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Revista Polis e Psique
versão On-line ISSN 2238-152X
Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2020
https://doi.org/10.22456/2238-152X.104150
ARTIGOS
O Comitê Cidadão e o trajeto participativo da pesquisa GAM
The Citizen Committee and the participatory path of the GAM research
El comité ciudadano y el camino participativo de la investigación GAM
Thais Mikie de Carvalho Otanari; Lourdes Rodriguez Del Barrio
Universidade de Montreal (UdeM), Montreal, QC, Canadá
RESUMO
O artigo aborda duas questões centrais no desenvolvimento contemporâneo da pesquisa em Saúde Mental: a inclusão dos saberes comunitários, ou da experiência, e a participação direta das pessoas na construção dos conhecimentos. Para isso, analisa a experiência de participação cidadã no projeto que traduziu e adaptou um instrumento que prevê um lugar central aos usuários na tomada de decisões do tratamento farmacológico em psiquiatria, o guia GAM (Gestão Autônoma da Medicação). Mais especificamente, procura-se compreender se a metodologia participativa permite transformar as relações de saber-poder e quais são suas implicações. Nossa conclusão é que, através de uma metodologia científica que inclui e valoriza os sujeitos em suas diferenças, a participação pôde tensionar posições hierárquicas pré-estabelecidas, favorecendo um contexto em que os cidadãos, mais empoderados e autônomos, ampliam a capacidade de atuação nas práticas da rede de pesquisa, contribuindo para a desconstrução de condições sócio-históricas de exclusão.
Palavras-chave: Pesquisa Participativa; Saúde Mental; Participação Cidadã; Gestão Autônoma Da Medicação (GAM).
ABSTRACT
The article addresses two central issues in the contemporary development of Mental Health research: the inclusion of community knowledge, or experiential knowledge, and the active participation of people in the construction of knowledge. To this end, it analyzes the experience of citizen participation in the project that translated and adapted an instrument that places the individual at the center of the decision making of pharmacological treatment in psychiatry, the GAM (Gaining Autonomy & Medication Management) guide. More specifically, it seeks to understand whether the participatory methodology allows to transform the relations of knowledge-power and what are its implications. Our conclusion is that, through a scientific methodology that includes and values individuals in their differences, participation could change pre-established hierarchical structure, facilitating a context in which the citizens, more empowered and autonomous, have increased their capacity to influence the research practices, contributing to the deconstruction of the socio-historical structure and their situation of exclusion.
Keywords: Participatory Research; Mental Health; Citizen Participation; Autonomous Medication Management (GAM).
RESUMEN
El artículo aborda dos cuestiones centrales en el desarrollo contemporáneo de la investigación en salud mental: la inclusión de los saberes comunitarios o de la experiencia, y la participación directa de las personas en la construcción del conocimiento cientifico. Para ello analiza la experiencia de participación ciudadana en el proyecto que tradujo y adaptó un instrumento que prevé un lugar central de los usuarios en la toma de decisiones del tratamiento farmacológico en psiquiatría, o guía GAM (Gestión Autónoma de la Medicación). Mas concretamente trata de comprender si una metodología participativa permite transformar las relaciones entre el saber y el poder y cuáles son sus implicaciones. Nuestra conclusión es que, mediante una metodología científica que incluye y pone en valor a los sujetos y a sus diferencias, la participación puede poner en cuestión posiciones jerárquicas preestablecidas, favoreciendo un contexto en el que los ciudadanos, más empoderados y autónomos, amplían la capacidad de actuación en las practicas de la red de investigación, contribuyendo a la deconstrucción de las condiciones sociohistóricas de la exclusión.
Palabras-clave: Investigación Participativa; Salud Mental; Participación Ciudadana; Gestión Autónoma De Medicamentos (GAM).
Introdução
As ciências humanas e sociais têm se questionado sobre as relações entre os saberes da academia, experts e os que emergem dos atores sociais, os saberes comunitários, ou saberes da experiência, sendo estes últimos, muitas vezes, contextualizados, interpretados e ressignificados pelas práticas de pesquisa. Ora, a sociedade contemporânea vive momento de transformação de paradigmas no sistema de produção de conhecimentos, o qual traz como desafio a articulação entre esses dois conjuntos de saberes que, normalmente, são baseados em visões diferentes de mundo, sobre as pessoas, a vida, o corpo, o espírito e a saúde-doença. Tal processo é fundado em dois movimentos: o primeiro é ligado à qualidade e aos valores éticos dos debates epistemológicos e metodológicos que defendem uma ciência implicada com a construção de práticas e políticas públicas em consonância com a realidade vivida pelas pessoas diretamente afetadas pelo conhecimento produzido (Rodriguez, Bourgeois, Landry, Guay & Pinard, 2006). O segundo movimento é calcado na urgência daqueles que vivem os contextos estudados. Aqui, falamos de necessidades imediatas e cotidianas dos cidadãos que lutam por seu direito de participação nos espaços sociais, inclusive no âmbito científico, ao tomarem a ciência como um bem público e coletivo. Esses dois movimentos são distintos, mas não são disjuntos, sendo possível fazê-los convergir, assumindo-se, inclusive, a desigualdade entre as relações de poder que, se não devem ser negadas, podem vir a ser reduzidas.
