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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.23 Rio de Janeiro abr./jun. 2019
TEMAS EM DESTAQUE
Jovens nem nem brasileiros/as: entre desconhecimento das experiências, espetacularização e intervenções
Jóvenes ni ni brasileños/as: entre desconocimiento de las experiencias, espectacularización e intervenciones
Paulo Roberto da Silva JuniorI, Claudia MayorgaII
I Centro de Gestão Empreendedora (FEAD), MG, Brasil.
II Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
RESUMO
A preocupação com a continuidade do social e os modos ideais de integração dos/as jovens na sociedade, principalmente os/as de origem popular, torna os jovens nem nem um campo propício de intervenções por diferentes atores da sociedade. Os incômodos com a inatividade dos/as jovens pobres estão presentes ao longo da história da juventude brasileira e, na atualidade, é sob o nome de jovens nem nem que determinadas parcelas da juventude têm ganhado grande destaque na mídia, nos projetos sociais e nas políticas públicas. Analisamos como a construção do lugar de problema social para os/as jovens chamados/as nem nem é sustentada por um desconhecimento das experiências dos/as jovens pobres, uma espetacularização do fenômeno e pela constituição de um conjunto de práticas para solucioná-lo. Refletimos como essas nomeações reatualizam a noção de jovens perigosos/as do passado e constroem práticas sociais paradoxais.
Palavras-chave: jovem nem nem; jovem pobre;mídia; intervenção; experiência.
ABSTRACT
The preoccupation with social continuity and the ideal ways of integrating young people in society, especially those from a poor background, makes the NEET (neither in employment nor in education or training) youth an adequate field for intervention by different social actors. The discomfort with the inactivity of poor youth is present along the history of brazilian youth and, today, it is under the term NEET that certain sections of the young population have been highlighted by the media, in social programs and politics. We analyse how the construction of the so called NEET youth as a social problem is sustained by a lack of knowledge of the experiences of poor youth, a tendency to create a spectacle around the fenomenon, and by the structuring of practices that intend to solve it. We reflect on how these titles renew the notion of a dangerous youth and construct paradoxical social practices.
Keywords: NEET youth, poor youth, media, intervention, experience.
RESUMEN
La preocupación con la continuidad de lo social y los modos ideales de integración de los/as jóvenes en la sociedad de ellos/as, principalmente los/as de origen popular torna los jóvenes ni ni un campo propicio de intervenciones por diferentes actores de la sociedad. Las incomodidades con la inactividad de los/as jóvenes pobres están presentes a lo largo de la historia de la juventud brasileña y, en la actualidad, es sobre el nombre de jóvenes ni ni que determinadas partes de la juventud han ganado gran relevancia en los medios de comunicación, en los proyectos sociales y en las políticas públicas. Analizamos como la construcción de lugar del problema social para los/as jóvenes llamados de ni ni es sustentado por un desconocimiento de las experiencias de los/as jóvenes pobres, una espectacularización del fenómeno y por la constitución de un conjunto de prácticas para solucionarlo. Reflexionamos cómo esas nominaciones reactualizan la noción de jóvenes peligrosos/as del pasado y construyen prácticas sociales paradójicas.
Palabras-clave: joven ni ni; joven pobre; medios de comunicación; intervención; experiencia.
Pertencemos a uma sociedade que se preocupa com o futuro dos/as jovens e deposita sobre eles/as a expectativa de manutenção da ordem social e política, fazendo deles/as a geração considerada responsável pelo desenvolvimento da sociedade (Leccardi, 2005). A preocupação com a integração social dos/as jovens e com a continuidade do social são aspectos que fazem com que eles/as, especialmente os/as mais pobres, se tornem objeto de constante reflexão acadêmica e alvo de intervenções por parte de diversos atores da sociedade. Foram os/as jovens perigosos/as no passado e são os/as jovens chamados/as inativos/as no presente os/as principais responsáveis pelas inquietações, pois encontram-se distantes do governo (Foucault, 1996) de suas condutas por aqueles que tentam encaminhá-los para determinados comportamentos ajustados.
Jovens que nem estudam, nem trabalham e nem procuram emprego, nomeados/as como jovens nem nem, se constituíram como um objeto de preocupação em países como Inglaterra e Japão em meados da década de 1990, durante a crise de reestruturação produtiva capitalista. A sigla em inglês “NEET” (neither in employment nor in education or trainning) foi o conceito compartilhado nesses países para nomear esta condição dos/as jovens. No caso do Brasil, a expressão nem nem é derivada do conceito NI NI – do espanhol ni estudan ni trabajan – socializado no contexto da América Latina.
