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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.23 Rio de Janeiro abr./jun. 2019

 

ESPAÇO ABERTO

 

Os jovens e os velhos: uma atualização de um embate frente a algumas questões nacionais

 

Los jóvenes y los viejos: actualización de una confrontación frente a algunas cuestiones nacionales

 

 

Debatedoras Carmen Teresa GabrielI e Lucia Rabello de CastroII, Mediadora Juliana Siqueira de LaraIII

I Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.

II Programa de Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.

III Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.

 

 


RESUMO

O encontro aqui transcrito discute a temática da diferença geracional no tocante às heranças, dívidas e apostas da sociedade e da educação brasileira em relação às futuras gerações. Parte-se de uma reflexão sobre a iniquidade geracional, atestada, por exemplo, no genocídio e encarceramento da juventude negra e pobre no Brasil. Destaca-se que tal realidade se deve, em grande medida, à transmissão de injustiças históricas, sociais e políticas que marcam o processo de subjetivação dos jovens brasileiros. A partir desses pressupostos, a mesa debate sobre a transmissão na educação pública e privada; questiona as responsabilidades de jovens e velhos na construção do conhecimento e da sociedade; e, entre outras coisas, trata da natureza do afeto envolvido na transmissão como uma via para repensarmos a atividade educativa, de modo a promover a construção do comum, entendido a partir de uma coprodução de sentido.

Palavras-chave: relações intergeracionais, transmissão, descolonialidade, educação brasileira.

ABSTRACT

The round-table discussion transcribed here discusses generacional difference in what it touches upon the subjects of inheritances, debts and bets made by brazilian society and educational system in relation to future generations. A reflection on social inequality is assumed here, evidenced by the genocide and imprisonment of black and poor brazilian youth, for example. Based on these assumptions, the round-table debates de subject of transmission in public and private education; questions the responsibility of young and old in the construction of knowledge and society; and, among other things, discusses the affective nature of transmission as a means for the reformulation of educational practices, promoting the construction of the common, understood here as a coproduction of meaning.

Keywords: intergenerational relations, transmission, decoloniality, brazilian education.

RESUMEN

En el encuentro aquí transcrito se aborda la temática de la diferencia generacional en lo concerniente a las herencias, deudas y apuestas de la sociedad y de la educación brasileña en relación a las futuras generaciones. Se parte de una reflexión sobre la inequidad generacional, comprobada, por ejemplo, en el genocidio y encarcelamiento de la juventud negra y pobre en Brasil. Se destaca que tal realidad se debe, en gran medida, a la transmisión de las injusticias históricas, sociales y políticas que marcan el proceso de subjetivación de los jóvenes brasileños. A partir de estos presupuestos, la mesa de debate sobre la transmisión en la educación pública y privada, cuestiona las responsabilidades de jóvenes y viejos en la construcción del conocimiento y de la sociedad; y, entre otras cosas, trata la naturaleza del afecto implicado en la transmisión como vía para que pensemos la actividad educativa, como una forma de promover la construcción de lo común, entendido a partir de una coproducción de sentido.

Palabras clave: relaciones intergeneracionales, transmisión, descolonialidad, educación brasileña.


 

 

Mesa redonda realizada no “Ciclo de Debates: Subjetividade, Descolonialidade e Universidade”.

Juliana Siqueira de Lara – Boa tarde, sejam todos bem-vindos à nossa quarta mesa, intitulada “Os jovens e os velhos: uma atualização de um embate frente a algumas questões nacionais”, do Ciclo de Debates: Subjetividade, Descolonialidade e Universidade, organizado pelas professoras Lucia Rabello de Castro e Sabrina Dal Ongaro Savegnago, com o apoio do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Eu sou Juliana Siqueira de Lara, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFRJ, e irei mediar essa mesa de hoje, que conta com a presença mais do que especial das professoras Carmen Teresa Gabriel e Lucia Rabello de Castro.

A proposta da nossa mesa de hoje serve para que possamos criar um diálogo a partir de perguntas que eu farei e, em seguida, as professoras irão responder com um tempo em torno de 10 minutos. Depois dessas perguntas e respostas, o público presente também está convidado a perguntar e participar da mesa.

Para iniciarmos esse diálogo, podemos dizer que se tem constatado que as relações entre jovens e adultos mudaram muito ao longo dos últimos anos. Se antes as crianças estavam submetidas a uma posição de proteção, de cuidado e muitas vezes de subordinação e inferioridade em relação aos adultos, hoje, a distância que separa a geração mais nova da geração mais velha parece que se encurtou. Em muitos espaços, essa distância se tornou quase inexistente. A proposta desse ciclo de debates de introduzir essa temática em uma de suas mesas me parece dizer sobre a necessidade de pensarmos juntos sobre essas transformações, os caminhos e as consequências que essas mudanças têm ocasionado na vida social e política das crianças, dos jovens, dos adultos e também dos idosos, hoje, para o mundo que queremos construir daqui para frente. Nesse sentido, professora Carmen, como você considera a relevância de abordarmos esse tema dos embates entre os jovens e os velhos, hoje, no contexto político e social em que vivemos?

Carmen Teresa Gabriel – Antes de mais nada, eu queria agradecer o convite. Boa tarde a todos e a todas! E gostaria de relatar também a minha perplexidade face a um convite para conversar sobre essa temática. Embora, é claro, a gente associe educação a jovens e à infância, fiquei pensando em como eu poderia contribuir para o debate de hoje. Isso, aliás, foi algo que me ocupou por dias. Parto de algumas inquietações que são minhas e que me atravessam enquanto pesquisadora e que considero importantes. Portanto, são elas, acredito, que vão me permitir encontrar uma porta para entrar nesse debate. Tentei formular isso a partir da seguinte pergunta: como continuar pensando politicamente o campo educacional – isto é, continuar pensando a escola, a formação de professores, o currículo e o aluno – em tempos tão sombrios? E eu uso o adjetivo sombrio para qualificar um tempo no qual nada é possível ou talvez tudo seja possível – eu não sei o que é pior –, no qual algumas certezas herdadas da modernidade estão, hoje, sendo fortemente abaladas no próprio debate epistemológico. E eu não digo isso como se fosse algo necessariamente negativo. Estamos imersos em um momento no qual alguns parâmetros, alguns paradigmas para pensar a escola e a educação têm sido questionados. E eu acho até importante que o sejam.

Tenho trabalhado com uma postura epistêmica que se inscreve no que tem sido nomeado como a teoria social do discurso. Inicio essa discussão olhando para o título da mesa e não podendo deixar de problematizar os próprios significantes que foram mobilizados no título: jovens, velhos, questão nacional e embates. A gente poderia problematizar cada uma dessas palavras. Então foi por aí que comecei a pensar.