Mais especificamente, no campo da Saúde Mental, diversas correntes defendem a necessidade de se incluir a perspectiva das pessoas que vivem a experiência do sofrimento psíquico através da sua participação direta na pesquisa e no desenvolvimento, gestão e avaliação do seu tratamento. Para isso, propõem ferramentas teóricas e metodológicas que promovam articulações entre saberes plurais e inclusão dos pontos de vista dos diversos atores, produtores de conhecimentos. Mesmo se essas abordagens são, ainda, minoritárias, seus conceitos e valores são, cada vez mais, estudados e adotados por teóricos, assumidos como diretrizes de políticas públicas, utilizados por trabalhadores e apropriados por usuários de serviços (Rodriguez et al., 2006; Rodriguez et al., 2008). No entanto, constatamos que, mesmo que de maneira distinta quanto ao grau e qualidade, a participação dos usuários se restringe, substancialmente, às etapas de coleta de dados e de difusão de resultados, sendo raras as pesquisas em que os cidadãos participam em todas as etapas, inclusive nos espaços de decisão e regulação dos projetos (Dimov, 2016, Moltu, Stefansen, Svisdahl & Veseth, 2013, Presotto, Silveira, Delgado & Vasconcelos, 2013, Russo, 2012).
A inclusão de usuários nos processos de produção de conhecimento em Saúde Mental torna-se, assim, indispensável, quando inserida em uma tendência científica, na qual os cidadãos têm o direito de participar das decisões que envolvam os conhecimentos que serão propostos para a resolução de seus problemas. Contudo, uma participação cidadã que não dá lugar à expressão de singularidades, incluindo a expressão da diferença de que a loucura é marca, corre o risco de produzir dinâmicas de normatização no interior dos espaços de pesquisa, fazendo com que estas se tornem dispositivos de apaziguamento dos sujeitos, sobretudo em relação seus modos de ser e estar.
Assim, o pressuposto da emancipação social, garantida por uma cultura de cidadania inclusiva que se estabelece a partir de estratégias inovadoras de participação política, estaria na base dos movimentos de democratização da ciência e da Reforma Psiquiátrica, o que faz com que seja fundamental que pensemos no encontro entre esses dois movimentos, principalmente no que tange à inclusão de subjetividades outras que as técnico-racionais hegemônicas, como forma de produção de autonomia e de conhecimento-emancipação em Saúde Mental. Nessa lógica, considerando a dimensão epistemológica da prática moderna eurocentrista, que tem como aspecto fundante a exclusão do outro, propõe-se um conjunto de ideias que se desdobram em um suporte epistemológico construído em rede, em que a diferença, legitimada e valorizada, se faz ouvida em diferentes ideais e opressões vividos por atores plurais, preconizando-se, em vez de colonização, relações de solidariedade entre os diversos pensamentos presentes de forma a "progredir no sentido de elevar o outro da condição de objeto à condição de sujeito" (Santos, 2011, p. 29).
A partir de tais reflexões, o presente artigo tem como foco um projeto participativo e cogestivo em Saúde Mental, a pesquisa da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), estratégia que busca ampliar a autonomia do usuário na gestão de seu tratamento medicamentoso, com origem nas demandas do movimento comunitário em Saúde Mental, na década de 90, e desenvolvida em parceria com grupos de pesquisa, na província do Quebec (Canadá). A GAM apresenta como fundamento o direito ao consentimento livre e esclarecido e a garantia das escolhas em relação ao uso de medicamentos pela pessoa em tratamento, fomentando espaços de diálogos entre profissionais e usuários. Para isso, utiliza o Guia da Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM), instrumento que oferece informações a respeito do universo medicamentoso e dos direitos em Saúde Mental, nos âmbitos subjetivo e social, promovendo experimentações de autopercepção e reflexão que auxiliam nos processos de tomada de decisão e construção de ação (Rodriguez Del Barrio & Poirel, 2007, Rodriguez Del Barrio et al., 2014).
A pesquisa GAM de que se trata aqui objetivou a tradução e adaptação do Guia GAM do Quebec à realidade brasileira. Estabeleceu-se como uma iniciativa desenvolvida sob a chancela da Aliança Internacional de Pesquisas Universidade-Comunidade - Saúde Mental e Cidadania (ARUCI-SMC), uma rede binacional de pesquisa lançada em 2009, com mais de 200 membros e 40 projetos (ARUCI-SMC, 2012), que teve duração de seis anos e trouxe como proposta apoiar projetos em Saúde Mental comprometidos com o aprimoramento de práticas e políticas públicas, a melhoria da qualidade de vida e a promoção da participação social e de práticas cidadãs das pessoas que vivem com um transtorno grave de Saúde Mental (http://www.aruci-smc.org)1.
Uma das singularidades da iniciativa foi prever, em seu desenho institucional, o Comitê Cidadão (CC), um dispositivo de cogestão constituído por cerca de dez membros usuários de serviços de Saúde Mental, com o objetivo de garantir a participação comunitária em todos os níveis da Aliança. Dessa forma, além da coordenação acadêmica, cada um dos países-membro possuía um coletivo de cidadãos presente no desenvolvimento da cooperação, totalizando mais de vinte representantes do setor comunitário, engajados diretamente nas ações de gestão do programa (ARUCI-SMC, 2012; http://www.aruci-smc.org). A GAM, como um dos principais projetos desenvolvidos pela equipe brasileira da ARUCI-SMC, contou, igualmente, com a participação do CC brasileiro - autonomeado "Comitê de Usuários Cidadãos" - em praticamente todas as suas etapas, sendo seus integrantes os protagonistas das reflexões construídas por este artigo, o qual se propõe a analisar a experiência da participação cidadã na pesquisa, articulando saúde mental, produção de conhecimento, participação e cidadania.
