Desidades
ISSN 2318-9282
Desidades vol.10 Rio de Janeiro abr. 2016
TEMAS EM DESTAQUE
Menina ou moça? Menoridade e consentimento sexual
¿Niña o muchacha? Menoría y consentimiento sexual
Laura LowenkronI
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil.
RESUMO
O artigo aborda o principal modo jurídico de regular a conduta sexual de acordo com a idade, analisando a manipulação de dispositivos legais que definem a ‘menoridade sexual’ ou ‘idade do consentimento’, bem como as controvérsias jurídicas e morais em torno do tema. O objetivo é desnaturalizar as premissas que servem de base para essa regulação, dando ênfase à dimensão social e performativa das categorias etárias e ao seu entrecruzamento diferenciado de acordo com gênero, classe ou ‘status’ social. Por fim, serão examinadas as seguintes questões: o que sexo tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? Quem é considerado capaz para consentir?
Palavras-chave: menoridade, consentimento sexual, leis, decisões judiciais.
RESUMEN
El artículo aborda el principal modo jurídico de regular la conducta sexual de acuerdo con la edad, analizando la manipulación de dispositivos legales que definen la ‘menoría sexual’ o ‘edad del consentimiento’, así como las controversias jurídicas y morales en torno del tema. El objetivo es desnaturalizar las premisas que sirven de base para esa regulación, haciendo énfasis en la dimensión social y performativa de las categorías etarias y al consentimiento diferenciado de acuerdo con el género, la clase o el estatus social. Finalmente, serán examinadas las siguientes cuestiones: ¿Qué tiene que ver el sexo con el consentimiento? ¿Cómo la capacidad de consentimiento sexual puede ser definida? ¿Quién es considerado capaz para consentir?
Palabras-clave: menoría, consentimiento sexual, leyes, decisiones judiciales.
Introdução
Existe um sentimento generalizado de verdadeiro horror a qualquer coisa que conecte sexualmente o adulto à criança. Trata-se de uma repulsa entendida como ‘natural’, portanto, inquestionável. No entanto, como ensina a antropologia, as diferenças ‘naturais’ são construções culturais e históricas. Dizer que a idade não é um dado da natureza não quer dizer que ela não tenha efetividade, uma vez que serve de instrumento fundamental de ordenação social no chamado mundo ocidental moderno, assim como as diferenças entre os sexos, por exemplo. Nos termos de Bourdieu (1983, p. 112), “as classificações por idade (mas também por sexo, ou, é claro, por classe) acabam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde cada um deve se manter [...] em seu lugar”.
Vale notar que foi somente no século XVIII que a inscrição da data de nascimento passou a ser mantida com maior precisão e de modo mais sistemático nos registros paroquiais e, segundo Ariès (1981, p. 30), “a importância pessoal da noção de idade deve ter-se afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos, começando pelas camadas mais instruídas da sociedade”. Tal hipótese indica que o lugar crucial que a idade cronológica assume na ordenação da vida social das sociedades ocidentais modernas está relacionado a um processo de regulamentação estatal do curso da vida, que tem como suporte formas de registro baseadas em um sistema de datação.
É evidente que as fronteiras cronológicas constituem parâmetros instáveis e incertos de delimitação das classes de idade ao longo da história dessas sociedades, uma vez que estão sendo constantemente questionadas, negociadas e redefinidas. No entanto, enquanto modelo lógico de ordenação, a ‘cronologização da vida’ estabilizou - se como um dos principais mecanismos de atribuição de status, definição de papéis e formulação de demandas sociais (Debert, 1998).
O propósito deste artigo consiste, então, em evitar uma leitura naturalizada sobre relações que passaram a ser um dos mais importantes focos de atenção, horror e regulação na sociedade ocidental contemporânea: a relação sexual entre adultos e crianças. Por isso, ao invés de tratá-la nesses termos tão essencializados, proponho problematizá-la a partir da noção de ‘menoridade sexual’, de modo que os termos ‘adulto’ e ‘criança’ sejam pensados como categorias sociais e relacionais que são manipuladas e articuladas a outras categorias para construir uma avaliação moral e/ou legal de uma determinada conduta. A categoria ‘adolescente’ aparece, por sua vez, como elemento que borra as fronteiras entre esses dois polos, servindo de suporte privilegiado em situações de conflito ou ‘negociação da realidade’, nos termos de Velho (1999).
