Revista Polis e Psique
ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.9 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2019
ARTIGOS
À captura dos instantes: políticas de visibilidade em imagens contemporâneas
To the capture of moments: policies if visibility in contemporary images
A la captura de instantes: políticas de visibilidade em imágenes contemporâneas
Maicon Barbosa
Centro Universitário Augusto Motta (Unisuam), Rio de Janeiro, RJ, Brasil
RESUMO
Esse artigo tem como objetivo pensar algumas políticas de visibilidade no presente, que produzem práticas de captura incessante de imagens por meio de aparelhos portáteis, tanto em experiências de viagens como na vida cotidiana. Para isso, problematiza-se o culto à novidade, constituído na modernidade, e que retorna de muitas maneiras ao presente. Inspirado em um pensamento crítico das imagens, presente na obra de Walter Benjamin, e atento às relações entre o visível e o dizível em um determinado momento histórico, esse trabalho analisa articulações entre algumas políticas de visibilidade contemporâneas e certos regimes de enunciação, como os discursos de exaltação da novidade de artefatos imagéticos. Por fim, o artigo se propõe a pensar como alguns filmes-ensaio recentes produzidos pelo cineasta Jean- Luc Godard interrogam essas políticas de visibilidade marcadas pelo imperativo de captura e exibição contínuas de imagens.
Palavras-chave: imagem; subjetividade; fotografia; cinema; Psicologia Social.
ABSTRACT
This article aims to think about some policies of visibility in the present, that produce practices of incessant capture of images by portable devices, both in travel experiences and in daily life. For this, the cult of novelty, constituted in the modernity, and returning in many ways to the present, is problematized. Inspired by a critical thinking of the images, present in the work of Walter Benjamin, and attentive to the relations between what's seen and what's said in a determined historical moment, this work analyzes articulations between some policies of contemporary visibility and certain regimes of enunciation, such as the speeches of exaltation of the novelty of imaging artifacts. Finally, the article proposes to think how some recent essay films produced by the filmmaker Jean-Luc Godard question these policies of visibility marked by the imperative of continuous capture and exhibition of images.
Keywords: image; subjectivity; photography; cinema; Social Psychology.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo pensar algunas políticas de visibilidad en el presente, que producen prácticas de captura incesante de imágenes por medio de aparatos portátiles, tanto en experiencias de viajes y en la vida cotidiana. Para ello, se problematiza el culto a la novedad, constituido en la modernidad, y que retorna de muchas maneras al presente. Inspirado en un pensamiento crítico de las imágenes, presente en la obra de Walter Benjamin, y atento a las relaciones entre lo que se ve y lo que se dice en un determinado momento histórico, este trabajo analiza articulaciones entre algunas políticas de visibilidad contemporáneas y ciertos regímenes de enunciación, como los discursos de exaltación de la novedad de artefactos imagéticos. Por último, el artículo se propone pensar cómo algunos filmes-ensayo recientes producidos por el cineasta Jean-Luc Godard interrogan estas políticas de visibilidad marcadas por el imperativo de captura y exhibición continuas de imágenes.
Palabras-clave: imagen; subjetividad; fotografía; cine; Psicología Social.
Incansáveis caçadores de imagens
Fotografar e filmar com aparelhos digitais portáteis tornaram-se gestos comuns frente a algo que é minimamente desconhecido ou estranho. Esses gestos de fabricação imagética aparecem diante de um quadro num museu, de uma cidade desconhecida, de um protesto, de uma cena do cotidiano de uma cidade. É como se tudo tivesse tornado-se capturável e exibível: partos, práticas sexuais e mortes violentas.
Parece raro, em algumas situações, olhar sem uma câmera fotográfica digital, ou smartphone, enquadrando o olho. Nas exposições, nos shows, diante de uma paisagem, nas viagens, uma das primeiras coisas a ser feita é sacar um aparelho portátil que registra imagens e capturar tudo aquilo que for possível. A impressão é de que se tornou mais difícil olhar sem essas máquinas, seja para uma instalação, para um monumento em um espaço aberto ou para um lugar desconhecido. No campo das artes visuais, algumas obras fotográficas como Photoland2, de Fábio Seixo, e Too Much Photography3, de Martin Parr, visam mostrar essa incansável vontade de captura de imagens por meio de aparelhos portáteis. A vontade de registrar em um aparelho digital, às vezes, parece sufocar outras formas de olhar, e acompanha a intensificação de uma espécie de novos colecionadores de imagem, com suas fotos e vídeos feitos aos montes. Como interrogar certos usos contemporâneos dos ecrãs móveis e suas interferências nos modos de olhar? Algumas vozes que cultuam as novidades diriam que agora está na mão de todos a possibilidade de fazer imagens videográficas e fotográficas, como se estivéssemos diante da concretização do sonho de uma partilha dos meios de produção imagéticos. Não seria ingenuidade demais simplesmente aderir a essas vozes? Obviamente, as mãos que podem fabricar essa miríade de imagens são apenas aquelas que têm acesso ao consumo de câmeras e smartphones.