Esses termos e esse título poderiam falar sobre o processo de subjetivação que coloca e posiciona os sujeitos nas categorias de velhos e novos. Esses processos de subjetivação estão marcados por conflitos e tensões. A palavra embate me permite pensar isso. E que vivemos hoje questões nacionais que de alguma forma implicam ou induzem a reflexão e a reatualização desses embates. Muito rapidamente, e muito brevemente, estou entendendo e lendo essa questão nacional como uma conjuntura política marcada por uma articulação entre grupos de interesses ultraliberais e ultraconservadores responsáveis tanto pelo desmantelamento do setor público quanto por um recrudescimento de um conservadorismo. É essa combinação aparentemente paradoxal que delineia um contexto no qual nós nos movemos. Então, pensar no embate entre jovens e velhos também requer pensar nesse contexto, a partir de nossos diferentes lugares de fala, a partir do exercício da nossa agência.

Em relação ao termo jovens e velhos, a despeito dos critérios que a gente possa utilizar para definir um ou outro destes termos, o que me interessa sublinhar aqui é a interface entre jovens e velhos com a metáfora do jogo do tempo. Eu tentei pensar dessa forma no sentido do que nos institui como sujeitos que agem nesse mundo. Quando nós falamos de velhos e jovens, estamos trabalhando com continuidades e permanências. Ricoeur nos fala de marcadores no tempo. Ele indica o calendário, os rastros e o conceito de geração como marcadores de tempo muito importantes. Fiz essa escolha de trazer essa ideia de geração para pensar o que eu quero pensar. Então, considero que a relevância do tema proposto consiste em reconhecer sua potência para pensar a dinâmica do jogo do tempo. Isto é, permanências, mudanças, estabilidades, desestabilidades, contingências, heranças – uma palavra que eu acho potente –, em tempos em que presenciamos um acirramento de disputas de memórias e de projetos de sociedade.

Lucia Rabello de Castro – Primeiro, eu gostaria de relatar a alegria e o prazer de poder estar compartilhando aqui a mesa com a Carmen Teresa Gabriel. A gente tem compartilhado muitos trabalhos e raramente temos a oportunidade de estar juntas assim, em um debate mais acadêmico. Eu acho que isso é muito bom. Também com a Juliana coordenando a mesa e de ter essa oportunidade de falar sobre uma temática que tem me ocupado bastante ultimamente. Eu venho dessa área de infância e juventude e, mais ultimamente, as questões intergeracionais têm se colocado como questões muito importantes e prementes em minhas pesquisas.

Eu, assim como Carmen, fiquei na dúvida por onde iria alinhar a minha resposta, porque eu acho que essa resposta dá a oportunidade de várias entradas: a questão de jovens e velhos; a questão dos embates; a questão do contexto político. Acho que talvez eu vá priorizar essa noção de embate entre jovens e velhos, no Brasil, hoje. Então, estou tomando o contexto político a partir de uma leitura sobre a questão de jovens e velhos que a gente está enfrentando nesse Brasil contemporâneo. Eu gostaria de nomear de uma forma mais incisiva essa questão entre jovens e velhos sob a perspectiva de um embate com a expressão de iniquidade geracional.

A iniquidade geracional que hoje presenciamos, ou seja, como uma geração está sendo afetada de uma maneira injusta, ilegítima, ilícita, cruel por outra geração. Para pensar isso, eu tomo alguns exemplos. Em primeiro lugar, algo que está no debate atual, que é o genocídio de jovens pretos e pobres no País. As estatísticas que temos sobre o número de assassinatos no Brasil, que agora está em torno de 60.000 anuais, também nos mostram que cerca de 60% desses assassinatos são de jovens entre 15 e 19 anos. Essa é uma estatística estarrecedora, que nos envergonha como população de adultos. Nessa linha, outros aspectos também se seguem, que é a respeito da própria população carcerária no Brasil, composta basicamente de jovens de origem popular, humilde, também pretos e pobres. E em termos de educação pública, se a gente tem 35 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, temos também mais de 10 milhões que não chegaram até o final do segundo ciclo escolar.

Eu poderia ser questionada no seguinte sentido: afinal de contas, o que significa essa iniquidade geracional? Até porque ela é muito localizada e direcionada para uma determinada população de jovens. Talvez isso nos interrogue, ou nos faça pensar: de que maneira, ou como nós deixamos de construir, ao longo da nossa República, certo imaginário cultural a respeito do que seria uma justiça geracional em relação à nova geração. A gente pode até alegar que as elites, as classes burguesas, têm um zelo, um trato em relação à sua própria prole. Do ponto de vista do cuidado com as novas gerações, as elites são super zelosas com seus filhos, que vão para as melhores escolas. Então, em certo sentido, é como se a gente pudesse constatar que há aí uma preocupação com uma continuidade geracional. Mas essa preocupação não atinge nenhum patamar mais coletivo da sociedade, ela é algo que é absolutamente narcisista, é relativo a você e aos seus próprios descendentes. Não conseguimos chegar a um patamar de discussão e de subjetivação coletiva em que as elites ou os adultos de uma forma geral se sintam responsáveis e dispostos, ou voltados para o cuidado de uma geração que inclua a todos e todas os/as jovens.

Eu fiquei pensando como, no Brasil, o latifúndio não é apenas agrário, mas também familiar e subjetivo. Ou seja, aquilo que é seu e pode ser muito, sendo que as elites têm muito, na verdade é para reproduzir essa própria estrutura, que é iníqua e que não distribui. Eu acho que isso toca em questões de como a gente, os adultos, as elites, de uma forma geral, não conseguimos nos posicionar identificados com qualquer jovem, seja ele o nosso filho ou não; são eles que vão fazer a reprodução societária, que vão continuar no Brasil, e que vão nos suceder.

Eu acho que a própria colocação do que seria o adulto e o jovem, ou o velho e o jovem, está dizendo uma diferença geracional. No que consiste essa diferença, e como a gente dá sentido a esse significante da diferença, eu acho que tem a ver com os nossos problemas, as nossas questões e os nossos projetos também. Diz respeito a que lugares iremos designar para que os adultos possam preencher suas responsabilidades, e também os que os jovens podem assumir de, eventualmente, ter um lugar nessa reprodução societária. A pergunta que a gente pode se fazer a partir dessa colocação do título da mesa é se, no Brasil, temos enfrentado essa diferença geracional, tendo em vista a forma como a sociedade dos adultos trata, não só os seus filhos, mas todos os jovens. Neste sentido, a gente tem uma questão nacional grave, que é essa iniquidade geracional, no meu ponto de vista.

Juliana Siqueira de Lara – Obrigada, professora Lucia, pela sua fala. Assim como a da professora Carmen. As respostas de vocês nos encaminham para a nossa segunda questão de hoje, que gira em torno da reflexão de que, por muito tempo, a geração mais velha foi aquela à qual se era destinada a posição de transmissão, de cuidado, de responsabilidade para com a geração mais nova. Atualmente, temos verificado que essa posição tem sido colocada em xeque pelas transformações culturais, políticas e sociais que temos vivenciado. Então, pensando esse lugar ocupado hoje pela geração mais velha, como vocês avaliam os embates, diante dessas transformações que vivemos, entre a geração mais jovem e a geração mais velha?