O afastamento desses/as jovens da escola e do trabalho faz com que ganhem o cognome de ociosos/as, logo, nem nem. Refletiremos sobre os sentidos do termo jovem nem nem no Brasil diante da indefinição sobre o que representa essa inatividade, do afastamento em relação às experiências dos/as jovens das classes populares e do que essa experiência revela e encobre sobre a nossa realidade social. Por isso, insistiremos ao longo do texto no aspecto de construção social dessa suposta inatividade como uma totalidade nem nem e seus desdobramentos no campo social.
As reflexões apresentadas neste texto resultam de uma pesquisa de doutorado em psicologia que buscou problematizar as noções sobre o/a chamado/a jovem nem nem a partir de pesquisas de juventude e das experiências de jovens pobres no Brasil. Construímos nossa pesquisa alicerçada no tripé teoria, prática e compromisso social da psicologia social, e dos seus diálogos com o feminismo e a pesquisa intervenção. Escolhemos, desse modo, trabalhar com uma análise lexical de universos semânticos sobre os/as chamados/as jovens nem nem em documentos da Organização Internacional do Trabalho/OIT, usando como apoio o programa ALCESTE - Análise Lexical por Contexto de um Conjunto de Textos.
Em seguida, propusemos compreender as experiências de quatorze jovens moradores/as de duas favelas de Belo Horizonte, no que elas referenciam e problematizam suas inserções e ausências no trabalho e na escola, através de uma pesquisa intervenção, usando como técnicas a entrevista e a roda de conversa. Assim, apostamos na escolha desses procedimentos como forma de compreender as noções compartilhadas sobre o/a chamado/a jovem nem nem, bem como seus efeitos e as experiências de vida de jovens pobres no que elas referenciam e problematizam suas presenças/ausências no trabalho e na escola.
Nosso trajeto aqui será o de analisar como a provável ociosidade de determinados/as jovens brasileiros/as ganha status de problema social, o que remonta e renova concepções antigas sobre a juventude pobre. Partimos, assim, da compreensão de que o tripé que sustenta o/a dito/a jovem nem nem no lugar de problema social é formado por um desconhecimento das experiências dos/as jovens pobres, uma espetacularização do fenômeno e pela constituição de um conjunto de práticas interventivas para solucioná-lo.
Os/as jovens nem nem como um problema social
As décadas de 1960/1970 e as décadas 1980/1990 marcam dois momentos distintos em que os/as jovens se transformam em campo de investigação e produções acadêmicas. Distintos porque, no primeiro período, as investigações se relacionavam à participação política dos/as jovens nos movimentos estudantis (Foracchi, 1997), enquanto, no segundo momento, se iniciaram as pesquisas sobre o envolvimento destes/as com as cenas de violência e criminalidade nas cidades brasileiras (Abramovay et al., 1999). Destacamos que o interesse pelas experiências juvenis neste segundo momento está fortemente relacionado à compreensão da juventude como geração responsável pelo futuro da sociedade; à constituição da juventude como um problema social (Abramo, 1997), a partir do seu envolvimento com a criminalidade; à promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tornando-os sujeitos de direitos; e ao enorme contingente populacional de jovens na pirâmide etária da sociedade brasileira, dando origem ao boom juvenil.
A construção da juventude como problema social relaciona-se às aproximações teóricas entre juventude e criminalidade no contexto americano, mediante os estudos realizados pela Escola de Chicago (Shaw; McKay, 1928), e a formação das quadrilhas e galeras na cidade do Rio de Janeiro (Zaluar, 1996), ressaltando o processo de difusão cultural dessas formações juvenis via globalização e a articulação no contexto brasileiro entre festas, ethos da virilidade, enfraquecimento e militarização do estado, formação de milícias e tráfico de drogas. É neste cenário que uma parcela da juventude brasileira vai sendo identificada como produtora da desordem social, por se envolver com a violência, criminalidade e drogadição, demandando, da sociedade brasileira, respostas repressivas e de controle dos comportamentos, a fim de torná-la um ator estratégico do desenvolvimento. Vê-se, portanto, salvaguardada as concepções do menor e da disciplinarização de crianças e adolescentes pobres, herdadas do nosso passado escravocrata (Arantes, 2012).