No conto A aventura de um fotográfico, Ítalo Calvino (1992) nos fala de Antônio Paraggi, um homem que não era um fotógrafo profissional, mas, passa a manter uma relação incontida com o ato de fotografar coisas e pessoas. À medida que vai tornando-se hábil com as objetivas e os fotômetros na incansável tarefa de capturar o máximo possível da existência em imagens, o personagem do conto de Calvino nos fala da impressão que "[...] para viver de verdade é preciso fotografar o mais que se possa, e para fotografar o mais que se possa é preciso: ou viver de um modo o mais fotografável possível, ou então considerar fotografáveis todos os momentos da própria vida" (Calvino, 1992, p. 53). Nesse conto publicado originalmente em 1970, antes de as imagens digitais terem assumido um lugar central nas formas de visualidade, Antônio Paraggi apontava esse absurdo dilema que parece nos rondar diariamente nos tempos de agora: ou vivemos, em alguma medida, concentrando esforços para tornar possível os constantes e intermináveis registros imagéticos, ou, abandonando a tentativa de organizar os gestos para as câmeras, passamos a considerar que tudo na existência humana deve ser fotografado e filmado, mesmo quando não se prepara o terreno para que os movimentos tornem-se capturáveis. A voracidade dos aparelhos portáteis fabrica mais e mais imagens, mirando variadas poses, focando um sem número de performances, e incidindo sobre gestos distraídos que correm sem desconfiar das câmeras à espreita.
Com a chegada da primavera, os habitantes das cidades, às centenas de milhares, saem aos domingos levando o estojo a tiracolo. E se fotografam. Voltam satisfeitos como caçadores com o embornal repleto, passam os dias esperando com doce ansiedade para ver as fotos reveladas [...] e somente quando põem os olhos nas fotos parecem tomar posse tangível do dia passado, somente então aquele riacho alpino, aquele jeito do menino com o baldinho, aquele reflexo de sol nas pernas da mulher adquirem a irrevogabilidade daquilo que já ocorreu e não pode mais ser posto em dúvida (Calvino, 1992, p. 51).
O objetivo desse artigo é pensar algumas políticas de visibilidade no presente, que produzem práticas de captura incessante de imagens por meio de aparelhos portáteis, tanto em experiências de viagens como na vida cotidiana. Gilles Deleuze (2005), a partir do pensamento de Michel Foucault, afirma que um estrato histórico constitui-se por regimes de dizibilidade e de visibilidade: "[...] cada formação histórica vê e faz ver tudo o que pode em função das suas condições de visibilidades, assim como diz tudo o que pode em função das suas condições de enunciado" (Deleuze, 2005, p. 68). Nesse sentido, entendemos as políticas de visibilidade como formações históricas e sociais que constituem formas de olhar, modos de ver, e que estão entrelaçadas às maneiras de enunciação. Foucault (1980) oferece-nos algumas pistas epistemológicas para a tarefa de interrogar políticas de visibilidade: "Será preciso questionar a distribuição originária do visível e do invisível, na medida em que está ligada à separação entre o que se enuncia e o que é silenciado" (Foucault, 1980, p. 09-10).
Walter Benjamin (2009) usa o conceito de constelação para entrever uma operação de imagens que retornam ao agora e o confrontam, e afirma o lampejo como uma potência do encontro entre o passado e o presente: "[...] a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação" (Benjamin, 2009, p. 504). Nesse sentido, Benjamin afirma um pensamento constelar por meio das imagens, sobretudo da fotografia e do cinema. Inspirados na obra do pensador berlinense, tomamos imagens fotográficas do passado como sinais luminosos que também configuram a constelação de nossas relações com imagens técnicas no presente. Esse trabalho produz considerações que vislumbram dimensões do visível e do dizível, para pensar relações entre algumas políticas de visibilidade contemporâneas - constituídas pelo imperativo da vontade de captura de imagens com o uso de aparelhos portáteis - e certos regimes de enunciação, como os discursos de exaltação da novidade dos artefatos imagéticos.
Em um conjunto de ensaios sobre a fotografia, escritos nos anos 1970, Susan Sontag (2004) fala-nos de uma espécie de "compulsão por fotografar" como um dos efeitos das sociedades industriais orientadas para o consumo, que fizeram surgir um consumismo estético. Essa compulsividade em direção aos subsequentes registros de imagens não é uma psicopatologia individual que acometeria pessoas com transtornos mentais; trata-se, antes, de gestos que se produzem a partir do privilégio assumido pela percepção visual no ocidente, articulado às mutações técnicas e estéticas da modernidade que culminaram na fotografia e no cinema. Sontag assinala que nessa propensão para a captura de imagens, engendrada socialmente, experiências se transformam em maneiras de ver, como se a existência dos acontecimentos apenas fizesse sentido para que se tornem imagens capturáveis.
A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens (...) Não seria errado falar de pessoas que têm uma compulsão de fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele, em forma fotografada. Mallarmé, o mais lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto (Sontag, 2004, p. 34-35, grifo da autora).
Apesar de a escritora nova-iorquina falar apenas da fotografia analógica nesse ensaio dos anos 1970 - num momento em que a imagem digital ainda não havia se disseminado socialmente - podemos estender sua análise para pensar o presente da nossa relação com as imagens fotográficas e videográficas produzidas por aparelhos digitais portáteis, e atualizar sua frase inspirada em Mallarmé: talvez, hoje, a impressão é de que tudo existe para terminar numa foto ou num vídeo, que depois de fabricados serão, o mais rápido possível, publicados, compartilhados, curtidos e comentados em alguma rede social cibernética.
