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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol v.57 n.127 São Paulo dez. 2007

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

 

Laboratório de estudos da personalidade: é possível um “labor-oratório” numa universidade em pleno século 21?

 

Laboratory of personality studies: is it possible a “labor-oratory” in a university at the XXI century?

 

 

Tânia Pessoa de Lima; Laura Villares de Freitas

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O artigo visa a apresentar e discutir, além de procurar ampliar, a concepção de laboratório científico na universidade a partir da Psicologia Analítica de Jung. Para tanto, revela a trajetória das práticas do Laboratório de Estudos da Personalidade, apresenta um trabalho em equipe que partiu da elaboração de um pôster e inicia um estudo ao passar, brevemente, pela história do surgimento desses locais de pesquisa. Faz um paralelo entre o desenvolvimento da consciência individual e o desenvolvimento da concepção de laboratório. Conclui que é possível encontrar semelhanças entre as antigas concepções sobre o trabalho nos laboratórios, incluindo seus princípios norteadores e idéias que poderão vir a ser os futuros parâmetros orientadores da prática e da inserção dos laboratórios no seio da universidade.

Palavras-Chave: Psicologia Analítica de Jung, Laboratório, Trabalho grupal, Alquimia, Labor-oratório, Universidade.


ABSTRACT

This article aims to present, discuss, and also expand, the conception of a scientific laboratory at the university, into the Jungian Analytical Psychology perspective. To do so, it narrates briefly the history of the Laboratory of Personality Studies, presents a group work initiated by the collaborative production of a scientific poster and a research about the history of the laboratories. A parallel is established between the development of individual consciousness and the development of the conception of laboratories. As a conclusion, the article points similarities between older conceptions of laboratories and what may become the future conceptions and guiding principles of its activity, as well as its destination and development at the university.

Keywords: Jung’s Analytical Psychology, Laboratory, Group work, Alchemy, Labor-oratory, University.


 

 

O presente artigo pretende discutir a concepção de laboratório científico na universidade, a partir da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Questiona-se a limitação da concepção corrente de laboratório, que o considera apenas um local onde se exercem pesquisas controladas, e amplia-se o conceito.

Para fazer isso, consideramos nossa prática dentro de um laboratório e a constante recondução das atividades à sua finalidade, ao seu propósito. Neste percurso, procuramos fazer com o laboratório o que fazemos a partir dele nas pesquisas, ou seja, propusemos usar o método da Psicologia Analítica, sua visão de mundo e de ser humano, para compreender os trabalhos, métodos e a dinâmica de funcionamento do laboratório. Começamos com o ato de contar nossa história, para então buscar paralelos na história da origem dos laboratórios, ampliando o entendimento sobre o conceito deste local na ciência.

Esse percurso nos levou também a perceber a relevância do tema, já que tem havido uma proliferação de laboratórios nas universidades, sobretudo, mais recentemente, na área de Ciências Humanas. Entendemos que a discussão sobre finalidades, possibilidades e limites desse local científico tornou-se um tema importante na atualidade.

A Psicologia Analítica é o referencial teórico por excelência para esse tipo de discussão, já que foi constituída justamente a partir do paralelo histórico que seu fundador, Carl Gustav Jung, encontrou entre suas finalidades, os conteúdos da psique de seus pacientes e os conteúdos da alquimia, que era praticada nos primeiros séculos e nos primeiros laboratórios. Tal paralelo sustentou e deu possibilidade de desenvolvimento para as descobertas que ele fez durante todo o trajeto de edificação da Psicologia Analítica.

Assim como o alquimista procurava, a partir da matéria bruta, chegar ao ouro, o metal mais nobre, considerado a essência de toda matéria, a psique estaria participando, durante toda sua vida, de uma transformação, coordenada pelo seu centro - o self - e imbuída de um propósito: manifestar e lapidar, como consciência, as singularidades de cada pessoa. Caminhar, de maneira própria e singular, tanto para uma maior completude, quanto contribuir para a composição da totalidade do ambiente é o objetivo do trabalho alquímico. O que existe de forma indiscriminada na natureza sofre processos de separação, reunião, cozimento, destilação, esfriamento, novas separações e uniões, até restar um material incorruptível e verdadeiro, o “nosso ouro”, ou seja, a psique em estado de “ouro”. Tal transformação pode ser observada nos laboratórios do alquimista e na psique individual. Essa transformação é o que, resumidamente, pode ser entendido por processo de individuação. Dar-se-á também no laboratório da universidade atual?

A premissa básica do referencial da Psicologia Analítica na presente proposta também se finca justamente na coerência de tal atitude, já que atualmente se reúnem pesquisadores com esse referencial no Laboratório de Estudos da Personalidade (LEP). O produto ou fruto dessa atitude passa a ser o exercício de aproveitar o potencial, para além do tratamento clínico individual, da Psicologia Analítica. Nesse exercício, o leitor poderá inicialmente estranhar expressões como individuação do laboratório ou mesmo individuação da ciência. Procuramos, com elas, mostrar que existem recursos na Psicologia Analítica para a compreensão de processos que ocorrem no nível coletivo, análogos a conceitos que originalmente se referiam apenas à compreensão do indivíduo.

 

CONTANDO NOSSA PRÓPRIA HISTÓRIA

Nossa história começa a ser contada a partir do pôster Laboratório de Estudos da Personalidade apresentado na II International Academic Conference of Analytical Psychology and Jungian Studies, no Texas, e no evento que organizamos a seguir, em São Paulo, o Encontro de Psicologia Junguiana, em outubro de 2005.

O pôster, denominado Laboratory of Personality Studies, é fruto de um trabalho de elaboração coletiva1, um processo de criação que durou alguns meses. Nosso desafio era encontrar uma maneira de, num formato, sobretudo gráfico, compartilhar o que vínhamos realizando no âmbito do LEP.

Nas reuniões preparatórias do pôster, preocupávamo-nos com conteúdo e forma, numa alternância muitas vezes eliciadora de fortes ansiedades quanto ao prazo e à profusão de idéias que emergiam entre os componentes da equipe. Muitos ensaios de como fazê-las ganhar forma e articulação se deram no trabalho em grupo.

