10 19A voz em Daniel Paul Schreber, Louis Wolfson e James JoyceO apofatismo winnicottiano a respeito do self e suas implicações clínicas 
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Analytica: Revista de Psicanálise

 ISSN 2316-5197

Analytica vol.10 no.19 São João del Rei jul./dez. 2021

 

Literatura e Psicanálise: sobre a perversão em um conto machadiano

 

Literature and Psychoanalysis: About the Sadistic Perversion in a Machado de Assis' Tale

 

Littérature et psychanalyse: sur la perversion sadique dans un conte de Machado de Assis

 

Literatura y psicoanálisis: sobre la perversión sádica en un cuento de Machado de Assis

 

 

Arnaldo Rodrigues Bezerra Filho

Psiquiatra e psicanalista. Prof. Dr. Adj., IV da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Residência Médica em Psiquiatria e Psicologia Médica na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Doutor em Estudos da Linguagem pela UFRN. Mestre em Medicina Preventiva pela FMRP-USP. Diploma de Estudos Aprofundados (DEA) em Psicanálise na Université de Sorbonne - Paris VII

 

 


RESUMO

Neste trabalho faz-se um estudo psicanalítico de um conto de Machado de Assis, "A causa secreta", com base na teoria lacaniana. Procurou-se articular com a Psicanálise o que o próprio contista mostra em sua narrativa sensível à observação do comportamento e da subjetividade humana. Assim, foi sublinhado na história alguns elementos significativos que podem ser referência para a compreensão da trama exposta, como a ação perversa sádica de um dos personagens em relação aos circunstantes. Destacaram-se as noções de significante puro e gozo, assim como a psicodinâmica que envolve o núcleo de uma ação sádica. Viu-se que a estranha reação prazerosa do protagonista sádico não se limitava à expressão da dor do outro, mas tinha ligação com sua estrutura subjetiva marcada pela incidência do significante puro.

Palavras-chave: Psicanálise. Literatura. Perversão. Sadismo.


ABSTRACT

This work is a psychoanalytic study based on lacanian theory of a short story by Machado de Assis, The Secret Cause. It intended to articulate psychoanalysis with what the narrative's storyteller shows with its sensitive observation of behavior and human subjectivity. It was noted on the story some material which may be a reference to understand the plot, like the wicked and sadistic action of a character with its circumstances. The emphasis was focused on the notions of pure significant and joy, just like the psychodynamics that surrounds the nucleus of a sadistic action. Was noted that the strange and pleasurable reaction of the sadistic protagonist was not confined to the expression of other's pain, but was linked to their subjective structure, marked by incidence of the pure significant.

Keywords: Psychoanalysis. Literature. Perversion. Sadism.


RÉSUMÉ

Dans ce travail, il s'agit d'une etude psychanalytique d'un conte de Machado de Assis, La Cause Secrète, basée sur la théorie lacanienne. Nous avons essayé d'articuler avec la psychanalyse, qui se montre dans son observation conteur récit sensible du comportement, et de la subjectivité humaine. Ainsi, il a été noté dans l'histoire une matière qui peut être une référence pour la compréhension de la toile exposée à l'action pervers sadique d'un personnage par rapport à l'atmosphère environnante. Les points saillants étaient les notions de signifiant pur et la jouissance, ainsi que la psychodynamique qui entoure le noyau d'une action sadique. On a vu que la réaction étrange du plaisir sadique du protagoniste ne se limite pas à l'expression de la douleur de l'autre, mais il a été liée à leur structure subjetive marquée par une incidence du signifiant pur.

Mots-clés: Psychanalyse. Littérature. Perversion. Sadisme.