Entra em curso a produção social de jovens perigosos/as (Coimbra; Nascimento, 2005), em sua maioria pobres, negros/as e moradores/as de favelas de diferentes cidades brasileiras. A condição de pobreza vai sendo associada de forma naturalizada à periculosidade, bem como à condição de não humanidade, o que justifica uma série de práticas de extermínio, tanto física quanto simbólica. A produção dos/as jovens delinquentes autoriza o controle e a repressão, e os/as torna alvo de diversos atores que têm se apresentado para intervir através de diferentes práticas e políticas. Dentre eles, cabe destaque para o estado e as instituições do terceiro setor/ONG’s, estas funcionando como uma ramificação do primeiro na execução de programas governamentais (Tommasi, 2005). Os/as jovens pobres, uma ameaça à sociedade, vão ser destinatários/as de diversas estratégias de ampliação da educação, de inserção profissional e da ocupação do tempo livre que vivenciam. Estes/as passam a ganhar visibilidade, ora como um problema social e que, portanto, precisa ser tutelado e controlado para não causar a desordem social, ora como sujeito em formação, que precisa ser conduzido/a para uma vida adulta útil e produtiva.
É de longa data a preocupação com o que hoje se nomeia jovem nem nem. Reflexões anteriores sobre jovens desempregados/as ou fora da escola, ou sobre jovens que se organizavam coletivamente em grupos, gangues e galeras, apontavam para uma forte inquietação com a inatividade de determinadas parcelas da juventude. Esses/as jovens, paulatinamente, foram ganhando status de problema e, no seu encalço, erigidas propostas de resolução da inatividade juvenil.
No agrupamento dos países da União Europeia, a média de jovens que nem estudam, nem trabalham e nem procuram emprego, apontados/as como nem nem, foi de 15,07% do conjunto de jovens entre 15 e 29 anos, entre 1997 e 2010 (Cardoso, 2013). No Brasil, essa média foi de 16,71% na faixa etária de 19 a 24 anos, entre 2001 e 2011 (Monteiro, 2013). Em números absolutos, isso representa, aproximadamente, três milhões de jovens brasileiros na referida inatividade. Os contornos da nossa desigualdade fazem com que, dos 3,2 milhões de jovens chamados/as nem nem no Brasil em 2011, 830 mil fossem homens, 950 mil mulheres sem filhos e 1,44 milhões mulheres com filhos. Outros aspectos são importantes para compreender essa condição: o número médio de pessoas residentes com renda positiva contribui para diminuir a taxa de inatividade, igualmente para homens e mulheres; quanto maior a escolaridade, menor a chance de estar inativo; a inatividade feminina pode estar mais relacionada ao casamento do que à maternidade; é maior a probabilidade de inatividade entre os/as mais velhos/as e de menor escolaridade, sendo mais forte nas mulheres.
Cabe frisar que o fenômeno chamado nem nem não é recente no contexto de todos os países, como mostram as maiores taxas localizadas nos anos de 1997, 2001, no contexto europeu, e em 2012 no Brasil. Outro destaque é que as taxas anuais são muito próximas, com pouca variação, e seu pior momento não pode ser localizado durante a crise econômica de 20081 de forma igual para todos os países, já que, para alguns deles, ela impactou de forma menos severa. O que parece novo e que tem causado agitação em diversos setores da sociedade é o episódio de interrupção da queda nas taxas, como uma das sequelas da crise de 2008. A conjuntura de recessão econômica vivenciada em diversos países interrompeu um movimento de queda ao redor do mundo, produzindo, com isso, o medo de um aumento exagerado dos índices no pós-crise.
No Brasil, a tendência é a de queda da taxa para as mulheres jovens com filhos e o aumento dessa taxa para os homens jovens (Monteiro, 2013). Em relação à duração na condição chamada nem nem, o tempo médio é relativamente pequeno, variando de 3 a 4 meses, sendo que o aumento na duração média na condição de inatividade foi o responsável pelo aumento na taxa geral brasileira entre os anos de 2003 e 2011 (Menezes Filho; Cabanas; Komatsu, 2013). No caso dos homens, a média de duração subiu de 2,4 meses para 3 meses, o que explica o aumento na taxa geral. No caso das mulheres, a média de meses também aumenta, passando de 3,5 meses em 2003 para 4,2 meses em 2011, mas o seu efeito é equilibrado pela menor taxa de entrada das jovens na condição intitulada de inatividade.