Acabamos optando por uma imagem da natureza, em que ao redor de um lago coexistem quatro árvores, cada uma representando um de nossos focos de atenção: o ensino, que o LEP apóia de diferentes maneiras, é apresentado em três árvores próximas, em cujas copas constam respectivamente as disciplinas de graduação, de pós-graduação e os cursos de extensão cultural. Como frutos de uma única árvore maior, os títulos e sínteses dos projetos de pesquisa que têm sido desenvolvidos no âmbito do LEP. Um pequeno texto nas águas do lago traz, de maneira sumária, os objetivos do laboratório:

O LEP, o Laboratório de Estudos da Personalidade, tem como objetivos realizar pesquisas e estudos, além de aplicações práticas na área de Psicologia da personalidade. Enfatiza idéias e práticas relacionadas à Psicologia Analítica de Jung, dentro da linha de pesquisa “Saúde e Desenvolvimento Humano”, incluindo o uso de recursos não-verbais. O LEP busca também uma fundamentação teórica para o trabalho com grupos em diferentes contextos, num diálogo constante com a realidade social brasileira.

O pôster (Figura 1) tem como moldura, ou bainha, pequenas fotos que remetem aos conteúdos das árvores. O uso de imagens visuais, aliás, foi um dos pontos de consenso absoluto no grupo. O não-verbal caracteriza boa parte do trabalho no LEP, uma vez que, desde sua fundação, o corpo tem sido intensamente considerado, assim como as produções plásticas, o movimento, a sonoridade, a palavra nascente, a poesia, a dança, as máscaras.

 

 

Figura 1. Pôster do Laboratório de Estudos da Personalidade

O desafio que se seguiu foi, a partir do pôster, conceber o presente artigo. Inicialmente, nos vimos às voltas com uma tarefa de “tradução”: como dizer o que está no pôster num texto cursivo em um artigo? Logo percebemos também que o discurso escrito abre, com ênfase, a possibilidade de relatar e narrar percursos e inquietações - muito além da tradução, havia o apelo a um trabalho de retomada, tanto do pôster e do que nele está, quanto da história e dos caminhos trilhados pelo LEP. E, como se não bastasse, o formato de texto nos permitiu compartilhar também questões básicas que permeiam tudo o que acontece no LEP, relativas aos fios norteadores e aos critérios para escolher, planejar e levar a cabo cada uma das atividades que assumimos. São reflexões, que ora são o foco de nossas discussões, ora permanecem como pano de fundo, ou, ainda, emergem no cotidiano do laboratório. Dizem respeito tanto ao embasamento teórico de nossa prática quanto à consideração do contexto específico em que nos encontramos.

 

A ORIGEM DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA PERSONALIDADE

O LEP, foco do presente trabalho, encontra-se na Universidade de São Paulo, especificamente no Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, no Instituto de Psicologia.

Em meados da década de 80, o professor Norberto Abreu e Silva Neto, então responsável pelo setor de Psicologia da Personalidade dentro desse Departamento, fundou o Laboratório de Psicologia do Movimento, que visava a promover estudos e atividades concernentes à Psicologia da personalidade, não tomada como um mero constructo ou uma(s) teoria(s) fixa(s), mas enfatizando seu aspecto de “movimento”, o qual põe em foco a consideração de aportes corporais, teóricos e práticos, técnicos e artísticos e a contextualiza necessariamente num tempo e espaço. Esse laboratório foi um fértil e criativo campo para pesquisas, cursos de extensão e apresentações que abrangeram, entre outros, a dança, as propostas de Rudolf Laban, o teatro e a eutonia2. Nele também se iniciaram no Instituto de Psicologia as pesquisas sobre a persona e as máscaras, com fundamentação junguiana3, trabalhos de cantoterapia, relaxamento e cursos ligados às propostas de Pëtho Sandor4, assim como grupos de prática de t´ai chi e método feldenkrais5.

Um pouco depois de o professor Norberto aposentar-se de seu trabalho na USP, em meados da década de 90, houve no departamento uma reestruturação dos serviços e laboratórios, que resultou na nova denominação Laboratório de Estudos da Personalidade para o até então Laboratório de Psicologia do Movimento, expressando uma intenção de ampliação de seus objetivos. Mesmo assim, o LEP nunca deixou de se ocupar com o aspecto a que se referia a Psicologia do movimento, que o nutre desde a fundação, e permaneceram nele também trabalhos diretamente ligados ao relaxamento, ao t’ai chi e à eutonia.

Foi ministrado também o curso de difusão cultural Jung e a elaboração simbólica: mitos, contos e recursos expressivos 6, com oito aulas de duração, em quatro semestres consecutivos.

Não obstante os amplos fundamentos embasadores das atividades do LEP, a ênfase tem-se dado atualmente, sobretudo na Psicologia Analítica de Jung, e é essa a vertente que abordamos no presente artigo. Além do interesse e da especialização nessa área da Doutora Laura V. de Freitas, que o coordena, seu início de docência e orientação em pós-graduação com foco principal na Psicologia junguiana, a crescente possibilidade de articulação com outras instituições e profissionais, que trabalham com o mesmo embasamento, e a chegada da psicóloga Tânia P. de Lima, também com especialização nessa área e contratada para uma dedicação integral ao LEP, foram os principais fatores que permitem que atualmente o LEP seja um dos locais onde se exerce e se pesquisa a Psicologia Analítica em âmbito universitário no Brasil. É esta dimensão que está presente no pôster.

 

CHEGANDO À ATUALIDADE

Têm sido desenvolvidos no LEP pesquisas e trabalhos grupais com a utilização de recursos expressivos não-verbais, em diferentes contextos, visando o desenvolvimento da personalidade. São focalizadas questões da imaginação ativa, dos mitos e contos e de recursos corporais. Recorremos a estudos interdisciplinares e a trabalhos vivenciais, algumas vezes envolvendo grupos de confecção de máscaras e personagens. Interessa-nos a máscara nas artes e na mitologia, em especial a latino-americana. Buscamos o embasamento e o desenvolvimento de uma metodologia de trabalho com pequenos grupos que favoreça a exploração do potencial criativo da persona, considerada tanto em seus aspectos individuais quanto culturais.