RESUMEN

En este trabajo se realiza un estudio psicoanalítico de un cuento de Machado de Assis, La Causa Secreta, basado en la teoría lacaniana. Se intentó articular con el psicoanálisis, que el propio narrador muestra en su sensible narrativa a la observación de la conducta y subjetividad humanas. Así, se destacaron algunos elementos significativos en la historia que pueden ser un referente para la comprensión de la trama expuesta, como la acción sádica y perversa de uno de los personajes en relación con los espectadores. Destacaron las nociones de puro significante y goce, así como las psicodinámicas que rodean el núcleo de una acción sádica. Se vio que la extraña reacción placentera del sádico protagonista no se limitaba a la expresión del dolor del otro, sino que estaba ligada a su estructura subjetiva marcada por la incidencia del significante puro.

Palabras clave: Psicoanálisis. Literatura. Perversión. Sadismo.


 

 

Introdução

O que melhor nos satisfaz numa análise estrutural é a extração tão radical quanto possível do significante. (Lacan, 1955-1956/1985, p. 210).

Sabe-se que a relação entre a Psicanálise e a Literatura nasce com o próprio Sigmund Freud. Esses saberes se entrelaçam para tocarem o que há de mais íntimo, mais estranho, e por que não dizer o que há de mais próximo da verdade do sujeito.

São vários os escritos de Freud que demonstram essa relação; nota-se claramente em um deles a importância que ele dava à criação literária e ao desejo de saber qual a sua natureza e de que fontes ela surge (Freud, 1908[1907]/1976). Aproxima a criação do escritor ao jogo infantil ao observar que o efeito das atividades literária e lúdica é a adequação da realidade a uma outra singular e prazerosa, por meio da fantasia. Esta envolveria o escritor com tal emoção e seriedade que teria a força de algo real; pelo jogo da fantasia o leitor pode então ter prazer, conhecer, ou mesmo aceitar o que na realidade lhe causaria repulsa e até horror. E é o que se passa também quando o sujeito deixa de ser criança e substitui o brincar pela fantasia, pelo devaneio, que revela seu desejo em geral encoberto e protegido da angústia.

Neste trabalho, percebe-se a fantasia como realização de desejo, deslocada da temporalidade real, tendo, portanto, estrutura semelhante ao imaginário do conteúdo onírico, que pode ser compreendido por meio do método interpretativo freudiano. Este, sem se basear em codificação prévia, chega às significações do cenário onírico em função das associações de ideias do sonhador.

Assim pode ser feito com o texto literário, que, à luz da Psicanálise, revela o que dentro de seus limites vai além da intenção consciente do autor, do que ele espraia na narrativa, porém, evidentemente, mantendo ligação de sentido e fidelidade com a criação originária. Aqui, vale ressaltar que não se trata apenas de uma interpretação que necessariamente remeta à psicobiografia do escritor, mas ao que pode estar oculto no texto e ser apreendido por uma leitura psicanalítica.

Entretanto, é com Jacques Lacan que o pensamento freudiano alcança uma formalização com base no estruturalismo, na Linguística, especialmente quando ele afirma que o inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan, 1953/1966); abre a comporta de uma espécie de dique teórico que permite entrar em contato com o estranho, denso e, não raro, arrebatador do Real inefável que incrusta a estrutura do sujeito desde suas primitivas raízes.

São as metáforas e metonímias, outras figuras de linguagem, a repetição e oposição de palavras, expressões; a sonoridade do discurso que ecoa na escuta psicanalítica e faz arranjar possíveis interpretações e múltiplas significações. Ele promove a noção de significante vinda do linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure e nos impulsiona a encontrar o nome da(s) coisa(s), mesmo sabendo que esse nome, em certos momentos, nunca será inscrito.1

Assim diz Machado (1998, p. 186-187) na pesquisa sobre a Escrita na obra de Lacan:

O significante é da ordem do rastro, da marca, da inscrição que substitui alguma coisa do real. Mas para que ele exista, o significante, essa substituição deve ser mais completa e se afasta do objeto, a ponto de ele não poder mais ser reconhecível no seu rastro. Lacan dizia "o significante é um signo que remete a um outro signo", e não a um objeto nem a um sujeito: o objeto não em mais lugar nessa fórmula.