Susan Sontag (2004) pensa a relação entre a fotografia e o olhar turístico, e nos diz que, não raro, turistas usam as fotos para atestar as coisas vividas nos lugares visitados. Mas, ao mesmo tempo, esses usos fotográficos convertem a viagem em uma espécie de busca pelo fotogênico, que transforma a experiência em uma imagem, o vivido em um suvenir imagético: nesse sentido, a viagem coloca-se a serviço de um acúmulo de fotos. A escritora nova-iorquina observa que o ato de fotografar, para um turista ávido por capturar imagens que confirmarão seu passeio, ganha uma função de apaziguamento dos desassossegos que a experiência da viagem pode suscitar. O gesto repetido que captura o maior número possível de instantes, torna-se uma tentativa de imunização diante das hesitações e incômodos que as forças desconhecidas do "outro lugar" podem provocar no corpo que viaja.
A própria atividade de tirar fotos é tranqüilizante e mitiga sentimentos gerais de desorientação que podem ser exacerbados pela viagem. Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a pôr a câmera entre si mesmos e tudo de notável que encontram. Inseguros sobre suas reações, tiram uma foto (Sontag, 2004, p. 20).
Mas, estaríamos hoje diante de práticas turísticas da imagem fotográfica e videográfica mesmo quando não estamos em uma viagem a um lugar desconhecido? A primeira câmera fotográfica portátil começou a ser comercializada massivamente em 1888 nos Estados Unidos por George Eastman, que adaptou a tecnologia dos aparelhos fotográficos grandes e pesados para uma pequena caixa. Essa câmera portátil que utilizava um rolo de filme com 100 poses foi chamada por Eastman de Kodak, uma palavra inventada para funcionar em qualquer língua, sem necessidade de tradução. Pouco tempo depois, em 1895, a empresa de Eastman, que se tornara a Kodak, comercializa a série Pocket Kodak - uma câmera fotográfica menor e mais barata, possível de ser carregada no bolso - e em 1900, a câmera Brownie, ainda mais barata, começa a ser vendida e se torna muito mais popular (Aquino, 2016, p. 55).
Como nos mostra Lívia Aquino (2016), a Kodak investiu continuamente, desde a primeira câmera portátil, na produção de peças publicitárias que tinham como alvo a disseminação do hábito de fotografar, para além dos fotógrafos profissionais. A empresa americana usou inúmeros slogans como, "Aperte o botão, e nós fazemos o resto"4, e passou a associar o ato de fotografar às práticas de turistas durante as viagens.
Em 1920, a Kodak envia seus publicitários para as mais importantes e novas estradas dos Estados Unidos a fim de que escolham suas melhores vistas. Nesses lugares é colocada uma placa com os dizeres Picture ahead, Kodak as you go [Fotografia logo adiante, a Kodak com você] [...] A ação é precursora da campanha Kodak Photo Spot na qual o foco são os locais turísticos e parques nacionais norte-americanos [...] A partir dos anos 1950, em parceria com a Walt Disney Company, a placa passa a figurar também nos parques da rede e logo torna-se popular entre os turistas, indicando os melhores pontos para se fazer uma fotografia das atrações (Aquino, 2016 p. 25-26).
Como no caso da Kodak, esse investimento intenso na publicidade não parou de crescer entre as grandes empresas de aparelhos de captura e exibição de imagens técnicas: as ações publicitárias não apenas ressaltam as características do produto a ser consumido, pois, como nos diz Félix Guattari (1992), o capitalismo passou a investir na produção do desejo, voltado ao consumo não apenas de objetos, mas também de modos de ser, de formas de perceber e de maneiras olhar. A ampla comercialização de máquinas fotográficas portáteis - a partir da virada do século XIX para o século XX - e as ações publicitárias da Kodak focadas na produção de turistas- fotógrafos (Aquino, 2016), são importantes componentes na constituição de um olhar que, na articulação com os aparatos técnicos da câmera, captura e coleciona o máximo possível de imagens de viagens e da vida cotidiana. Ao longo do século XX emergem modos de fazer olhar que irão se delinear a partir do acoplamento, cada vez mais frequente, entre o olho humano e as máquinas de captura de imagens5.
Em 1839, em Paris, emerge publicamente o daguerreótipo como o primeiro aparelho comercializado para a produção de fotografias, desenvolvido por Louis Jacques Mandé Daguerre, a partir das pesquisas de Joseph Nicéphore Niépce (Larousse, 2001). Dos primeiros daguerreótipos até o aparecimento das máquinas fotográficas portáteis no final do século XIX, o ato de fotografar praticamente inexistia entre pessoas que não fossem fotógrafos profissionais. A invenção e disseminação das câmeras fotográficas portáteis, e os discursos de novidade que circundam esses objetos desde o século XIX, são elementos capitais para que a fotografia se tornasse uma prática popularizada e não restrita aos fotógrafos profissionais.
Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Walter Benjamin (1936/2013), afirma que a reprodutibilidade técnica se intensifica exponencialmente no século XIX, sobretudo, com a invenção da fotografia e posteriormente com o cinema, incidindo em uma destruição da aura das obras de arte, pois, a partir das possibilidades de reprodução o valor de culto atribuído a um artefato artístico passa a ser substituído pelo valor de exposição. A partir desse importante texto de Benjamin (1936/2013) - que possui ao menos quatro versões escritas entre 1935 e 1939 - vemos que a deterioração da aura da obra de arte por meio da reprodutibilidade técnica das imagens está ligada às intensas modificações nas formas de percepção ao logo do século XIX e virada para o século XX. Em Pequena História da Fotografia, escrito no início dos anos 1930, Benjamin (1931/1994) analisa os desdobramentos da fotografia em direção à destruição da aura, por meio da reprodutibilidade técnica das imagens. Nesse sentido, ao pensar as imagens das ruas desertas de Paris feitas pelo fotógrafo Eugène Atget, Benjamin (1931/1994, p. 101) nos indica o lugar que as imagens fotográficas reprodutíveis passaram a ocupar no início do século XX. "Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto de tão perto quanto possível, na imagem, ou melhor, na sua reprodução". Na modernidade - entendida mais como uma radical mudança na experiência humana do que como um período histórico (Gunning, 2004) - as mutações técnicas, materiais e estéticas nas grandes cidades produziram outras formas de relação com as imagens, sobretudo a partir da invenção e disseminação da fotografia. "A fotografia funciona como um dos emblemas mais ambíguos da experiência moderna. [...] A fotografia coloca-se na interseção de diversos aspectos da modernidade, e essa convergência a torna um meio moderno e singular de representação" (Gunning, 2004, p. 37-38).
Quando as máquinas fotográficas portáteis começam a ser massivamente comercializada na passagem do século XIX para o século XX, as imagens técnicas, reprodutíveis, já ocupavam um lugar privilegiado na experiência urbana das grandes cidades ocidentais do século XIX. O surgimento, muito posterior, das imagens digitais, e o consequente aparecimento e difusão dos aparelhos de captura e exibição dessas formas de imagens, estão articulados- mas não necessariamente de modo causal e linear - à crescente centralidade da imagem técnica nas práticas humanas cotidianas a partir da modernidade.
O culto à novidade da imagem
A produção da vontade de capturar inumeráveis instantes vividos é atravessada pela proliferação de imagens digitais, que, por sua vez, é entremeada por alguns discursos que anunciam um futuro completamente inovador, um caminho tecnológico que nos levaria para outras formas de existência muito mais promissoras. Essas vozes que acompanham a multiplicação das imagens digitais repetem continuamente a promessa do "novo".
Philippe Dubois (2004) nos diz que alguns discursos sobre a novidade acompanham o aparecimento das tecnologias de fabricação e exibição da imagem, desde o surgimento do daguerreótipo, em 1839, passando pela aparição do cinematógrafo no fim do século XIX, pela disseminação mundial da televisão após a Segunda Guerra, até a intensa circulação das imagens digitais no presente. Para Dubois (2004), por um lado, a retórica do novo visa demonstrar continuamente as vantagens dessa novidade num apelo publicitário, e por outro, opera um profetismo - com uma função de atratividade econômica - que anuncia sempre um futuro prodígio, que supostamente nos levaria a um estágio mais avançado da existência humana, graças à incrível capacidade dessas tecnologias apresentadas como inovadoras. Esses discursos sedutores, assertivos e extremamente seguros de si, que proclamam aos quatro cantos as maravilhas das invenções tecnológicas, produzem ainda uma dupla ideologia, como escreve Dubois (2004): apresentam, por um lado, as tecnologias em questão como um ineditismo absoluto, recusando a história e suas forças heterogêneas, e, por outro, quase ambiguamente, rearticulam o ideal de um progresso contínuo atualizado no lema de uma "evolução tecnológica", que mais recentemente tornou-se quase sinônimo de "revolução digital".
A retórica do novo se apresenta e se autoproclama em toda parte: no discurso de François Arago sobre o daguerreótipo, em julho de 1839 na Câmara dos Deputados; nos relatos da imprensa sobre os espectadores absolutamente maravilhados diante da tela animada do Cinematógrafo ('as folhas se movem'!); nas manchetes dos jornais (britânicos, alemães, franceses) que relataram as primeiras transmissões de televisão ao vivo nos anos 30; ou nas declarações, ainda frequentes, sobre a 'revolução digital da qual somos obrigatoriamente testemunha e atores' (Dubois, 2004, p. 34-35).
Como essa promessa de novidade produz efeitos estéticos e políticos? Esses discursos que anunciam a novidade, desconsideram a história, as forças dos tempos que antecedem e que são ainda contemporâneas dessas invenções técnicas, apresentadas como se fossem atemporais. Essas vozes, que profetizam o maravilhoso mundo novo que virá com a evolução tecnológica, fazem do presente um mero estágio inicial de um futuro portentoso, que um dia chegará. A recusa da história e o profetismo que concebe o presente como fase a ser superada na corrida de uma evolução tecnológica, são efeitos políticos que atravessam nossas maneiras de entrar em relação com as imagens no contemporâneo.
Esses discursos da novidade, que agora escoltam as tecnologias de produção e exibição das imagens digitais, invisibilizam as rupturas históricas que, inclusive, possibilitaram o surgimento dessas formas imagéticas, e tomam o passado numa visada progressista, evolutiva. O que está em jogo nessa proliferação das imagens digitais e dos discursos que anunciam o novo, são mutações técnicas conectadas a transformações estéticas e políticas que interferem insidiosamente nos modos de subjetivação contemporâneos, sobretudo nas relações entre o olhar e as imagens.
Essas retóricas que anunciam a novidade das tecnologias da imagem remetem-nos às críticas de Walter Benjamin em relação à noção de "novo" no capitalismo. Para Benjamin (1935/2009), a qualidade que liga um artefato à condição de novidade torna-se um adjetivo que não se relaciona com o valor de uso das coisas. A novidade de um objeto é uma qualidade que se descola da materialidade dos usos possíveis: nesse sentido, o novo torna-se um valor em si mesmo. A ideia de novidade assume um lugar central na configuração estética, econômica e política da modernidade no século XIX, ao relacionar- se intimamente à moda.
