Desidades
ISSN 2318-9282
Desidades vol.14 Rio de Janeiro mar. 2017
INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS
Fabricando a desigualdade
"La educación de la clase alta argentina – entre la herencia y el mérito", de Victoria Gessaghi.
Ana Maria F. AlmeidaI
I Faculdade de Educação, Universidade de Campinas, Campinas/SP, Brasil.
Palavras-chave: grupos dominantes, desigualdades sociais, educação.
Palabras-clave: grupos dominantes, desigualdades sociales, educación.
O estudo que deu origem a esse livro é tributário das transformações ocorridas na Argentina a partir da crise de 2001, que levaram ao questionamento da imagem até então dominante de que se tratava ali de um país igualitário, talvez uma exceção na América Latina. Ele se junta, portanto, a uma série de trabalhos que se multiplicaram nas duas últimas décadas, dedicados a examinar as desigualdades sociais e, em particular, a contribuição dos processos educativos para a produção dessas desigualdades. Por sua densidade e rigor, esse estudo atesta a maturidade de um campo de estudos que é também efeito dos fortes investimentos realizados no país na formação de novas gerações de pesquisadores.
Membro dessa nova geração de cientistas sociais argentinos a quem foram oferecidas condições especialmente adequadas de formação, entre as quais se inclui o estímulo à circulação internacional, Victoria Gessaghi apresenta nesse livro uma análise dos processos pelos quais se constrói uma classe social, identificando os princípios e as lógicas subjacentes ao estabelecimento das relações de assimetria e de dominação entre classes e entre frações de classe que concretizam as desigualdades sociais.
Resultado de uma etnografia primorosa, na qual a pesquisadora abre espaço para a multiplicidade de experiências, muitas vezes contraditórias e de posições nem sempre harmônicas, que constituem o pertencimento à classe alta, a posição de classe pode ser apresentada como algo que não é resultado de uma experiência linear, determinística, muito menos a-histórica.
Trata-se de um trabalho de imersão, amparado por laborioso investimento no estabelecimento de vínculos com os membros desses grupos privilegiados, permitindo o desenvolvimento de entrevistas em profundidade, muitas vezes repetidas, marcadas pela reflexividade. Trata-se, para além disso, de um trabalho árduo de dupla objetivação, ao longo do qual a construção progressiva da compreensão sobre as visões de mundo esposadas pelos sujeitos se dá em meio a operações de objetivação da visão da própria pesquisadora sobre esses sujeitos e sobre o mundo que é o deles. O resultado é alentador. Ele mostra a produtividade da abordagem, já que permite identificar as dinâmicas que articulam condições objetivas de existência a experiências historicamente determinadas, dando origem a sensibilidades que orientam esses indivíduos no mundo, que os separam uns dos outros em função do gênero e da idade, entre outros, justificando e ajudando a explicar suas tomadas de decisão, suas preferências, suas adesões e rejeições.
Tudo isso, no entanto, não é construído a partir de estudos sobre uma “classe alta” frouxamente definida, mas pela exploração de um grupo social específico, delimitado pela própria história da investigação. A entrada em campo, facilitada por apresentações por parte de uma amiga da faculdade, tem consequências definitivas sobre a pesquisa, já que faz a autora mergulhar num segmento específico das classes altas, o das “famílias tradicionais”, encontradas em espaçosos e bem mobiliados apartamentos localizados em bairros elegantes tradicionais de Buenos Aires.
Para os indivíduos focalizados no trabalho, que negociam permanentemente sua posição privilegiada com os outros – que podem ser seus próprios pais e seus próprios filhos –, mas também consigo mesmos, o nome tem um papel fundamental. É ele que anuncia, permite, garante o pertencimento ao grupo de parentesco, primeiro por meio do nascimento, mas também por meio das alianças matrimoniais, momento em que se definem ganhos e perdas cruciais. É o nome também que, atestando o pertencimento ao grupo, enseja privilégios, claro, mas também obrigações, deveres, submissões a desejos de outros nem sempre coincidentes com aqueles que os próprios indivíduos constroem na sua relação com outsiders, que podem ser de vários tipos, o que pode levar – e certamente levou – certos indivíduos a construir trajetórias de distanciamento do grupo.