Carmen Teresa Gabriel – Penso que caberia, nesse momento da conversa, trazer uma questão que não quer se calar nunca no campo educacional, pelo menos para quem pensa escola pública e a formação de professores: qual é o lugar da escola pública no processo de transmissão cultural, de transmissão de um mundo de valores,de cultura e de conhecimentos de uma geração à outra?A escola, historicamente, desempenhou esse papel, era um dos locus para isso e muitas vezes contribuiu para a reprodução da desigualdade. Esse papel foi, inclusive, objeto de crítica por parte de muitos pesquisadores do campo educacional. Caberia pensar essa escola em nosso presente e como ela está hoje na berlinda, pois, para muitos, ela não serve mais para nada. Eu sou uma defensora da escola pública como um lugar importantíssimo justamente nesse processo de socialização e distribuição de um dos bens culturais mais desigualmente distribuídos nesse País, que é o próprio conhecimento. Mas essa não é uma discussão de fácil trato, hoje, no campo educacional. Até porque a gente tem várias críticas em relação a algumas formas de institucionalização dessa escola. Eu gosto muito de um autor chamado Gert Biesta, que fala que a escola teria três funções importantes: de qualificação; de socialização e de subjetivação. Talvez a gente possa pensar a partir dessas três entradas, um pouco nesse processo que a Lucia está chamando de uma iniquidade geracional: qual seria o papel da escola nesse contexto? Qual seria o papel da escola para tentar evitar, superar, problematizar isso que diz respeito a algumas juventudes e não outras, a quem garantir essa transmissão e esse cuidado?

Existem hoje correntes que são fortes no campo educacional, que definem a escola como lugar de diferença. Eu diria que o mundo é o lugar da diferença. Entendo que o que difere a escola do resto do mundo é que essa instituição tem a função de lançar e relançar o que Derrida nomeia de herança. Quer dizer que nós – de cada geração – somos herdeiros e a escola tem essa função de garantir de alguma forma a passagem dessa herança. O problema é saber que herança é essa que vale a pena ser passada adiante. Porque nem tudo necessariamente vale a pena ser passado adiante. Tanto a escola quanto o currículo são percebidos como um espaço de produção de identidade, de diferenças e, muitas vezes, de reprodução das desigualdades. Eu gosto muito de uma definição que diz que a escola é um lugar onde o mundo se torna público para o aluno. Eu acho que a discussão sobre o que é público e o que é comum é sempre uma discussão importante a ser feita. É algo que pressupõe todo um processo de negociação, do que a gente seleciona para entrar numa escola, por exemplo, para entrar como um conteúdo legitimado. Isso não é fácil, isso não está dado, embora muitas vezes se apresente como naturalizado.

Face às múltiplas questões epistemológicas e políticas que se colocam hoje, eu tendo a reconhecer que algumas desestabilizações são boas. A perspectiva decolonial está demonstrando isso. A própria reflexão sobre a produção do conhecimento se reduzia a um único lugar epistêmico. A perspectiva decolonial aponta para essa possibilidade de se pensar a partir de outros lugares, sobre a produção de conhecimento, de outros lugares epistêmicos. A escola republicana francesa, que sempre foi um exemplo da gestão da coisa pública, também está passando por embates e muitas dificuldades, justamente talvez pelo inverso. Ela tem muita preocupação em garantir uma herança nacional e não questiona e não abre espaço para outras subjetividades. O que eu estou querendo dizer é que o lugar da escola, uma instituição que tem as suas particularidades, não é apenas um lugar de socialização qualquer. Seu sentido está diretamente associado à construção de uma relação com o conhecimento, que não pode ser descuidada. Como ela consegue trabalhar essa tensão de universalização de valores e do conhecimento, combatendo a desigualdade e, ao mesmo tempo, não fazer com que o universal seja um processo de homogeneização ou de hegemonização de um sentido particular?

Hoje, no campo educacional, para quem discute escola e currículo, está claro que esses não são dados naturais. O currículo produz identidades, o currículo nos produz, o currículo não é um conjunto de disciplinas neutras; o que está ali, está com uma intencionalidade. Se a gente pensar em várias questões hoje, sobre gênero, por exemplo, a escola produz o sentido de feminino e masculino, ela é um dos dispositivos mais acionados para a constituição disso. Então, considero importante essa reflexão que a mesa está trazendo que fala do lugar de uma juventude, dos jovens como herdeiros, todos os jovens, não fazendo uma distinção de origem social. Mas, ao mesmo tempo, não homogeneizando a juventude, porque existem particularidades que têm que ser respeitadas.

O grande desafio hoje é trabalhar o entendimento de uma escola que está sob rasura. Há pessoas defendendo o fim da escola, a homeschooling. A gente está num momento de extrema necessidade de defesa da escola pública. A Lucia, por exemplo, falou em justiça geracional – eu gosto muito de argumentar em defesa de uma justiça cognitiva. Talvez, essas duas justiças articuladas possam apontar outros caminhos em que a gente consiga de alguma forma assegurar esse lugar crucial da escola. Aqui, valeria um debate sobre o que significa estabelecer uma relação com o conhecimento. Sobre isso – eu não sou conteudista, mas também não sou conteúdo-fóbica –, importa trazer para a discussão o que é importante guardar como um patrimônio do nosso conhecimento, que todos tenham acesso, sem que esse todos seja o apagamento das diferenças. Ou seja, como trabalhar o universal de modo que não seja a partir do apagamento das diferenças? Como trabalhar a garantia de um patrimônio comum em termos de conhecimento, do cuidado, de uma juventude para a qual estamos de alguma forma apresentando esse mundo que ela levará adiante? Você chamou a atenção para a juventude como algo que esteja sendo pouco cuidado. Eu diria que, com a atual reforma da previdência, os velhos também estão completamente desamparados. A gente está em um mundo em que nem velhos nem jovens estão sendo muito cuidados. Isso é interessante porque eu vejo que, talvez por um presentismo que estamos vivendo, nem o futuro que a juventude representa, nem o passado, da vivência da experiência, estão sendo respeitados.

A escola tem muito a fazer nesse trabalho de mediação, mas a escola está sob rasura. Quando eu digo sob rasura, eu digo que ela precisa ser repensada. A sua defesa não é fácil, mas, para mim, ela ainda é indispensável e incontornável para pensar politicamente esse mundo.

Juliana Siqueira de Lara – Realmente, suscita várias questões para a gente pensar. É um consenso a importância da escola como um patrimônio e um legado dessa geração mais velha, que está aí deixando algo para quem chega.

