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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2020

https://doi.org/10.22456/2238-152X.103567 

ARTIGOS

 

Gestão Autônoma de Medicação (GAM) como dispositivo grupal: uma experiência de pesquisa-intervenção

 

Autonomous Management of Medication (GAM) as a group devide: an intervention-research experience

 

Gestión Autónoma de la Medicación (GAM) como dispositivo grupal: una experiencia de investigación-intervención

 

 

Indianara Maria Fernandes Ferreira; Carlos Eduardo Silva Feitosa; Ana Karenina de Melo Arraes Amorim

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho trata de uma experiência com a Gestão Autônoma de Medicação (GAM) em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) no estado do Rio Grande do Norte (Brasil) a partir de uma pesquisa-intervenção com base na Análise Institucional. O objetivo deste artigo consiste em realizar uma análise sobre a GAM como dispositivo grupal e suas potencialidades para produção de transformações sociais e da realidade no campo no próprio percurso do processo de pesquisa-intervenção, com ênfase nos movimentos micropolíticos, co-gestionários e na produção de autonomia.

Palavras-chave: Gestão Autônoma de Medicação; Pesquisa-Intervenção; Saúde Mental.


ABSTRACT

This article makes considerations about an experience with the Autonomous Management of Medication (GAM) in a CAPSad in the state of Rio Grande do Norte derived from an intervention-research based on the Institutional Analysis. The objective of this article is to perform an analysis of the GAM as a group device instrument, to analyze the GAM's potentialities for the production of social transformations and reality in the field on course of the intervention-research process itself, with emphasis on micropolitical movements, co-management and exercise of autonomy.

Keywords: Autonomous Management of Medication; Intervention Research; Mental Health.


RESUMEN

El presente trabajo trata de una experiencia con la Gestión Autónoma de Medicación (GAM) en un CAPSad en el estado de Rio Grande do Norte a partir de una investigación-intervención basada en el Análisis Institucional. El objetivo de este artículo consiste en realizar un análisis sobre la GAM como dispositivo grupal y sus potencialidades para la producción de transformaciones sociales en el campo en el propio proceso de investigación-intervención, con el énfasis en los movimientos micropolíticos, cogestión y producción de autonomía.

Palabras clave: Gestión Autônoma de Medicación; Investigación-Intervención; Salud Mental.


 

 

Introdução

No campo da saúde mental coletiva, atualmente, um dos desafios colocados não está apenas na desconstrução do paradigma manicomial que parece ganhar força no cenário político de retrocessos1. Também é preciso considerar como desafio a sustentação de práticas de atenção em saúde mental territorial e em liberdade, com ampliação da oferta de serviços e organização da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no sentido da atenção integral e da longitudinalidade do cuidado.

Nesse cenário de desafios complexos, é preciso considerar alguns importantes problemas a serem enfrentados. Dentre eles, está a tendência da centralização da oferta de cuidados no uso de medicamentos psicotrópicos, em detrimento de outras ofertas que produzam atenção integral e promovam inserção social com conquistas relativas à cidadania dos usuários. Para isso, o tema da participação social precisa estar na agenda da RAPS de modo que efetivos processos cidadãos sejam empreendidos (Vasconcelos, 2008).

Não obstante os avanços no campo da saúde mental, acompanhamos ainda um aumento significativo da prevalência de diagnósticos no campo da saúde mental e consequente procura de ações e serviços. A estimativa é de que 23 milhões de brasileiros passem por tais problemas, sendo ao menos 5 milhões em níveis de moderado a grave (OMS, 2013). Sabemos que, no Brasil, a prevalência de transtornos mentais, com base em diferentes estudos, varia entre 20% e 56%, acometendo principalmente mulheres e trabalhadores (Santos e Siqueira, 2010). No entanto, é necessário reconhecer a crítica aos mecanismos de ampliação do alcance dos diagnósticos psiquiátricos para situações comuns da vida humana e o exagerado estímulo ao consumo de medicamentos e seu impacto nas economias dos países (Conrad, 2004, Rodriguez & Poirel, 2007, Conrad, Mackie & Mehrotra, 2010, Bell & Figert, 2012), bem como a ascendência questionável da indústria farmacêutica e seus conflitos de interesse (Gotzsche, 2016). Além disso, estudos recentes, indicam que há no cenário brasileiro: uma elevada taxa de prescrição de psicofármacos para usuários da RAPS; falta de informações sobre medicamentos prescritos; nenhuma discussão de seus efeitos indesejáveis; pouca comunicação entre profissionais de saúde e usuários sobre o tratamento (Santos, 2009).

Este cenário exige a proposição de estratégias de cuidado e gestão no campo das políticas públicas de saúde mental, eticamente eficientes, que garantam ofertas e práticas criticamente orientadas para o abuso de medicamentos e sua centralidade terapêutica, apostando na autonomia, na participação ativa e na garantia de direitos das pessoas diagnosticadas. Nessa direção, há várias tecnologias e estratégias de cuidado em estudo e construção. Dentre elas, está a Gestão Autônoma de Medicação (GAM), objeto desta pesquisa.

A Gestion Autonome de la Médication (GAM) surge no contexto do Quebec/Canadá no ano de 1990, construída e protagonizada por diferentes atores e movimentos como o Agrupamento de Recursos Alternativos em Saúde Mental no Quebec (RRASMQ) em parceria com o Movimento de Defesa dos Direitos em Saúde Mental de Quebec (AGIDD-SMQ) e com pesquisadores do European Region Action Scheme for the Mobility of University Students (Équipe de recherche et d'action en santé mentale et culture -ERASME). Estas articulações visibilizaram debates e questionamentos acerca do lugar central ocupado pelos medicamentos psicotrópicos no tratamento e seus efeitos na vida das pessoas, resultando na elaboração de um caderno-guia pessoal GAM como uma nova estratégia e metodologia para o trabalho com pessoas que consomem medicamentos psicotrópicos.

