rio Grande do Norte, Figueiró, Mello, Minchoni e Silva (2011) analisaram as ausências dos usuários de saúde mental nesse espaço político, e perceberam
(...) uma escassa participação de usuários no processo da conferência. Quando essa participação acontece, geralmente é atravessada por questões como a pouca instrumentalização política para uma potente e efetiva participação no processo político da conferência. Além disso, assistimos a um predomínio de técnicos e acadêmicos a frente desses espaços, relegando o usuário ao lugar de espectador diante de processos decisórios importantes (...). Esse fato pode ser entendido como um simples reflexo do que é comum que aconteça durante todo o processo de participação dos usuários nos serviços: o distanciamento entre eles e as práticas institucionais (FIGUEIRÓ e cols., 2011, p. 55).
Lembramos de um episódio ocorrido em 2014 durante o XIII Encontro Nacional do Movimento da Luta Antimanicomial. Por ser um espaço de debate e formulação de política para o Movimento da Luta Antimanicomial construir até o próximo encontro passávamos os dias entre mesas, discussões, plenárias iniciais, e GT's. E como ocorre em diversos encontros de movimentos sociais, os GT's debatiam os assuntos e apresentavam as possibilidades de ações e debates para a plenária final avaliar e decidir. As discussões permeavam os temas da Reforma Psiquiátrica brasileira: os avanços e retrocessos, a Política de Saúde Mental, a reorganização dos serviços substitutivos à lógica hospitalocêntrico, as condições de habitação, os benefícios sociais, economia solidária, dentre outros temas.
João das Dores em um GT colocou em discussão a gratuidade dos meios transportes para além dos ônibus, queria a expansão desse direito e gostaria que o Movimento da Luta Antimanicomial encampasse essa luta. Soubemos que sua questão havia passado para as decisões da plenária final repleta de incômodos, tanto que ao chegar nessa última instância de decisão, ouvimos falas que questionavam a importância de tal demanda e diversas tentativas de se passar por ela de forma rápida e desapercebida. Então, João das Dores encheu-se de coragem, foi à frente defender sua ideia e solicitar a abertura para o debate, algo que se faz com todo ponto que causa divergência durante as plenárias. Um rito comum nesses espaços. Algo que causou ainda mais desconforto. Ele dizia "por que a gratuidade/ meia passagem deve ser para todos os transportes, quem não quer fazer um cruzeiro?!" Os murmurinhos aumentaram de volume. E no final de sua fala alguém como contraponto argumentou o porquê dessa discussão não ser importante naquele momento: as dificuldades surgidas atualmente traziam problemáticas para a Reforma Psiquiátrica brasileira capazes de produzir um retrocesso enorme nas conquistas feitas até então e seria necessário utilizar os próximos momentos para avançar em pautas que pudessem fazer frente a esses retrocessos. Feito o contraponto, a questão de João das Dores foi para a votação e recusada como ponto a ser organizado nos anos seguintes. Ainda empolgado, apesar do resultado, ele deixou seu recado "não vou desistir não!".
Naquele momento para além da rapidez e do tempo curto de uma plenária final deixamo-nos envolver por aquela demanda de João das Dores, sua coragem em ir a frente expor sua opinião, mesmo a contragosto de muitos ali presentes. Realmente, talvez a questão fosse desimportante, ou não tenha sido colocada de forma adequada na concepção de alguns militantes, porém, João das Dores conseguiu colocar em debate algo que acreditava ser pertinente, defendeu sua ideia, e não recuou frente a olhares inquisidores.
Nesse sentido, quando ele trouxe em sua fala esse esvaziamento dos usuários, lembramos de cenas assim, no qual há uma certa impaciência com a fala desses sujeitos, algo que encontramos recorrentemente no nosso percurso pela militância na luta antimanicomial, visualizamos essa dinâmica burocratizada de participação política como capaz de contribuir com o afastamento dos usuários da saúde mental desses espaços. Afinal, quantos já conseguem lidar com esses espaços, com seus modelos instituídos, da forma corajosa com a qual João das Dores conseguiu se lançar?
Arraes, Dimenstein, Siqueira, Vieira e Araújo (2012) elencaram analisadores acerca da participação social dos usuários na IV CNSM-I, dentre eles há um sobre o formato da conferência estruturada de forma excessivamente acadêmica e expositiva resultando em uma restrição ao exercício do controle social (ARRAES e cols., 2012).
A burocratização do debate refletida na preocupação em seguir a pauta e as inscrições, por um lado, viabilizam a consecução do processo participativo e democrático de conferência e garantem o fluxo das discussões. Por outro lado, no entanto, tal preocupação termina por inibir a participação de alguns segmentos envolvidos, sobretudo dos usuários (...). Neste caso observado, a obsessão pelo controle do tempo de fala dos usuários em suas intervenções, depoimentos e contribuições, redundou no constrangimento da sua participação efetiva (ARRAES e cols., 2012, p. 78).