Presumimos, como isso, que se a permanência dos/as jovens na suposta inatividade é relativamente temporária, a maior visibilidade dada aos jovens pela mídia nas notícias que tratam do tema da juventude nomeada nem nem pode se dar em função desse aumento do número de homens jovens, mesmo que eles representem um contingente muito menor no nosso contexto social, reforçando, assim, estereótipos que associam masculinidade, pobreza e criminalidade, e seus possíveis efeitos disruptivos na sociedade.
Desconhecimento das experiências
No debate sobre os/as jovens designados/as nem nem, muitas afirmações são realizadas sem que os sujeitos tenham falado a respeito de suas experiências, visto que as pesquisas que visam a medir o fenômeno são de caráter quantitativo. Não temos conhecimento, até então, de estudos que utilizaram técnicas que permitissem entender o que significa esta experiência a partir do relato dos jovens.
Compreender as experiências de jovens pobres deve ser um processo de conexão entre a descrição de suas condições materiais de vida, dos aspectos socioespaciais do seu local de moradia, e a análise das suas condições de privação econômica, social, cultural, simbólica e política. É atinar que essas experiências se constroem dentro de um campo de disputas na nossa sociedade, cuja transformação não se dá no âmbito da individualidade dos sujeitos, depositando nela a responsabilização por uma estrutura social desigual.
Enfrentamos, nesse debate, um dilema com relação à definição do que significa não-estudar e não-trabalhar. Os estudos (Cardoso, 2013; Monteiro, 2013) compartilham de uma perspectiva formalista dessas experiências, ou seja, tomam como referência de escolarização a matrícula em instituições formais de ensino e, como trabalhar, o trabalho formal, tomado, em grande medida, como emprego. Uma análise dos programas voltados para jovens de 74 cidades brasileiras evidenciou uma expansão de ações de escolarização não-formal realizadas por esses municípios, mesmo que em algumas situações o modelo empregado continue a ser o da escola formal (Sposito, 2008). Os/as jovens inseridos nestes projetos não estariam estudando? Devem ser considerados/as ociosos/as por não estarem matriculados na escola? Faz-se mister refletir a respeito do paradoxo presente na exigência da escolarização formal, pois se exige do/a jovem a presença nos bancos escolares ao mesmo tempo em que a escola pública não oferece uma educação de boa qualidade, sendo, ao contrário disso, um modelo de educação marcado por processos de exclusão social, de naturalização das relações de subalternidade e que não dialoga com os interesses dos/as estudantes, afastando-os/as dela.
Da mesma forma que no aspecto educacional, há um debate sobre o que consideramos ou não atividade de trabalho. São jovens ociosos/as aqueles/as que realizam atividades domésticas, que cuidam de seus filhos ou familiares, que se encontram em período gestacional e pós-gestacional, que estão envolvidos/as com atividades esportivas e artísticas, que se encontram em trabalhos voluntários ou filantrópicos, que fazem bicos, que ocupam posições no tráfico de drogas ou que recebem o apoio financeiro dos pais durante a transição entre a escola e o trabalho?
Inativos/as para quem, para qual finalidade, dentro de qual perspectiva de sociedade? Essa e outras perguntas nos fazem conjecturar que muitas experiências são construídas socialmente como nem nem diante de uma leitura reducionista dos contextos de vida desses/as jovens pobres. Por isso, se faz necessário aproximar-se daqueles/as cujas experiências de afastamento da escola e do trabalho mais causam incômodo à sociedade para melhor conhecer as situações de não vínculo e quais as respostas podem ser dadas, sem acreditar em sortilégios ou reproduzir a disciplinarização dissimulada de autonomia e protagonismo juvenil.
Espetacularização
Compreendemos a mídia como o conjunto dos meios/instrumentos de comunicação que constroem significados acerca da realidade, sendo o rádio, a imprensa, a televisão, o cinema, a internet etc., tecnologias midiáticas produtoras de conhecimento e de cultura de massa (Guazina, 2007). Esses meios de comunicação podem ser entendidos como construtores de ideologias e formas de dominação sobre os sujeitos (Adorno; Horkheimer, 1985), visando ao lucro e garantindo a manutenção dos privilégios. Estarmos informados sobre o mundo se dá, nesse sentido, no contexto de uma guerra de audiência entre esses meios de comunicação, do lucro pela venda de jornais e revistas, da reprodução de interesses conservadores e da produção da sociedade do espetáculo (Debord, 2007).