De acordo com Barrio, Cyr, Benisty e Richard (2013) a GAM propõe o exercício de diálogo entre participantes, familiares e trabalhadores da saúde mental sustentando como princípios a qualidade de vida subjetiva, o empoderamento, o reconhecimento dos múltiplos significados em torno da medicação e o respeito aos direitos e decisões dos usuários numa abordagem ampla e não reducionista/unidimensional.

Considerando as aproximações e as especificidades do contexto brasileiro, o caderno-guia pessoal GAM foi traduzido e adaptado para o país através de articulações entre universidades públicas brasileiras (UNICAMP, UFRGS, UFRJ e UFF) juntamente com usuários e trabalhadores de serviços de saúde mental (Campos et al., 2012). Em meados de 2013 e 2014 a GAM foi incluída em uma política pública estadual do Rio Grande do Sul como estratégia a ser trabalhada em todo o estado (Silveira & Moraes, 2018).

É importante salientar que há diferenças entre os guias canadense e brasileiro. O GAM-BR não inclui o tópico do guia canadense que se propõe a apoiar e acompanhar a suspensão do uso de medicamentos, enquanto que no nosso contexto os usuários sublinham dificuldades de acesso aos medicamentos. Além disso, o guia brasileiro inclui os princípios de cogestão e autonomia como norteadores do trabalho com a GAM. Esses conceitos pressupõem, respectivamente, a descentralização da função de mediador em uma gestão coletiva e compartilhada da experiência e uma concepção deautonomia ligada à dimensão da coletividade, não se constituindo assim em um exercício de solidão (Passos, Palombini & Campos, 2013).

Recentemente, em 2017, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) integrou-se ao Observatório Internacional das Práticas GAM, uma rede colaborativa de apoio, produção de conhecimento e fomento composta por diversas universidades do Brasil, Espanha e Canadá. Começou aqui a primeira experiência com Gestão Autônoma de Medicação no estado através de uma pesquisa-intervenção realizada por graduandos e pós-graduandos do programa de Psicologia. A pesquisa teve como objetivos iniciar processos de implantação de práticas GAM no Estado, sistematizar o conhecimento produzido com as implantações, caracterizar a população beneficiada e os serviços envolvidos, conhecer os efeitos das experiências para os usuários e identificar peculiaridades das práticas GAM nos contextos locais.

Ao longo da pesquisa-intervenção, entendemos que os limites, potencialidades e desafios da GAM incidem desde a sua concepção como estratégia de cuidado em saúde mental e sua efetivação no contexto da RAPS como dispositivo grupal e como uma ferramenta tendo a materialidade do caderno-guia como mediador da experiência.

Aqui, focalizamos nossas reflexões sobre a experiência GAM a partir do dispositivo grupal e os desafios do manejo de questões que emergiram ao longo da experiência e que possam contribuir para o avanço e qualificação das práticas GAM nos diferentes cenários. Assim, o objetivo deste artigo consiste em realizar uma análise sobre a GAM como dispositivo grupal e suas potencialidades para produção de transformações sociais no campo e no próprio percurso do processo de pesquisa-intervenção, com ênfase nos movimentos micropolíticos.

 

Pressupostos e caminhos de uma experiência de pesquisa-intervenção GAM

A GAM foi implantada em um CAPSad através de uma pesquisa-intervenção na perspectiva da Análise Institucional, tendo como referências os esforços de Lourau e Lapassade, assim como de Deleuze e Guattari para a produção de um conhecimento que não se separa dos processos de transformações sociais. Com esse horizonte, a pesquisa-intervenção constitui um dispositivo que discorda radicalmente da neutralidade imposta ao pesquisador pelas ciências positivas e hegemônicas, para afirmar a dimensão política e a sua indissociabilidade no processo investigativomediante uma "atitude de pesquisa" que não separa sujeito e objeto (Rocha & Aguiar, 2003).

Na pesquisa-intervenção há uma mudança na concepção de pesquisa e de produção de conhecimento de tal modo que o clássico dito "conhecer para transformar" é substituído por "transformar para conhecer" (Coimbra, 1995). Esse modo de conceber a pesquisa põe em cena a inseparabilidade entre conhecimento e transformação,que não constituem duas etapas distintas, mas acontecem simultaneamente no ato de pesquisar.

Junto a esses princípios a pesquisa-intervenção tem como sustentação a análise de implicações. A implicação aqui não remete a uma questão de vontade ou ato voluntário, pois ela está nas relações estabelecidas com as instituições que nos constituem e nos atravessam (Coimbra & Nascimento, 2008). Assim, sua análise denuncia que "aquilo que a instituição deflagra em nós é sempre efeito de uma produção coletiva, de valores, interesses, expectativas, desejos, crenças que estão imbricados nessa relação" (Romagnoli, 2014, p. 47). Nesse sentido, reconhecemos que os princípios teóricos-metodológicos da GAM, tal como vem sendo desenvolvida no contexto brasileiro, possuem um caráter institucionalista, uma vez que pressupõe um processo de intervenção e pesquisa em coletivos compostos por diferentes saberes e atores (usuários, trabalhadores e pesquisadores), no qual a análise de implicações permite sustentar processos cogestivos, participativos e autônomos essenciais para os processos de transformações nos contextos cotidianos.