Ao ler "A causa secreta", conto de Machado de Assis, publicado em 1896, à parte o primor literário, deparei-me com a estrutura da perversão sádica; sublinhei na história, ao modo de pontuação, alguns elementos como a presença de um terceiro cúmplice e, principalmente, o significante puro e o gozo, na medida em que estão enredados no modo de ação perversa.

O que se revela aos olhos de Garcia, médico e um dos personagens, configura o principal da narrativa que me interessou examinar. É o próprio contista que o concebe como alguém que "[...] possuía em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, [...] tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo" (Assis, 1997, p. 68, grifo nosso).

De fato, ele é voltado para a análise ao observar a ação de Fortunato, enfermeiro e personagem central, e, como veremos, consegue levar a termo sua pesquisa! [...] mas até que ponto? Qual seria realmente a estrutura da "causa secreta" do desejo sádico de Fortunato?

 

Desenvolvimento

"Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o tecto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha. Havia já cinco minutos que nenhum deles dizia nada" (Assis, 1997, p. 65).

É nesse ambiente repleto de tensão e silêncio que começa nossa história. O que acontecera foi de tal natureza que impedira, por momentos, o uso da palavra entre eles, ainda tomados pelo impacto do Real.

Em resumo, para nosso propósito, lê-se no conto machadiano que a figura de Fortunato impressionou Garcia desde um encontro casual em frente a uma casa de saúde; poucos dias após observa-o durante uma encenação teatral; era um "dramalhão cosido a facadas", cheio de súplicas e remorsos. Sua avidez diante da dor não passa despercebida a Garcia, que ademais a associa à memória da vida pessoal dele. Presencia no parceiro atitudes estranhas, como bater em cães perambulantes até ouvi-los ganir, a frieza ao ouvir os gemidos de um rapaz esfaqueado quando o atendia como enfermeiro.

O vínculo entre os dois vai se firmando até que, por iniciativa de Fortunato, instituem uma casa de saúde. O trabalho do enfermeiro é incansável e reconhecido pelos circunstantes. Dedica-se especialmente às cirurgias e tratamentos à base de remédios cáusticos, desses que muito queimam e fazem doer. Para se aperfeiçoar fizera "experiências" com cães e gatos na clínica; rasgava-os e os envenenava. Transfere esses "estudos" para o lar porque os pacientes já não suportavam mais os guinchos dos animais. Esse tormento passa a ser vivido por Maria Luísa, sua esposa, que, esgotada, pede ao sócio Garcia para fazê-lo parar, pois não era por ele ouvida. Ao fim da história, ela morre fraca, de tísica, para a dor de Garcia e prazer do marido.

Afeiçoado de Maria Luísa, Garcia frequentava a intimidade doméstica do estranho casal. Certo dia, depara-se com ela saindo aflita do gabinete de Fortunato. Gritava sufocada: "O rato! O rato!". Foi quando Garcia entrou no gabinete e, atônito e possuído de horror, vê esta cena: Fortunato segurava à mão esquerda um rato dependurado pelo rabo, com a outra usava uma tesoura e cortava suas patas uma a uma; a cada vez levava o que sobrava do pobre animal ao fogo; parecia em transe, seu gesto era meticuloso, vagaroso [...]. É certo que Garcia ainda tentou impedi-lo, mas recuou em seu gesto cedendo ao que presenciava; assim viu o parceiro estender o suplício até o fim; as torções e os guinchos como que o alimentavam nesse ritual macabro, sua fisionomia era de uma "serenidade radiosa [...]. Nem raiva, nem ódio; tão somente um vasto prazer quieto e profundo como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma cousa parecida com a pura sensação estética (Assis, 1997, p. 73).

Garcia, temente e vencendo a forte repugnância, ainda conseguiu fixá-lo e observar o rosto possesso. Fortunato o esquece no auge da tortura, e em seguida tenta justificar seu ato alegando um motivo sem cabimento, o que não impede o sócio de concluir nesses termos: "Castiga sem raiva, [...] pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem" (Assis, 1997, p. 65).