Mais recentemente, procuramos também maneiras de promover um aprofundamento nas questões da Psicologia da Educação e da formação de professores, embasadas nas idéias de Jung e nas propostas de Pëtho Sandor, além de conduzirmos grupos de vivência e pesquisa em danças circulares dos povos.

Atualmente, o LEP apóia as seguintes disciplinas do curso de graduação em Psicologia na USP: Psicologia da Personalidade &– Fundamentos, A Psicologia Analítica de Carl G. Jung, Energia Psíquica e Criatividade na Psicologia de Jung e Prática de Pesquisa em Psicologia. Na pós-graduação, tem contado com a colaboração do LEP a disciplina Psicologia Analítica de Jung e Grupos Vivenciais: Subsídios para a Pesquisa em Saúde e Educação e, mais recentemente, A Psicologia Analítica de Jung na Atualidade: Alguns Temas para Reflexão.

No âmbito de atividades de cultura e extensão, o LEP desenvolve os seguintes projetos: Do Gesto ao Verbo: Expressão do Sensível no Meio Universitário, Máscaras e Grupos Vivenciais, Jung e a Educação e A Psicologia de Jung em Contextos Diversos, que se ramificam em pesquisas, apresentações em eventos, coordenação de cursos de difusão cultural e publicações.

O LEP conta com a colaboração de estudantes de graduação e de pós-graduação para o desenvolvimento de suas atividades. Um de seus objetivos é constituir-se num local de referência para os alunos que desejem continuar os estudos junguianos, desenvolver pesquisas nesse referencial e participar de um grupo de aprofundamento e aplicação de tais princípios.

Enquanto laboratório científico, o LEP visa a ser um espaço destinado ao ensino, à produção de estudos, pesquisas e tecnologias nas áreas temáticas da Psicologia do movimento e da Psicologia Analítica, a cargo de pesquisadores que, atuando de forma coletiva e articulada, buscam manter comunicação com redes nacionais e internacionais de intercâmbio científico na área, além de desenvolver uma política consistente de divulgação através de cursos, seminários, debates, publicações, etc.

O LEP também se dedica à prestação de serviços a partir desse referencial, ao mesmo tempo em que procura articulá-los com estudos relativos à saúde e os processos de desenvolvimento da intersubjetividade, da afetividade e da linguagem. Busca embasar uma metodologia de trabalhos com grupos em diferentes contextos vivenciais tendo em vista o desenvolvimento da personalidade e o favorecimento do processo de individuação.

No âmbito da graduação, foram desenvolvidos os seguintes projetos de pesquisa: A religião e a sombra, Contribuições da Psicologia Analítica para a formação de atores, A dança como facilitadora da relação ego-self e O processo de individuação é considerado pelos profissionais das áreas de recursos humanos?

No âmbito da pós-graduação o LEP tem apoiado os seguintes projetos:

a) A identidade migrante: reflexões sobre o processo de individuação relacionado ao espaço, à migração e à comunidade, Dissertação de Mestrado de André Mendes (2005). É um trabalho que narra a atividade de pesquisa de campo realizado na modalidade de observação participante junto à Pastoral dos Migrantes da Comunidade Nossa Senhora das Graças, localizada no Jardim Elba, bairro periférico da Zona Leste da cidade de São Paulo. Empregando os dados de diários de campo e apoiado no referencial da Psicologia Analítica, o pesquisador tece reflexões sobre a relação entre o processo de individuação e as experiências psicológicas do espaço, da migração e da comunidade. Essas experiências foram concebidas de forma não-literal e analisadas a partir do emprego da linguagem metafórica, entendida como a retórica básica da psique e como campo específico da Psicologia. Os resultados obtidos apontam para a íntima relação entre as ocorrências de campo e a dinâmica psicológica, relativizando a divisão entre mundo externo e mundo interno, e alternativamente propõem que a atividade psíquica se dá no encontro concreto no campo da alma, formado pela relação entre o indivíduo e o espaço que ocupa; adicionalmente, sugerem que a individuação está apoiada na possibilidade de acolhimento, experimentação e constituição de uma identidade submetida a processos recorrentes de construção, desconstrução e reconstrução.

b) Juventude negro-descendente e a cultura hip hop em São Paulo, a partir da Psicologia Analítica, Dissertação de Mestrado de Guilherme Scandiucci (2005). Trata-se de um estudo da Psicologia Analítica de Jung aplicada a um contexto local: o Brasil e, mais especificamente, à cidade de São Paulo. Aliada aos pós-junguianos, a pesquisa procura referências externas ao campo da Psicologia, como a Sociologia, a Antropologia e a História, para percorrer o fenômeno chamado movimento ou cultura hip hop. Este atinge parte considerável da população jovem de São Paulo, sobretudo a que mais sofre com o processo de exclusão social, isto é: a negrodescendente das periferias. Os materiais coletados foram entrevistas, depoimentos, observações próprias, além de letras da vertente musical rap. A análise realizada concluiu que o hip hop tem grande força de expressão simbólica na construção de uma persona criativa dessa população, conferindo-lhe a possibilidade de assumir uma identidade mais próxima de sua realidade. Tal movimento é também capaz de exercer influência sobre a autonomia dos complexos da sociedade paulistana, sobretudo no que tange à questão do racismo e do lugar ocupado pelos negro-descendentes habitantes da periferia.

c) O mito arturiano e o processo de individuação: caminhos para uma educação de sensibilidade na relação ensino-aprendizagem de Inglês, de Elenice Giosa (pesquisa em andamento). O propósito dessa pesquisa é recuperar a sensibilidade no processo de ensino-aprendizagem de inglês como língua estrangeira, por meio de uma jornada mítica. Sensibilidade é aqui entendida como o modo com que organizamos nosso campo perceptivo de acordo com as experiências individuais, juntamente com as provocações do meio social. Na educação, isso significa um caminho à frente, nos estudos junguianos, em trazer de volta a poesia da palavra, por meio da função mediadora do símbolo, por meio do mito. Ao nos reconhecermos como protagonistas de uma jornada mítica, podemos explorar nossa sensibilidade e o processo de aprendizagem da língua pode tornar-se mais significativo, mais prazeroso e mais sábio.