Meu questionamento leva-me, assim, a investigar o modo como o desenvolvimento da sexualidade e da racionalidade no curso da vida de uma pessoa é socialmente e culturalmente organizado; a analisar como a idade enquanto categoria diferenciadora orienta as relações sexuais e, principalmente; a atentar para os processos pelos quais se constituem ou se privilegiam as classes de idade, inter-relacionadas (nem sempre de modo tão explícito) a outras categorias (gênero, classe, status etc.), para a regulação e a condenação de certas modalidades de relações sexuais.
No contexto social e político atual, com o enfraquecimento da credibilidade em outros poderes de Estado, o Judiciário fortaleceu-se enquanto peça administrativa e, com isso, as leis e os discursos de aquisição e proteção de direitos ganharam uma nova centralidade política (Schuch, 2005). No que se refere aos direitos relativos à sexualidade, apesar de as leis não determinarem as condutas individuais, segundo Waites (2005), elas desempenham um papel significativo, ainda que limitado, na constituição de normas sociais para o julgamento moral do comportamento sexual na sociedade e, principalmente, facilitam a intervenção de agências estatais em casos particulares.
Por isso, neste texto, abordo o principal modo jurídico de regular a conduta sexual de acordo com a idade, analisando a manipulação de dispositivos legais que definem aquilo que optei por denominar ‘menoridade sexual’, também chamada de ‘idade do consentimento’. Entendo a noção de ‘menoridade’ de acordo com a definição de Vianna (1999, p. 168), “não como um atributo relativo à idade, mas sim como instrumento hierarquizador de direitos”, isto é, como categoria relacional de subordinação que evoca a ‘maioridade’ enquanto contraponto e enfatiza a posição desses indivíduos em termos legais ou de autoridade. Segundo a autora, ‘menores’ são aquelas pessoas compreendidas como incapazes (ou relativamente incapazes) de responderem legalmente por seus atos de forma integral.
Como sugere Vianna (2002), trabalhar com a noção de ‘menoridade’ é interessante, pois permite um maior afastamento de categorias muito naturalizadas, como infância ou crianças, imediatamente associadas a um dado período de vida ou a um conjunto de representações. Porém, se, por um lado, a ‘menoridade’ não pode ser identificada exclusivamente com a noção de infância, por outro, é impossível desconhecer a estreita relação entre as duas noções, pois “a ‘menoridade’ encontra na infância sua representação contemporânea mais eficaz” (Vianna, 2002, p. 8).
Isso se dá graças à pressuposição de incapacidade natural de discernimento - concebido como ainda em fase de (con)formação nesse período da vida - a partir da qual se naturaliza e legitima a dimensão tutelar da ‘menoridade’ (Vianna, 2002). No caso da ‘menoridade sexual’, como veremos, as discussões procuram justamente estabelecer critérios sobre as condições que definem a capacidade de discernimento necessária para que alguém tenha o reconhecimento de autonomia para consentir, de maneira considerada válida, uma relação sexual.
Menoridade sexual na legislação penal brasileira e em decisões judiciais
Na legislação penal brasileira contemporânea, o que poderíamos ver como ‘menoridade sexual’ toma forma, de maneira mais restrita, no artigo 217-A do Código Penal brasileiro, que define o crime de “estupro de vulnerável” como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”1. Observa-se que praticar qualquer ato sexual com menores de 14 anos corresponde ao crime de estupro, ou seja, a uma relação sexual não consentida e, portanto, a uma violência sexual. Isso significa que, até certa idade, o menor é visto como ‘objeto’ e nunca como ‘sujeito’ em uma relação sexual, isto é, sua vontade e agência não são consideradas juridicamente válidas.
Em outras condutas também criminalizadas na legislação brasileira, como a prostituição ou exploração sexual e a pornografia envolvendo crianças e adolescentes, a ‘menoridade sexual’ ou ‘idade do consentimento’ é mais elevada (18 anos). Entretanto, não vou me deter nessas diferenças, pois o que me interessa apontar é que a ‘menoridade’ é um elemento importante para invalidar o ‘consentimento sexual’, sendo atualmente representada como uma forma de ‘vulnerabilidade’ que serve de base para desconstruir a autonomia da vontade em decorrência de uma imaturidade biológica e social (ou cognitiva e moral) e de uma condição (ainda que transitória) de desigualdade social (Lowenkron, 2015).