Através de um levantamento bibliográfico de produções científicas que narram essa experiência e da análise dos resultados ainda não publicados de nossa pesquisa, buscou-se descrever o trajeto participativo desenvolvido pelos atores do projeto e de que forma seu avanço esteve em sintonia com as premissas de um ideal de ciência inclusiva e emancipatória.
Aspectos Metodológicos
Em um primeiro momento, identificamos e selecionamos todos os textos publicados até 2019, que tinham como foco o tema da participação dos membros cidadãos na adaptação do guia GAM no Brasil. Em seguida, por meio da sistematização das memórias e reflexões presentes nas publicações, traçamos um painel do trajetoparticipativodesde a inserção dos usuários como "sujeitos de pesquisa" até sua presença como "usuários-pesquisadores" nos espaços de gestão do projeto.
Na seção seguinte, propomos uma discussão a partir dos resultados de nosso estudo, também sobre a experiência participativa da pesquisa GAM, que utilizou duas ferramentas metodológicas qualitativas - a Teoria do Ator-rede (Latour, 1996, 1999, 2003, 2005) e a Cartografia (Alvares & Passos, 2013, Kastrup & Passos, 2013, Prado Filho & Teti, 2013, Romagnoli, 2009). Através dessas abordagens que, prioritariamente, refutam a tendência de separação entre sujeito e objeto e interrogam os elementos e seus contextos a partir de suas singularidades, o método proposto se baseou em uma postura de pesquisa que valoriza a voz dos sujeitos, nesse caso, os membros do coletivo GAM, entendendo que são eles que devem ser os responsáveis pela construção das reflexões e teorias sobre os processos estudados.
Assim, utilizando narrativas retiradas de entrevistas realizadas com os membros do CC, nosso objetivo é verificar se o dispositivo metodológico desenvolvido pela pesquisa GAM, pôde contribuir para a ativação de movimentos de reposicionamento de lugares e se, diretamente, agregou processos de conscientização e aumento de autonomia por parte dos participantes, gerando alguma perturbação nas estruturas hierárquicas de saber-poder vigentes, descrevendo quais são os processos que contribuem, ou se opõem, a essas novas articulações e de que maneira potencializam a qualidade do conhecimento produzido pela rede de pesquisa.
Na Direção de uma Prática Científica Inclusiva: a Participação Cidadã na ARUCI-SMC Brasil
No Brasil, a GAM têm sido efetivada especialmente em unidades da Atenção Básica e em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de diferentes estados, por meio dos Grupos de Intervenção (GI), encontros conduzidos pelos temas e reflexões propostos pelo Guia GAM. Foi adaptada e implementada para o contexto brasileiro por meio de diversas iniciativas científicas e da administração pública, iniciadas em 2009 e que se estendem até os dias atuais. Nesse contexto, apresentaremos, especificamente, a experiência de participação desenvolvida no primeiro projeto GAM, pesquisa que, como arranjo de experimentação do Guia GAM, operacionalizou quatro Grupos de Intervenção (GI), executados por dez meses, em três estados diferentes, somando uma média de vinte encontros para cada GI (Campos et al., 2012, Emerich, Onocko & Passos, 2014, Gonçalves & Campos, 2017, Gonçalves, 2013, Marques, 2012, Marques, 2013, Onocko Campos et al., 2013, Palombini et al., 2013, Passos et al., 2013ª, Presotto et al., 2013, Presotto, 2013, Silveira, 2013, de Carvalho Otanari et al., 2011).
Em relação à participação dentro da pesquisa GAM, observamos duas etapas: em um primeiro momento, os usuários participam dos GIs que utilizaram a primeira versão traduzida em fase de validação e adaptação do Guia GAM, ainda enquanto "sujeitos de pesquisa"; depois, com a implementação do CC na ARUCI-SMC, passam a ocupar uma função formal nas diretrizes de gestão dentro do convênio. Trataremos de analisar, aqui, a experiência desses usuários de serviços de Saúde Mental, cidadãos membros da pesquisa, em três dispositivos de participação cujas vivências e efeitos entrecruzam-se no contexto da ARUCI-SMC: o GI GAM, a participação na elaboração da versão brasileira do Guia GAM e o Comitê Cidadão. Identificamos pistas sobre a emergência de processos de subjetivação que resistem às tendências redutoras vigentes nas práticas psiquiátricas dominantes, em um processo de aumento de poder vivido pelos membros do Comitê, uma mudança de posição no interior da equipe de pesquisa que terá um efeito sobre a dinâmica de produção de conhecimento na GAM. Tal mudança é relatada nos textos publicados e nas entrevistas realizadas com os cidadãos do comitê em nosso estudo, sendo objeto das reflexões que apresentamos a seguir, organizada em cinco tópicos.
A Dinâmica Grupal e a Transição dos Atores nos Grupos de Intervenção (GI): de "Sujeitos de Pesquisa" a Pesquisadores da Própria Experiência
Orientada pelos princípios de cogestão e lateralidade, a metodologia de moderação do GI busca favorecer um tipo de grupalidade em que diferentes atores são colocados lado a lado em procedimentos que não anulam ou diminuem as diferenças dos sujeitos, mas, ao contrário, valorizam suas singularidades, a partir do reconhecimento e da negociação das diferentes forças sociais que estão em campo. Em 2013, Gonçalves, que também era moderadora de um GI, publica a primeira tese de doutorado que trabalhou especificamente sobre participação dos usuários na experiência GAM. Apesar de não focar o campo teórico das abordagens participativas, a pesquisa oferece-nos importantes indícios sobre como o favorecimento de uma participação lateralizada na moderação dos GI's se relaciona à maneira com a qual se opera a gestão do projeto GAM e como estes movimentos interconectados favoreceram a legitimação da inclusão dos cidadãos nas dinâmicas da pesquisa.