d) A capacidade de a imaginação catalisar o processo de individuação, de Iara L. Patarra (pesquisa em andamento). Esse projeto de pesquisa estuda a capacidade da imaginação como catalisadora do processo de individuação. Como o processo de individuação é um desenvolvimento humano que leva a um ser humano mais completo, mais inteiro e mais em contato com a própria alma, um dos caminhos desse desenvolvimento se dá a partir da imaginação, ou imagem em ação. Com esse pano de fundo, o projeto pretende estudar o tema tanto no próprio Jung, focalizando a individuação, o desenvolvimento humano e a imaginação, quanto nos pós-junguianos, tentando fazer uma ponte entre os desenvolvimentalistas, Fordham e Neumann, e o arquetípico Hillman. No primeiro grupo, há a participação da imagem no desenvolvimento psíquico, tanto infantil quanto adulto, e, no segundo, a importância da imagem. Assim, a hipótese da pesquisa é que existe uma participação da imaginação no desenvolvimento infantil, que posteriormente possibilita o resgate de energias psíquicas que auxiliam no processo de individuação.

e) Paternidade e subjetividade masculina em transformação: crise, crescimento e individuação. Uma abordagem junguiana, Dissertação de Mestrado de M. Beatriz V. B. de Almeida (2007). O objetivo desta pesquisa foi a partir do referencial junguiano, ampliar a compreensão de como está se dando a experiência de paternidade atualmente, com foco na subjetividade masculina: qual o impacto que a experiência de se tornar pai vem causando no processo de desenvolvimento do homem &– seu processo de individuação. Em busca de maior compreensão do significado atual da paternidade para os próprios homens na condição de pais, procurou-se observar como o arquétipo paterno está se constelando na sociedade atual, de acordo com os novos modos de sentir e de se comportar, tendo em vista uma atitude mais favorável à alteridade e às relações democráticas. A partir de uma contextualização histórico-social, reconstituiu-se um cenário marcado pelas reformulações nas concepções de masculino e feminino que vêm ocorrendo nas últimas décadas, e que interferem coletivamente nas identidades de gênero, portanto na subjetividade masculina, com desdobramentos nas expectativas que recaem sobre a figura do pai. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como principal instrumento a entrevista individual, com base em um roteiro de temas e questões abordados de forma semidirigida. A partir dos depoimentos, observa-se a representação e a vivência de paternidade em transformação através de manifestações da paternidade distintas do padrão patriarcal dominante, caracterizado pelo afastamento afetivo no comportamento masculino. Verificouse uma crescente expectativa por parte dos homens de maior participação na gravidez, parto e cuidados junto ao filho, acompanhada de envolvimento emocional expresso. Destacam-se na análise os temas do ‘desejo de ser pai’ e ‘modelos de pai’, que se articulam em torno da afetividade masculina e paterna em transformação. Constata-se a coexistência de múltiplas referências e a valorização dessa pluralidade expressa em comportamentos e valores, o que contrasta com antigos modelos até então tidos como hegemônicos. Trabalha-se com a hipótese de que a crise vivenciada nesse âmbito, em função da instabilidade gerada pelo período de transição que desorganiza tanto a estrutura emocional quanto as estruturas familiares, promove, a médio e longo prazo, crescimento tanto para o indivíduo como para a sociedade.

f) O cuidado do corpo, imaginação e desenvolvimento humano, Dissertação de Mestrado de Rinaldo Miorim (2006). A pesquisa teve por objetivo relacionar alguns conceitos fundamentais da Psicologia Analítica com as práticas corporais fundamentadas na Filosofia taoísta, que são divulgadas e praticadas em nosso meio, na forma de exercícios, ginásticas, recursos expressivos, práticas de meditação e métodos terapêuticos. Partiu do pressuposto que há disciplinas corporais e meditativas de ‘cultivo da energia’ &– como o qigong &– que se apóiam no princípio da recuperação e fortalecimento da saúde como um meio de atingir a longevidade e como uma proposta de integração com o Tao, e também que há disciplinas as quais, através da experiência das forças opostas complementares &– como o taiji &–, expressas no corpo como: a expansão e o recolhimento, a inspiração e a expiração, a atividade e o repouso, a força e a flexibilidade, o círculo e o centro. Jung, em alguns de seus textos, escreveu a respeito das Filosofias do Oriente e suas práticas corporais e meditativas, traduzindo sua simbologia como aspectos da psique e do seu desenvolvimento. Esse estudo partiu de tais observações e relacionou as práticas corporais da Filosofia taoísta com as terapias corporais e de sensibilização, buscando ampliar o conceito de saúde física e psíquica dentro de uma perspectiva psicossomática e, sobretudo, relacionar o método e a meta dos antigos filósofos com o conceito de processo de individuação.

g) Materialidade e imaginação. Intervenções de base imagético-apresentativa em grupos terapêutico-vivenciais à luz da Psicologia Analítica, Dissertação de Mestrado de Santina R. de Oliveira (2006). A pesquisa trata da inclusão e participação da materialidade no encontro terapêutico e suas relações com a transformação psíquica experimentada pelo paciente nesse processo. Esta questão é articulada em relação à consciência, numa tentativa de identificar os tipos de disponibilidade que a atitude consciente pode oferecer a diferentes tipos de materiais. O termo materialidade é entendido como a qualidade material de determinados elementos concretos, incluídos no setting como o barro, o tecido, o papel, etc, enquanto possibilidades de apresentação do que ainda se encontra em estado de fantasia ou intuição à psique, considerando-se que haveria uma possibilidade de desenvolver a subjetividade de acordo com a natureza da matéria e de seus elementos. Apoiada no conceito de imaginação material, proposto por Bachelard (1998), a idéia é de que diferentes materiais poderiam ser usados no processo terapêutico, enquanto aportes para o encontro da mão com a imaginação, a fim de permitir o casamento simbólico, entendido como uma experiência de encontro do paciente com a matéria e suas atribuições ou qualidades concretas. A materialidade, então, é compreendida como um atributo de um elemento ou objeto material que provoca a psique e convoca o corpo de diferentes maneiras, de acordo com a natureza da matéria incluída no encontro terapêutico. O conceito de individuação, entendido como um processo de diferenciação da consciência, que não se daria de forma natural (opus contra natura), como alertou Jung, mas seria fruto de esforço do ego em prol do alargamento do campo da consciência. Este conceito é usado na pesquisa como ponto de partida para propor a intervenção terapêutica de base imagético-apresentativa, considerando a inclusão e o reconhecimento da materialidade como participante ativa no processo. Nesse caso, o processo de individuação seria entendido como uma opus cum natura, no sentido de um processo vivido através das imagens apresentadas pela materialidade dos objetos.

