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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2020

 

EDITORIAL

 

Gestão Autônoma da Medicação: um olhar sobre dez anos de produção participativa em saúde mental a partir do Brasil

 

Autonomous Medication Management: a look over ten years of participative mental health production from Brazil

 

Gestión Autónoma de la Medicación: una mirada a los diez años de producción participativa en salud mental desde el Brasil

 

 

Ana Luiza Ferrer; Analice de Lima Palombini; Marcos Adegas de Azambuja

Editores convidados

 

 

No ano de 2009, uma parceria frutuosa entre a Universidade de Montreal (UdM), no Quebec, Canadá, e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, Brasil, propiciou dar largada ao projeto de tradução e adaptação ao contexto brasileiro do Guia da Gestão Autônoma da Medicação, estratégia construída entre usuários, trabalhadores e pesquisadores do Quebec críticos ao reducionismo biomédico no campo da saúde mental, com vistas a aumentar o poder de negociação dos usuários de saúde mental nas decisões referentes ao seu tratamento, em especial o medicamentoso (Rodriguez del Barrio & Poirel, 2007, Rodriguez del Barrio, Cyr, Benisty & Richard, 2013). À Unicamp, vieram somar-se outras três universidades públicas brasileiras - as Universidades Federais do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Rio de Janeiro (UFRJ) e Fluminense (UFF) - que, em associação com movimentos de usuários e com a rede pública de serviços de saúde mental de seus estados, engajou um grupo expressivo de usuários, trabalhadores e acadêmicos na execução desse projeto. Ao longo de seis anos, foram inúmeros os encontros entre os três segmentos, em cada estado e também conjuntamente, além de reuniões por videoconferência e três viagens internacionais com usuários, trabalhadores e acadêmicos no trajeto entre Canadá e Brasil. A pesquisa que resultaria no Guia Brasileiro da Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM-BR) (Onocko-Campos et al., 2018) se fazia assim, de modo participativo, democrático, cogestivo, em sintonia com a política de saúde mental instituída pelo Estado brasileiro, em que cidadania e autonomia do usuário eram termos prevalentes (Passos et al., 2013).

O Guia GAM-BR, finalizado em 2013, foi-se espalhando pelo país, em experiências diversas, protagonizadas por trabalhadores, residentes e usuários de serviços de saúde e outros setores, mas também na produção de novas pesquisas envolvendo o seu uso, conduzidas por universidades em diferentes estados brasileiros (Chaves & Caliman, 2017, Cougo & Azambuja, 2018, Silveira & Moraes, 2018, Caron & Feuerwerker, 2019, Lindenmayer, Diello & Azambuja, 2019, Renault & Ramos, 2019, Sade & Melo, 2019, Santos, Onocko-Campos, Basegio & Stefanello, 2019, Senna & Azambuja, 2019, Vargas, Passos, Almeida & Guerini, 2019). São experiências de trabalho e de pesquisa que seguem pautadas pelos mesmos princípios que orientaram a pesquisa original: democracia, cidadania, autonomia, participação. O fato de que esses princípios encontram-se hoje sob grave ameaça na conjuntura política brasileira (mas não só no Brasil) nos dá sinais das bases frágeis em que foram assentados, carentes de reformas estruturais mais profundas. Evidencia também o valor que emana dessas experiências e dessas pesquisas, como gestos de resistência e defesa de uma vida cidadã, onde saúde segue sendo um direito fundamental do povo e dever do Estado.

Este dossiê, que começou a se preparar em 2019, foi organizado no intuito de dar a ver a pujança e a diversidade das pesquisas envolvendo a estratégia da Gestão Autônoma da Medicação no Brasil, passados dez anos do início da pesquisa inaugural. Os artigos foram selecionados de forma a contemplar a produção dos diferentes grupos de pesquisa, de sul a norte do país, além daquela referente aos grupos internacionais, irmanados nessa experiência.

No momento, porém, em que este número da revista vem a público, em meados de 2020, vivemos de forma intensa e em dimensão planetária a percepção do quão frágil é a humanidade, sob ameaça de um vírus. Em todo o mundo, políticas de segurança e vigilância sanitária são deflagradas, e a saúde pública é colocada em evidência. Na contramão do pensamento neoliberal, a ideia de saúde como direito do povo e dever do Estado se impõe como crucial para a manutenção da vida das populações e para a própria sobrevivência do Estado (Sousa Santos, 2020, Mbembe, 2020). Os artigos que aqui se apresentam tornam vívida essa ideia para o campo da saúde mental, articulada aos valores que já destacamos: democracia, cidadania, autonomia, participação.