No contexto potiguar, optamos por apresentar a proposta da GAM num cenário que envolvesse o maior número de atores da RAPS, visto que a perspectiva institucionalista que nos orienta, assim como a GAM, pressupõe uma construção a partir do desejo e de questões levantadas pelo próprio coletivo. Assim, compartilhamos a proposta no Fórum Estadual de Direitos Humanos e Saúde Mental, no ano de 2017, pois apostamos que é um espaço estratégico na luta pela garantia e defesa dos direitos humanos em saúde mental e, nesse sentido, coerente com a proposta GAM. Nesse momento, uma trabalhadora do CAPSad da cidade em que a pesquisa-intervenção se desenvolveu demonstrou interesse e nos convidou a apresentá-la para outros trabalhadores do local.

Em fevereiro de 2018 firmamos as primeiras pactuações e contratualizações para a implantação do grupo GAM com a gestora do serviço e com os trabalhadores que iriam participar das demais etapas do processo. Realizamos o planejamento do processo de pesquisa-intervenção e discutimos as questões éticas em torno da participação de trabalhadores e usuários que integrariam o coletivo.

Foram realizados dois encontros de sensibilização e formação GAM com a equipe, com duração de 4 horas cada. Os encontros tiveram como objetivo a aproximação dos trabalhadores com os princípios que norteiam o Guia GAM (autonomia, protagonismo e participação social) em dois eixos: drogas em geral e medicamentos psicotrópicos. Trabalhamos casos que remetiam ao cotidiano e aos impasses vivenciados no serviço sobre o uso de substâncias psicotrópicas, lícitas e ilícitas, a partir de situações-problemas construídas com auxílio da própria equipe. Desses encontros, participaram todos os trabalhadores que estavam no serviço e não apenas os que se colocaram para participar efetivamente da experiência com a GAM.

Os trabalhadores compartilharam com os usuários, em diversos contextos grupais do serviço, a notícia e o convite sobre a implantação do grupo que começaria em breve. A seguir, estavam listados 15 usuários e 5 trabalhadores como possíveis participantes do grupo. A equipe de pesquisa sugeriu como critério de participação dos usuários aqueles que fizessem uso depsicotrópicos e estivessem em acompanhamento no serviço há mais de um ano, possibilitando que os trabalhadores pudessem construir outros critérios a partir da demanda que vivenciam em seu cotidiano de trabalho. Para a participação dos trabalhadores, elegeram como critério o vínculo empregatício efetivo2 com o município e o desejo de participar da experiência. Houve também um encontro com os usuários que demonstraram interesse no grupo GAM para apresentação do guia e convite de participação que imediatamente aceitaram.

Assim, o dispositivo GAM iniciou em março de 2018,após pactuações coletivas, e se estendeu até dezembro do mesmo ano. No total foram realizados 39 encontros que aconteceram semanalmente, com duração de 60 a 90 minutos. Utilizamos como recursos de registro diários de campo, audiogravações e transcrições. Cada encontro gerou uma narrativa que foi construída pela equipe de pesquisa e validada no encontro seguinte por todos os participantes do grupo GAM. As narrativas e os registros em diário de campo constituíram o corpus de análise da pesquisa, além de subsidiar os espaços de avaliação das experiências que se produziram ao longo do processo, tendo a análise de implicações e a co-gestão como fundamentos.

Do processo de análise foram produzidas diferentes linhas de composição para pensar a experiência em torno do funcionamento como dispositivo grupal com base na sustentação da co-gestão e da produção de autonomia que nos foi possível a partir da perspectiva institucionalista. Nosso focoé evidenciar o grupo GAM com dispositivo. Para sustentar essa tese, elegemos duas linhas de composição a discutir naquilo que se configura como potencialidade e como fragilidade da experiência, a saber: 1. A crise no grupo como condição de análise; 2. Desterritorializações e composições de possíveis: questionando os lugares de saber e poder.

 

A GAM como um dispositivo grupal

Nos processos de pesquisa-intervenção na perspectiva institucionalista que assumimos, o trabalho com grupos e a análise das suas linhas de composição e de seus planos de força torna-se condição de possibilidade da produção de conhecimento e transformação da realidade.

Barros (1994) nos convida a pensar sobre a concepção de grupo que surge com os processos de individualização e de privatização das práticas sociais e psíquicas a partir do pensamento de um mundo moderno que atravessa o trabalho e as técnicas grupais. De acordo com a autora, a noção de indivíduo tornou-se o pivô para uma definição de grupo como estrutura que, sustentando as dicotomias de indivíduo-grupo e grupo-sociedade, se propõe como intermediário entre os estratos subjetivo e social. De modo crítico a essa concepção, a ruptura com estas dicotomias marca um caminho que, se, por um lado, nos separa desta concepção de grupo, por outro, nos aproxima de processos de subjetivação em movimento (Barros, 1994) que nos interessa ressaltar aqui.

Nesse sentido, o grupo não é tomado como um fenômeno a ser compreendido ou como uma técnica que o naturaliza, mas como instituição, ou seja, como produção histórica de um campo social instituinte que produz e reproduz as relações sociais e se instrumentaliza em estabelecimentos e/ou dispositivos (CAPSad e GAM, em nosso caso) (Rodrigues & Souza, 1987).

Assim, nos desviamos da concepção de indivíduo que densamente marca os grupos e as práticas grupais dentro do cenário das práticas "psi"mais hegemônicas e içamos velas e navegamos apostando naquilo que Deleuze (1990) entende como dispositivo a partir de uma leitura foucaultiana.