Lucia Rabello de Castro – Eu acho que essa pergunta carrega em si várias possibilidades. Eu fiquei com basicamente duas possibilidades que a Carmen traz nessas noções de transmissão e proteção. Geralmente, essas duas práticas balizaram as relações entre jovens e velhos. Então, eu vou tentar trazer algumas associações em relação a isso porque, vindo da área de infância e tendo trabalhado nesta área, essa ideia de proteção, em primeiro lugar, coloca muitos problemas para a gente hoje. Ainda que seja uma prática e um ideal que ainda orienta como os adultos têm que se portar em relação aos mais novos, a ideia de proteção tem sido muito criticada em função de, muitas vezes, impedir, desfavorecer ou bloquear movimentos emancipatórios de jovens e crianças. É como se a proteção estivesse ligada também a uma ideia de governo e comando das crianças e dos jovens, de falar por eles. Nesse sentido, essa ideia de proteção pode ser criticada ao trazer os jovens e as crianças para poder dizer o que eles pensam. A gente sabe que a ideia de proteção é historicamente construída ao longo principalmente da modernidade. Quando se constrói essa ideia de que o adulto tem que proteger a criança – não estou falando da ideia de cuidado, que é um pouco diferente, mas proteger a criança, assim como o homem tem que proteger a mulher –, essa ideia de proteção também inventa, em contrapartida, uma ideia de dependência, inexperiência, imaturidade, vulnerabilidade e fragilidade. Então, ao adulto protetor, sempre corresponde a criança que não sabe, que precisa do apoio e do amparo do adulto. Eu acho que ainda estamos em um momento e em um contexto em que a ideia de proteção ainda vige de uma forma forte, e eu acho que ela está sendo abalada, na medida em que, por exemplo, se concedem direitos às crianças. E é claro que todo o arsenal de direitos da criança vem ameaçar a posição dos adultos em relação ao que eles fazem e às suas responsabilidades em relação às crianças. Mas eu vejo que há outros encaminhamentos possíveis para pensarmos sem fugir das responsabilidades que os adultos devem assumir em relação às novas gerações. Aí, falamos também de responsabilidade como um significante vazio. Quais vão ser as responsabilidades dos adultos é algo que a gente vai ter que descobrir e construir a cada geração. Além das ideias de quais seriam as reciprocidades. Eu também não estaria falando só da responsabilidade dos adultos em relação às crianças, mas também sobre qual seria a contrapartida de jovens e crianças em relação aos adultos. Não estou deixando de fora as crianças e os jovens como aqueles que também não podem nunca reciprocar os adultos.

Outra ideia que você traz dentro dessa dinâmica geracional entre adultos e crianças é a ideia de transmissão. É algo que pode ser problematizado, e quase que radicalizando para me fazer mais enfática: é que talvez o modelo pedagógico de transmissão já esteja muito desgastado. O modelo pedagógico de transmissão seria esse que nos é tão evidente, ainda presente nas nossas práticas, aquele do adulto que sabe e que é experiente, do adulto que enquadra a criança numa posição de submissão e subordinação, porque ela não sabe. Eu acho que todo enquadramento institucional da escola é feito um pouco nessa base, sobre essa concepção bastante pedagogizada da transmissão. Aí, nós poderíamos perguntar: qual seria o outro modelo de transmissão possível? Existem outras possibilidades. Colocando mais uma provocação aqui, para a gente pensar a respeito do Brasil e da América Latina, assim como em outros países periféricos. Aqui, vivemos em uma situação muito precarizada em vários sentidos, uma democracia precária, de institucionalidades precárias, em termos do sistema judiciário, e talvez essa precariedade nos ajude a ter certa margem de manobra maior para pensarmos em caminhos alternativos que possam ser diferentes daqueles caminhos pensados e já trilhados pelos países do Norte. A gente sabe – a Carmen falou isso e eu vou pegar isso também para o meu argumento – como que uma escola francesa republicana, por ser uma instituição de mais de 100 anos, com aquele peso de um caminho percorrido e tão consolidado, como é muito mais difícil talvez passar por uma reformulação radical, de pensar linhas de fuga revolucionárias. Eu acho que os países do dito terceiro mundo talvez estejam nessa posição. Com toda a nossa precariedade institucional, talvez isso seja um trunfo que temos, de a gente poder ter uma largueza, certo afrouxamento para podermos pensar alternativas.

Carmen Teresa Gabriel – Eu queria dialogar com a Lucia a respeito da palavra transmissão. Me parece que nós precisamos repensar e desconstruir a ideia do que seria essa pedagogia, porque existem aí alguns engessamentos de sentidos, e penso que têm outras possibilidades. Trabalhando a ideia do problema da transmissão do como, a partir do entendimento do que é um professor e um aluno na sua relação, há, por exemplo, a visão do Rancière do mestre ignorante, que seria um caminho possível. E existe a ideia com a qual eu venho trabalhando de que não existe aluno e professor fora da relação professor-aluno. Ninguém é professor e aluno previamente, isso se dá na relação, é naquele contexto que a relação pedagógica vai se constituindo. Portanto, quando se pensa em modelo pedagógico no campo educacional, existe uma grande variedade de possibilidades de se entender isso. O que me parece importante aqui na discussão é o papel da escola no que e no como ela deve garantir essa passagem de uma herança. Uma herança tem que ser passada e como se passa essa herança, não no sentido da reprodução, mas do relançar dessa herança? Mas eu concordo que existe uma percepção que gira em torno daquela ideia da escola como lugar de aprisionamento, e isso também precisa ser repensado. A escola não é nada enquanto a gente não está lá dentro trabalhando nela. Essa é a minha posição. Eu acho que, no momento em que você está lá dentro, constituindo uma relação, é que ela se faz. É claro que a cultura escolar apresenta certas estabilidades. A gente pode fazer o mesmo raciocínio com a universidade. Sabemos que existem limites no campo de possibilidades, mas existe uma multiplicidade de possibilidades de invenção e criação que, penso, estão abertas, e a escola pode oferecer isso.

Juliana Siqueira de Lara – Então, vamos para nossa terceira pergunta, que ressoa com tudo o que a gente tem discutido até aqui.Atualmente, muito se fala no embate intergeracional, nos confrontos, nas dificuldades entre adultos e crianças, seja dentro de casa, entre pais e filhos, como também na escola, entre professores e alunos. Diante desse cenário, marcado muitas vezes por agressões e destituições, há alguma aposta de que as relações entre crianças e adultos possam passar pela ordem da cumplicidade, do cuidado mútuo e da solidariedade intergeracional?

Carmen Teresa Gabriel – Bom, depende de como é que a gente está entendendo cada um desses termos: cumplicidade, solidariedade e cuidado mútuo. Essa questão me provoca a repensar talvez três conceitos, ou três ideias sobre as quais já se falou aqui na mesa. Uma é a questão da diferença, de como pensamos essa diferença intergeracional. Também falamos pouco sobre as questões nacionais e das relações de poder assimétricas. A responsabilidade e o cuidado são termos que talvez camuflem relações assimétricas de poder. E penso igualmente que temos que falar de limites. Qual seria o limite da nossa responsabilidade nessa relação? A fronteira é tênue. Eu também fico pensando: qual é o limite da escola no processo de formação desse sujeito, dessa subjetividade de cidadão?