O novo é uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria [...] É a quintessência da falsa consciência cujo agente infatigável é a moda. [...] Assim como no século XVII a alegoria se torna o cânone das imagens dialéticas, assim acontece no século XIX com a nouveauté (Benjamin, 1935/2009, p. 48).
O discurso de François Arago em Paris, em defesa do daguerreótipo destaca quatro características da invenção: a sua novidade, a utilidade artística, a velocidade de uso e os inúmeros recursos do aparelho para ciência (Arago, 1839, p. 50). Na defesa dos avanços que supostamente viriam com o daguerreótipo, esse discurso de apresentação inscreve-se nas práticas de enaltecimento da novidade, que atravessaram a modernidade do século XIX.
Apesar de entrevermos uma semelhança entre os discursos que exaltam o novo, diante de distintas tecnologias da imagem, é necessário apontarmos que há algumas diferenças, por exemplo, em relação às vozes que emergiram na invenção da fotografia e as retóricas que anunciam o futuro digital hoje. É evidente que nesse um século e meio que nos separa da fala de François Arago em Paris, as práticas publicitárias tomaram proporções gigantescas, mudando os rumos e entonações das vozes que acompanham as invenções tecnológicas. Os discursos da novidade que falam sobre as imagens digitais e os inúmeros aparelhos com conexão à internet aparecem hoje indelevelmente marcados pelas sorrateiras estratégias de marketing das empresas que desenvolvem esses objetos. Essas imagens - que se proliferam ainda mais a cada anúncio de novos smartphones, televisores digitais, computadores, tablets, câmeras fotográficas e videográficas, entre outros aparelhos - passam por nós como se fossem sem história, eternas, apesar de sua efemeridade. Mas, logo são substituídas por outras imagens, que oferecem uma contínua exposição a esses artefatos luminosos, de modo que as lacunas entre imagens tornam-se, aparentemente, raras.
Olhos abertos e conectados
Em 24/7 - Capitalismo tardio e os fins do sono, Jonathan Crary (2014) analisa uma forma de temporalidade - fabricada e bastante imperativa no presente - que funciona a partir de sucessivas conexões, sem intervalos, ininterruptamente, vinte quatro horas por dia, durante sete dias por semana. Esse tempo ininterrupto dos mercados que não dormem e da insônia induzida faz-nos desejar conexões contínuas a imagens e sons por meio de aparelhos digitais. Para Crary, entender o presente como a "era digital", seria uma caracterização pseudo-histórica, que justapõe fácil e equivocadamente estratos históricos completamente distintos - como a Idade do Bronze ou a Era do Vapor - aos elementos diferentes e fragmentários da experiência contemporânea que não são coesos e unificados (Crary, 2014, p. 45).
Para Crary, as vozes que anunciam, sem cessar, a era digital como a continuação de uma evolução tecnológica linear, dissimulam os diversos sistemas de administração e controle dos corpos humanos inventados nos últimos cento e cinquenta anos pelas práticas capitalistas. Crary (2014) critica incisivamente as concepções propagandísticas que preveem uma transição harmoniosa para uma suposta era digital, pois, para ele, o capitalismo fabrica há pelo menos um século e meio a concepção de "revolução contínua" da produção e circulação de coisas, relações e imagens: o nosso tempo é constituído pela "manutenção calculada de um estado de transição contínuo. Diante das exigências tecnológicas em transformação constante, jamais haverá um momento em que finalmente as 'alcançaremos' [...]" (Crary, 2014, p. 46). Como parte integrante desses cálculos de uma transição tecnológica contínua, Crary (2014) evoca os desenvolvimentos de projetos e pesquisas informáticas atuais para a produção de inúmeros outros aparelhos que não mais responderão ao toque em uma pequena tela, o que nos mostra, segundo seu ensaio, que os próprios smartphones - divulgados por alguns como uma invenção "revolucionária", que veio para ficar entre nós - são artefatos transitórios, que podem ser substituídos num futuro bem próximo por outros aparelhos que, muito provavelmente, também serão anunciados como os símbolos de uma revolução tecnológica.
As primeiras câmeras fotográficas digitais comercializadas datam do início dos anos 1990 e os primeiros celulares com câmera apareceram no início dos anos 2000: em alguns anos esses aparelhos tornaram-se objetos de captura e exibição de imagens com telas táteis, que prometem um acesso físico às imagens. Funcionando como uma espécie de prótese da mão, esses objetos dotados de telas sensíveis ao tato fornecem- nos uma ilusória materialidade do toque nas imagens. Para Dubois, essas telas táteis são "dispositivos de frustração em que o contato físico da mão com a tela finge dar corpo a uma imagem que de qualquer forma não tocamos" (Dubois, 2004, p. 65). A proliferação de telas táteis para a exibição e "interação" com as imagens inscreve-se também na interminável transição tecnológica inventada pelo capitalismo (Crary, 2014, p. 46), cujo ápice nunca poderá ser alcançado.