"O dispositivo, em primeiro lugar, é uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear. É composto por linhas de natureza diferente e essas linhas do dispositivo não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras. Cada linhaestá quebrada e submetida a variações de direção (bifurcada, enforquilhada), submetida a derivações. Os objetos visíveis, as enunciações formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores" (Deleuze, 1996, p. 155).

Com a metáfora do novelo, realizamos um esforço de destacar meadas, linhas e fios que se desenrolam e se emaranham coletivamente no espaço GAM pelos participantes e através das quais podemos inferir sobre o funcionamento do grupo como dispositivo em nossa experiência. Para isso, seguimos fluxos emergentes desde rupturas que marcam a produção coletiva de novos modos de estar junto para que os encontros continuem existindo. Essas rupturas podem ser compreendidas como "crises" que se instalam no processo e que, aliadasà multiplicidade que compõe a experiência, são as condições de análise. Mas como se produzem essas crises? Elas são espontâneas ou provocadas pelo pesquisador-analista?

 

Linha 1. A multiplicidade e a crise no grupo como condição de análise

Em nossa experiência, depois de alguns meses de encontros no grupo GAM, já havíamos passado pelo primeiro, segundo e terceiro passos do guia-pessoal ("Conhecendo um pouco sobre você", "Observando a si mesmo" e "Ampliando a sua autonomia", respectivamente). Iniciamos uma conversa sobre redução de danos com o tópico sobre o direito à saúde. No contexto de um CAPSad, concordamos sobre a importância de trabalhar o tema da redução de danos, cada vez mais pertinente, diante das tentativas e ameaças de desmonte das políticas de saúde mental, álcool e outras drogas no cenário brasileiro.

A temática da redução de danos se estendeu durante três encontros. Percebemos que, com esse tema em primeiro plano, diminuía a participação nos encontros. No terceiro encontro com o tema, circulava na roda a questão da "recaída". Em meio a diversos posicionamentos que surgiam, muitas vezes contraditórios, outros fatores emergiram direcionando o encontro com o surgimento da pergunta-analisadora: por que as pessoas estão faltando aos encontros do grupo GAM?

Os usuários participantes colocaram na roda, então, inúmeras variáveis em análise para pensar esse esvaziamento. O CAPSad estava em um momento crítico relativo à alimentação, visto que, com alguns cortes financeiros da prefeitura, tinham acesso às refeiçõesapenas os usuários que estavam nos leitos. Diante disso, algumas pessoas precisavam sair antes do fechamento do grupo para se deslocar até um restaurante popular, almoçar e retornar ao serviço para participar de grupos terapêuticos que funcionavam no turno da tarde. Para o serviço, a participação no grupo não se relacionava com alimentação, visto que "uma coisa não depende da outra" e "quem não está aqui é porque não quer" (fala de uma trabalhadora). Todavia, mostrou-se um consenso de que acontecia revezamento de participação (ausência em alguns encontros, presença em outros) e a ideia de que "a maioria do pessoal não desistiu por causa do almoço, deve ter sido outros problemas" (fala de um usuário). Nos colocamos então às voltas com outra pergunta-analisadora: quais seriam esses problemas? Entre tantas interrogações, surgiam também novos horizontes e caminhos possíveis.

É importante sublinhar que os novos caminhos se tornaram possíveis a partir de processos de autonomia e cogestão,queenvolviam a todos na construção e na produção grupal. A problemática da alimentação se mostrou cada vez menos uma resposta acerca da ausência das pessoas e cada vez mais foi reconhecida como uma possibilidade de transformação do próprio dispositivo grupal. É colocada na roda a proposta de um café da manhã coletivo durante os encontros, para atenuar os atravessamentos financeiros do serviço no grupo. A proposta é alegremente acolhida e aceita por todos com um reajuste do horário dos encontros grupais, configurando um momento de confraternização e acolhimento inicial nos encontros semanais.

A autonomia, diferentemente de uma prática ou um exercício de solidão, está diretamente relacionada aos contextos das experiências vividas coletivamente (Passos, Palombini & Campos, 2013). Ou seja, a autonomia está diretamente ligada à construção de redes e vínculos, com os quais se amplia (Kinoshita, 1996). Assim, não há uma centralidade no sujeito mas envolve, sobretudo, uma "perspectiva coletiva, de compartilhamento e negociação entre diferentes valores e pontos de vista" (Passos, e cols. 2013).

A não centralidade no sujeito nos coloca também diante da ideia de cogestão como exercício de gestão compartilhada dos processos de produção do grupo. De acordo com Passos et al. (2013), a cogestão encontra-se diretamente relacionada às dimensões macro e micropolíticas. Pensar a cogestão na dimensão macropolítica pressupõe a construção de práticas de gestão participativa realizadas a partir da descentralização de lugares. Assim, diferentes sujeitos se encontram lado a lado nos processos de manejo e tomada de decisão, o que, concomitantemente, se expressa numa dimensão micropolítica, na medida em que há deslocamentos e reposicionamentos subjetivos no decorrer do processo cujo protagonismo não é assumido por um único sujeito, mas distribuído entre todos que o compõem. (Passos, et al 2013).

Em supervisão, o grupo de pesquisa passa a reconhecer a instauração de um momento de crise, uma vez que não apenas se colocavauma questão para auto-gestão do grupo GAM, como também se produzia uma análise coletiva das implicações de cada um com o grupo (intragrupo GAM e entre o grupo de pesquisa e o grupo GAM), com as demandas sociais e institucionais mais amplas e também mais imediatas. A análise desse momento trouxe vários incômodos dentro do grupo de pesquisa, com diferentes posicionamentos sobre a situação. Os incômodos revelaram seu potencial crítico de fazer ver os "não ditos", tanto dentro da equipe de pesquisa como no próprio grupo GAM. O risco que se colocava de "perder" a experiência GAM pela desistência de seus participantes levou o grupo de pesquisa a colocar em questão seus lugares de saber e poder, apostando em novos engendramentos possíveis.