Percebe-se que ele fora atraído pelo estranho comportamento de Fortunato, que atua como se desse à sua observação! São encontros que parecem não acontecer ao acaso2 e a troca de olhares alimenta o laço erótico que se fazia entre eles com a força e a fixidez da pulsão. Esses olhares eram pontos de um circuito pulsional que procurava se fechar no horizonte do gozo. "O sujeito se (apercebe) de que seu desejo é apenas vão contorno da pesca, do fisgamento do gozo do outro - tanto que, o outro intervindo, ele se aperceberá de que há um gozo mais além do princípio do prazer" (Lacan, 1963-1964/1985).

Garcia, então, no fio tecido por Machado de Assis, surge como estando implicado com seu desejo na trama perversa de Fortunato; como médico inserto na lei constituía um álibi perfeito para que seu ajudante como enfermeiro pudesse obter o prazer sádico causado pela dor dos pacientes.

No ápice da tortura do rato, ao olhar Fortunato extasiado, imagina-o no auge da sensação estética, vendo uma estátua divina ou escutando uma bela sonata; mas, na verdade, o único som existente é o do guincho do rato que aos ouvidos de Fortunato parece ser o de uma sublime nota musical. Quem o diz é a visão de Garcia, partícipe do gozo, que nesse momento descobre o segredo dele e ao mesmo tempo, sem o saber, "apalpa" e revela o seu!...

O trajeto de Fortunato ao longo da história mostra a ação de um sujeito oscilando segundo a inconsistência de sua estrutura; ele inicia atuando como enfermeiro, em seguida passa a ser um experimentador, e chega a praticar o ato perverso como um torturador tomado pelo Real de sua estrutura. Podemos recorrer à escrita topológica do nó borromeano para visualizar como isso se passa; e notamos que é como se a carência do Nome-do-pai - que forma o quarto elo do nó - não atasse bem os outros três: do Real, do Simbólico e do Imaginário. Portanto, o Nome-do-pai, ou seja, a função paterna, falha e não instaura a lei que impediria Fortunato de passar ao ato perverso interditando-lhe o gozo sádico.

Observa-se um movimento de repetição compulsiva ligado a situações marcadas pelo sofrimento, como se o grito de dor o despertasse para o gozo, ou melhor, intimasse-o na direção do gozo que desponta no horizonte pulsional.

De outro ângulo nota-se que ele age como se fizesse um movimento de retorno a um momento fundamental na constituição de si mesmo, no qual se capta as operações de alienação e separação em relação ao Outro. E esse grito, além de ecoar a dor lancinante, soa também como índice de uma lei imperativa sadiana que põe o sujeito à mercê da incessante e repetitiva "vontade de gozo", no dizer de Lacan (1966); é uma voz imperativa como a de um supereu tirânico, de um Outro que não responde pela fala como lugar e emissor do significante. Essa voz real, pura, que só fugazmente se inscreve no tempo e espaço do mundo, na história, traz em si a ligação com a pulsão de morte (Juranville, 1987).

Por ocasião da tortura, ponto culminante de sua ação, ele chega mesmo a provocar a emergência do grito, da voz em seu aspecto de objeto para o desejo, face objetal da fala (Juranville, 1987, p. 165). É como se Fortunato, ao se perceber marcado pela falta, na busca de completude com o Outro, instigasse o outro até o ponto da violência e destruição (Lacan, 1959-1960/1987).

Desse modo, só consegue entrar em contato com a face Real desse Outro, com a Coisa propriamente dita, "[] efeito da presença da própria voz como objeto, uma vez que a fala não permanece significante e que a resposta, de certa maneira, não é dada" (Juranville, 1987, p. 166).

Lê-se no início do conto que Fortunato "ouvia" o drama que na verdade tinha ido ver, afinal tratava-se de uma peça teatral e não de um musical. Isso não teria maior importância se não se percebesse o que, entre outros elementos, marcou seus momentos de prazer e de vasto prazer" (gozo) sádico: o som da dor, o grito ($D). Ganidos, guinchos e gritos humanos se perfilam em torno de uma só impressão sensorial: o som animalesco da dor. São gritos que se tornam puros por não haver quem os escute e os signifique.