Explorando engenhosamente a multiplicidade de significados associados aos termos formação e educação, a autora explora longamente os circuitos educativos adotados por essas famílias, o significado atribuído à experiência educacional e, finalmente, as experiências concretas que vivenciaram como parte de sua educação.
Na primeira parte dessa discussão, acompanhamos as angústias e ansiedades de mães e pais com relação à escolha das escolas dos filhos e filhas. Testemunhamos seus dilemas e, ainda mais importante, a constante negociação com a própria história escolar e com as expectativas do círculo familiar e do círculo de amigos com relação à escolarização mais apropriada, mais produtiva em termos de produção do pertencimento ao grupo e da construção do futuro, num espaço escolar que se transforma e sobre o qual as famílias individualmente, por mais que se debatam, têm muito pouco controle.
Na segunda parte, somos levados, por meio de um deslocamento temporal resultado da decisão de investigar as trajetórias educativas dos avós que passaram pela escola nos anos 1920 e 1950, a acompanhar a construção do sistema de ensino argentino e suas transformações ao longo do século XX. Em particular, compreendemos como se expande pouco a pouco a segmentação do sistema que vai tornar cada vez mais exclusiva e segregada a escolarização das classes altas. Embora escolas privadas existissem desde o final do século XIX, inclusive escolas voltadas para as elites, sua importância cresce nos anos 1930, em geral associada a escolas católicas. O caso argentino não é exceção. O crescimento progressivo da importância do privado se repete em outras latitudes, inclusive no Brasil. No entanto, o jogo de escalas manuseado com maestria por Victoria Gessaghi, que nos permite restituir as experiências individuais a processos e dinâmicas de amplo alcance e de longo prazo, é uma ferramenta poderosa para compreendermos as implicações de reformas educacionais e, em particular, do papel desempenhado pela igreja católica na constituição de uma polarização social no sistema de ensino.
O livro culmina com a dissecação quase clínica dos princípios que organizam a busca por legitimidade da posição privilegiada ocupada por esses indivíduos. A autora capta com perspicácia o aparente paradoxo de uma legitimação que se apoia simultaneamente nos princípios logicamente excludentes do “familismo” e do mérito. Nessa parte do livro, a sensibilidade, que permite à autora explorar as fraturas de gênero no interior do grupo, é instrumento poderoso de compreensão das dinâmicas que levam à simultânea valorização do trabalho e eufemização do privilégio garantido por herança, ao mesmo tempo em que se protegem os mecanismos que permitem a transmissão desta última.
Trata-se de um belo livro. Uma etnografia primorosa, baseada numa construção argumentativa sedutora que, por sua densidade, minúcia e honestidade, logra transformar o leitor, desde as primeiras páginas, em cúmplice, companheiro de jornada e, ao mesmo tempo, árbitro bem informado das escolhas empíricas e teóricas realizadas ao longo do trabalho. Como tal, o livro certamente será alentada fonte de inspiração para pesquisadores em diferentes estágios da carreira.
Referências
GESSAGHI, V. La educación de la clase alta argentina - entre la herencia y el mérito. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2016. [ Links ]
Data de recebimento: 06/02/2017
Data de aceitação: 10/02/2017
I Ana Maria F. Almeida: Professora associada (livre-docente) da Faculdade de Educação da UNICAMP, Brasil. Suas pesquisas examinam o papel da educação na transmissão intergeracional da desigualdade. É autora de “As Escolas dos Dirigentes Paulistas”, de artigos e capítulos sobre a questão. Email: aalmeida@unicamp.br