Perguntamo-nos também sobre o quanto, desde o lugar de universidade, poderíamos estar incorrendo em ações e falas que impossibilitassem de fato o reconhecimento da experiência do outro, um compartilhamento, um 'estar junto'. Atentos ao cuidado em produzir um fortalecimento do protagonismo dos usuários, apostamos que o próprio grupo funcionaria como um laboratório: (...) Experimentariam no GI, por exemplo, o atributo de 'sujeitos de direitos' para que pudessem experimentá-lo também em outros lugares (Gonçalves, 2013, p. 162).
Em uma investigação de mestrado realizada sobre o tema, além dos efeitos ligados à qualidade de vida e ao aumento de poder contratual nas decisões acerca do tratamento, Presotto (2013) acena para o aspecto grupal do dispositivo, pois identifica, por parte dos participantes, um grande apreço pelas trocas entre os pares e pela horizontalidade nas relações, inclusive em relação aos moderadores dos GI's.
As entrevistas do estudo indicam terse valorizado mais o aspecto coletivo de aprendizado e compartilhamento de saberes do que a aquisição de conhecimento como benefício pessoal, evidenciando um avanço ainda maior em relação ao ganho de autonomia no âmbito comunitário. Ademais, a partir da inserção dos participantes nos espaços de gestão da pesquisa, ocorrida após o término dos GI's, os membros do CC puderam ampliar suas habilidades de articulação e interlocução, tornando-se mobilizadores de estratégias de fortalecimento político para outros usuários. Esse fenômeno também estaria ligado à própria construção da identidade de pesquisadores-usuários, com a qual relataram sentir uma melhora na autoestima, o que remeteu à percepção de suas capacidades como representantes do movimento social (Presotto, 2013).
É possível afirmar que o GI, ao promover o exercício de direitos pelos participantes, proporciona reposicionamento de lugares e inflexão dos percursos científicos, como um dispositivo que, sem negar as diferenças, favorece que aquilo que circula na margem transforme o que está no centro, criando possibilidades de novas configurações de poder (Gonçalves & Campos, 2017, Passos et al., 2013a). Ainda, segundo Passos et al., (2013 a), as potencialidades da participação nos GI's se dão, em grande parte, em razão da condução utilizado na moderação dos grupos, que acaba por criar "as condições de contração de uma grupalidade e de acolhimento do que emerge no coletivo como expressão do protagonismo dos sujeitos em suas diferenças" (Passos et al., 2013a, p. 32). Há, assim, um percurso que pode ser mapeado desde a experiência de participação, iniciado pelo ganho de autonomia dos membros cidadãos nos GI's, e que se amplia como efeito do processo investigativo da pesquisa GAM - dois movimentos conectados e retroalimentados por um modo de manejo que impulsiona o compartilhamento das decisões e a ampliação do protagonismo dos participantes (Passos et al., 2013a), signos do desenvolvimento de uma prática científica mais inclusiva.
Esse é um modo de participação que, como salientado pelos textos publicados sobre a participação na GAM, aparece como marca forte na maneira de trabalho da equipe, muito influenciada pelas orientações das Reformas Sanitária e Psiquiátrica e engajada com os princípios de cogestão e autonomia ampliada, que busca, via a implementação de espaços mais lateralizados, maior participação dos usuários nas tomadas de decisão sobre seus tratamentos. Para os idealizadores desses movimentos, modos compartilhados de tomadas de decisão em saúde auxiliam na construção de soluções para a reorganização de ações, colaborando com o aumento do grau de autonomia dos sujeitos, ao gerarem redes mais criativas, enriquecidas por visões e saberes múltiplos (Gonçalves, 2013, Palombini et al., 2013, Passos et al., 2013a).
Em sua dissertação, Marques (2012, 2013) sugere que há um fluxo de transformação que se sustenta, entre outros, pelo processo grupal instaurado enquanto participantes dos GI's e que se estende até a presença nas reuniões de pesquisa, culminando na criação e introjeção da identidade do pesquisador por parte dos cidadãos. Essa passagem é de suma importância no avanço da forma de trabalho entre usuários e acadêmicos brasileiros que, ao forjar um quadro de tensionamento das diferenças, sem tornar homogêneos os atores, culmina em um agir processual e inventivo, alicerçado em arranjos que engendram o pesquisar "com", operando "entre" modos diferentes, com base em intervenções inclusivas que valorizem a dimensão experiencial (Marques, 2012, p. 116-117).
O Compartilhamento de Poder e a Diversidade de Saberes no Comitê Cidadão e na Pesquisa GAM
Passos et al., (2013b, 2013 c) propõem dois artigos sobre o dispositivo de cogestão do CC: o primeiro sobre seu potencial enquanto catalisador de práticas cidadãs dentro da rede GAM e o segundo com enfoque no aspecto clínico-político da pesquisa. No coração desses trabalhos, explorou-se o conceito da "tríplice inclusão", uma orientação metodológica lateralizada que toma as singularidades dos sujeitos como facilitadoras de uma ciência mais robusta. Além da qualificação da análise, que foi ampliada justamente pelo entrecruzamento do saber científico e do conhecimento advindo da experiência singular dos usuários, os ensaios concluem que a experiência de lateralização sustentada pelas metodologias utilizadas pôde reposicionar papéis, através de vivências cidadãs e de produção de autonomia, exercitadas dentro do espaço da pesquisa, impelindo processos de subjetivação que tiveram como produto a emergência de sujeitos de direitos.