É esse significante que parece mobilizar Fortunato, significante que em certo momento do ato sádico se torna puro e ressoa em seus ouvidos como se fosse uma alucinação, num tempo anterior a qualquer significação, no registro do Real. No nível da estrutura da fala, será sempre necessário que um escute e signifique o que o outro emite; dito de outro modo, a voz precisa de um locus na estrutura para que tenha significado e se torne palavra.

Encontra-se em Lacan (1955-1956/1985) uma visão sobre os efeitos do delírio de Schreber (1903/1985) no contexto da linguagem. Ele põe à mostra um momento na dialética da fala em que o significante não se articula com outro para produzir a significação. Observa-se, então, que há um espaço transitório no processo de disjunção entre a voz e a palavra, sendo que no sentido topológico a voz pura estaria localizada no Real e a voz significada (palavra) no simbólico.

Ainda no âmbito da clínica da psicose, sabe-se que o momento do desencadeamento da crise é propício à ocorrência do significante puro, tal como nos mostra Czermak (1986) ao relatar um caso de um paciente numa crise psicótica, que passa ao ato sob o efeito de uma alucinação psíquica.

Refere ele que o paciente é atingido em seu corpo por uma "voz pura [...] tirânica, qualificada como [sendo] do Pai divino [em] coalescência com o primeiro Outro materno" (Czermak, 1986, p. 89), a qual imperativamente o faz jogar-se pela janela (Lacan, 1962-1963).3

Antes tivera um sonho no qual a mãe aparece jogando o lixo pela janela. Por conseguinte, o sujeito em questão cai como objeto identificado ao lixo, a uma coisa... como objeto a. Na verdade é um corpo que cai no tempo do intervalo entre os significantes desarticulados, já que não há sujeito propriamente dito, pois que ao alucinar fica impossibilitado de articular uma frase no registro simbólico. Nessa situação clínica, compreende-se pelo texto que não houve significante que representasse o sujeito para o significante "pai"; é como se o sujeito não pudesse responder do lugar de "filho" ao apelo do Outro, passando, então, ao ato, por não encontrar mais um endereço para sua palavra, não ter mais o Outro para escutá-lo e reconhecê-lo. Ocasião em que, ao meu ver, o Nome-do-Pai estaria no lugar de objeto a e, assim sendo, não representaria em nada o sujeito; seria, portanto, um significante puro, que, per se, não seria nem mesmo um significante.

Em As Psicoses, Lacan (1955-1956/1985, p. 162) escuta o alucinado uivo de Schreber (1903/1985) como "puro significante", situa-o como elementar atividade vocal, sem significação, ou, se a tem, é no máximo evanescente. Nessa mesma lição, apesar de se referir a um "significante inconsciente", pergunta-se como ele se localiza na psicose; ensaia dar-lhe um lugar preciso, mas ainda não o afirma, porém já assinala o que pode resultar, no nível topológico, da diferença entre a "foraclusão" e o "recalque": o significante puro estaria numa outra localidade, diferente daquela do inconsciente, a qual em si, segundo ele, já é bem exterior ao sujeito.

É evidente que aí se configura o lugar Real da alucinação na estrutura, ou seja, para Lacan, o significante puro estaria no Real, desarticulado; assim sendo, não chega nem mesmo a ser um significante, é um "a-significante", por isso, logicamente, como diz ele, elemento possível de ser todos eles.

Apesar da distinção fenomenológica que há entre o som ouvido como grito - no limite do ato sádico - e a alucinação psíquica, como a voz pura do caso de Czermak (1986, p. 89), parece ser legítima a semelhança quanto aos efeitos no nível da estrutura: a de um ato que ocorre no registro do Real para o qual faltam as coordenadas simbólicas. Para Fortunato, é o som, o grito de dor, que ouvido na realidade num determinado momento, tem efeito semelhante ao de uma alucinação, isto é, do significante no Real.