Em relação à diferença, tem algo que talvez seja mais difícil pensarmos. Trata-se de operar com esse termo para além do adjetivo que qualifica os sujeitos: sujeitos diferentes. É pensar a diferença como instituinte do social. Eu tenho muita implicância com a questão da discussão sobre tolerância da diferença, que a gente tem que respeitar as diferenças. Isso tudo ainda me parece pouco para o que isso representa. A maior dificuldade nossa é ser o outro do outro. Porque, quando nomeamos de outro um alguém, a gente já se colocou no lugar da norma. Nós seríamos os normais rodeados de vários outros com os quais nós temos que lidar e tolerar. Então, quem é o outro na relação velho e jovem, velho e adulto, velho e criança? Entendo que a relação de alteridade aí pressupõe pensarmos que nós também somos o outro do outro. E viver dessa forma significa não nos colocarmos no lugar da norma. Então, talvez essa seja uma questão interessante. A relação intergeracional é igualmente atravessada por um padrão de normatividade. Talvez, precisamos pensar sobre o que significa desestabilizar esse tipo de relação.

Tenho apostado muito em um significante, pensando, é claro, na escola, que é o significante comum. Pierre Dardot e Christian Laval publicaram um livro bastante instigante intitulado “O Comum: ensaio sobre a Revolução do Século XXI”. No campo educacional, esse termo é muito utilizado e muito criticado também. Por exemplo, no caso do uso desse significante para nomear a proposta curricular chamada de Base Nacional Comum Curricular, há uma crítica imensa no campo educacional sobre esse comum. Comum, entendido nesse caso como a negação, o apagamento e o silenciamento da diferença. Eu acho que temos que resgatar outros sentidos, outros fluxos de sentidos desse termo que sejam mais potentes, que carreguem uma dimensão política na qual me interessa investir. Refiro-me a esse comum do co-fazer, do co-decidir, de pensar juntos, de decidir juntos, que é um valor extremamente democrático. O comum que se aproxima do que seria para mim o público, que está muito mais num entre, num entre espaços. E que é um ato político, é um princípio político, não é o comum como uma coisa, não é a coisa pública. Além disso, não é aquilo que já está instituído naturalmente como comum, como patrimônio da humanidade, por exemplo, a natureza. É algo que podemos instituir. Então, defendo que esse seria um caminho para pensar o comum nessa relação assimétrica, nessa relação conflituosa. Buscar juntos, através de instâncias como a família, a escola e os vários campos nos quais esses sujeitos circulam e vivem, a construção dessa solidariedade. Não seria isso também a solidariedade, essa cumplicidade, esse cuidado? Essa co-decisão, que é uma decisão política, política não no sentido de uma ação do Estado, mas no sentido da agência, do fazer a partir de um campo de possibilidades e limites.

Eu gostaria de dizer que sempre vale a pena apostar. A palavra aposta é uma palavra que eu adoro utilizar, pois tem uma força política. É uma crença, talvez, mas também uma tomada de posição e é um investimento. Precisamos apostar em determinadas leituras políticas de mundo, em determinadas produções. Precisamos resgatar a potência política do termo comum no campo educacional.

Lucia Rabello de Castro – Bom, a pergunta fala de agressões e destituições do cenário atual nas relações entre crianças e adultos e questiona sobre a possibilidade de outras direções, seja da cumplicidade, seja do cuidado. Eu fiquei pensando que, talvez, olhar para essas agressões e destituições seja também olhar um pouco para o que antecede isso. Olhar para essas gerações, dentro de um contexto extremamente competitivo, desse sistema econômico em que a gente se encontra. O individualismo, a competitividade, a busca incessante pela novidade e pelo prazer de alguma forma encaminham as relações não no sentido de uma construção de cooperação e de solidariedade. Na escola, vemos muito isso. Uma escola que está sempre premiando e fazendo, por exemplo, com que os alunos façam uma competição pela maior nota, para alcançarem determinadas posições, ou talvez centrada nesses valores. Tudo isso pouco cultiva o trabalho coletivo, a solidariedade e a ajuda mútua. Da mesma forma, podemos pensar em todo o investimento que se faz hoje em uma gestão escolar muito baseada nos princípios econômicos, em bonificações, onde a escola deve atingir determinadas metas, colocando uma escola contra outra. Dentro dessa métrica, que nós temos chamado de produtivista, também não se encaminha uma busca de soluções de problemas que estejam na contramão disso, na busca de ajudar, de entender o que se passa nessa escola. E também entender se o que se passa em uma escola tem a ver com o que se passa na outra escola, se a gente poderia trocar conhecimentos e experiências. Enfim, o cenário de agressões e destituições de que fala a pergunta está absolutamente relacionado a essa selvageria impetrada pelo sistema econômico em que a gente vive.

Eu lançaria outra ideia também, com a qual venho trabalhando, que é a da ordem da politização das relações intergeracionais. Cada vez mais, há que se pensar, por exemplo, os movimentos, como os de ocupação das escolas que aconteceram no Brasil e em outros países da América Latina. Há de se pensar num certo protagonismo que as próprias crianças vêm demonstrando, não só as crianças brasileiras e latino-americanas, que protagonizam lutas, seja para as meninas estudarem, seja por uma maior percepção de danos ambientais. 

Os danos ambientais colocam na pauta o problema geracional. Se não tivermos água amanhã, se não tivermos ar para respirar, se vivermos em um lugar em que as alterações climáticas causarem desastres muito grandes, quem vai sofrer mais certamente serão as próximas gerações. Então, a questão ambiental tem sido uma questão em que, de alguma forma, crianças e jovens têm se colocado como protagonistas com essa pauta.

Falando de Brasil e América Latina, a nossa pauta tem sido a educação. Desde os primeiros congressos da juventude no governo do Lula, a educação tem sido eleita como o maior problema que os jovens apontam como aquilo que constituiria a dívida geracional. Eu acho que é por aí que talvez possamos pensar em outro registro político e subjetivo das relações intergeracionais, no sentido daquilo que eu venho chamando de uma politização das relações intergeracionais em torno da pauta da educação. As crianças e os jovens estão percebendo que a educação é algo que a geração dos mais velhos deve a eles. E talvez eles estejam dispostos a tomar isso como uma luta política, o que significa criar um campo de antagonismos. Eu acho que os adultos estarão sendo convocados para o embate e vamos ver como os adultos irão se colocar. Eu fico pensando em como os adultos vão querer enfrentar essa pauta da educação no nosso País como uma dívida geracional, ou se isso vai ser algo que não vai poder acontecer por conta de se ter de fazer caixa, porque se tem que pagar os rentistas nacionais e internacionais etc. Então, eu acho que essa é a pauta da juventude e é através dela que as relações intergeracionais tendem a se politizar e, nesse sentido, tendem a criar um campo de antagonismos que podem ser crescentes, fortes e intensos.

Juliana Siqueira de Lara – Agora, nós chegamos ao segundo momento da nossa mesa, em que abrimos para o público participar com perguntas.