Silveira (2013) disserta sobre uma postura de investigação aberta para o imprevisível, como propulsor de práticas inovadoras e que articula um arranjo participativo capaz de subverter lugares, obrigando acadêmicos e usuários a se relacionarem de tal forma que as dinâmicas científicas passam a ser potencializadas justamente pelo encontro das diferenças. Em uma de suas memórias a pesquisadora narra a seguinte cena:
então, quando uma colega apresentou sua pesquisa, falando sobre os três modos de narrativa da experiência, ela chegou a esse modo, que é um nível corporal de narrativa da experiência. Aí o Davi pediu licença para contar uma história (...) Silêncio total na sala, onde cerca de quarenta pessoas emudecidas escutavam a história que Davi contava. Um silêncio que acolhia uma experiência até ali nunca narrada (Silveira, 2013, p. 119-120).
E, em referência a essa mesma cena, membros do comitê cidadão e pesquisadores universitários se colocam a seguinte questão: "Naquele momento, numa sala da Unicamp, eram os acadêmicos anfitriões de hóspedes-usuários, ou tornavam-se os acadêmicos hóspedes de usuários-anfitriões em território universitário?" (Flores et al., 2015, p. 272).
A partir desse episódio, apresenta-se, assim,uma metodologia que pressupõe formas diversas de leitura e expressão no mundo e de participação e intervenção em pesquisa, a qual atribui à experiência qualidade de saber tão importante quanto a técnica.
Limites e Desafios no Trajeto GAM: Caminhando pela Margem
Os textos publicados puderam também mapear desafios que restringiram um maior avanço das práticas inclusivas de pesquisa. Fazemos alusão à tese de Dimov (2016) que, embora sublinhe a característica inovadora da ARUCI-SMC que convida os cidadãos usuários a adentrar o universo científico, apresenta críticas contundentes sobre os limites não superados pelo projeto, permeado por uma estrutura de desigualdades que criam barreiras para uma participação mais democrática e potente. O estudo identifica restrições ligadas à conjuntura sociopolítica de exclusão da loucura que solidifica um quadro de discrepância de forças sociais e resulta na valorização da voz da academia em sobreposição à voz do comunitário, impedindo que os parceiros marginalizados sejam legitimados integralmente nas interações e fazendo com que tenham menos influência sobre as decisões do que os atores da universidade.
Entre as narrativas sobre o tema, o estudo identifica que, ao mesmo tempo que há um ganho advindo da experiência de adoecimento psíquico, pois é justamente por causa do saber experiencial que os cidadãos são convocados a estar presentes no projeto GAM, há obstáculos que não foram superados. A autora cita o caso de um membro do CC que constatou não ser suficientemente apto para acompanhar as reuniões em decorrência da própria experiência do adoecimento que o tinha distanciado da "realidade concreta das coisas" (Fernando, citado por Dimov, 2016, p. 136), situação que nos sinaliza que os espaços da pesquisa ainda não eram suficientemente adaptados, dependendo do estado psíquico dos participantes.
Sob outro aspecto, temos um contexto de disparidade socioeconômica que resulta em adversidades rotineiras, como a custosa locomoção entre os bairros periféricos, onde vivem os usuários, até as universidades; a dificuldade de acesso a recursos do cotidiano acadêmico, como computador e internet; e as diferenças nas oportunidades individuais de acesso à educação, entre outros. Em relação ao aspecto econômico e à questão das barreiras financeiras, tópico recorrente nas discussões de gestão do convênio, Dimov afirma que o recurso monetário destinado à participação dos cidadãos foi um facilitador primordial pois, mesmo sem ser capaz de eliminar as iniquidades existentes, possibilitou que os usuários estivessem presentes nas atividades de pesquisa e favoreceu, em certo grau, o aumento da autonomia no processo de participação. Seja como articulador da participação, por meio da remuneração dos participantes, seja como mediador da condição social de disparidade de forças entre os parceiros do coletivo, a questão do dinheiro apresenta-se como analisador em diferentes publicações (Dimov, 2016, Passos et al., 2013c, Silveira, 2013, Zambillo, 2015).
Cenas Disruptivas: Protagonismo Cidadão e Transformação das Práticas de Pesquisa
Não obstante, o tópico da remuneração do CC é mencionado diversas vezes pelos membros da rede como um resultado do processo de ampliação do protagonismo cidadão. Tal fato se dá, sobretudo, porque o ressarcimento dos cidadãos brasileiros só foi instaurado por meio de mobilização e reivindicação destes, após constatarem que tanto os pesquisadores universitários, através de salários ou bolsas de pesquisa, quanto os companheiros canadenses de comitê, estes através de remuneração pelas atividades da ARUCI-SMC, recebiam compensação financeira pelas atividades realizadas dentro do programa (Passos et al., 2013c, Zambillo, 2015). Esse foi um marco na vida do convênio, pois exigiu que o grupo de cidadãos confrontasse a coordenação da equipe, em uma ação possível apenas porque eles mesmos, em um movimento de apropriação das práticas científicas, reconheceram o valor de sua expertise. Assim, junto com o reconhecimento monetário, o CC exigia que sua contribuição na cooperação fosse legitimada como equivalente à que era oferecida pelos universitários. Ampliavam seu campo de ação ao intervirem, diretamente, em engessamentos oriundos de desigualdades econômicas e das diferenças de valorização do saber oferecido por atores da comunidade, influenciando, assim, as interações entre os atores.