h) Educando para a individuação: Formação de professores, em fase inicial de elaboração conduzido por Tânia P. de Lima. Trata-se de um projeto que concentra seus esforços na pesquisa das inter-relações entre duas áreas. Busca revelar a concepção que a Psicologia Analítica tem dos objetivos da educação, embutidos em sua teoria e sinalizados no modelo proposto de desenvolvimento e dos tipos psicológicos, bem como do processo de individuação. Procura responder à seguinte questão: Como educar a partir da visão de ser humano da Psicologia Analítica? Com essa resposta, o projeto almeja contribuir com os fundamentos da Psicologia Analítica aplicados à Educação, vindo a se constituir num trabalho voltado para professores do ensino fundamental e médio, inicialmente da rede pública de ensino. Visa estruturar o embasamento teórico e vivencial a fim de promover o trabalho de educar para a inteireza da personalidade.

i) Vivência dramática grupal: uma proposta para emergência e reconhecimento dos conteúdos da sombra sob o olhar da Psicologia Analítica, pesquisa em curso, conduzido por Marcia A. Iorio, tem por objetivo investigar as possibilidades de manifestação dos conteúdos da sombra através da utilização do recurso dramático em grupos vivenciais. Procura aprofundar e fundamentar, primeiramente o conceito de sombra desenvolvido por Jung. Posteriormente enfoca como estes conteúdos desconhecidos para o sujeito e para o grupo podem emergir, e serem reconhecidos através da utilização da dramatização em grupo. Para o entendimento do conceito de sombra e de como ela se manifesta, outros conceitos são desenvolvidos ao longo da pesquisa como função transcendente, si&–mesmo e elaboração simbólica. A elaboração simbólica proposta por Jung permite compreender como o drama, tomado como ação improvisada, pode ser uma experiência que nos aproxima dos conteúdos da sombra. O símbolo é um instrumento que realiza esta aproximação, ao colocar a disposição da consciência conteúdos que até então se encontravam distantes. O contexto dramático de improviso é um recurso que nos aproxima da abordagem simbólica de Jung, pois se caracteriza muito mais por um funcionamento calcado na intuição e na emoção do que na racionalidade. Ao dramatizar espontaneamente o sujeito é guiado muito mais pela sua ação física do que por sua razão, abrindo espaço para que símbolos sejam expressos. É precisamente neste momento que a sombra adquire força de expressão através dos símbolos constelados. Neste sentido, apoiada nas definições descritas, a pesquisa caminha para a aproximação da vivencia dramática e dos conteúdos da sombra, buscando desta forma a possibilidade de um funcionamento de alteridade.

j) A perspectiva estrutural-holográfica da realidade na Psicologia Analítica de C. G. Jung aplicada ao estudo institucional, é um estudo teórico conduzido por Luiz G. Vechi, que sistematiza a referida perspectiva contida na Psicologia Analítica e propõe por meio dela uma definição de instituição, bem como um modo de estudá-la, ilustrando essa articulação teórica no final da pesquisa mediante a leitura de discursos e de desenhos, os quais são considerados como símbolos de indivíduos de um serviço de reabilitação psicossocial pelo trabalho.

k) Corpo deficiente e individuação: A expressão do simbólico segundo a Psicologia Analítica, conduzido por Sandra R. Rodrigues, é um estudo que se propõe buscar elementos que possam compreender como a deficiência física adquirida pode ser integrada ao processo criativo de individuação de uma pessoa, mesmo que esta necessite alterar a rota e os projetos iniciais. Sabemos que a transformação ocorrida atinge todos os aspectos de seus sentidos. As marcas físicas, explícitas, pontuam modificações que ficarão permanentes na experiência pessoal, gerando inicialmente, um contato sombrio com o mundo e consigo mesmo. A não aceitação do acometimento que arrebata, inicialmente, qualquer possibilidade de continuidade desperta sentimentos negativos, que podem ser projetados em toda experiência externa. Neste sentido, presentifica-se a proposta de investigar como o advento da deficiência física pode ser vivenciado na jornada de individuação de pessoas cujos projetos, necessariamente, foram alterados após o mesmo. Remeteremos a reflexões teóricas de embasamento junguiano, utilizando conceitos que vão permear e expressar os princípios que norteiam sua prática clínica. Também será conceituado o papel do corpo deficiente como expressão simbólica da maneira de vivenciar o mundo. O método utilizado é o relato de histórias de vida, ouvidas em sessões psicoterápicas de pessoas, que já estiveram em tratamento institucional, trabalhando aspectos relacionados à sua reabilitação física.

 

UM LABORATÓRIO PARA A PSICOLOGIA ANALÍTICA E ATRAVÉS DELA

Esse é o percurso que o LEP vem desenvolvendo na universidade. O exercício da própria Psicologia Analítica nos torna sensíveis para procurar a história da origem dos laboratórios anteriores à instituição em que estamos inseridos, na busca dos fundamentos e do resgate de componentes ou possibilidades que possam ser considerados e que porventura deixaram de ser contemplados nesse trajeto, com vistas à continuidade da sua função no seio da universidade.

Historicamente, as pessoas que se aventuravam nos primórdios dos laboratórios vivenciavam o mundo como completamente animado e a matéria não era percebida como morta ou caótica, mas como matéria viva e coerentemente inter-relacionada. Esse tipo de consciência é a que enxerga relações entre todos os níveis de existência, animada e inanimada, espiritual e profana. É uma consciência de unus mundus, ou seja, que dá prioridade ao senso de totalidade. Tais pessoas eram os alquimistas.