A enxurrada de imagens que nos mantêm conectados continuamente tende a minar os espaços vagos, as interrupções, os tempos vadios. Esse tempo da conexão contínua a imagens e informações ampliou- se vertiginosamente com todos os aparelhos móveis que oferecem conectividade ilimitada, que preenchem ou tentam preencher cada instante com uma informação, cada olhar com uma imagem técnica. "É claro que hoje mais imagens, dos mais diversos tipos, são olhadas, vistas, do que em qualquer outro período [...]" (Crary, 2014, p. 56), pois experimentamos no cotidiano fluxos incalculáveis de imagens técnicas que estão onipresentes dia e noite. "Em casa, no trabalho, nas escolas, nas empresas, nos bares, nos estádios, nos aeroportos, nos metrôs, nas ruas, nos hospitais, aonde quer que se vá, há sempre um (ou vários) monitor(es) ligado(s), espalhando para todos os quadrantes uma imagem [...] (Machado, 1998, p. 318). Vemos sucessivamente imagens de monitores de led nos metrôs, nos trens, nos ônibus, nas fachadas dos prédios, justapostos a outdoors de toda espécie, além da imensa multiplicação dos aparelhos portáteis que atingem luminosamente nossos olhos por períodos cada vez maiores, em shows, festas, refeições, nos espaços urbanos, em exposições de arte, e assim por diante. No entanto, frente a essas questões, como não cair no caminho fácil que simplesmente exalta ou demoniza essa proliferação de imagens digitais no presente?
O tempo organizado continuamente em vinte e quatro horas, sete dias por semana, que dissolve os intervalos e lacunas temporais, é governado por um regime de luminosidade aparentemente homogêneo que almeja desmanchar as sombras e as obscuridades.
"Um mundo 24/7 iluminado e sem sombras é a miragem capitalista final da pós-história, de um exorcismo da diferença, que é o motor de toda mudança histórica" (Crary, 2014, p. 19). Essa luminosidade continua que atinge o presente, como assinala Crary, produz um mundo idêntico a si mesmo e sem espectros: luz que visa dissipar as assombrações, os fragmentos de história inconclusos, as turbulências dos fantasmas de outrora. Esse regime de luzes fabrica imagens que guerreiam contra a diferença - inscrita nas próprias imagens -, e que, atravessadas pela lógica do "mostrar em tempo real", apresentam-se como imagens conclusivas, portadoras de uma luz controlada e invariante que mostra o mesmo, por toda parte. "[...] a homogeneidade do presente é um efeito de luminosidade fraudulenta que pretende se estender a tudo e se antecipar a todo mistério ou ao desconhecido" (Crary, 2014, p. 29). Esse mundo da iluminação constante, sem sombras, que funciona ininterrupto, assemelha-se à cidade da luz descrita por Luis Antonio Baptista (2010): essa arquitetura implacavelmente luminosa opõe-se às possibilidades de perder-se na cidade, pois aqueles que caminham pelos espaços inundados por essa claridade uniforme apenas reconhecem a si mesmos. A cidade da luz, como a luminosidade do tempo 24/7 analisada por Crary, anestesia os desassossegos que o inesperado pode suscitar nos corpos, e impede a experiência de estranhamento diante das imagens. Por privilegiar apenas a luminosidade funcional disponível em múltiplas atrações que capturam nosso olhar, esse regime temporal ininterrupto produz uma incapacitação da experiência visual, como nos diz o historiador da arte norte-americano (Crary, 2014, p. 42-43).
Em um ensaio chamado Sobrevivência dos vaga-lumes - que faz uma alusão à obra do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini - Didi-Huberman (2011) nos diz que nos últimos anos de sua vida Pasolini associou o desaparecimento dos vagalumes - pensados como pequenas experiências livres que piscam em meio à escuridão, que aparecem por instantes e mergulham na noite como uma flama bruxuleante -, às luzes imponentes de um novo fascismo, que se tornou dominante em plena vida republicana que se seguiu ao regime fascista desmontado após a Segunda Guerra. Esse novo fascismo opera, sobretudo, a partir dos holofotes que tentam iluminar tudo com grandes luzes sedutoras, que invadem regiões antes ignoradas e as encharca com os gestos, medos, desejos e sonhos disseminados no capitalismo da segunda metade do século XX. "[...] os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos 'ferozes' projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão" (Didi-Huberman, 2011, p. 30). Poderíamos, pelas grandes luzes desse fascismo atual - disseminadas na dita vida democrática -, pensar alguns traços dos regimes de visibilidade que constituem o solo esburacado e pedregoso do presente?
As imagens publicitárias, reluzentes, destinadas à lógica da novidade e alinhavadas aos arranjos capitalísticos, também conformam olhares que, deslumbrados, olham-nas e quase não conseguem ver nada que não seja esses artefatos luminosos, que circulam para além da sua função de vender. Entretanto, Didi- Huberman (2011) desconfia desse desaparecimento total dos vagalumes, do sumiço absoluto dessas imagens e experiências inglórias que lampejam no negrume da noite, que aparecem repentinamente como um susto, e que voltam à escuridão e ao silêncio. As experiências livres, as insistentes imagens vaga-lume - que circulam apesar das grandes luzes do fascismo incrustado nos mecanismos de governo e de mercado chamados atualmente de democráticos - não foram inexoravelmente extintas, não sumiram de uma vez por todas das noites do mundo. "Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado" (Didi- Huberman, 2011, p. 160).