A associação entre jovens pobres e violência na mídia é encontrada desde o início do século passado, momento em que se discutia a higienização da sociedade por meio do combate às classes perigosas (Coimbra; Nascimento, 2005). Para enfrentá-las, foram produzidas estratégias estatais para o combate da pobreza dos espaços físicos e da pobreza dos sujeitos e de suas famílias. O mito da periculosidade da pobreza abre espaço, nesse ínterim, para a gestão biopolítica dos/as jovens, especialmente os/as das classes populares e negros/as, compreendidos/as como virtualmente e potencialmente perigosos/as (Lemos et al., 2014) e, por isso, passíveis de serem disciplinados/as. O controle da vida desses/as jovens vai se dar, portanto, pela virtualidade do que eles/as podem apresentar enquanto comportamentos e práticas que ameaçam a nossa estabilidade e progresso social.
A divulgação das notícias sobre os/as jovens ditos/as nem nem e a transformação dos dados em um espetáculo são fortemente impulsionadas pela liberação de estudos que tratam das condições de escolarização e trabalho dos jovens no mundo e no Brasil, como os produzidos pela Organização Internacional do Trabalho/OIT2. Na mídia, os dados referentes a esses estudos dão origem a representações negativas sobre os/as jovens que vivenciam essa situação, articulando no entorno deles/as ideologia, valores e representações que operam dentro de um campo social e que influenciam o comportamento das pessoas. Sendo assim, a cada lançamento de um novo documento que apresenta estatísticas sobre a chamada inatividade, é possível verificar um boom de notícias na mídia e em outros produtos midiáticos3. Em relação ao processo de construção de representações negativas sobre os/as jovens que vivenciam essa situação, destacamos:
Esse grupo desfamiliarizado (Nem-Nem+), nos países de capitalismo selvagem e extrativista, é uma verdadeira bomba-relógio, em termos sociais, de potencial criminalidade e de violência. Por quê? Porque os fatores negativos começam a se somar (não estuda, não trabalha, não procura emprego, não tem família, não tem projeto de vida...). Se a isso se juntam más companhias, uso de drogas, convites do crime organizado, intensa propaganda para o consumismo, famílias desestruturadas etc., dificilmente esse jovem escapa da criminalidade (consoante a teoria multifatorial da origem do delito). Milhões de jovens, teoricamente, estão na fila da criminalidade (e nossa indiferença hermética não se altera um milímetro com tudo isso).4
No total, há 5,3 milhões de jovens que não trabalham nem estudam, indica a pesquisa (*). Se fossem computados os jovens que ainda procuram alguma ocupação, o número saltaria para 7,2 milhões. Num país com cenário de baixo desemprego e economia em expansão (em 2010, ano em que os números usados na pesquisa foram colhidos, o PIB cresceu 7,5%), isso significa que uma parcela importante dos brasileiros não está participando do desenvolvimento experimentado nos últimos anos. Uma vez sem perspectiva, alguns deles podem cair na criminalidade.5
Ao reunirmos um conjunto de notícias publicadas sobre os/as jovens chamados/as nem nem, disponíveis na internet entre 2012 e 20156, destacamos o fato de a maior parte das reportagens valerem-se de jovens homens e pobres para ilustrar o perfil desse grupo, reproduzindo estereótipos e naturalizando a relação entre juventude, masculinidade, violência e criminalidade. Poucas são as reportagens que tratam da presença massiva de mulheres jovens nas estatísticas levantadas. Isso contribui, também, para a invisibilização das desigualdades de gênero, mesmo diante dos dados estatísticos que mostram a perversa relação entre gênero, trabalho e educação que penaliza as mulheres.
Não falar centralmente das mulheres jovens como aquelas em maior proporção nas estatísticas representa, em grande medida, naturalizar as trajetórias construídas pelas jovens, como as de abandonar os estudos e o trabalho por conta de uma gravidez, para cuidar de seus filhos ou pessoas próximas ou para fazer trabalhos domésticos. O abandono da escola e do trabalho por parte das jovens para se dedicarem à vida privada parece não incomodar e causar espanto, pois tais trajetórias são percebidas como próprias de uma suposta natureza da mulher (Mayorga et al., 2016).