Sem podermos entrar aqui mais detidamente na história da alquimia, sabemos que ela deu origem à química e que, nessa passagem, seu senso de totalidade cindiu-se, algo se perdeu. A ciência moderna, ao mesmo tempo em que nos deu mais liberdade com relação aos grilhões das superstições e dos dogmas, também nos possibilitou maior independência com relação à realidade, que pôde ser, a partir de então, observada, manipulada e dominada. Mas, simultaneamente, esse novo passo na história do desenvolvimento humano deslocou todo o pólo oposto ao da ciência racional e objetiva para o “inferno da subjetividade, tolerado no máximo como ornamento, ou rejeitado com desprezo como fantasma, ilusão, regressão, produto da imaginação” (Nicolescu, 1999, p.21).

Para compreender esse caminho histórico da alquimia podemos lançar mão de dois princípios da Psicologia Analítica de Jung usados para a elucidação de fenômenos individuais. Um deles afirma que a consciência, devido a sua limitação, desenvolve-se a partir de uma totalidade, identificando-se a cada vez com um pólo da mesma, para posteriormente fazer o trabalho de reintegração dos mesmos pólos opostos num nível de consciência maior que a inicial. Tal movimentação se dá em circunvoluções, algo como oitavas musicais, não de maneira linear, mas circular.

A essência do consciente é a diferenciação; para ampliar a consciência é preciso separar os opostos uns dos outros, e isto contra naturam. Na natureza, os opostos se buscam, ‘les extrêmes se touchent’ &– o mesmo se dando no inconsciente, sobretudo no arquétipo da unidade, no Si-mesmo... Mas com a manifestação do consciente começa a cisão, do mesmo modo que na Criação: toda tomada de consciência é um ato criador” (Jung, 1994, p.36).

O outro princípio diz que qualquer excesso da consciência em relação a um pólo provoca um movimento de enantiodromia, ou seja, de conversão no seu oposto, gerando, assim, um desenvolvimento pendular que tende para o equilíbrio, a partir da redução da ênfase atribuída a cada pólo, ou seja, basicamente da redução da unilateralidade da consciência.

Tanto o movimento de separação como o de conversão no oposto são tão mais intensos ou fora do controle quanto mais rígida estiver constituída a consciência. Eles são movimentos governados pelo self, o centro da personalidade total, que assim promove o processo de individuação, dirigindo-se para a completude.

Esses dois princípios se dão na história de desenvolvimento da consciência individual, mas podem também ser aproximados ao desenvolvimento dos laboratórios, devido à sua semelhança histórica. Os laboratórios da mesma maneira partiram de um senso de totalidade e se desenvolveram através da separação em dois pilares iniciais: o da química e o da subjetividade, com esta última condenada à exclusão do campo da ciência. Quanto ao movimento de virada no seu oposto, do retorno da subjetividade para os laboratórios, parece que ainda não se pode testemunhar, mas que se pode antever.

A existência histórica da separação desses pilares é indicadora do movimento de criação de consciência coletiva e, conseqüentemente, da tendência futura de possível reunião de seus opostos num nível mais elevado. Vislumbramos, assim, possíveis desenvolvimentos para os laboratórios, que indicam um interessante rumo, o da reintegração da subjetividade no seu ofício.

Considerando a atualidade, podemos conjeturar que os laboratórios inseridos nas universidades e que pretendem manter sua função de local para o desenvolvimento da ciência se depararão, mais cedo ou mais tarde, com o retorno do subjetivo para as suas “prateleiras de frascos e de substâncias”. Na prática, isto significa o desafio de valorizar também a linguagem simbólica, intuitiva e emocional no processo de construção do conhecimento, rompendo com a supremacia da razão; significa levar em conta, além do princípio de causalidade, o de sincronicidade.

A palavra laboratório pode ser desmembrada em labor (trabalho) e oratório (lugar de oração). Apresenta uma analogia com o setting analítico, onde há muito trabalho e também a ação do inconsciente. Por isso as qualidades exigidas tanto de um alquimista quanto de um analista, são, entre outras, paciência, humildade, perseverança, muita leitura e um “abrir de seu coração”.

No oratório nos reunimos nos momentos de aflição ou gratidão. O oratório é o espaço ideal para um contato pessoal, de acentuado caráter afetivo e da maior intimidade com a simbologia do Self. Os símbolos guardados no oratório do laboratório estariam à mão para proteger, ouvir segredos e testemunhar esse contato. Orar é exigir, implorar, pedir, rogar.

Percebemos alguma semelhança entre possibilidades atuais e as concepções dos alquimistas, os quais, em seus laboratórios na Idade Média, mantinham o labor e o oratório unidos, considerando muitos níveis de realidade, e inclusive a possibilidade de constatar mudanças ocorrendo simultaneamente na matéria manipulada e na pessoa do alquimista. Para ele, seu trabalho de solve et coagula, de separações e re-uniões alquímicas somente acontecia deo-concedente, isto é, se houvesse a permissão da divindade. A intervenção era diretamente sobre a matéria, mas a obra como um todo sofria toda sorte de influências e isso era considerado.

 

O LEP ALMEJANDO SER LOCAL DE LABOR E DE ORATÓRIO

Entendemos que tal origem dos laboratórios está bem próxima daquilo que, no LEP, torna-se coerente com sua abordagem, ou seja, com a Psicologia Analítica. A energia ou libido é nela entendida como sendo transmutada justamente a partir do confronto e da integração das polaridades.

Com esse intuito, no LEP, manipulamos a matéria-prima Psicologia Analítica a partir e através de nós e de nossos colaboradores, para ela e por intermédio dela. Por meio dessa matéria, para o seu desenvolvimento e o nosso, perguntamo-nos se no LEP temos condições e permissão para exercer suas polaridades inerentes, ou seja, o labor e o oratório &– as quais confirmam e, ao mesmo tempo, materializam a Psicologia Analítica e suas transformações no seio desse laboratório.