O dossiê inicia com duas produções que partem de uma análise documental referida a práticas situadas e específicas da estratégia GAM, discutindo operadores conceituais que as engendram e nelas ganham relevo. O primeiro material, de Thais Mikie de Carvalho Otanari e Lourdes Rodriguez Del Barrio, é resultado de pesquisa desenvolvida pela Universidade de Montreal, Canadá. Intitulado O Comitê Cidadão e o trajeto participativo da pesquisa GAM, utiliza-se de publicações na temática GAM e narrativas construídas em entrevistas, procurando analisar o processo de participação, o método cogestivo e o compartilhamento de saberes para o movimento de desconstrução histórica e social de exclusão no campo da saúde mental.

Já em A noção de experiência na GAM brasileira: relações raciais e subalternidades, Lívia Zanchet e Analice de Lima Palombini revisitam, por meio da perspectiva decolonial, o termo experiência, recorrentemente mencionado em artigos brasileiros sobre a Gestão Autônoma da Medicação. Isso as leva a reconhecer o silenciamento e a invisibilidade no que tange aos temas da racialidade e da subserviência, ao mesmo tempo que sublinha os indícios de nossa herança colonial e o complexo desafio de erradicar a branquitude nas práticas de pesquisa.

Passamos, agora, às pesquisas que se desenvolveram ao longo do território brasileiro, começando pelo Sul, com Produção de grupalidade e exercício de autonomia na GAM: a experiência do Rio Grande do Sul. Analice de Lima Palombini, Ana Luiza Ferrer, Douglas Casarotto de Oliveira, Juliana Arnhold Rombaldi, Marcos Adegas de Azambuja, Olinda Maria de Fátima Lechmann Saldanha e Vera Lúcia Pasini apresentam alguns dos resultados de uma pesquisa multicêntrica que, originalmente voltada à avaliaçã das repercussões da implementação da GAM como política de saúde mental por parte do governo do Estado, ao mobilizar rodas de conversas em torno à experiência GAM em três macrorregiões do estado, constitui-se ela própria em elemento de disseminação da estratégia GAM e permite reconhecer a estreita vinculação entre produção de grupalidade e gestão autônoma do cuidado.

Chegando ao Sudeste, em Gestão Autônoma da Medicação: estratégia territorial de cogestão no cuidado, Elisa Zaneratto Rosa, Maria Cristina Gonçalves Vicentin, Camila Aleixo de Campos Avarca e Deborah Sereno contam do uso do dispositivo GAM para compor, com uma equipe que articula ensino, pesquisa e extensão, intervenções de cuidado em saúde mental em serviços como UBS e CAPS, na capital do estado de São Paulo, afirmando-se a estratégia territorial e cogestionária centrada na participação dos usuários.

Ainda na cidade de São Paulo, em GAM, apoio e cuidado em CAPS AD, Eduardo Caron, Laura Camargo Macruz Feuerwerker e Eduardo Henrique Passos analisam a experiência da estratégia GAM na atenção especializada no campo de álcool e outras drogas. O trabalho discute a prática articulada entre trabalhadores e usuários na ampliação de possibilidades em redução de danos.

Expandindo para o estado de São Paulo, na cidade em que o próprio título do artigo menciona, Articulações GAM em Santos e a partir de Santos, de Luciana Togni de Lima e Silva Sujurs, Roberta Regina Castellano Linhares, Ana Maria Thomé, Beatriz Cesar Lauria e Erika Marinheiro Pereira, apresenta a experiência de formação em saúde mental para profissionais da área da saúde, articulada à criação do Observatório Internacional de Práticas de Gestão Autônoma da Medicação. Por meio da GAM, o artigo problematiza o tema das drogas lícitas e ilícitas, dando a ver como aspectos basilares da reforma psiquiátrica brasileira podem ser tensionados e ganhar materialidade nas práticas cotidianas de cuidado em saúde mental.

Vamos ao estado do Rio de Janeiro, com a escrita de Eduardo Passos, Letícia Renault, Thaís de Sá Mello e Lorena Rodrigues Guerini em Gestão Autônoma da Medicação e o dispositivo da Pesquisa-apoio. Inspirados nas práticas de apoio matricial e institucional da saúde coletiva, radicalizam a democratização do trabalho cogestivo ao incluírem usuários e familiares do campo da saúde mental, além dos trabalhadores, para aprofundar o processo de participação e autonomia dos envolvidos.