Nos questionamos sobre os propósitos de tamanha preocupação e visibilidade do tema, já que a duração da condição chamada nem nem é curta, não existe um consenso sobre quais experiências devem ser descritas como de inatividade nas pesquisas domiciliares e já que as taxas brasileiras historicamente tendem a uma estabilidade. Essa espetacularização, pautada numa abordagem realista/concretista da ociosidade, como se ela existisse de tal forma, parece reatualizar e demonizar as imagens do menor, pivete, trombadinha, crianças e jovens perigosos/as ao longo da nossa história brasileira, enquanto se glamourizam outras experiências juvenis. No encalço da reatualização do discurso do pânico moral pela mídia, encontramos, também, os procedimentos que visam a normalizar os desvios dos/as jovens pobres.
Intervenções
Se mescladas, as representações compartilhadas sobre os/as jovens tidos/as como nem nem pela mídia e aquelas construídas pelas pesquisas sobre trabalho e emprego para a juventude, destacam tanto um viés economicista em suas preocupações ao enfatizar que esses/as jovens podem ajudar a elevar as taxas de desemprego e se tornarem dependentes do governo, quanto uma tendência repressiva, ao focalizarem a possível composição de um exército de jovens disponíveis para se envolver com a criminalidade e o tráfico de drogas e, no caso das jovens, para a gravidez na adolescência como um fenômeno recorrente ou para o seu envolvimento com jovens que também vivenciam a mesma situação de não estudar e não trabalhar. Essas afirmações justificam, assim, intervenções pautadas, na maior parte das vezes, em critérios econômicos e de moralização das experiências juvenis.
Em 2012, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Sistema Indústria (SESI, SENAI e IEL), em parceria com a UNESCO, iniciaram o Projeto Educação Livre, pautado na percepção de uma lacuna entre mão de obra industrial e formação educacional incompleta dos/as jovens brasileiros/as. O projeto visa a inserir o público de jovens chamados/as nem nem no mercado de trabalho da indústria, por meio do desenvolvimento de competências básicas em língua portuguesa e matemática, e de habilidades para o trabalho (Guimarães, 2014). Argumenta-se que os/as jovens possuem grande importância no desenvolvimento socioeconômico do país e que propostas como essa são indispensáveis para o aumento da produtividade e diminuição do trabalho informal juvenil.
Proposituras focadas na ocupação do tempo livre dos jovens/as pobres pela via do trabalho e da educação fazem parte da história desse grupo na nossa sociedade (Sposito; Silva; Souza, 2006) e mostram o processo de naturalização do governo da juventude pobre via trabalho educação. Contrariamente, para os/as jovens das classes abastadas, não se identifica este agenciamento dos comportamentos, sendo a ociosidade desses uma questão que não causa pânico moral na sociedade. Os/as jovens inativos dessas classes não foram construídos socialmente como perigosos/as e, mesmo quando relacionados a esses comportamentos, sua explicação passa por outra ordem, precisando, com isso, que a doença da violência receba tratamento por parte de diversos atores da sociedade (Hadler; Guareschi; Scisleski, 2015). Trabalho e educação vão ser pensados, também, como projetos para esses/as jovens, mas não na lógica da condução a um modo funcionalista de desempenhar os papéis, mas sim como direito, para que as virtualidades positivas e os privilégios de classe, gênero e raça se reproduzam e se mantenham inalterados.
Diversamente, os/as jovens chamados/as nem nem tornam-se, nesse trajeto de inúmeros programas e projetos sociais, executados por parcerias entre agentes públicos, ONG’s e instituições privadas, um campo de intervenção social (Tommasi, 2010). A partir de diferentes recursos, investimentos, práticas, ações e políticas, o estado e outros atores sociais buscam intervir sobre esses/as jovens numa relação polarizada entre projetos de conservação contra demandas de subversão da ordem estabelecida ou das estruturas sociais. O resultado desse processo é a construção da condição de jovem de projeto (Sobrinho, 2012), que vê suas experiências e condutas controladas em nome da manutenção de determinados valores pautados pela lógica liberal. É a salvação do/a jovem pobre (Silva Junior; Mayorga, 2016) via políticas que visam a expandir e garantir direitos.
O liberalismo simula, maliciosamente, o mundo moderno como um palco de escolhas individuais ilimitadas (Souza, 2009), ao oferecer oportunidades, no lugar de garantir direitos sociais, ao introjetar nos sujeitos as responsabilidades pelo seu sucesso e, também, seu fracasso. Os/as jovens de projeto são transformados/as em jovens protagonistas, responsáveis pela transformação de suas vidas a partir dos ensinamentos e recursos recebidos pelas instituições, mesmo que precários e incapazes de produzir saídas emancipatórias (Mayorga et al., 2009). A domesticação dos/as jovens visa a transformá-los/as em trabalhadores do social, em empreendedores da própria vida (Rose, 2011) e, logicamente, todas as agruras enfrentadas tornam-se, única e exclusivamente, responsabilidade própria, uma vez que foram dadas as condições para a mudança.