Esse é considerado um momento-chave, porque diz da possibilidade de disrupção, movimentos que avançam no sentido da desestabilização de forças preestabelecidas. Quando aceitamos a prerrogativa de que, além das desigualdades econômicas, a exclusão social acontece também pelo impedimento do acesso a recursos ligados ao conhecimento, inclusive pelo aparato hegemônicode quem determina quando um saber vale mais do que outro, entendemos que os processos de produção científica são diretamente afetados pelas relações entres os sujeitos, o que engloba, inclusive, a questão da legitimidade de diferentes saberes. Nesse sentido, as experiências de direitos que emergiram da cartografia de participação nos evidenciam uma qualidade sinérgica de poder, na qual a ampliação no grau de autonomia dos cidadãos pôde, durante o trajeto da pesquisa, influenciar atores e ações em relação.
É o caso, também, da produção do artigo redigido entre universitários e cidadãos membros do CC (Flores et al., 2015), um projeto de escrita coletiva sobre a experiência GAM, desenvolvido no estágio final da pesquisa. No início, a proposta era de um relato sobre a experiência de participação dos usuários, mas o objetivo foi mudado depois que o próprio Comitê devolveu a pergunta para os acadêmicos, indicando um cenário em que foram capazes de interpelar interações mais equânimes, evocando que já não eram mais "sujeitos de pesquisa", mas, igualmente, pesquisadores: "e pra vocês, como é estar aqui na universidade pesquisando com a gente desse jeito?". Para os entrevistados, trata-se de um episódio crucial ao trajeto de participação GAM, pois, além do produto final - a publicação do artigo -, o processo da escrita se estabeleceu como um articulador de diferenças e exigiu que as distintas "culturas" se ajustassem em torno de um ritmo e uma linguagem comuns. Celebra um estágio em que o CC se sentiu legitimado para assumir-se perante as regras e normas do universo científico, negando-se a se adequar por completo às demandas da academia que, por limitações quanto a prazos, financiamento e regras de publicação, exigia que o processo da escrita fosse mais rápido e técnico do que o proposto pelo grupo de redação:
Muita coisa no artigo ficou mais simples, mas eu não estou dizendo que não era para não ter termos acadêmicos, mas, como a pesquisa é feita para usuários, eu acho que quem vai ler este artigo não vai ser só usuários e nem só acadêmicos, vai ser garis de rua, vão ser médicos, faxineiros e dentistas. Se vai sair em uma revista, então tem que ser uma leitura acessível a todos. Todos tem que entender (Cidadão, narrativa em entrevista individual).
Por fim, o artigo foi publicado contando vinte e sete autores. O texto vem a ser um rico artefato a mostrar de que maneira práticas científicas inclusivas, flexíveis em relação a modos e normas, se enriquecem e ganham em complexidade e qualidade quando podem se desconstruir e se abrir para escuta do outro:
(...) por um lado, como efeito deste encontro, a qualificação do pesquisador no campo intelectual; por outro, como efeito da implicação e do envolvimento com a proposta, o 'olhar crítico' desenvolvido pelos participantes que se tornaram também pesquisadores. (...) A sustentação desse espaço possibilitará o equilíbrio do conhecimento acadêmico e o dos usuários da saúde mental. A sistematização do 'conhecimento de nós' produz o protagonismo do usuário dentro da universidade (Flores et al., 2013, p. 274).
Narrativas Cidadãs: Ganho de Autonomia e Protagonismo Através do Comitê Cidadão
A possibilidade da práxis, o agir imbricado com a reflexão, habilitada pela presença nas reuniões de pesquisa e no CC, aparece como sendo parte fundante da participação. As narrativas sobre o tema também indicam a importância da experiência que incluiu debates e negociação, disputas em que o ponto de vista comunitário prevalece, sinalizando um deslocamento de posições nas relações de poder entre usuários e acadêmicos. Pode-se inferir, ainda, que o percurso de ganho de autonomia que se seguiu foi potencializado pela construção de uma identidade coletiva na qual o CC se organiza, não mais apenas como sujeitos do saber experiencial, mas como grupo político dentro da rede de pesquisa.
Apenas pela presença ativa nas reuniões de pesquisa, por acompanharem a ciência sendo construída em ato, já é possível perceber efeitos que direcionam os membros cidadãos para uma percepção crítica em relação a normas e estruturas que condicionam a construção dos métodos de pesquisa. Tais vivências lhes permitiram constatar que o saber científico também abrange incertezas, muitas delas respondidas justamente pelo saber da experiência, fazendo com que o conhecimento oferecido por eles fosse igualmente valorizado em relação àquele ofertado pelos acadêmicos. Há um impacto subjetivo profundo para alguém que se encontra historicamente fora dos lugares de centro da sociedade, como as universidades e laboratórios de pesquisa, e pode experimentar estar, mesmo que pontualmente, em uma posição invertida de poder.