Wagner Côrbo – Boa tarde. Eu agradeço as respostas e as problematizações levantadas pela mesa. Meu nome é Wagner e sou mestre em educação pela UFRJ. Eu dou aulas na rede estadual para alunos de 16 e 17 anos e a questão que eu levanto para a mesa é a seguinte: como é possível construir afeto com essa geração, na medida em que eu quero problematizar um conteúdo? Mas na experiência que eu tenho, de quando eu tinha aquela idade, tudo era só conteúdo. Eu só estudei conteúdo, eu sou professor de história e sempre gostei disso. Mas essa racionalização do conteúdo não atinge mais esses jovens. Os jovens querem estar junto com os professores nessa relação entre professor e aluno que a professora explicou. Então, eu gostaria de saber como construir afetos nesta relação de sala de aula com esses jovens, se eles são tão distantes da minha geração.

Pedro Fernando de Oliveira – Boa tarde a todos e todas. Eu sou o Pedro, historiador, formado pela UFRJ. Gostaria de cumprimentar a professora Lucia e a professora Carmen. Aproveitando que o debate está centrando a questão da importância da escola, de se repensar a escola, eu faço uma pergunta com a intenção de que a resposta tangencie tanto a parte educacional quanto a parte psicológica. Considerando que a escola é um lugar não somente de formação intelectual, mas também de formação da subjetividade do indivíduo que futuramente será um adulto, eu pergunto: o que esperar de uma sociedade que brevemente será formada por pessoas que foram escolarizadas pela tutoria doméstica? Se é que a gente pode utilizar a expressão escolarizada, neste caso. Tutoria doméstica seria uma expressão para falar sobre essa medida que pretende permitir que religiosos, pais e mães possam educar seus filhos dentro da sua própria casa, dentro de sua própria comunidade, sem precisar cumprir um dispositivo constitucional, que é a obrigatoriedade da escolarização na escola.

Adelaide Rezende – Eu sou Adelaide, faço doutorado aqui na Psicologia da UFRJ e estou pesquisando em uma escola na Favela da Maré. Eu fico pensando na constituição de uma relação de sociabilidade, de possibilidade de subjetivação e construção de conhecimento dentro da escola, já que essas foram as três coisas que vocês colocaram em relação à escola. Eu fico me perguntando como se trabalha com essa questão intergeracional numa relação que não seja autoritária, mas que, de alguma forma, passe por uma questão de autoridade. Como se lida com a questão do autoritarismo e da autoridade?

Cristiana Carneiro – Boa tarde, eu sou a Cristiana, da Faculdade de Educação e do Instituto de Psicologia da UFRJ. Eu queria fazer uma pergunta que tangencia um pouco o que todos eles perguntaram. O Wagner traz a questão do afeto, quer dizer, como se os jovens estivessem demandando alguma coisa a mais do que o conteúdo, como se eles já esperassem alguma coisa diferente do conteúdo. Mas isso acaba criando um lugar paradoxal para o professor na atualidade porque a ponta disso seria a educação fora da instituição escolar, por exemplo. Se esse fosse o mote central, então poderia acontecer em vários outros lugares. Então, como a gente pode pensar uma saída para essa tensão? Claro que o conteúdo é fundamental, mas ele está totalmente em outra localização a partir do momento em que os jovens sabem que, se eles vão para a internet, conseguem ter acesso ao conteúdo, às vezes de uma maneira muito eficiente. Então, minha questão gira em torno de como se colocar diante dessa tensão.

Lucia Rabello de Castro – É interessante como essa ideia de conteúdo aparece tanto na fala da Cristiana como na do Wagner. Eu me reporto ao que Carmen estava falando sobre o currículo. Qual herança deve ser passada? Qual conteúdo deve ser passado? Talvez a gente tenha uma visão bastante engessada sobre os conteúdos que a gente devia passar. Eu me reporto também à minha experiência pessoal como professora já há 40 anos, em que eu comecei a lecionar a mesma disciplina que eu dou até hoje, que antigamente se chamava Psicologia do Desenvolvimento e que hoje se chama Infância. Eu lembro que, nos primórdios, era um conteudismo, sim. Todas as teorias, era a teoria de Piaget, era teoria de Freud, e o aluno tinha que dominar aqueles conteúdos todos. Isso era importante para sua bagagem, para sua formação. Eu não deixo de pensar que isso seja importante também, mas, por outro lado, eu acho que a gente deixou de pensar isso como importante, como uma questão do tempo. Falando de experiências particulares, com filhos até, em que achamos que tem que ser aquele conteúdo, porque eles têm de passar de ano e aprender. Só que aquele conteúdo só vai fazer sentido para ele muito mais tarde, se fizer! E quando fizer sentido para ele muito mais tarde, vai ser quando ele vai aprender muito mais rápida e prazerosamente. Acho que todo professor hoje passa por esse drama. Não só no nível secundário, como também no nível universitário. Hoje, os alunos querem falar mais, eles acham que o conteúdo que você quer transmitir também tem que dar lugar para um ponto de vista deles, que a perspectiva deles tem que ser incluída. Mesmo que, em algum sentido, essas perspectivas sejam equivocadas, isso talvez tenha que encontrar algum lugar ali para poder ser acolhido, entendido e trabalhado. Eu acho que a gente está vivenciando um outro paradigma, que vai nos exigir outras disposições subjetivas nesse processo da transmissão.

Quando o Pedro traz essa questão sobre que sociedade é essa, eu acho que é uma sociedade em que, no mínimo, há uma destituição de qualquer projeto coletivo de nação, onde não existe lugar para a construção pública, coletiva do que seria, por exemplo, voltando à primeira pergunta, a questão de herança. Qual é a herança que nós temos, como brasileiros, que seja importante transmitir a outra geração? Isso não é uma decisão individual. É uma decisão coletiva, pública e política também. Então, a gente só pode esperar desastre e prejuízo quando o que se tem para construir é algo do âmbito do umbigo de determinadas elites. Porque eu não acho que, em termos de uma política pública, todos têm condição de arcar com esse tipo de projeto individual (a tutoria doméstica). É claro que isso vai ser extremamente discriminatório e vai trazer imensos prejuízos para quem não tem possibilidades de arcar pessoalmente com esse projeto, de uma forma familiar e pessoal.