Cabe notar que o tipo penal autônomo “estupro de vulnerável” (artigo 217-A do Código Penal) só foi incluído na legislação penal brasileira a partir da Lei nº 12.015 de 2009. Entretanto, o critério de idade para presunção de violência no antigo delito de estupro e no revogado delito de atentado violento ao pudor não constitui uma novidade, já sendo previsto na redação original do Código Penal de 1940. Este critério era estabelecido na alínea “a” do revogado artigo 224 do Código Penal, que previa a presunção de violência, caso o ato sexual fosse cometido com menores de 14 anos. Além de aumentar as penas mínima e máxima para esse tipo de crime, o objetivo da alteração legislativa que criou o delito de “estupro de vulnerável” era evitar que decisões judiciais pudessem relativizar a presunção de violência, validando o consentimento do menor de 14 anos em certos casos.
A exposição de motivos do Código Penal de 1940 esclarecia que o fundamento da ficção legal de violência e a razão da tutela do menor de 14 anos eram a ‘innocentia consilii’ do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se pode dar valor algum ao seu ‘consentimento’. De acordo com o Manual de Direito Penal Brasileiro de autoria do penalista Luiz Regis Prado,
A presunção da violência nos delitos sexuais, também conhecida por ‘violência ficta’, está prevista na maioria dos Códigos Penais, em face da excepcional preocupação do legislador com determinadas pessoas que são incapazes de consentir ou de manifestar validamente o seu dissenso (Prado, 2006, p. 244).
Julio Fabbrini Mirabete, em seu Código Penal Interpretado, destaca que “embora seja certo que alguns menores, com essa idade, já tenham maturidade sexual, na verdade não ocorre o mesmo com o desenvolvimento psicológico” (Mirabete, 2001, p. 1511).
Até a década de 1990, a maioria dos doutrinadores entendia que a presunção da violência por ‘menoridade’ era absoluta. No entanto, segundo Regis Prado (2006, p. 245), a partir de determinado momento, “passou a entender a melhor doutrina que a presunção da norma em epígrafe é relativa”. Segundo o autor, tal entendimento passou a ser predominante, de modo que se a vítima, apesar de contar com menos de 14 anos, for experiente em assuntos sexuais, ou se já atingiu maturidade suficiente para discernir se lhe é conveniente ou não praticar o ato libidinoso, descaracteriza-se o delito2.
A possibilidade de relativização da presunção de violência em função da experiência ou maturidade sexual do menor de 14 anos passou a ser duramente criticada por defensores dos direitos das crianças e dos adolescentes, levando em 2009 à alteração legislativa que inseriu o tipo autônomo de “estupro de vulnerável”, entre outras importantes modificações3. Entretanto, conforme esclarece Castilho (2013, p. 138), “a alteração legislativa [...] não afastou a polêmica, pois agora se trava o debate sobre ser a ‘vulnerabilidade’ relativa ou absoluta, principalmente nos casos de adolescentes na faixa de 12 a 14 anos”.
Assim, mesmo sendo ancorado na legislação anterior à reforma do Código Penal de 2009, um caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 1996 continua sendo exemplar para ilustrar as controvérsias em torno da ‘menoridade sexual’, tanto pela riqueza dos argumentos quanto pela inovação e excepcionalidade da decisão na mais alta instância do Judiciário brasileiro. Trata-se de um ‘habeas corpus’ cujo Paciente (denominação equivalente a “réu” em ‘habeas corpus’) era um homem de 24 anos, que fora condenado nas duas instâncias do Tribunal de Justiça de Minas Gerais por estupro com violência ficta, por manter relações sexuais com uma menina de 12 anos. No entanto, anos depois da condenação, os Ministros do STF concederam ‘habeas corpus’ ao rapaz, em decisão histórica e polêmica, vencida por três votos a dois.
Para desclassificar o estupro, absolvendo o rapaz, o argumento legal do Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello, foi que teria ocorrido “erro de tipo”, ou seja, dado que a relação fora consentida e que o acusado não tinha como saber que a menina era menor de 14 anos, portanto não poderia prever que estava cometendo um crime, então não houve crime. Mas, se o ‘erro de tipo’ é o argumento técnico-jurídico para a concessão do ‘habeas corpus’, inocentando o rapaz pelo fato de não ter tido condições de reconhecer que a menina era menor de 14 anos, os argumentos morais utilizados pelos magistrados para fundamentá-lo buscam desconstruir a ‘menoridade’ da vítima.