Trata-se de um esforço contínuo de poder ser labor e oratório, tendo que vestir muitas roupagens, as quais proporcionam o diálogo e a parceria com a universidade. Poderíamos, talvez, dizer que sua meta é tornar-se um LaborOratório, ou, mais correntemente chamado, um laboratório.

Com esse intuito procuramos exercer nesse espaço atividades congruentes com a visão de ser humano da Psicologia Analítica, ao mesmo tempo em que também refletimos sobre os princípios que norteiam o trabalho da universidade que objetiva “formar pessoas capacitadas ao exercício da investigação, do magistério e do exercício profissional, além de estender à sociedade seus serviços indissociáveis das atividades de ensino e pesquisa” (Portal da USP, 2006).

A Psicologia Analítica compreende o inconsciente como criativo, produtivo e, além do mais, impossível de ser descartado, oferecendo-nos sua presença e cooperação. É necessário, então, tê-lo considerado no laboratório. O desafio que se coloca está no espaço entre as necessidades, e na não cisão das demandas individuais, institucionais e sociais. Ou seja, nesse trajeto, a história do laboratório de que ora tratamos mostra suas tentativas para procurar conjugar as necessidades de seus componentes, as da estrutura que o abriga e as solicitações da realidade brasileira.

Em segundo lugar, mas não em plano inferior, o LEP se propõe a estar em processo, melhor dizendo, em processo de “individuação”, enquanto espaço de pesquisa que pretende assumir e desenvolver sua singularidade. Na prática, isto significa que estamos e queremos estar em movimento constante &– talvez não seja por mera coincidência que inicialmente seu nome era Laboratório de Psicologia do Movimento!

Será que, em analogia ao trabalho dos alquimistas, nas condições controladas e/ou protegidas do LEP investigamos a possibilidade de acelerar o que a natureza da Psicologia Analítica e nossa própria natureza produziria num tempo muito maior? Pretendemos trabalhar para colaborar com o processo de individuação da obra que não é concluída pelo seu criador, num referencial aberto, como entendemos a Psicologia Analítica, que aceita inclusões, clarificações, ampliações, reformulações.

Existe um lema alquímico que diz que a arte imita a natureza. Procuramos exercer uma arte no laboratório em que os “alquimistas” (a equipe, os pesquisadores, os estudantes) procuram trabalhar para auxiliar a natureza a terminar aquilo que ela não terminou por si só. Auxiliar a Psicologia Analítica a se desenvolver soa, e é, uma grande pretensão! Mas por que não? Considerá-la também se transformando, junto conosco, dentro do LaborOratório.

Por definição, laboratórios são lugares que têm condições controladas. Consideramos que as condições precisam ser mais protegidas, pela vivência do grupo, do que controladas. Assim, podemos conceber o LEP como um “vaso alquímico” no qual acontece a relação entre coordenação, equipe, pesquisadores e estudantes. Por que não ser o LEP um porto seguro, local de retorno após cada jornada, nas peripécias da instituição e do mundo fora do laboratório? Local para se compartilhar formas de pensar, sentir, intuir e perceber a prática e a pesquisa na Psicologia Analítica e também para desenvolver novas perspectivas. Como não precisar desse espaço de comunhão, de uma comum união que, nem por isso, é uma uniformização!

Um dos princípios norteadores do LEP é promover o amadurecimento nas vertentes de conhecimento, pesquisa e prática, no espaço protegido do laboratório. No LEP temos “fornos acesos cozinhando”. Cada forno é como um útero que é aquecido e cuidado: as pesquisas e práticas, a preparação de materiais pedagógicos, o ensino, as publicações, os eventos promovidos. Para cozinharmos, precisamos ter um relacionamento adequado com nossos inconscientes individuais, mas também com as demais pessoas do laboratório, facilitando o relacionamento entre nossos inconscientes. Tratar das condições adequadas para o cozimento precisa ser um dos princípios do LEP. Criamos um self grupal, que passa a caracterizar o LEP.

Estaríamos todos numa oração quando nos reunimos para compartilhar e discutir, por vezes com aflição, os rumos das pesquisas?

No laboratório faz sentido falar da busca de transformações, de passagens de um estado para outro. Consideramos que é isto que o diferencia dos locais destinados apenas a transmitir, especializar, atualizar ou formar profissionais numa determinada área ou referencial teórico.

Mas nossas transmutações também nos transmutam, a cada um e ao grupo. Será este outro princípio, o da constante mudança? Mudança dentro e fora do laboratório, dentro e fora de cada um de nós, na verdade sem separações rígidas entre externo e interno, onde sujeito e objeto, pesquisador e pesquisa, estão em absoluta relação. Poderíamos afirmar que um LaborOratório teria como outro de seus princípios o da relação?

Congruente com a proposta de um LaborOratório, no qual as polaridades labor e oratório não estão dissociadas, analogamente ao laboratório do alquimista, temos um espaço reservado para a linguagem imagética e simbólica, a linguagem que está a serviço de conexões que ultrapassam a mera vontade de ilustrar ou decorar, mas que falam por si e complementam o texto. Daí a existência das árvores no pôster e das imagens de cada “vaso alquímico” de pesquisa na margem do pôster! O LEP seria um LaborOratório quando tem como princípio acolher as imagens? Imagens que registram eventos da imaginação.

Para o alquimista, tais eventos

tinham lugar em um mundo que, embora distinto do mundo ordinário, era tão válido e real quanto este. A imaginação exercia um efeito real sobre a psique e até sobre a realidade física, além de ajudar na vivência direta do divino” (Raff, 2002, p.66).

No laboratório, que queremos tornar possível, o trabalho é justamente o jogo de opostos: espiritualizar o corpo e corporificar o espírito, outro lema alquímico. Espiritualizar é o mesmo que volatilizar o que é denso, literal, dogmático, separado. Mas, por outro lado, consideramos importante, também dar corpo às nossas imagens, aos nossos sonhos e às nossas pesquisas que, antes de prontas, se encontram cativas no laboratório.