Ao fetichizar a dimensão econômica como a esfera de resolução dos nossos problemas sociais, o que a perspectiva liberal camufla é a profunda desigualdade estrutural que compartilhamos na sociedade brasileira. Esta se reproduz de forma opaca e invisível à consciência cotidiana, fazendo com que a apropriação do prestígio, reconhecimento e respeito se dê apenas pelas classes mais abastadas. Nessa luta, a ralé da sociedade brasileira vai ser constituída pelos sujeitos pobres não somente do ponto de vista econômico, mas social, política e moralmente, sendo eles privados, portanto, das noções de dignidade, utilidade e produtividade. Os/as jovens tomados/as como nem nem, por pertencerem em sua maioria às classes populares, compõem a ralé, conduzindo suas vidas em meio à exclusão no acesso às oportunidades e direitos colocados como iguais para todos na sociedade.
A exemplo do que acontece nas dinâmicas das desigualdades de gênero, raça e orientação sexual, dentre outras, também no caso desses/as jovens, o discurso liberal, individualista em seu fundamento, imputa às minorias sociais a responsabilidade por ocupar um lugar de desprivilegio. Determinados/as jovens, pautando-se nesse discurso, tornam-se responsáveis por estar nesse lugar de ociosidade e têm em suas mãos as condições de sair dela, bastando, apenas, fazer uso das diversas oportunidades que são colocadas igualmente para todos/as na sociedade. Depositar a responsabilidade sobre esses/as jovens elimina a necessidade de pensar em mudanças estruturais e nos modelos que utilizamos para valorar as pessoas.
Pontuamos que a situação dos/as jovens tidos/as como nem nem dever ser vista como um problema estrutural e como um problema social digno de se transformar em problema sociológico (Cardoso, 2013) e psicossociológico. Ao mesmo tempo, é imprescindível compreendermos que o afastamento dos/as jovens da escola e do trabalho contribui para a persistência das nossas desigualdades, uma vez que o lugar da ralé ocupado por eles/as é transmitido entre as gerações. Enfrentar essas questões representa atacar os mecanismos produtores de exclusão e desigualdade no contexto brasileiro, o que significa retirar da dimensão individual a origem e a solução do problema e encontrar saídas que problematizem o nosso modelo de sociedade e suas lógicas de exclusão.
Considerações finais
O/a jovem, como aquele/a que deve ocupar o lugar do adulto na manutenção da ordem social, a construção de um sistema de garantia de direitos para crianças e adolescentes, o expressivo número de jovens na pirâmide social brasileira e a noção dos/as jovens pobres como um problema social constituem-se como aspectos importantes na consolidação de agendas acadêmicas e políticas focalizadas no público jovem. Políticas essas que oscilam entre a garantia de direitos, a produção de autonomia e o controle dos comportamentos, com a produção de um simulacro de cidadania, particularmente, para os/as jovens pobres.
Os/as jovens nomeados/as nem nem, presentes com outras denominações nos estudos sobre juventude ao longo do tempo, ganharam destaque, especialmente, nas últimas duas décadas. Mensuração do fenômeno via censo demográfico, trabalhos acadêmicos, notícias na mídia e a construção de programas e projetos com foco economicista são algumas das iniciativas que defendemos estar na sustentação discursiva e prática desses/as jovens como um problema social de grande relevância, capaz de produzir grandes prejuízos para o futuro da nossa sociedade. Enquanto muito se fala sobre eles/as a partir de dados censitários, pouco se conhece sobre suas experiências de vida do ponto de vista qualitativo, e menos ainda se colocam em dúvida as certezas apresentadas.
Destacamos que o tripé espetacularização, intervenções sobre o problema e o desconhecimento das experiências sustenta os jovens afastados/as da escola e do trabalho no lugar de nem nem, como uma nova disfunção social, dentro de um contexto neoliberal que responsabiliza os/as jovens por esse lugar e faz depender deles/as, também, a construção de saídas emancipatórias, enquanto o nosso modelo de desigualdade estrutural de classe, raça, gênero e outras hierarquias sociais, permanece inalterado. Inventa-se que basta investir nos/as jovens, despertar neles/as o desejo de agir, moldar mentes e corações, salvá-los/as da sua pobreza, que o problema estará resolvido, como num passe de mágica.