Como propus em outro artigo (2007), ao analisar detalhadamente os votos dos Ministros da Suprema Corte sobre esse caso, os magistrados que se posicionaram a favor da absolvição do acusado enfatizaram ora a aparência madura e a experiência sexual precoce da menina, ora a ausência de outras assimetrias além da idade que pudessem configurar o constrangimento e a contaminação da vontade4. Um terceiro argumento mencionado dizia respeito à acelerada mudança dos costumes no mundo contemporâneo, com o consequente anacronismo do Código Penal na definição da idade que se supõe a “innocentia consilii” para o engajamento na relação sexual.
Seja enfatizando a aparência e a conduta pregressa, seja enfatizando a ausência de outras assimetrias além da idade, os discursos dos Ministros que votaram pelo deferimento da ordem de ‘habeas corpus’ desconstroem a ‘menoridade’ da vítima, ao descaracterizar, no caso, a pureza, a inocência e a vulnerabilidade associadas à imagem infantil, ‘lócus’ privilegiado da ‘menoridade’. Os dois votos que indeferem o pedido de ‘habeas corpus’, por sua vez, vão, ao contrário, procurar garantir o direito de proteção legal da menina, reconstruindo a sua ‘menoridade sexual’. Os argumentos procuram fundamentar a invalidação do consentimento da adolescente, ao enfatizar a sua essencial vulnerabilidade, inocência e imaturidade, apesar de sua experiência sexual anterior e aparência física precoce.
Para justificar a tutela, ou seja, o impedimento legal de autogestão da sexualidade, um dos ministros enfatiza, ainda, a ignorância da menor sobre as consequências dos atos e a natureza biológica dos ‘instintos sexuais’ que afloram na adolescência, tornando as meninas púberes mais ‘vulneráveis’. O fenômeno biológico enfatizado nessa argumentação é a puberdade, que estaria associada a um período de perturbação psíquica que, aliada a pouca experiência, tornaria frágil a vontade da ‘adolescente’. Segundo essa visão, a lei deve proteger crianças e adolescentes independentemente de suas condutas e, talvez valesse acrescentar, de suas vontades.
Analisando os acórdãos do STF sobre o tema desde 1996, um estudo recente (Ferreira, 2014) revela que este último entendimento tem sido predominante nessa Corte e se fortaleceu com a alteração legislativa de 20095. As decisões judiciais examinadas pela pesquisadora envolvem situações diversas (abuso sexual intrafamiliar, intercâmbio sexual casual, relações amorosas e estáveis, prostituição ou sexo em troca de benefícios econômicos)6 que foram tipificadas como crime de estupro com violência presumida contra menores de 14 anos (sempre meninas e geralmente entre 12 e 13 anos) e que ao menos uma das partes do processo (a defesa) alega que o sexo fora consensual, frequentemente relembrando a decisão do STF de 1996. Assim, o trabalho revela também que até hoje as controvérsias morais e jurídicas acima mencionadas atravessam processos e decisões judiciais.
Menoridade e consentimento sexual
O conceito de ‘idade do consentimento’, muitas vezes tomado como um dado nos debates públicos e políticos, “é em si mesmo significante como forma de representação que influencia a compreensão da lei” (Waites, 2005, p. 1). Portanto, para concluir este artigo, abordo as seguintes questões: o que sexo tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? E quem é considerado capaz para consentir?
É importante notar que o ‘consentimento’, tal qual foi definido no pensamento liberal, pode ser entendido como um ato de vontade e, ao mesmo tempo, como uma capacidade para exercer livremente a própria vontade. Nesse sentido, a capacidade de ‘consentimento’ pressupõe a ideia de autonomia individual, que tem como pré-requisito o autodomínio, isto é, um ‘self’ livre de coações ou constrangimentos e capaz de governar racionalmente a si mesmo. Portanto, desde o Iluminismo, formas particulares de competência associadas à capacidade intelectual de razão e exercício do livre arbítrio foram valorizadas. Segundo Waites (2005, p. 19, tradução nossa), “neste contexto, características atribuídas a alguns grupos sociais foram sistematicamente associadas ao tipo de ação que se imagina ser o consentimento”.
Desse modo, a apreciação das transformações históricas nas desigualdades de gênero é vital para a análise dos debates em torno do significado da noção de ‘consentimento’ no âmbito do comportamento sexual. Em especial, é importante notar a passagem de um contexto patriarcal hierárquico para outro marcado por ideais igualitários. Neste último, a ofensa sexual é entendida não mais como ameaça à honra da família, mas como uma violência contra o corpo íntimo e privado e o ‘consentimento’ passa a ter uma importância maior do que o status social da pessoa ofendida (se é casada, virgem, prostituta, mulher honesta, criança inocente...) no julgamento dos crimes.