A exasperante proliferação de imagens não é uma simples constatação dos desenvolvimentos de técnicas e objetos. Ela articula-se a transformações políticas, como esse fascismo das grandes luzes entrevisto por Pasolini e retomado por Didi- Huberman. Não por acaso essas imagens carregam a promessa de novidade, de evolução, de avanço, velhas profecias que marcam o nascimento e as transformações variadas do capitalismo. Mas, como as remontagens presentes em alguns filmes- ensaio de Jean-Luc Godard interrogam essas promessas de novidade e a luminosidade do fascismo pós- totalitarismo?
Interrogação às imagens em filmes- ensaio de Godard
Em Adeus à linguagem (Godard, 2014a), o uso incessante dos smartphones aparece em um dos primeiros planos do filme, em um estranho diálogo entre um homem e uma mulher que estão num espaço aberto da cidade. Simultaneamente ao momento em que o homem manuseia o livro O Arquipélago Gulag, de Alexander Solzhenitsyn, uma conversa fragmentária desenrola-se com a mulher que usa ininterruptamente um aparelho celular de tela tátil. Enquanto falam sobre os ícones e o ato de pressionar, operado pelo dedo polegar, os personagens mencionam o antigo conto europeu do Pequeno Polegar. Durante os instantes em que manuseiam objetos técnicos - o livro e o smartphone -, os personagens evocam sutilmente a própria história da espécie humana, que usou a capacidade de oposição do dedo polegar para produzir inúmeros artefatos que transformaram de diferentes formas nossos modos de vida. Com um tom irônico, o homem pergunta à mulher - que manipula um telefone celular conectado à internet - sobre o que faz e fazia o dedo polegar. As imagens que se seguem ao estranho diálogo nos mostram os dedos da mulher tocando a tela do smartphone e manipulando os ícones e imagens que passam com velocidade pelo pequeno ecrã de led. Os olhos da personagem mantêm-se fixos na pequena tela enquanto seus dedos deslizam sobre a superfície lisa para fazer as imagens exibidas mudarem de posição.
No plano seguinte, dois personagens manuseiam smartphones em uma banca de livros disposta ao ar livre. Os personagens mostram, um ao outro, imagens de seus aparelhos celulares, e os trocam de mãos algumas vezes. Ao lado, na mesma banca, uma mulher manuseia alguns livros. Por que mostrar no filme essa manipulação de "telefones inteligentes", gesto aparentemente tão habitual e banal nos nossos dias? A presença desses objetos técnicos em filmes-ensaio de Godard desdobraria uma interrogação às nossas relações com esses aparelhos produtores e exibidores de imagens?
Apesar da dificuldade, e talvez impossibilidade, de classificar os filmes- ensaio a partir dos gêneros cinematográficos, Consuelo Lins (2006) nos diz que essas obras possuem uma "forma híbrida filiada à literatura, sem regras nem definição possível, mas com o traço específico de misturar experiência de mundo, da vida e de si" (Lins, 2006, p. 03). Em Film Socialisme (Godard, 2010), um dos primeiros planos - feito no navio de cruzeiro onde se passa o filme - mostra um homem que mira sua máquina fotográfica digital para o Mediterrâneo. Ao longo do filme, vemos a presença insistente de muitos aparelhos digitais que fabricam e reproduzem imagens: uma fotógrafa que registra um casal de turistas no navio com uma câmera; pessoas que olham para uma tela exibindo uma aula de hidroginástica e que repetem os movimentos exibidos; outro homem que faz fotografias no navio com uma câmera digital; uma garota que olha imagens de gatos na tela de um computador portátil; um homem com uma máquina fotográfica no convés do navio; a turista que segura uma câmera quase hipnotizada pelo objeto. Há um plano nesse filme em que mãos manipulam uma câmera fotográfica digital, e Godard usa o artifício de stop-motion - técnica muito empregada em animação, em que pessoas ou objetos são movimentados e fotografados quadro a quadro - para produzir uma decomposição do gesto de manusear o aparelho. Em alguns planos do filme, o cineasta usa imagens estouradas, degradadas, como se tivessem sido feitas por uma câmera digital de baixa resolução, semelhante a câmeras de alguns aparelhos celulares e filmadoras digitais amadoras. A presença persistente das máquinas fotográficas digitais e o uso de imagens degradadas na montagem do filme interrogam, de certo modo, o olhar turístico que quer capturar cada instante, transformando-os em imagens colecionáveis.
Nos filmes-ensaio praticados por Godard há uma articulação entre acontecimentos passados do século XX e o passado do cinema, e essas remontagens de imagens e sons tornam visíveis forças divergentes que se confrontam, irresolutas, na superfície da tela. As imagens do passado, os vestígios visuais de tempos idos que retornam nas remontagens, podem interromper e desviar, por um instante que seja, o curso contínuo das luzes que incidem sobre a superfície do presente. Em Les trois desastres (Godard, 2014b), filme feito em 3D, as próprias câmeras usadas para captar as imagens em três dimensões são mostradas insistentemente, em remontagens que desdobram os procedimentos já usados na série História(s) do cinema (Godard 1988- 1998). Enquanto usa imagens digitais e as tecnologias em 3D, Godard nos diz em voz off: "Cifras e letras. Sombras e... Sim, a escritura era uma necessidade. Sim, a impressão era apenas um jogo insensato. Sim, o digital será uma ditadura"6 (Godard, 2014b, tradução nossa).