Nesse momento, também se produz no processo de pesquisa a necessidade de reconhecer e valorizar a multiplicidade que ali se configurava como condição da própria viabilidade da experiência. A expectativa existente de "homogeneidade e consenso" pelos pesquisadores foi questionada, assim como uma análise centrada no lugar de cada um como "sujeito individual", explicitando-se o potencial que se encontra nas diferenças e nos desvios que ali se produziram no plano coletivo.

Assim, para pensar o dispositivo grupal, invocamos o conceito de multiplicidade como condição da proposição de grupos nessa perspectiva teórico-metodológica. Ou seja, para pensar a GAM como dispositivo grupal, era preciso, antes, reconhecer a multiplicidade que a compõe.

A multiplicidade, nas palavras deleuzianas, denota "a inexistência, pois, de uma unidade que sirva de pivô no objeto ou que se divida no sujeito." (Deleuze, 1995/2011, p.23). Dessa forma, o conceito de multiplicidade permite ultrapassar as barreiras do sujeito e do objeto e nos oferta novos caminhos que nos levam ao que rompe com os binarismos, com polaridades, reconhecendo processos de subjetivação e de objetivação no coletivo ao longo da experiência. Por isso mesmo se faz pertinente sublinhar cuidadosamente a nota deleuziana de que a multiplicidade é um substantivo e, desta forma, está fora da dicotomia múltiplo-uno:

Não há nem um nem múltiplo, o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma consciência que seria retomada num se desenvolveria no outro. Há apenas multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vem, por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é topológica. (Deleuze & Parnet, 1998, p. 25).

A multiplicidade é o acontecimento de diversos agenciamentos, forças e conexões que estão além das unidades e que operam, portanto, de modo rizomático (Deleuze & Guattari, 2011). Nesse sentido, o que interessa aqui é pensar a multiplicidade no grupo a partir das forças, dos agenciamentos que produzem acontecimentos e disparam processos de subjetivação.Assim, o "grupo deixa de ser o modo como os indivíduos se organizam para ser um dispositivo, catalisador existencial que poderá produzir focos mutantes de criação" (Barros, 1994, p. 151).

Ao apostar na GAM como dispositivo grupal e não como um grupo em sentido estrito, composto por uma soma de indivíduos, encontramos esta multiplicidade de agenciamentos, conexões e forças, presentes nos espaços e lugares institucionais que o atravessam: pesquisadores, graduandos, usuários e trabalhadores do serviço. Caberessaltar que, longe de dar consistência a quatro blocos homogêneos de atores envolvidos no processo a partir de lugares institucionais ocupados e definidos, destacamos a multiplicidade aí existente. Cada pessoa possui posicionamentos diferentes, falam de um determinado lugar, percorrem diferentes territórios (geográficos e existenciais), possuem diferenças de raça, cor, classe, etnia e engendram processos de subjetivação que se singularizam. Existe também multiplicidades nos vetores pesquisador, graduando, usuário e trabalhador. Cada segmento movimenta multiplicidades, variações, forças, tensionamentos, devires, não constituindo assim uma unidade rígida, cristalizada e pivotante.

 

Linha 2. Desterritorializações e composições de possíveis: questionando os lugares de saber e poder

O plano de forças que emerge na multiplicidade explicita as relações de saber e poder que se compõem na experiência com o avanço do processo de análise que lhe era inerente. Assim, ao longo desse processo de análise sobre a "ausência" de alguns participantes, emergiram, ao mesmo tempo, falas, questões e tensionamentos em torno do funcionamento do grupo e, especificamente, relacionados ao tempo de duração dos encontros que, de acordo com os trabalhadores participantes, era longo e cansativo.

No entanto, em um dos encontros durante a "crise", o tempo de duração dos encontros surgiu como problema pela primeira vez através da fala de um usuário e da sugestão de redução do tempo de duração, pois:

Nas universidades a metodologia de horário de uma aula é de quarenta e cinco minutos, duas aulas são 90 minutos, a do GAM está sendo quase duas horas. Porque ninguém muda de metodologia, assim do dia pra noite, como o GAM entrou e mudou a metodologia de horário do CAPS (Transcrição. Fala de um usuário.19 jun 2018).

A fala foi questionada pelos outros usuários,os quais afirmaram que, caso houvesse uma redução no tempo, seria "pouco tempo para muitas perguntas, muitas dúvidas! ". (fala de uma usuária). Essa tensão se efetiva a partir de diferentes posições institucionais, entre usuários e trabalhadores do serviço, desvelando uma diferença sobre como o dispositivo foi vivenciado pelas diferentes posições institucionais dos participantes.

Na fala acima, a universidade como lugar de referência aponta diferenças. Diferença de metodologias, diferença de lugares, diferença de tempos. Embora a GAM fosse o resultado de um encontro entre pessoas usuárias e trabalhadoras do CAPSad e pessoas vinculadas à universidade, fez-se ver que havia um desvio dos modelos e das regularidades de funcionamento das instituições. Não estaríamos ali nem reproduzindo o espaço, o tempo e a metodologia universitária, nem aquelas próprias ao funcionamento do CAPS. O grupo marcava muito claramente essa desterritorialização para todos, sejam aqueles acostumados com o funcionamento da universidade (pesquisadores), sejam aqueles envolvidos na dinâmica institucional e rotineira do CAPS. A discussão dessa fala produz uma aposta na espontaneidade, na potência do encontro, no compartilhamento de experiências e nas singularidades daquele grupo.