O impacto desse significante sobre o sujeito, como frisei antes, é imperioso e intenso, move o corpo a conjugar a frase que não se efetiva no campo simbólico. Então, uma alucinação, como descreve Czermak (1986, p. 89), é capaz de fazer um paciente em crise psicótica, "[...] experimentar o corpo como que projetado em estilhaços, correndo o risco de se propagar no mundo dos objetos". Em Schreber (1903/1985), o efeito é de um estranho prazer que o faz adormecer; ouve estrondosos urros numa cena segundo ele tão louca, que, do seu ponto de vista, qualquer pessoa civilizada teria a impressão de algo sobrenatural se passando ali; é como se estivesse de fato possesso, ouvindo um diabólico - em oposição ao simbólico - uivo, de um outro absoluto que o domina, aliás, não o Outro, mas o Outro/Coisa.

No caso de Fortunato, é como se a significação da dor fosse progressivamente esvanecendo até o ponto em que restasse apenas a voz como significante puro implicado na causa do gozo.

É o que parece ter ocorrido no ápice da tortura, na passagem ao ato dele; é um momento em que a dor ecoa em seus ouvidos, ou melhor, o grito em pura expressão sensível do Outro, aliás, não propriamente do Outro, mas da Coisa via significante puro desarticulado do universo simbólico, sem estar vinculado a uma demanda para seu ouvinte, nosso protagonista.

A cena de suplício do rato, em seu ponto máximo, é uma situação em que não há propriamente relação com o objeto, "Nem raiva, nem ódio, tão-somente um vasto prazer..." como escreve Assis (1997, p. 72). Esse momento pode figurar o encontro gozoso com a Coisa materna (Lacan, 1959-1960/1987), caracterizado pela emergência da pulsão de morte que é também encontro com a castração, motivo de horror para o perverso.

É interessante notar que o vínculo com a Lei se dá por meio de Garcia, o qual tenta impedir com um gesto o ato sádico do parceiro, mas não consegue fazê-lo e acaba cedendo à ultimação do suplício. Por outro lado, simbolicamente, destruir o rato pode significar o aniquilamento do falo, significante da falta, que evidentemente alude à castração.

Na tortura, Fortunato age como se estivesse num transe ritualístico; sem mesmo notar a presença de Garcia, teve um sobressalto ao vê-lo naquele momento. É bem verdade que não tinha perdido a consciência, até certo ponto do ritual macabro ele olhava e era olhado - o que o coloca mais próximo do acting out -, mas, ao fim do suplício, justificando seu ato sádico, inventa um motivo irrisório para matar com tamanha crueldade o animal; já fizera Garcia saber antes que um rato lhe levara um documento e é esse o motivo que a ele dá a entender, como se não tivesse senso crítico do que tinha feito, ou melhor, como se o tivesse feito em crise.

Em transe, não percebe de fato a realidade circunstante, tal era seu enlace com a destruição do rato, o gozo no contato com a Coisa. Pareceu a Garcia, e foi verdade como afirma o escritor, que Fortunato durante a tortura chegou mesmo a esquecê-lo inteiramente, perdendo o olhar de Garcia, suporte de sua referência imaginária, de seu desejo. Realmente deve tê-lo esquecido, pelo menos no momento culminante, pois foi como se Fortunato, voltando à lucidez, de contínuo recobrasse os sentidos, quando "[...] arredou de si toda [aquela] mistura de chamusco e sangue" (Assis, 1997, p. 73).

Por um instante a cena foi tomada por um resto de rato caído num prato, e um sujeito do inconsciente, instrumento de gozo do Outro, caído, identificado a esse resto, a esse a-bjeto resto, objeto a.