Ainda que João das Dores responda ser falta de vontade, que "estão relaxados todos eles", e reclama estar sozinho "fazendo o papel deles", pois "seria bom se todo mundo fizesse isso", no seu discurso também surgiu um lamento capaz de operar uma análise ampliada acerca desse esvaziamento dos usuários do espaço do Movimento da Luta Antimanicomial. João das Dores coloca o seu conhecimento distante do conhecimento de gente de capacidade máxima". Na sua fala esse conhecimento fica a meio passo entre o saber adquirido formalmente nos bancos escolares e uma certa formação política sustentada por esse conhecimento. Não há uma desqualificação quanto ao seu saber, pois ele mesmo diz possuir "muita sabedoria, conhecimento, pego rápido as coisas"; porém, há uma sensação de falta, de uma incompletude no seu exercício político.
João das Dores já tentou por diversas vezes retomar os estudos, mas, com dificuldades na memória remanescentes de seu incidente não conseguiu finalizar nenhum "grau completo".
"eu sou uma das poucas pessoas com deficiência (atuantes no Conselho) que não terminou o grau completo..."
Quando buscamos entender com João das Dores sua sensação de falta, ele disse que todos podem vir a ter essa capacidade máxima, só que no caso deles (usuários) existiriam dificuldades, algumas produzidas pela falta de confiança neles mesmos ao ocuparem esse lugar junto a "gente de capacidade máxima". Não é que não possam ter capacidade máxima,
"Nós ter temos, mas existe é difícil uma outra pessoa chegar assim, ter um diálogo com a equipe e profissional tão importante, que dá o acompanhamento, né? No movimento. a pessoa ser e confiar, respeitar, e além de respeitar ser um cidadão que fala. assim "Pouxa!!...acreditar (acreditar neles mesmo)"
Diríamos que, para um usuário dos serviços de saúde mental, o movimento de militância antimanicomial é passível de oferecer aberturas para investimentos em novos terrenos e atividades, de modo a ampliar a sua saúde em direção também a uma atuação política. Por outro lado, diríamos que, se o movimento de militância impõe uma forma normativa e disciplinadora de luta, acaba reproduzindo alguns manicômios no âmbito do movimento político, ao sustentarem uma "racionalidade carcerária, explicativa e despótica (...) que aprisiona a experiência da loucura ao construir estereótipos para a figura do louco e para se lidar com ele" (MACHADO e LAVRADOR, 2012, p.46).
Ainda que no nível do serviço substitutivo em saúde a lógica seja capaz de contemplar singularidades.
Diante do exposto por João das Dores algumas questões surgiram: como povoar o Movimento da Luta Antimanicomial com os usuários dos serviços de saúde mental que constituem segmento imprescindível nas ações empreendidas por esse espaço social e político? O que pode um espaço político na qual os usuários participem de forma contundente?
"nós somos cabeça de chave ali com vocês"
Percebemos que essa militância colocada como um lugar importante na vida de João das Dores foi agenciada com uma circulação que não diz respeito a quilômetros percorridos, mas, da saída para estar no mundo muitas vezes interrompida por práticas arraigadas em certo modelo racional e hierárquico.
"eu não consigo mais desistir. se desistir eu adoeço"
A questão que nos cerca é: como é possível tecermos novos modos e novos territórios de luta capazes de dar conta da natureza singular da loucura? É urgente, portanto, a construção de novos modos de organização desses espaços políticos, especialmente dentro da luta antimanicomial. Desta maneira, colocamo-nos em consonância com a afirmação de Guattari (2000) de que a democracia talvez se expresse bem numa sociedade ao nível das grandes organizações políticas e sociais, mas ela só ganha consistência se existir no nível molecular, com condições de criar novas práticas que impeçam o retorno de velhas estruturas, de modo que as relações deixem de ser sustentadas por hierarquias passando a constituir-se por meio da criação de espaços coletivos "através do trabalho de mudança dessas relações e na produção de outras formas de expressão para o louco e sua loucura, que se mostram não só viáveis, mas inovadoras e de extrema riqueza" (TORRE e AMARANTE, 2012, p. 82).
Discutimos a possibilidade de uma ética militante antimanicomial a partir do conceito foucaultiano de ethos referido a atitude na qual o exercício de uma vida ética põe-se atuar, e por atitude entende-se
um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa" (FOUCAULT, 2000, p. 341-342).