Carmen Teresa Gabriel – Talvez, precisemos desconstruir o significante conteúdo e repensar o que estamos chamando de afeto. Conteúdo é uma palavra maldita hoje no campo educacional, é impressionante! A luta da cultura escolar para se afirmar como um campo político, como um campo aberto às outras questões que a atravessavam, reduziu esse debate – eu vou ser simples, mas não necessariamente simplista – à tensão conteúdos versus valores. Isso para mim foi o maior tiro no pé que nós fizemos. Conteúdo, no meu entendimento, pode ser visto como um fluxo de cientificidade que participa da produção do conhecimento escolar. Conteúdo não é sinônimo de conhecimento escolar. Por exemplo, a Revolta da Chibata pode ser considerada um conteúdo, mas o conhecimento escolar, aquilo que o professor, quase como um mágico, como um alquimista, articula para ensinar a Revolta da Chibata, mobiliza muitos outros conhecimentos para chegar à formulação de uma Revolta da Chibata como objeto de ensino. O conteúdo é o que garante a relação com o conhecimento científico e eu defendo que a escola é o lugar onde a gente estabelece uma relação produtiva com esse tipo de conhecimento. Não é o único conhecimento, mas a escola não pode abrir mão disso. A escola tem um compromisso com a verdade, ou melhor, com regimes de verdade. Eu acho que essa é uma questão, mesmo hoje, no momento em que estamos discutindo, que não existe verdade absoluta e eu concordo. Mas os campos disciplinares têm os seus regimes de verdade, e acho que a gente não pode ensinar coisa errada na escola. A ciência tem as suas regras e alguns compromissos com esses regimes de verdade, que estão sempre em disputa pelo monopólio do campo científico. O conteúdo seria fruto dessas disputas, reelaboradas didaticamente.

Outra coisa que entra na alquimia produtora do conhecimento escolar é a dimensão do afeto, que não é o afeto entendido como o fato de o aluno gostar do professor. Isso é relativamente fácil. Não é disso que estamos falando, mas sim do afeto de ser afetado por aquele conteúdo. Você pode ter um professor brilhante que conheça à beça sobre regimes ditatoriais, por exemplo, que dá aulas brilhantes, que traz o conhecimento científico com tudo que oferece a pesquisa de ponta hoje, mas que não consegue afetar os alunos. Então, como podemos buscar isso nos processos pedagógicos? Há várias formas de se fazer isso. A arte, o cinema são uma forma de se fazer isso. Outra possibilidade seria trazer testemunhas que vivenciaram certos momentos, com suas falas, suas narrativas. Acho que isso é o mais difícil, afetar o aluno. Ele tem que se sentir afetado por aquilo que tem a ver com alguma coisa que o desestabilize da sua zona de conforto.

Sobre a autoridade, eu acho que a diferença entre autoridade e autoritarismo passa pelo respeito e a aposta no outro como um ser criativo. O não acreditar no outro, achar que todos estão já perdidos, isso não ajuda no que diz respeito a termos ou não autoridade. Porque a autoridade está ligada com a questão do cuidado, da solidariedade, do acreditar no outro, do apostar no outro e acreditar que todo mundo pode aprender. Então, é importante se pensar sobre o que é o conhecimento, essa matéria-prima. Não é somente o conteúdo, não são só valores, é uma alquimia mesmo, é uma bricolagem.

Por exemplo, eu estava fazendo a pesquisa de doutorado no momento em que as torres gêmeas caíram nos EUA. No dia seguinte, eu fui assistir a uma aula de história e a professora estava dando aula sobre Grécia Antiga, e estava todo mundo falando sobre esse desastre, sobre o ataque terrorista às torres gêmeas. Todo mundo só falava disso. A professora deixou todo mundo falar por uns 2 minutos e disse: “agora vamos partir para as coisas mais sérias e falar sobre a Grécia Antiga”. O que aconteceu com a sensibilidade desse professor de entender como poderia trazer esse acontecimento e até continuar no seu conteúdo? O que é cumprir um conteúdo? São muitas questões que nos mostram que a formação da dimensão pedagógica do conhecimento é fundamental nesse sentido. Eu não acredito que basta dominar um conteúdo para ser um bom professor na educação básica, nem para ser bom professor na universidade. Você pode ser um excelente matemático, você pode ser um excelente historiador, mas se você não sabe o que fazer com as demandas daqueles sujeitos de desejo e de conhecimento e como você articula todos esses saberes, você não consegue ficar na profissão, e tem gente que não está conseguindo ficar. É preciso, pois, pensar que não podemos abrir mão do conteúdo, de pensar o que é o conteúdo e que conteúdo importa ensinar.

Eu estou com um aluno de doutorado discutindo essa tal de homeschooling. Esta não é uma questão de ser de direita, nem de esquerda, isso é o fim de qualquer projeto possível de Nação. Não é à toa que a escola é inventada justamente para consolidar os estados nacionais, com o que tem de bom e pior. Mas abrir mão desse espaço e achar que a escola pode ser do domínio privado reforça as desigualdades. A gente tem que lutar muito para defender a escola pública! Isso não tem sentido! Isso tudo está vindo como um pacote de maldades contra tudo o que diz respeito ao conhecimento, à intelectualidade, à escola e à universidade. Por exemplo, a gente acabou de saber que as bolsas de mestrado e doutorado foram cortadas pela Capes. Quer dizer, ocorre o estrangulamento da universidade. E o que é uma universidade? É um espaço para construir um pensamento crítico. Esses ataques vêm justamente nesse domínio do conhecimento, não é à toa e não é por acaso.

Infelizmente, não há receitas, mas há apostas. Aposta é olhar para o outro e dizer: eu acredito em você, vamos juntos nessa travessia! Eu olho para o meu aluno e digo: vamos juntos! Vamos atravessar juntos! Vamos aprender e ensinar juntos! Eu aprendo sempre o tempo todo, desde termos novos até formas de agir no mundo. Eu acho que é importante essa abertura de não acharmos que estamos prontos e que apenas nós somos capazes de ensinar e que o aluno será aquele que irá receber um conhecimento pronto e definitivo. É esse paradigma que nós temos que mudar! O Rancière fala do mestre como aquele que faz a passagem. Eu acho bonita essa imagem, no sentido de que o professor é aquele que vai acompanhar na passagem, talvez do mundo dos jovens para o mundo dos adultos, do espaço privado ao espaço público.

Juliana Siqueira de Lara – Eu fiquei particularmente empolgada com a sua fala final e com todo o nosso debate. E fiquei pensando um pouco no significante autoritarismo que a Adelaide trouxe e depois sobre a autoridade. Ouvindo a sua fala, me veio o significante alteridade. Me parece que a palavra alteridade traz uma maior potencialidade de poder falar no que diz respeito às gerações e ao reconhecimento do outro. Soma-se a isso a possibilidade de que jovens, crianças, adultos e velhos possam conseguir endereçar uns aos outros, na escola, na família, na universidade.

Lucia Rabello de Castro – Eu queria voltar à questão levantada pelo Wagner, do que ele chama de afetos e que coloca numa certa oposição em relação aos conteúdos. Quando você fez a pergunta, você estava se focando na questão da demanda dos jovens em relação aos afetos, numa demanda de afeto pelos jovens, dentro desse processo de transmissão. Eu fico pensando, por outro lado, na questão dos professores e também dos alunos, muito sob a perspectiva do prazer, que não está dissociada da questão do conhecimento. Pelo contrário, o desejo de saber tem que estar imbuído de um desfrute que você antecipa, de alguma coisa da ordem do prazer.