Há, portanto, falência da função significante do Nome-do-Pai, expressa na falta do interdito e no grito como voz da consciência que ordena o gozo; um corte que deveria se inscrever na linguagem atinge o Real do corpo, e, por conseguinte, Fortunato cai identificado ao objeto no oceano de um "vasto prazer". Sujeito e objeto se confundem. Com essa configuração estrutural, não haveria elementos para se compor a fórmula $ a, alteração essa que permite alojar um fenômeno clínico pertinente ao Real como a passagem ao ato, e, logicamente, a fórmula da fantasia, suporte do desejo, poderia resultar no seguinte: a $ S a, o que significa a afânise do sujeito em ato!

Lacan (1962-1963) diz que a característica do desejo sádico é que o sujeito procura, no cumprimento de seu ato, fazer-se aparecer ele mesmo como puro objeto, "fetiche negro"; é a que se resume em seu último termo a manifestação do desejo sádico se o sujeito chega até esse ponto.

 

Para (não) concluir

Uma leitura psiquiátrica do conto em apreço reduz o olhar sobre Fortunato ao enquadre nosológico médico, como faz Lopes (1981), que viu Garcia como um "psiquiatra competente", incluindo sua visão nos limites de um diagnóstico médico relativo aos desvios da sexualidade, como o sadismo e o masoquismo. Opondo-se a quaisquer observações ou interpretações psicanalíticas, chega a ser contraditório, ao afirmar que no texto machadiano nada se refere à questão da sexualidade; exclui, por exemplo, a noção de gozo ligada à contemplação estética. Esse autor ressalta a observação externa do comportamento em prejuízo de um exame mais apurado que leve em conta a subjetividade do outro, como é o caso da visão de Garcia, mais próxima, por assim dizer, de uma postura psicanalítica.

À primeira vista, como pensou e testemunhou Garcia, a "causa secreta" da estranha reação prazerosa de Fortunato era a dor alheia.

Entretanto, a causa assim vista situa-se no nível fenomenológico da ação sádica dele, porquanto, se vamos mais longe em busca de um limite até onde essa causa se estende, esbarraremos no nível do grito imemorial, do significante [puro] como [parte] da causa do gozo, tal como li em "Mais, ainda" de Lacan (1972-1973/1985).

Do ponto de vista estrutural, ter-se-ia no tempo real a foraclusão do significante Nome-do-Pai e a emergência sensível do objeto a (Nasio, 1991), com efeito desagregante para o sujeito que não tem outra alternativa a não ser gozar! Isto é, tanto o sujeito quanto o objeto - em sua face de coisa - estão implicados nesse fenômeno do sadismo; o que significa dizer que importa considerar, para uma precisão da análise, o que se passa na estrutura do sujeito, na qual certamente a relação com o objeto - o objeto a para Lacan - está configurada.

Assim, a concepção de estrutura é realçada diante da noção de causa segundo uma lógica positivista cartesiana.

A causa secreta do gozo sádico estaria então para além da significação da dor em função da hiância, do vazio em das Ding (a Coisa), onde está o verdadeiro segredo! (Lacan, 1959-1960/1987, p. 61).

 

Referências

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1 Ver Freud, S. (1900/1976). A interpretação dos sonhos. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. V). Rio de Janeiro: Imago: "Suporemos que um sistema [Pcpt-Cs] logo na parte frontal do aparelho [psíquico] recebe os estímulos perceptivos, mas não preserva nenhum traço deles, portanto, não tem memória, enquanto, por trás dele, há um segundo sistema que transforma as excitações momentâneas do primeiro em traços permanentes" (p. 493).
2 Ver a intervenção de Aulagnier, P. In Clavreul, J. (1990). O desejo e a perversão. Campinas: Papirus: "[...] o perverso apresenta-se como aquele para quem a atitude erótica exige o estabelecimento de uma cena onde o acaso é banido" (p. 149).
3 Neste Seminário - lição de 16.01.1963 - Lacan diz que, no ato do suicídio do melancólico, o sujeito, no absoluto do próprio ser, ultrapassa a janela - limite entre a cena [histórica] e o mundo -, retornando a um momento de exclusão fundamental no qual se conjuga o desejo e a lei.

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