E teve momento que deu confronto, essa coisa do conhecimento cientifico com o conhecimento do sujeito sem discutir o objeto. Porque o cientifico ele propõe discutir o objeto e esquece o sujeito, foi tanto que eu trazia as vezes, palavra assim meia, até pesada, 'Vocês conhecem o louco de papel, mas não conhecem o louco de sangue, de carne, de osso' que é o próprio sujeito que tem uma história(Membro cidadão, narrativa em grupo focal).
É conhecimento. É experiência. Experiência é conhecimento. Nós como usuários estão ouvindo a gente. Não sei quem foi que falou isso aqui hoje, nós como usuários, o que seriam eles sem nós usuários? Alguém falou isso aqui hoje. Nós usuários também somos importantes (Membro cidadão, narrativa em grupo focal).
- Você não seria psicólogo sem nós. Vocês psicólogos precisam de nós.
- Não teriam emprego, né? (Membros cidadão, narrativa em grupo focal).
Eu me lembro que às vezes eu chorava (...) Encontrava com vocês e aquela sensação de a gente ler o guia e sentir que vocês também não estavam entendendo, buscar em nós alguma coisa. O que é o adoecer? (...) E foi essa coisa, cada um contando sua história, que nasce o GAM brasileiro. É aí que nasce. Um GAM com as nossas possibilidades (Membro cidadão, narrativa em entrevista individual).
Quando tinha um assunto, vocês se debatiam um com o outro e isso me chamou a atenção. Por que nós não podemos fazer isso? (...) Então, para nós vocês estavam sempre acima de nós... Acho que até a metade da pesquisa que ali foi se equilibrando. A gente não tinha mais noção. Era tudo igual. Eu achei aquilo maravilhoso (Membro cidadão, narrativa em entrevista individual).
As falas dos participantes indicam que a etapa final da pesquisa GAM, que culminou na construção do Guia, foi de extrema relevância na experiência de participação. As narrativas evidenciam o fortalecimento dos membros cidadãos que exaltam terem conseguido modificar e incluir textos no Guia GAM. Mais uma vez, esse reposicionamento aparece como potencializador, não apenas do campo de ação dos cidadãos, mas de toda a rede de pesquisa, uma vez que essas contribuições são descritas como efeitos positivos da participação também pelos pesquisadores (Campos et al., 2012).
Porque a gente sentado na multicêntrica quietinho ouvindo era uma coisa, agora nós participando da criação do guia e do artigo, eu acho que houve uma valorização geral, né? (Cidadão, narrativa em grupo focal).
À vivência do deslocamento de lugares gerada pelos dispositivos metodológicos, acrescenta-se a produção do aspecto político advindo do exercício de sujeitos de direitos, em que o movimento de conscientização por parte do CC como coletivo organizado compeliu modos de participação mais inclusivos e efetivos. Quando o lugar de sujeito político se imbrica com processos de apropriação de práticas científicas e ampliação de autonomia, o grupo se sente suficientemente seguro nas relações com os acadêmicos para travar embates e legitimar demandas, como nos casos do pedido de remuneração e da mudança de foco no processo de redação do artigo. Protagonizam movimentos disruptivos, sendo os responsáveis por modificações na gestão da pesquisa e da metodologia para que essas incluam singularidades.
O caso da pesquisa GAM e do CC como dispositivo participativo de gestão da Aliança de pesquisa revela avanços percorridos por um trajeto em espiral, no qual o movimento de experimentação de direitos é retroalimentado pela possibilidade de apropriação científica, ambos habilitados pelos métodos inclusivos que foram implementados por meio da abordagem cogestiva empregada. Nosso entendimento é que, ao legitimarmos política e eticamente a participação dos membros cidadãos nas produções científicas, somos impelidos a promover, no interior da pesquisa, movimentos de desierarquização em que a desconstrução do status estigmatizante da diferença possa ser provocada por incursões dos próprios usuários, impulsionados por experiências de aumento no grau de autonomia. Passamos não apenas a ter a presença dos sujeitos, mas a valorizar e incluir as singularidades e suas diferenças, através de redes de pesquisa mais democráticas e potentes.
Porque tem certas coisas que o usuário pensa diferente do acadêmico. Eu acho que a gente queria criar esse espaço nosso para colocar essa diferença nossa juntos com nós. Como vocês, tem coisas que vocês não podem falar para nós, tem que ter o espaço de vocês, então a gente achou justo ter o nosso espaço, criar o nosso espaço.(...) Só tinha nós. E se falava de tudo ali. E é muito importante o comitê cidadão. Eu acho que foi uma conquista muito grande para nós isso (Cidadão, narrativa em entrevista individual).
O Comitê era nosso lugar de poder gritar, de pular, de sacudir (Cidadão, narrativa em entrevista individual).
A academia estava toda ali. A gente chegou e o que a gente vai fazer aqui agora? Então, a gente ficou muito juntos, sentados muito juntos um do lado do outro para dar força. Se estourar alguma coisa todo mundo estava junto. Se a gente falar alguma besteira todo mundo estava ali grudado no outro. (...) Os usuários. Nós estávamos sempre... Eu senti que depois que a gente foi criando essas estratégias e essas ideias, essa força que a gente podia fazer alguma coisa, a gente começou a falar mais para os acadêmicos também. Então, a gente dizia assim: 'Eu estou pensando no seguinte, o que você acha'? A gente trocava ideias e debatia com vocês. Acontecia muito isso na pesquisa (Cidadão, narrativa em entrevista individual).