Quando Wagner coloca essa questão, eu fico pensando que talvez exista aí uma diferença entre gerações. Antes, talvez, os alunos já vinham muito imbuídos por uma socialização prévia, de uma expectativa de que, para crescer, eles teriam que estudar. Havia identificações já meio programadas e mais tácitas com a figura do adulto e que, para ser adulto, você teria que investir e se preparar. Hoje, isso está completamente em curto-circuito. Eu escuto muito a sua pergunta no sentido de como o professor vai poder ajudar o aluno na travessia do conhecimento quando não há nada disso que anteriormente a gente pensou, seja o prazer de estudar como já inerente ao aluno, seja o prazer de conhecer. Eu acho que são muitos desafios: resgatar esse prazer e, por outro lado, fazer com que o professor tenha prazer de estar ali e tenha também identificação com todos aqueles alunos. A pergunta seria: será que esses alunos e esse professor – que vem de um outro extrato socioeconômico, de outra origem – se identificam? Será que o professor aposta em todos esses alunos no sentido de ter prazer de estar com eles, de ter vontade de fazer com que eles possam usá-lo para fazer essa travessia nessa descoberta de conhecer coisas que não sabem? Eu acho que isso leva tempo na escola, porque quando você está muito atolado e tem que cumprir um programa, talvez você tenha menos tempo de trabalhar isso que você está chamando de questão afetiva.

Carmen Teresa Gabriel – Eu acho que o desafio maior é como nós justamente criamos esse laço de paixão positiva, numa relação positiva com o aprender. Há uma área da filosofia que está vindo discutir com a educação, dizendo justamente isso: por que não pensar justamente essa escola como um tempo livre? Ou seja, um tempo em que a relação com o conhecimento não é interessada. Não estudamos só para entrar no mercado de trabalho, para ganhar pontos etc. Uma lógica que ainda está muito presente é sobre o cumprimento do programa. Essa talvez seja uma lógica pedagógica que se tornou hegemônica por muito tempo, mas nós estamos em um momento de desconstruir isso também, isso de querermos controlar a aprendizagem. Quem disse que todo mundo tem que cumprir o programa? A figura do professor que cumpre completamente o programa é um mito que foi inventado. Então, eu acho que tem muitas desconstruções que estão começando a ser feitas.

Juliana Siqueira de Lara – Nesse sentido da dificuldade do cumprimento do programa, do desejo de controle da aprendizagem e pensando nessa insuficiência institucional da escola, da universidade e das relações entre jovens e adultos, talvez devêssemos apostar numa insuficiência já dada de saída aos sujeitos. Estou falando no valor positivo das palavras fragilidade, insuficiência e inacabamento. Talvez, seja um dos motivos pelos quais a universidade esteja sofrendo com ataques e tantos cortes. Porque a fragilidade que ela aparenta diz justamente o contrário, da potência desse espaço e de todo o trabalho de laço que se proporciona aqui dentro.

Ana Paula Pedro – Puxando um pouco o que a professora Carmen trouxe sobre o conceito de comum e sobre a provocação que a professora Lucia fez a respeito de outros modelos de transmissão e o conceito de herança, de legado e tudo o que foi trazido sobre o papel da escola, vocês acham que é possível pensarmos no comum e no afeto como complementares e como outros possíveis modelos de transmissão?

Carmen Teresa Gabriel – É nisso que eu estou querendo apostar no sentido da construção desse comum. O comum não está dado, não é de uma comunidade de origem, como se fosse um pertencimento a algo que já existe. É o deslocamento do comum para uma perspectiva de um princípio político de busca da co-construção, da co-produção de sentido, de um coletivo. Eu acredito que esse seja o caminho possível, embora tão difícil, porque o movimento é quase contra a maré. E quem vai decidir esse comum? Não se pode ter um grupo com interesses particulares que vai decidir sozinho sobre esse comum, mas é algo que diz respeito à produção e à gestão coletiva, em todos os aspectos, em todas as escalas: para pensar o currículo, o projeto pedagógico da escola, a universidade. O comum é estar juntos para construir e fazer juntos. É um princípio político que eu acho potente. Eu acho que a ocupação da escola é um exemplo de um comum. Nas escolas ocupadas, havia professores, alunos e pais de alunos, todos construindo aquele cotidiano, dizendo: “essa escola é nossa”. É essa ideia do comum que eu estou falando. Não é um comum que se reduz ao sinônimo de público, entendido, por sua vez, em oposição ao privado, mas o comum como uma ação de se colocar juntos na posição de produzir as regras de uso de algo instituído como coletivo.

Lucia Rabello de Castro – Eu concordo totalmente com a Carmen. Só que eu também penso que vai ser um processo que exige grande transformação subjetiva. E já que nós estamos falando das questões intergeracionais, eu acho que isso se dá tanto por parte dos adultos, que precisam assumir a sua fragilidade, a sua incompletude e o seu inacabamento, como também por parte dos jovens, no sentido dessa reivindicação acusatória, de que talvez os adultos tenham de estar sempre no lugar de provê-los em tudo, e que eles não podem assumir nada. Isso exige certo deslocamento dos jovens enquanto aqueles que querem ser protegidos, desobrigados e desresponsabilizados. Acho que vai exigir grandes deslocamentos subjetivos no sentido de se fazer um outro investimento, porque buscar esse comum é uma busca ativa de ações. Esse comum só vai poder emergir a partir das ações coletivas, e construir o coletivo é sempre muito difícil. É difícil ir além da divergência para construir um coletivo onde a gente se reconhece, sim, mas muito mal. Já dizia Freud que, na identificação coletiva, é onde você mal se reconhece. Mas você tem de se reconhecer ali porque é a convivência coletiva, é aquilo que está além das suas idiossincrasias e do que você, como indivíduo, gostaria que fosse. É um processo muito longo e que a escola também vai ter de fazer. Isso tudo seria uma bela aposta para se pensar em um outro tipo de gestão, um outro tipo de estar junto na escola e de construção do que vai ser esse projeto político pedagógico da escola.

Juliana Siqueira de Lara – Eu gostaria de agradecer muito a presença da professora Carmen, da professora Lucia e de todos aqui presentes.

 

 

Data de recebimento: 08/05/2019
Data de aceite: 28/06/2019

 

 

* A versão audiovisual da mesa está disponível no canal DESidades, no Youtube: https://youtu.be/R1Zk5MLGNwk

 

 

I Carmen Teresa Gabriel: Professora Titular de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Atua nas áreas de Currículo e de Ensino de História na graduação (Curso de Pedagogia e de Licenciatura de História da UFRJ), no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFRJ) e no Programa de Pós-graduação em Ensino de História (PROFHistória/UFRJ). E-mail: carmenteresagabriel@gmail.com

II Lucia Rabello de Castro: Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Pesquisadora Sênior do CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Brasil. Editora Chefe do periódico DESidades – Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude. E-mail: lrcastro@infolink.com.br

III Juliana Siqueira de Lara: Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Mestra em Psicologia pelo mesmo Programa e graduada em Psicologia pela mesma instituição. Integra o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC/UFRJ). Atua como Editora Assistente no periódico DESidades - Revista Eletrônica de Divulgação Científica da Infância e Juventude. E-mail: j.siq.lara@gmail.com

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