Procurávamos não nos colocar ali com os "donos do saber", mas sabíamos que não poderíamos negar as instituições que nos atravessavam enquanto pesquisadores/professores/estudantes. Também não éramos trabalhadores do serviço, e o encontro GAM não encarnava o modus operandi de um grupo terapêutico, tal como presente na oferta do serviço, o que produziu vários tensionamentos entre usuários e trabalhadores e também incômodos.

Mas uma questão insistia: que lugar nós, pesquisadores, estávamos ocupando no dispositivo GAM? Pergunta que nos lançou novamente ao campo de análise de implicações. Reconhecer as instituições que nos atravessam, (re)pensar nossos lugares e nossa presença no serviço. Recusávamo-nos a estar ali como doutores, experts ou possuidores de um saber a ser ensinado, mas reconhecíamos que estar nesse espaço como pesquisadores produz efeitos.

As instituições Universidade, Saúde e Pedagogia atravessavam a experiência e, a partir do momento em que isso se faz ver, reafirmamos novamente a importância dos princípios da GAM serem exercitados constantemente no grupo -autonomia, cogestão e principalmente o compartilhamento de saberes e experiências para que o encontro GAM não se parecesse com uma sala de aula em sentido estrito, onde alguns possuem conhecimento para transmitir e outros não. Ao fazer assim a "análise em ato", nos preocupávamos com a coerência teórico-metodológica da experiência, de modo a não haver separação entre o campo de intervenção e o campo de análise (Rossi & Passos, 2014).

Para escapar à presença de uma lógica "pedagógica" no grupo, apostamos na transversalidade, no movimento e nos possíveis engendramentos entre os diferentes lugares de saber e poder. Guattari (2004) nos convida a diferenciar a transversalidade do que é comum encontrarmos como horizontalidade (demarcação de uma igualdade entre as pessoas) e verticalidade (demarcação que se dá a partir de uma estrutura piramidal, ou seja, de funcionamento hierárquico). Para o autor, "a transversalidade tende a se realizar quando ocorre uma comunicação máxima entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos " (Guattari, 2004, p. 111).

A transversalidade é, portanto, o para-além da forma organizativa que se pauta nos modos tradicionais de organização grupal (horizontalidade e verticalidade), afirmando a diferença como potência para novas análises e intervenções grupais, visto que ela "mostra-se como exigência da marcação inevitável de cada papel" (Guattari, 2004, p. 115), permitindo, portanto, a marcação de um plano de forças e de tensões heterogêneas como campo coletivo de produção.

Vemos, assim, como a multiplicidade e a transversalidade compõem o grupo como grupo-dispositivo. Deleuze, a partir da leitura de Foucault, sublinha que um dispositivo faz vere faz falar, numa tessitura entre saber, poder e subjetividade se desdobrando em linhas de visibilidade, enunciações, subjetivação, linhas de fuga/ruptura e linhas de forças que variam pela multiplicidade através das quais elas operam e que "traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam, ora se afastam uma das outras" (Deleuze, 1990, p. 155), como aconteceu em todo o processo. O grupo, ali, antes de buscar o equilíbrio, a normalização e a homogeneidade com os demais grupos da oferta do serviço, coloca-se em sua diferença, afirmando-a e permitindo-nos sustentar a ideia de que funcionou como dispositivo. De acordo com Garcia, Lira, Severo, Amorim & Silva (2017), o uso do dispositivo não tem como finalidade abrir processos de normalização e adaptação, mas sim de desterritorialização, transformação e devir.

Nesse sentido, entendemos que as configurações do grupo como dispositivo colocam a condição de que ele funcione como grupo-sujeito, ainda que, pela própria dinâmica das instituições, o instituído sempre se coloque, objetivando o grupo, o qual perde, em alguns momentos, a sua potência. Momentos em que, por exemplo, os usuários delegam aos profissionais a tomada de decisão, e os mesmos assumem esse lugar. No entanto, uma análise se produzia em relação a esses movimentos de sujeição e hierarquização a partir do desenvolvimento de uma atenção que foi progressivamente se fazendo presente. O grupo se faz como agente coletivo atento às suas próprias sujeições:

Ressalvados os períodos de sopro revolucionário, existe, ao contrário, toda práxis particular, toda química do grupo e da instituição, que é necessária para produzir "efeitos analíticos". Seria necessário repetir, uma tal práxis não poderia ser fato a não ser de um agente coletivo - o grupo mesmo - no seu projeto de ser sujeito não somente para ele mesmo, mas também para a história. (Guattari, 2004, p. 82).

A singularidade da experiência, marcada por sua inovação em ser a primeira experiência com a GAM na cidade, no Estado, e a primeira da região no cenário de álcool e outras drogas, convocava a todos o desejo de afirmar o grupo, mas também de desenvolver uma memória da experiência a ser compartilhada para que outros usuários, que naquele momento não estavam participando da experiência, se beneficiassem. Ainda com relação à ampliação da GAM para que outros usuários pudessem participar, uma usuária questiona o próprio processo de escolha dos participantes GAM e seus efeitos na ausência de participantes naquele momento:

Como por exemplo, escolher as pessoas as quais participariam daqui, porque fomos escolhidos. Eu vi lá fora outras pessoas as quais precisavam muito estar aqui porque fazem coisas com a medicação que não era para fazer e não estão aqui. (Transcrição. Fala de uma usuária. 19, jun 2018).