Por uma ética militante antimanicomial
Lembremos, pois, que Deleuze e Guattari (2010) discutem os conceitos como ferramentas capazes de operar na realidade. Então, como ferramenta para discutir essa ética militante capaz de sustentar uma lógica antimanicomial e ressaltar o caráter heterogêneo do movimento da luta antimanicomial lançamos mão da discussão conceitual que estes autores fazem em torno dos conceitos de território, expressão e desterritorialização. Ora, quando Lancetti (2011) fala da necessidade do serviço de saúde mental abrir-se ao território, compreendemos que, mais do que estar aberto ao bairro, a outros equipamentos e agrupamentos locais, se está falando da capacidade de um dispositivo como os CAPS's estarem conectados com linhas de singularização, linhas de fuga e de novas conexões, as quais lhe chegam de fora ou de dentro dos movimentos mais sutis do próprio estabelecimento. É que, segundo Deleuze e Guattari (2012b), um território possui sempre três elementos: componente direcional, componente dimensional e componente de passagem. O componente direcional constitui a saída do caos em busca de um território, quando em meio ao caos procura-se um movimento de estabilização mínima, o qual protege do aniquilamento, ruína ou perdição completa; os autores dão o exemplo da criança no escuro, que busca desacelerar seu medo entoando uma pequena cantiga. O outro aspecto, dimensional, refere-se ao traçado de um centro, que estabelece um ponto no caos com segurança suficiente para a constituição de um território, "para a organização de um espaço, e não mais para a determinação momentânea de um centro. Eis que as forças do caos são mantidas no exterior tanto quanto possível, e o espaço interior protege as forças germinativas de uma tarefa a ser cumprida (...)" (DELEUZE e GUATTARI, 2010b, p. 122). Trata-se do estabelecimento de um traçado que protege forças criativas e aspectos singulares do território, para que possam ser gestadas, incubadas de modo seguro o suficiente para crescerem e encorparem. Por último, o componente de passagem diz respeito à operação capaz de desterritorializar esse território, que será uma instância provisória, sempre transitória. O componente de passagem promove aberturas no território, desbasta suas cristalizações e permite que ele não se feche em si mesmo, de modo a manter-se conectado com um certo número de linhas de transformação. É no componente de passagem que "enxertam-se ou se põe a germinar "linhas de errância", com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes" (DELEUZE e GUATTARI, 2010b, p. 123). Deleuze e Guattari (2010b) afirmam, então, que o território é sempre, antes de tudo, espaço que dá lugar a modos de expressão - uma superfície estética -, não é um composto esquadrinhado de funções, setores e órgãos. Assim, primeiro há uma singularidade que se expressa e constitui o território, só depois se organizam as funções. O território porta sempre um aspecto estético-artístico, mais do que orgânico, pois seu movimento é o de criar, dar gênese a um campo composto de linhas singulares, potências e novos afetos.
A partir dessas definições percebemos a confusão que pode colocar em causa o esvaziamento dos usuários e a fragmentação dos espaços de luta: confunde-se a função com o próprio território, a organização com a expressão. Daí, perdem-se as potências das diferenças colocadas pelos usuários e que podem vir a desterritorializar o território de luta em direção a novas pautas, novas visões, desejos, organizações e até novos direitos. Dessa forma, pensar na expressividade do território antimanicomial anterior a determinada função compõe "uma política que busca escapar das formas de assujeitamento, sempre apontando para o lado dos processos criativos, daquilo que insistentemente se desprende e que sempre dita uma outra composição possível" (COSTA, 2006, p.2). Nessa medida, a luta antimanicomial constitui-se primeiro como uma expressão, uma assinatura territorial, para então, acolher funções, como a mobilização coletiva em prol do fim dos manicômios, ou a efetivação da Política de Saúde Mental, com investimentos adequados nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial.
Essa ética militante antimanicomial expressiva de um território de luta constituiria um movimento social não preocupado em reproduzir formas e modelos, mas em inventar novos modos de resistência.
Vemos, pois, a necessidade de se compor um território de luta antimanicomial que coloque em fuga o próprio território, a partir de uma ponta de desterritorialização capaz de impedir a cristalização em formas: nem uma militância endurecida, nem uma dispersão total no caos. Discutimos a possibilidade dos espaços de luta antimanicomial serem territórios abertos às linhas de fuga; territórios desvinculados da desordem caótica - também adoecedora -, mas sempre passageiros, sempre retornando sobre si para transformar-se. Em outras palavras, nos perguntamos se seria possível existir um território de luta antimanicomial capaz de funcionar a partir do modo de existência e de expressão próprio da loucura, um espaço cuja natureza constitua-se segundo a lógica singular da loucura.