Discussão
Em Saúde Mental, a possibilidade de redes solidárias no campo das pesquisas participativas produz a reposição de uma diferença que, na tradição hegemônica, é ligada à hierarquia de racionalidades que por anos excluiu o "louco", não apenas do espaço da ciência, mas de todo o espaço político da sociedade. Dessa forma, tomada pelo paradigma de uma ciência cidadã, impulsionada pelos pressupostos da Reforma Psiquiátrica, a participação funda-se no reconhecimento do direito das pessoas em integrar as etapas de construção da ciência como bem público e na aposta da promoção da autonomia como um aspecto fundamental para a transformação da relação entre sociedade e loucura, através de estratégias que ampliem a noção de cidadania como inclusiva de modos diversos de ser-estar no mundo, abarcando, obrigatoriamente, dispositivos de fortalecimento político. Entendemos que, se a participação em pesquisa é tomada sem considerar as diferenças hierárquicas de poderes, corre-se o risco da participação dos usuários ser marcada por uma atuação abafada.
Assim, a cartografia da participação cidadã na pesquisa GAM nos parece caminhar por dois percursos interligados: de um lado, a construção do método lateralizado e cogestivo, desenvolvido a partir de um paradigma de ciência participativa, o qual prioriza o saber experiencial e busca implementar dispositivos que favoreçam a inclusão dos cidadãos em suas práticas; de outro, a experimentação da pesquisa, o que alimenta o processo de transformação e apropriação de poder.
A GAM se torna mediadora das diferenças de poder entre os saberes técnico e da comunidade, ao trazer para o centro a voz e a experiência cidadã, habilitando o tensionamento dos diagramas de poder e dos estratos de saber e permitindo que os cidadãos passem a experimentar estar em lugares sociais diversos. Há uma relação irrefutável entre os dispositivos participativos implementados pelo método inclusivo e a possibilidade de apropriação de práticas científicas por parte dos membros cidadãos que, por sua vez mais autônomos, assumem e ganham espaço nas dinâmicas investigativas, colaborando para o fortalecimento das ações do projeto e podendo, finalmente, reconstruir seus lugares e modos de atuação na rede de pesquisa ao se tornarem protagonistas de ações à contrapelo das condições históricas de desigualdades e exclusão.
Mesmo com os diversos limites apontados pela experiência apresentada aqui, o caso da pesquisa GAM revela avanços percorridos por um trajeto em espiral, no qual o movimento de experimentação de direitos é retroalimentado pela possibilidade de apropriação científica, ambos habilitados pelos dispositivos de participação que foram implementados por meio da metodologia cogestiva empregada. Nosso entendimento é que, ao legitimarmos política e eticamente a participação dos membros cidadãos nas produções científicas, somos impelidos a promover, no interior da pesquisa, movimentos de desierarquização em que a desconstrução do status estigmatizante da diferença possa ser provocada por incursões dos próprios usuários, impulsionados por experiências de aumento no grau de autonomia. Passamos não apenas a ter a presença dos sujeitos, mas a valorizar e incluir as singularidades e suas diferenças, através de redes de pesquisa mais democráticas e potentes.
Por fim, propomos que, além do fundamental debate epistemológico relacionado à inclusão do saber experiencial na produção de conhecimentos científicos em Saúde Mental, faz-se urgente a promoção da participação na esfera de uma ciência pelo bem comum. Nesta, a participação dos sujeitos é tomada por seu aspecto democrático, acompanhada da reivindicação de um aumento da participação pública nos espaços políticos de regulação da pesquisa, onde cidadãos e cidadãs estabelecem normas e tomam decisões, sendo diretamente afetados pelo conhecimento que será produzido, reforçando a necessidade da construção de dispositivos que reduzam relações hierárquicas de saber-poder e reconheçam a diversidade de atores e valorizem suas singularidades.
Notas
1 A ARUCI-SMC, por sua vez, se inscreve em um programa canadense financiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais/Social Sciences and Humanities Research Council (SSHRC-CRSH) e pelo Centro de Pesquisa pelo Desenvolvimento Internacional/International Development Research Centre (IDRC-CRDI)que patrocina projetos de cooperação entre instituições do Canadá e de países em desenvolvimento que tenham como princípio o estabelecimento de parcerias com atores não acadêmicos no centro dos processos de produção de conhecimento (http://www.sshrc-crsh.gc.ca/funding-financement/programs-programmes/cura-aruc-eng.aspx; http://www.sshrc-crsh.gc.ca/funding-financement/programs-programmes/cura_idrc-aruc_crdi-fra.aspx)
2 A autora faz referência ao pedido de financiamento enviado ao CNPq em 2011, que financiou a segunda etapa do projeto de tradução e adaptação da primeira versão do Guia GAM para a realidade brasileira.
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Enviado em:10/06/19
Aceito em: 08/06/20
Thais Mikie de Carvalho Otanari é formada pela Escola de Serviço Social, Universidade de Montreal (UdeM), Montreal, Quebeque, Canadá. Bolsista Capes, na época de realização do estudo.
E-mail: thais.carvalho.otanari@gmail.com
ORCID:https://orcid.org/0000-0003-0670-3682
Lourdes Rodriguez Del Barrio é formada pela Escola de Serviço Social, Universidade de Montreal (UdeM), Montreal, Quebeque, Canadá. Diretora da Aliança Internacional de Pesquisa Universidade-Comunidade Saúde Mental e Cidadania.
E-mail: lourdes.rodriguez.del.barrio@umontreal.ca
ORCID:http://orcid.org/0000-0002-4451-8237