Nos perguntamos em que medida esse lugar de inativos/as construído para algumas experiências juvenis, mesmo que pouco se conheça sobre elas, se articula com práticas de controle e extermínio da juventude pobre e negra, como nos casos da redução da maioridade penal, a permanência dos autos de resistência e o genocídio da juventude negra. O habitus de classe do/a jovem pobre é o da ralé, no qual se encontram os sujeitos que não possuem as precondições psicossociais exigidas para serem considerados sujeitos dignos de respeito e estima. Envoltos/as em técnicas e procedimentos de ajustamento a certos ideais, travestidos de empoderamento e acesso à cidadania, refletimos sobre o passado que se faz presente, sobre novos nomes e definições com velhas roupagens, antes jovens perigosos/as, hoje jovens ditos/as nem nem. Por fim, o desafio que se coloca para o nosso País é o de que ele tem que resolver se vai mandar cuidar desses/as jovens ou se vai mandar prendê-los7.
Referências
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Data de recebimento: 18/02/2018
Data de aceite: 12/09/2018
* Agradecemos à FAPEMIG, CNPq e CAPES pelo apoio financeiro.
1 A crise econômica de 2008, uma crise bancária ocorrida no centro do capitalismo, iniciou-se em meados de 2007 no mercado norte-americano e acabou por se transformar numa crise sistêmica, passando de uma crise de crédito clássica para uma crise bancária e financeira de grande proporção. O que essa crise de 2008 desperta, sobretudo nos países desenvolvidos, é o alerta sobre o aniquilamento das conquistas pretéritas e os possíveis rumos da escolarização e, principalmente, da inserção profissional dos/as jovens.
2 A Organização Internacional do Trabalho tem publicado, de maneira sequencial, dois documentos que trazem informações sobre os jovens nem nem ao redor do globo, a saber: Tendências Mundiais do Emprego Juvenil e Trabalho Decente e Juventude.
3 Em 2013, o tema foi abordado na novela Geração Brasil, da Rede Globo de Televisão, por meio de um personagem jovem nem nem.
4 GOMES, L. F. Geração Nem-Nem+: uma bomba-relógio. DisponÃvel em: https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/113727367/geracao-nem-nem-uma-bomba-relogio, 2014.
5 O Estado de S.Paulo. A geração ânem-nemâ. DisponÃvel em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-geracao-nem-nem-imp-,935944, 2012.
6 As notícias podem ser acessadas em: Cresce a proporção de jovens “nem, nem, nem”: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,cresce-a-proporcao-de-jovens-nem-nem-nem,1619076 - IBGE: um quinto dos jovens no Brasil é "nem-nem", que não estuda nem trabalha: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/11/29/um-em-cada-cinco-jovens-de-15-a-29-anos-nao-estuda-nem-trabalha-diz-ibge.htm - Geração Nem-Nem+: uma bomba-relógio: http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/113727367/geracao-nem-nem-uma-bomba-relogio - O próximo "nem-nem" pode ser você: http://exame.abril.com.br/revista-voce-sa/noticias/o-proximo-nem-nem-pode-ser-voce - Não estuda nem trabalha: crise econômica e social lançam alerta sobre "geração nem nem”: http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/nao-estuda-nem-trabalha-crise-economica-e-problemas-sociais-lancam-alerta-sobre-a-geracao-nem-nem.htm - Não estuda nem trabalha: crise econômica e social lançam alerta sobre "geração nem nem”: http://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas/atualidades/nao-estuda-nem-trabalha-crise-economica-e-problemas-sociais-lancam-alerta-sobre-a-geracao-nem-nem.htm - A geração 'nem-nem': https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-geracao-nem-nem-imp-,935944
7 Referência à música "No meu país", composta e interpretada pela artista Zélia Ducan e Xande de Pilares.
I Paulo Roberto da Silva Junior: Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais – Brasil, professor na FEAD – Centro de Gestão Empreendedora, MG – Brasil, e integrante do Núcleo Conexões de Saberes na UFMG. E-mail: paulosilva.junior@yahoo.com.br
II Claudia Mayorga: Doutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFMG- Brasil, e coordenadora do Núcleo Conexões de Saberes na UFMG. E-mail: claudiamayorga@ufmg.br