Esse filme é parte da antologia 3x3D, composto por outros dois filmes também em 3D, de Peter Greenaway e Edgar Pêra. O título desse filme de Godard faz um jogo com a sigla 3D - abreviação de terceira dimensão -, produzindo um outro sentido: o 3D como três desastres. A fala sobre a ditadura do digital e o jogo com o sentido da sigla 3D, nos mostram o pessimismo de Godard em relação às tecnologias da imagem no presente, ou trata-se de uma maneira de interrogá-las? Godard foi um dos primeiros cineastas a experimentar as possibilidades do vídeo nos anos 1970, e continuou usando tecnologias emergentes em seus filmes durante os últimos quarenta anos. Em Les trois désastres, o cineasta usa imagens de filmes comerciais recentes exibidos em 3D, como Premonição 5, que emprega imagens de mortes extremamente sangrentas e mirabolantes. Essas imagens digitais retiradas desses filmes de terror atuais que hiperestimulam os espectadores com seus efeitos especiais frenéticos, são remontadas com imagens da história do cinema e dos próprios aparelhos que fabricam as atuais imagens em 3D. Ao mostrar as imagens espetaculosas, em três dimensões, desses filmes de terror, e ao mesmo tempo, os aparatos de fabricação desses artefatos luminosos, Godard usa essas tecnologias da imagem contra elas mesmas, ou melhor, contra determinados usos que se tornaram predominantes no cinema.
Considerações finais
Esse procedimento de remontagem em alguns filmes-ensaio de Godard - que interroga usos contemporâneos das imagens por meio das próprias imagens -, torna visível o paradoxo inscrito nesses artefatos luminosos que nos habitam. Por um lado, pelas imagens técnicas no capitalismo, nosso olhar é colonizado, remodelado constantemente pela incidência das luzes sedutoras de um tempo ininterrupto que visa abolir as diferenças e os fantasmas de outros tempos, os vestígios da história que retornam ao presente. Mas, por outro, também pelas imagens, é possível remontar traços da história, fragmentos de tempos passados, fazer ver políticas de visibilidade, tornar visível aquilo "não visto ou mal visto" (Didi- Huberman, 2015).
Não se trata de repudiar as tecnologia da imagem, os aparelhos de produção e exibição de imagens digitais, ou a fabricação de imagens fotográficas e videográficas no cotidiano. Mas, não se trata também de simplesmente fazer o elogio dessas tecnologias, aderindo ao culto da novidade. A tarefa ética e política que entrevemos, a partir desses filmes-ensaio de Godard, localiza-se em usos possíveis das próprias tecnologias de produção da imagem para tornar visível, para fazer ver alguns modos de relação com os artefatos imagéticos marcados pelo imperativo da propensão à captura dos instantes. Apesar de apoderadas e constituídas por arranjos do capitalismo contemporâneo, essas imagens podem ser usadas de outras formas, no exercício ético-político de criar meios de visibilidade que mostrem os "mil condicionamentos que determinam nossa existência", como dizia Benjamin (1935/1994, p. 189) acerca das potências estéticas e políticas do cinema. Essas potências da imagem cinematográfica podem mostrar aquilo que não víamos por conta da própria imersão nas condições históricas de visibilidade que forjam nosso olhar. Ao invés de recusar as imagens digitais e os aparelhos que as fabricam por toda parte, a urgência que desponta à nossa frente nos convoca a ir de encontro a essas imagens e disputar os sentidos que as constitui no contemporâneo.
Notas
1 Esse artigo foi escrito a partir de uma pesquisa de doutorado que resultou na tese intitulada Espectros da imagem, remontagens da história: uma escrita do cinema como interrogação ao presente, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, em 2016, sob a orientação do Prof. Dr. Luis Antonio Baptista. A pesquisa foi realizada com o apoio financeiro da Capes. O doutorado-sanduíche na Universidade Sorbonne Nouvelle [Paris III] contou com bolsa da Faperj.
2 Conferir vídeo do projeto fotográfico Photoland em https://vimeo.com/50550160
3 Conferir imagens do projeto fotográfico Too Much Photography em https://www.martinparr.com/2012/too-much-photography
4 Original: "You press the button, we do the rest".
5 O aplicativo Google Maps, usado em inúmeros smartphones, exibe notificações que são muito semelhantes às indicações feitas pela Kodak de lugares "apropriados" para fotografias. "Você pode receber notificações para adicionar uma foto que tirou em lugares públicos e que o Google considera interessante para outras pessoas, como fotos em restaurantes e bares. Você também poderá receber uma notificação se visitar um lugar em que ninguém tirou uma foto ainda". O site do Google Maps afirma que as fotos devem seguir algumas diretrizes, como: "estar em foco e não embaçadas; elas devem mostrar o que a maioria das pessoas vivencia, como a comida ou o ambiente [...]". Essas notificações constantes nos smartphones operam sobre as formas de olhar, modulando políticas de visibilidade por meio do incentivo contínuo à captura de imagens e ao compartilhamento dessas fotografias em redes sociais digitais. As informações citadas acima foram obtidas diretamente do site do Google Maps, em https://support.google.com/maps/answer/6149565?co=GENIE.Platform%3DAndroid&hl=pt-BR
6 Original: "Des cifres et des letres. Des ombres et des... Oui, l'écriture était um besoin. Oui, l'imprimerie n'était plus q'un jueu insense. Oui, le numerique sera une dictat
Referências
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Enviado em: 02/06/18
Aceito em: 28/10/18
Maicon Barbosa é Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com Estágio Doutoral no Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Atualmente é professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Augusto Motta - Unisuam, no Rio de Janeiro.
E-mail: maiconbars@hotmail.com