A usuária participante traz como analisador o próprio processo de composição grupal, reconhecendo que haviam outras pessoas no serviço que se beneficiaram com o grupo GAM. Nesse momento, reconhecemos que muitos foram os atravessamentos institucionais, como os prazos demandados pela universidade eoutros atravessamentos do próprios do serviço que dificultaram o processo de composição do grupo. No entanto, os efeitos disso no processo, apontados pela usuária, assinalama importância da afirmação e da prática de cogestão desde o princípio da construção do dispositivo, assim como a própria operação do grupo GAM como dispositivo possibilita que esse ponto surja como problematização no coletivo.

Como tentativa de dar lugar ao campo problemático que ia se delineando, coloca-se o temada circularidade das falas. De um lado,havia aquelesque acreditavam que a fala estava se concentrando em apenas uma ou duas pessoas e que talvez isso fosse um dos motivos de esvaziamento. Do outro, havia os queacreditavam que a fala estava se distribuindo de modo democrático. Um participante sugeriu então que todos tivessem um tempo limite de fala para que todos pudessem vir a compartilhar suas experiências durante os encontros e enfatiza que "nos grupos terapêuticos tem pessoas que eu nunca ouvi a voz!" (usuário participante se referindo a um dos grupos terapêuticos de que participa no CAPS). No entanto, todos chegaram à conclusão de que não era preciso circunscrever um tempo de fala a cada um para seguirmos apostando na espontaneidade do que compartilhamos nos encontros.

Novamente, uma diferença entre a GAM e os grupos terapêuticos é levantada. Todos concordam que na GAM as pessoas falam, se abrem, compartilham, enquanto no grupo terapêutico "fica todo mundo calado", "é todo mundo trancado". Murmúrios e burburinhos. Todos falam ao mesmo tempo, e já quase não é possível atentar para o que cada um traz em palavras. A pontuação sobre a fala e o silêncio nos permite ver que há diferentes circularidades e engendramentos entre saber e poder.

Além disso, era preciso considerar na análise também a temática da redução de danos como algo "espinhoso", difícil dentro do serviço no qual circulavam diferentes posições a esse respeito. Do mesmo modo, apurando um pouco nossa sensibilidade, percebemos que algo apontava para certo esgotamento e cansaço dos trabalhadores que atravessava a temática da redução de danos no serviço. Isso porque a equipe havia passado por muitos e diferentes espaços de formação discutindo o tema, o que fazia emergir a sensação de ser "muita, muita, muita redução de danos" (fala de uma trabalhadora) e também que era algo que "não conseguimos aplicar na prática", parecendo lançado num horizonte utópico a ser alcançado.

Por outro lado, nós pesquisadores estávamos comprometidos em trabalhar esse tema na realidade do CAPSad, considerando-o como norte ético-político do trabalho no campo AD, mas estávamos ainda tateando, uma vez que até então não havia muitas experiências e produções acadêmicas que denotassem as especificidades do contexto AD.

Mas agora, diante de tantos atravessamentos, surge a questão: "como fazer para que a gente continue junto?". Chegamos a uma conclusão coletiva, a de que precisávamos, nesse momento, retomar o guia GAM pessoal com o próximo passo, que trazia a proposta de conversar sobre medicamentos psiquiátricos, visto que, "se a gente for discutir a medicação aí a gente vai falar também de redução de danos na medicação, porque medicação também vai entrar nessa parte redução de danos (...) a redução de danos está junto com a gente" (fala de um usuário).

Por conseguinte, com a temática da redução de danos se manifestaram analisadores, ou seja, "efeitos ou fenômenos que emergem como resultado de um campo de forças contraditório e incoerente, porta-vozes dos conflitos em assídua oposição do harmônico e ao estático acalentados pela instituição" (Romagnoli, 2014, p. 47). Os conflitos foram expostos, e esse é um campo que merece ser mais explorado.

A implantação e o trabalho com a GAM fundamentadosnos pressupostos da pesquisa-intervenção corroborama desnaturalização de práticas instituídas e cristalizadas no campo de intervenção, como o questionamento da naturalização da instituição psiquiátrica e da centralidade dos medicamentos no tratamento e na vida das pessoas no campo da saúde mental. Sendo a pesquisa-intervenção uma atitude de pesquisa, realizada em conjunto com os participantes através da aposta na modificação processual do objeto de pesquisa e de intervenções no cotidiano dos espaços onde ela se realiza, tal como nos aponta Romangnoli (2014), ela abre espaço de coerência com uma prática que prioriza a cogestão, a autonomia e a participação ativa dos usuários, ou seja, com os próprios princípios da gestão autônoma de medicação.

Através da transversalidade no dispositivo, do trabalho com analisadores, dos momentos de "crise" e da análise de implicações, é possível afirmar o caráter político não só das intervenções mas, sobretudo, sustentar o caráter político da própria gestão autônoma de medicação como dispositivo que coloca em xeque os lugares instituídos de saber e poder.

 

Conclusão

A experiência de pesquisa-intervenção com a GAM, a partir da potência da transversalidade e da multiplicidade, possibilita arranjos e agenciamentos produzindo movimentos micropolíticos de desterritorialização e desnaturalização. Essas transformações envolvemdesde novos modos de viver e estar em grupo ao surgimento de movimentos de autoanálise, nos quais a autonomia e a cogestão constituem importantes alicerces no traçado de novos caminhos que pudemos percorrer coletivamente.