Essa outra natureza de território de luta contrapor-se-ia às formas militantes e aos rituais padronizados dos movimentos sociais, os quais refletem mais uma neurose militante do que a produção efetiva de resistência e singularização. Diante disso, vemos que um desafio para o Movimento da Luta Antimanicomial como um movimento social que engloba diferentes atores políticos, com diferentes saberes, tanto técnicos quanto práticos - além da complexidade oriunda da experiência com a loucura - é produzir uma consistência antimanicomial capaz de articular todos esses saberes. Não se trata de uma instrumentalização para a luta com ferramentas distantes da realidade de muitos ali presentes, mas de um conhecimento expressivo com condições de criar uma ética militante própria à loucura. Um conhecimento com condições de manter os saberes heterogêneos enquanto heterogêneos na confecção de um território antimanicomial.
João das Dores não consegue mais desistir da luta, pois percebeu as transformações em sua vida a partir das experiências vivenciadas no movimento da luta antimanicomial, e com algum custo aprendeu que "confiar em si mesmo" é um exercício cotidiano, eventualmente atravancado por pessoas que "acaba com a confiança da gente" por ignorarem o conhecimento possuído por ele/eles. Assim acompanhamos as possibilidades do Movimento da Luta Antimanicomial atuar como um trampolim na consolidação de um sujeito que saiba das suas potencialidades, mas pode, por outro lado, sucumbir às prescrições, travando todo o processo de produção de transformações, tanto de sua saúde afetiva, quanto de sua atuação militante.
Considerações finais
Militância política e transformações na vida
No percurso da pesquisa o olhar voltado para grandes movimentos de subjetivação deu lugar para a o ínfimo deslocamento de novos modos de vida, na qual "o novo não comparece como inovação, mas, como intempestivo, como diferença, como desvio" (SILVA, 2014, p. 581). Nesse sentido, João das Dores nos apresentou uma atuação política que talvez não se encaixe no modo de militante instituído e por diversas vezes seja rebatida a essa lógica de forma a diminuir a sua potência. Contudo, João das Dores produziu uma ética militante capaz de mantê-lo firme em seu modo singular de resistência, apesar das continuas tentativas de captura. Por isso, não falaríamos mais a partir da concepção macropolítica de militância, mas de agenciamentos-militantes capazes de produzir uma resistência autobiográfica, encontrada quando optamos por buscar "o que é menor, aquilo que agita um estado de coisas, que faz problema, deste modo, ouvidos, narizes, bocas, mãos, se põe a vasculhar um acontecimento" (COSTA et al, 2012, p. 45) não referido ao futuro de utopias ou o passado de vitórias, mas o presente dessas transformações. Percebemos em João das Dores sua criação autobiográfica de um modo de resistência ao reconhecer a sua diferença diante a capacidade máxima imposta, e ainda assim criar um corpo político, um corpo que resiste.
Encerramos, assim, trazendo o debate coletivo presente no texto "Confinamento, Psiquiatria e Prisão" (FOUCAULT, 2010), no qual se discutiu o termo dissidência a partir da noção de dissension, tomando-o como uma "diferença de sentir, de pensar (...) colocar-se em outro campo" (FOUCAULT, 2010 p. 138). Ressalta-se a diferença entre a dissidência e seu similar em inglês, dissensão, o qual se refere ao ato de manter-se no mesmo campo, porém pensando diferente (FOUCAULT, 2010). Dessa forma, enfim, buscamos colocar em causa uma dissension no campo da luta antimanicomial, para manter a alegria de produzir, a partir da luta, sempre uma nova vida, uma vida que se singulariza e afirma a potência da loucura.
A luta antimanicomial é, portanto, um campo heterogêneo, na qual sempre haverá quem prefira contar suas vitórias, outros a apontar seus fracassos, mas a escolha de afirmá-la no campo do intempestivo - no constante embate com a sua dimensão histórica para dela extrair seus processos de produção, contudo, sem a ela retornar (DELEUZE e GUATTARI, 2010) - volta a atenção aos movimentos inventivos de outras existências possíveis, fora da submissão aos discursos que insistem em aprisionar a diferença.
Notas
1 Investigação que foi parte integrante de pesquisa de mestrado em Psicologia Institucional amparada pela CAPES.
2 A sigla refere-se a IV Conferência de Saúde Mental Intersetorial ocorrida no Estado do Rio Grande do Norte, em 2010. O evento corresponde a etapa estadual realizada anterior a Conferência Nacional de Saúde Mental, sendo responsável pela escolha dos delegados e assuntos que irão representar esse Estado no âmbito nacional (Figueiró e cols., 2011).
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Enviado em: 24/08/17
Aceito em: 19/08/18
Júlia Carvalho dos Santos é psicóloga formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e mestre em Psicologia Institucional pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPSI-UFES).
E-mail: juliacarvalho.psi@gmail.com
Fernando Yonezawa é mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPSI-UFES).
E-mail: fefoyo@yahoo.com.br
Adriana Leão é professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGPSI-UFES), terapeuta Ocupacional formada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Mestre em Enfermagem e Doutora em Ciências pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EE-USP).
E-mail: drileao@gmail.com