Ainda na região Sudeste, mas, agora, em Espírito Santo, o trabalho A GAM no ES: aberturas e invenções com crianças, familiares e trabalhadores, de Luciana Vieira Caliman e Janaína Mariano César, apresenta intervenções inovadoras com o uso da GAM em três dispositivos inéditos, quais sejam: um grupo GAM com familiares de crianças que fazem uso de psicotrópicos; uma oficina com crianças que usam medicamentos; e uma supervisão coletiva advinda de uma perspectiva de pesquisa apoio. A reinvenção da experiência, situada especialmente no campo da saúde mental infantojuvenil, é o que nos oferece este texto.

Avançamos à região Nordeste, iniciando pelo estado de Alagoas, mais precisamente a cidade de Maceió. Uma experiência alagoana de formação em saúde com a gestão autônoma da medicação, de Marília Silveira, Maysa Lanne Vieira Damasceno, Mirella Cordeiro Moreira da Costa e Jorgina Sales Jorge, conta-nos da construção de uma disciplina eletivasobre a GAM ofertada aos cursos de graduação em saúde com base na experiência em dois CAPS, discutindo, assim, essa estratégia formativa e sensibilizadora para a relação ensino, pesquisa e extensão.

De Natal, capital do estado de Rio Grande do Norte, na extremidade nordeste do país, Indianara Maria Fernandes Ferreira, Carlos Eduardo Silva Feitosa e Ana Karenina de Melo Arraes Amorim apresentam Gestão autônoma da medicação como dispositivo grupal: uma experiência de pesquisa-intervenção, onde discutem a experiência da GAM no contexto do cuidado às situações envolvendo o uso de álcool e outras drogas, trabalhando com a noção de dispositivo grupal e princípios da Análise Institucional, percebendo a potência da transversalidade e da multiplicidade para transformações micropolíticas em processos cogestivos e de autonomia.

Já em Fortaleza, capital do Ceará, Uma composição experimental do Guia GAM: favorecendo vidas pulsantes, de Ricardo Pimentel Méllo, Juliana Vieira Sampaio, Natalia Sousa Barros, Tárcila Silva de Lima e Carolina Castro e Veras, oportuniza-nos pensar as práticas de liberdade no cuidado de si e a GAM para além das drogas, por meio da primeira etapa de uma pesquisa participativa, que concerne à capacitação de profissionais da saúde. O artigo instiga, assim, o compartilhamento de experiências como potencializador de um cuidado múltiplo e singular, de saberes localizados, cultivado na amizade, em poéticas e criatividade que se desenham na ética e estética das vidas.

Finalizamos este dossiê em território catalão, na Espanha, com o texto de Mercedes Miguel Serrano e Angel Hernáez Martínez. Em Apuntes para una nueva cultura de cuidados en salud mental os autores nos apresentam a narrativas de sofrimento e adversidades vividas por pessoas que passaram pela experiência de adoecimento e cuidado em saúde mental, que reafirmam a GAM como experiência útil no caminho da transformação das lógicas disfuncionais nas práticas de atenção psicossocial e da supressão das coerções que impedem a democratização da saúde, em direção ao trabalho coletivo em contextos seguros de diálogo e inclusão.

O conjunto das experiências descritas apontam a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão, em uma perspectiva dialógica que envolve Universidade e Comunidade na produção e troca de conhecimentos, em benefício da formação tanto de novos profissionais e daqueles já inseridos no trabalho quanto dos usuários como sujeitos de direitos. Os dispositivos utilizados na GAM - como apoio institucional, apoio matricial, grupos e rodas de conversa - e sua maneira de operar - participativa e cogestiva - incidem sobre a micropolítica das relações, fortalecendo o sentido de termos como democracia, cidadania e autonomia, cruciais para uma efetiva atenção psicossocial e para a vigência do Sistema Único de Saúde conforme aos seus princípios. Ademais, passados dez anos da GAM no Brasil, percebemos sua capilarização pela rede de atenção psicossocial, alcançando serviços de atenção primária, além daqueles destinados a usuários de álcool e outras drogas e também os que se dedicam a infância e juventude. Esta expansão da estratégia suscitou um uso inventivo e localmente situado do guia GAM-BR, mostrando que, preservados os seus princípios, as possibilidades de trabalho com a estratégia GAM são múltiplas.

Neste doloroso tempo que vivemos, entre pandemia e ameaças à sociedade civil e às instituições democráticas, além do ataque às políticas brasileiras de saúde, assistência social, educação, cultura, entre outras, convidamos os leitores para uma imersão nas produções que seguem, na aposta de que é possível persistir no caminho da construção coletiva em prol de uma atenção em saúde mental democrática, participativa, inclusiva e de proteção à vida.

 

REFERÊNCIAS

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