Se, por um lado, a noção de ‘consentimento’ pode ser definida como “uma decisão de concordância voluntária, tomada por um sujeito dotado de capacidade de agência, razão e livre arbítrio” (Lowenkron, 2007, p. 735), por outro, esta definição não pode ser plenamente compreendida sem considerar algumas críticas feministas a este conceito. Ao analisar comparativamente os argumentos da cientista política inglesa Carole Pateman e da jurista estadunidense Catharine MacKinnon, Flávia Biroli (2013, p. 130) sintetiza estas críticas nos seguintes termos: “a questão é se há consentimento genuíno, autonomamente definido, quando as preferências e as escolhas definem-se em contextos assimétricos, em meio a relações de opressão e dominação”. Nesse sentido, o ‘consentimento’ é concebido na teoria política feminista, simultaneamente, como um dos principais pilares das democracias liberais e de suas contradições (Pateman, 1980).
Nos anos 1970, algumas campanhas feministas nos EUA enfatizaram a clareza de distinção entre ‘consentimento’ e ‘não consentimento’, como revela o slogan anti-estupro ‘yes means yes’ and ‘no means no’. Outra corrente do feminismo conceitualizou a existência de um ‘continuum’ entre o intercurso sexual heterossexual plenamente consentido e o estupro.
A noção de ‘continuum’ descreve mais adequadamente as experiências de mulheres que podem ceder ao sexo sem necessariamente consenti-lo mais ativamente, o que implica uma maior agência. Essa ideia é útil para conceitualizar as formas e os níveis de consentimento no comportamento sexual envolvendo crianças (Waites, 2005, p. 21, tradução nossa).
Vale lembrar que os conflitos contemporâneos sobre as ‘leis da idade do consentimento’ são localizados em um contexto no qual crianças e adolescentes passaram de um estado de total subordinação à família ou aos tutores para se tornarem “sujeitos de direitos” - a partir da aprovação da Convenção Universal de Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (1989), no plano internacional; e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), no plano nacional. Surge, então, a necessidade de encontrar formas de conciliar a compreensão de crianças e jovens como sujeitos especiais, ou seja, tendo que ser protegidos e formados, mas também compreendidos como indivíduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas que estão em jogo nos debates em torno das ‘leis da idade do consentimento’ nos dias atuais, que discutem formas apropriadas de direitos de crianças e adolescentes em relação à sexualidade (Waites, 2005).
O princípio que fundamenta a ‘menoridade sexual’ não é qualquer suposição de que o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas, sim, que este não desenvolveu, ainda, as competências consideradas relevantes para consentir uma relação sexual. Supõe-se que a competência para tomada de decisões vem com o tempo, através de um processo de socialização no qual o sujeito racional completo é (con)formado. De acordo com o atual entendimento majoritário da lei e da jurisprudência do STF, para os quais o critério etário na definição da ‘menoridade sexual’ é absoluto (Ferreira, 2014), crianças e adolescentes até 14 anos são considerados sujeitos incompletos e incapazes. Sendo assim, o exercício de sua vontade deve ser tutelado pela lei até que ele ou ela tenha se tornado um sujeito pleno para consentir livremente a relação sexual.
No entanto, é importante lembrar que, se, por um lado, a periodização da vida é um modo de institucionalizar as transições das pessoas, instituindo idades ideais para cada coisa (Souza, 2005), por outro, para compreender as formas de regulação da conduta sexual, não se pode tomar a ‘idade’ como critério único e absoluto. A ‘idade’ está associada a moralidades diferenciadas de acordo com o gênero. Além disso, por vezes, as assimetrias de ‘idade’ são articuladas a outras assimetrias, como aquelas relativas às posições sociais e à classe. Sendo assim, a análise dos entrecruzamentos de categorias parece ser o melhor meio para entender os processos de regulação social e jurídica da sexualidade no contexto político contemporâneo.
Entretanto, pensar a idade como uma categoria de diferenciação articulada a outros marcadores sociais de diferença/desigualdade é importante, mas insuficiente para compreender as controvérsias jurídicas em torno da ‘menoridade sexual’. Como foi possível observar a partir dos argumentos dos magistrados que defenderam a absolvição do rapaz na histórica e polêmica decisão do STF de 1996 (que relativizou a ‘menoridade sexual’), eles não só destacavam a inexistência de outras assimetrias entre o maior e a menor além da idade, mas conferiam particular importância à aparência e à conduta pregressa da “menina”, ou melhor, “daquela que, considerada destituída de inocência, passou, então, a ser vista como ‘moça’ de 12 anos” (Lowenkron, 2007, p. 738).