Consideramos imprescindível, nesse processo, o exercício das análises de implicação, pois, "ao colocarmos em xeque os lugares instituídos de saber/poder que ocupamos em muitos momentos de forma natural e a histórica estamos afirmando nossa implicação política" (Coimbra, 2008, p. 147). Mas, além disso, estamos também atentos aos atravessamentos durante o processo de pesquisa e aos fluxos desejantes que nele operam.

A experiência do desenvolvimento desse grupo GAM mostrou-se como um dispositivo na produção de acontecimentos e devires, conectando forças díspares, em suas multiplicidades e intensidades, com grande potencial de transformação da realidade e colocando em análise as relações de forças/saberes que se encontram no grupo.

Além do dispositivo, enfatizamos também outros pontos que marcam a experienciacom base nos pressupostos da Análise Institucional, como a análise de implicações, a "crise" como condição de análise e o trabalho com coletivos na aposta da emergência de movimentos autogestivos e cogestivos.

A análise de implicações - realizada não somente pela equipe de pesquisa, mas, sobretudo, suscitada nos encontros coletivos através das narrativas que mapeavam o campo de forças no qual estávamos inseridos - foi essencial para a sustentação da transversalidade, bem como para visibilidade e questionamento das forças que atravessaram a experiência possibilitando a produção de novos engendramentos.

A "crise", como elemento fecundo de desvelamento das contradições presentes nas instituições que atravessam a experiência e, portanto, como condição de análise, produz desnaturalizações, produções de agenciamentos e práticas de resistência frente ao paradigma manicomial, ainda presente na rede de atenção psicossocial, e à instituição psiquiátrica, a partirde processos de desterritorializações e territorializações numa construção de cuidado mais coletivo e menos individualizante. A autogestão e a cogestão são elementos essenciais nesse processo e marcam uma diferença entre o dispositivo GAM e os grupos terapêuticos do serviço.

Diante do vivenciado, observamos que a possibilidade de trabalhar o GGAM a partirda perspectiva da pesquisa-intervenção mostrou-se bastante potente, pois os operadores dessa perspectiva sustentaram a postura dos pesquisadores implicados com o campo e com uma produção coletiva. Como metodologia, a GAM permitiu sustentar o lugar dos pesquisadores, frente ao objeto de estudo, em uma relação de imanência mútua, atentos ao jogo de saber/poder presentes, operando transversalidades em diversos momentos da pesquisa, na produção de realidade.

Diante do exposto, faz-se necessária a continuidade da exploração das diversas singularidades presentes em diferentes contextos de operacionalização da GAM. No cenário de álcool e outras drogas, faz-se imprescindível, visto que experiências brasileiras com o GAM apontam que pessoas que fazem uso excessivo de drogas não-prescritas são tratadas com uso excessivo de drogas prescritas (Medeiros, 2013).

No entanto, não há um Guia GAM construído especificamente a partir das problemáticas relativas ao campo de álcool e outras drogas, onde se presentifica não apenas o consumo de medicamentos psicotrópicos prescritos mas, sobretudo, o consumo de múltiplas substâncias (prescritas, lícitas, ilícitas, etc.) que aponta para a urgência da ampliação da GAM nesse campo, principalmente diante dos atuais retrocessos nos marcos políticos-normativos na saúde mental e na política sobre drogas que enfatizam cada vez mais um tratamento reducionista embasado no modelo biomédico.

Assim, afirmamos a GAM, partindo da nossa experiência com a pesquisa-intervenção, como prática de resistência e horizonte para novos possíveis, nutrindo questionamentos:

Como a vida se efetua? Qual a qualidade da efetuação? (...) Mas ela se efetua também na medida em que ela é capaz de produzir, a partir de si, uma diferença, sem a qual não haveria invenção, não haveria criação. Nós só somos efetivamente livres quando nós criamos -não apenas objetos no mundo, mas quando nós criamos as condições da produção dos objetos, as condições dos movimentos, dos afetos, das ações e das paixões, das experimentações sensíveis do corpo, as condições da produção e da invenção do pensamento, porque pensar antes de tudo é inventar. Não basta imaginar para pensar. Pensar é inventar realidade. Qual é a realidade que o pensamento inventa? (Fuganti, 2007, s/n p.).

 

Notas

1 Como, por exemplo, a portaria n° 3.588 - 21 de dezembro de 2017 (no âmbito da saúde mental, reintroduzindo os hospitais psiquiátricos na rede de cuidados) e o decreto n° 9.761, de 11 de abril de 2019 (que inaugura uma "nova" Política Nacional de Álcool e outras Drogas, incorporando os hospitais psiquiátricos, as comunidades terapêuticas e a rede privada na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

2 Com assinatura em carteira de trabalho, conforme as leis do Ministério do Trabalho. Nesse sentido, não participaram trabalhadores com contrários temporários que atuavam no serviço, de modo que a experiencia pudesse ter perspectiva de continuidade com a presença desses profissionais.

 

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Enviado em: 29/05/19
Aceito em: 27/05/20

 

 

Indianara Maria Fernandes Ferreira é psicóloga graduada pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), doutoranda em psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com pesquisas no campo dos Direitos Humanos, da Saúde Mental, do Álcool e outras Drogas e da Redução de Danos.
E-mail: indianara.way@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1557-4977
Carlos Eduardo Silva Feitosa é psicólogo. Atualmente doutorando em Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com experiência em no atendimento em saúde mental, com ênfase na ressocialização de pessoas com longo internamento psiquiátrico.
E-mail: carlossfeitosa@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2156-656X
Ana Karenina de Melo Arraes Amorim é professora associada do Departamento de Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
E-mail: akarraes@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1343-9341

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