Nesse sentido, assim como o gênero, e articulada ao gênero, a idade pode ser entendida como um efeito performativo e uma performance, ou seja, como algo que os sujeitos devem se tornar continuamente por meio da estilização repetida de atos, nos termos de Judith Butler (2003). Isto é, para ser reconhecido como ‘menor’ e, portanto, ser considerado e tratado como legalmente incapaz para realização de certas práticas (neste caso, o ‘consentimento sexual’), nem sempre basta ter certa idade, é preciso ‘parecer’ que a tem. A meu ver, essa decisão judicial foi inovadora e controversa justamente porque desconstruiu a articulação imediata e naturalizada entre ‘cronologização da vida’ e ‘estágios de maturidade’ (Debert, 1998), pressuposta na noção jurídica de ‘idade do consentimento’.
Se isso, em geral, não tem ocorrido mais nas decisões do STF, como mostra a análise de Ferreira (2014), é porque a imagem idealizada da inocência infantil ameaçada tem sido eficazmente (re)construída por meio de artifícios retóricos daqueles que defendem que a ‘menoridade sexual’ seja absoluta. A questão relevante a ser investigada a partir disso é se esses artifícios têm sido realmente efetivos para proteger crianças e adolescentes de carne e osso do abuso e da violência ou se tem servido antes para resguardar o ideal moderno de infância pura, inocente e vulnerável, que historicamente tem servido ora para legitimar a exclusão dos menores que não correspondem a esse ideal do direito de proteção, ora para disciplinar o exercício da sexualidade juvenil, justificando o controle (algumas vezes violento) em nome da proteção.
Referências
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Data de recebimento: 21/09/2015
Data de aceite: 04/03/2016
1 O parágrafo primeiro do artigo que define o “estupro de vulnerável” afirma ainda que: “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
2 Contudo, nesses casos, considera o jurista que há de se ter maior rigor na avaliação, “pois a infância e a pré-adolescência são fases da vida em que o ser humano encontra-se vulnerável e suscetível de abuso, engodo, manipulação e autoritarismos” (Prado, 2006, p. 246), de modo que qualquer dissenso do menor, ainda que não se trate de uma resistência militante é suficiente para configurar o estupro.
3 A mais importante alteração da Lei 12.015 foi a substituição do título no Código Penal no qual se inserem os crimes sexuais: aquilo que antes era chamado de “crimes contra os costumes” passou a ser denominado de “crimes contra a dignidade sexual”. Além disso, todas as diferenças de gênero e conotações morais dos delitos sexuais foram abolidas. O estupro, por exemplo, passou a incluir não apenas a conjunção carnal (coito vaginal), mas qualquer ato libidinoso praticado mediante violência ou grave ameaça, de modo que homens também passaram a ser possíveis sujeitos passivos deste crime e o antigo delito de “atentado violento ao pudor” foi revogado.
4 Nos termos de um dos ministros: “poderia, numa situação diversa desta dos autos, entender que houve algum constrangimento […] se não fosse o réu um jovem operário, tão simples quanto a vítima sob todos os aspectos, exceto a menoridade dela”.
5 Nos termos da autora, “pode-se perceber um movimento claro da jurisprudência do STF no sentido de considerar absoluta a presunção de violência. Esse posicionamento veio a ser confirmado pela lei penal posterior, com reforma de 2009, fato que chega a ser mencionado em processos após essa data” (Ferreira, 2014, p. 79). Segundo ela, apenas na decisão de 1996 por mim mencionada, essa presunção foi efetivamente relativizada pelo Supremo Tribunal Federal, mas esse julgamento é constantemente lembrado nos processos judiciais por aqueles que pretendem defender a possibilidade dessa relativização.
6 Algumas vezes as decisões judiciais sequer trazem informações acerca da natureza da relação entre vítima e acusado e quase nunca há menção à idade do segundo.
I Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (2012), Brasil, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil. Tem experiência nos campos da antropologia do Estado e dos estudos de gênero e sexualidade, atuando principalmente nos seguintes temas: violência sexual, infância/menoridade, pedofilia e tráfico de pessoas. É autora do livro ‘O Monstro Contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos planos’ (EdUERJ/CLAM, 2015) e de diversos artigos em periódicos e capítulos de livros. E-mail: lauralowenkron@gmail.com