O LEP, assim como o laboratório alquímico, teria um compromisso com transformações necessárias (sentidas, percebidas, intuídas, pensadas), ou seja, aquelas que nos ajudam frente às vicissitudes da vida, de nós mesmos e de nossas relações, apoiando a construção da vida em sociedade, em pleno século 21. Compromisso de retorno para essa sociedade do resultado do trabalho do laboratório, através da divulgação dos resultados, das reflexões, das tendências. A busca de “remédios” para a sociedade pelo processo espagírico, princípio do retorno.

Paracelso, cujo nome de batismo foi Theófhilo Bombastus Von Hoheinheim, nasceu em 1493 numa pequena cidade da Suíça, perto de Zurique, e foi o criador de um tipo de Medicina à qual deu o nome de Medicina Espagírica, que tinha sua fundamentação na alquimia. O termo grego espagírico remete a um processo de separação (espao) e de reunião ou integração (ageiros), com o mesmo significado da expressão, também alquímica, solve et coagula. É um processo de separação e integração para isolar a essência, o princípio ativo, o remédio na melhor pureza possível, que, desse modo, atingirá seu efeito como medicamento.

Assim como precisamos atualizar, colocar, na vida e em movimento, aquilo que transmutamos em nossa psique, como componentes do LEP buscamos deixar circular, multiplicar e reunir, ou seja, realizar as operações alquímicas de circulatio, multiplicatio e coniunctio do produto de nossas pesquisas e atividades e de nós mesmos, liberando-as em forma de extensão para a comunidade.

Foi dentro do princípio espagírico que o LEP realizou seu I Simpósio e co-coordenou7 o Encontro de Psicologia Junguiana, os pôsteres e pretende organizar seminários de pesquisa. Também seria espagírico a cuidadosa e amorosa relação com alunos e colaboradores. Ou, dito de outra forma, o trabalho que contagia por onde passa ou aquilo que toca.

 

REFLEXÕES FINAIS

Voltando à história dos laboratórios, começamos o presente texto nos referindo aos alquimistas no plural, porém vale lembrar que eles eram trabalhadores solitários, que tinham, no máximo um ou dois ajudantes. Pelo relato acima, é possível perceber que o LEP não pode ser considerado um local de trabalhadores solitários. Mas, conforme explica Jung (2002, p.179):

“O alquimista, por princípio, trabalha sozinho. Ele não cria escolas. Esta solidão rigorosa, juntamente com a preocupação de uma obra infinitamente obscura, basta para ativar o inconsciente,... para pôr em funcionamento a imaginatio e, através de seu poder imagístico, trazer à tona o que antes parecia não existir”.

Porém, conforme aqui consideramos, o trabalho do processo de individuação é, justamente, aquele de reintegração dos pólos opostos num nível de consciência maior que a inicial. Essa consciência maior que a inicial, no contexto do laboratório, se realiza no entendimento de que estamos no território do conhecimento formado no “conhecer junto”. Nesse território torna-se não só desafiador, como até mesmo impossível, lidar com o volume de informações que a ciência vem acumulando e com a rapidez da comunicação, de maneira solitária.

Temos ciência de que estamos nos referindo ao processo de desenvolvimento da ciência, ao fazer o paralelo com o processo de individuação. Procuramos extrair da Psicologia Analítica seu potencial maior, que vai além do tratamento de transtornos ou da psicoterapia. Portanto, não estamos questionando a importância do processo no indivíduo, que também pode ir além da busca de cura.

Concluindo, resta-nos a questão sobre qual o novo nível de consciência que a Ciência poderia obter, rumo à integração dos opostos, e que seja diferente de um retorno aos seus primórdios. Como estamos discutindo a concepção de laboratório na universidade e atentos às necessidades do século 21, arriscamos trazer como contribuição para o presente artigo o desenvolvimento da idéia de LaborOratório, não mais como local solitário do alquimista da Idade Média, mas grupal. Um local que reúne pessoas com o propósito de realizar a opus, trabalho que requer uma atitude orientada para o self e não somente para o ego.

Ampliando o que Edinger (1995) diz a respeito do encontro entre a personalidade do médico e a personalidade do paciente, as quais têm uma importância enorme no resultado do tratamento, conjeturamos que o encontro não apenas de duas personalidades, mas o encontro de várias personalidades, como no caso do laboratório atual, é semelhante à mistura de diferentes substâncias químicas: se for possível algum movimento, interação e combinação, as substâncias se transformam.

A universidade, como seu nome diz, tem como função promover e desenvolver todas as formas de conhecimento. A palavra universidade remete diretamente a universalidade, que por sua vez designa o que é comum, ecumênico. Ao ministrar o ensino superior, ela procura formar pessoas capacitadas ao exercício da investigação, do magistério e da prática profissional, além de estender à sociedade seus serviços indissociáveis das atividades de ensino e pesquisa.

No site da Universidade de São Paulo encontramos:

A USP foi criada com a finalidade de promover a pesquisa e o progresso da ciência; transmitir pelo ensino conhecimentos que enriqueçam ou desenvolvam o espírito e que sejam úteis à vida; e formar especialistas em todos os ramos da cultura e em todas as profissões de base científica ou artística. A tônica da instituição é ‘Vencerás pela ciência’. Está em seus objetivos desenvolver um ensino vivo, acompanhando as transformações na área do conhecimento e mantendo-se em permanente diálogo com a sociedade, numa produtiva integração entre o ensino, a pesquisa e a extensão” (Portal da USP, 2006).

Etimologicamente, a palavra conhecimento vem de cognoscere, sendo que o sentido de gnoscere é conhecimento, e o de co é junto. Estamos, portanto, no território do conhecer junto, do saber que se constrói de maneira solidária e complementar, para logo ser compartilhado e aplicado. E a conclusão a que chegamos é: é impossível nos mantermos sem labor-oratório, na universidade do século 21!

Esperamos ter trazido para este trabalho uma abordagem que amplia o conceito de laboratório, ao mesmo tempo em que questiona a limitação da concepção corrente de local onde se exercem pesquisas controladas ou de acordo, somente, com a ciência clássica, ao mostrar nossas tentativas, nossa prática e perguntas sobre a possibilidade de chegarmos a nos constituir num LaborOratório na universidade.

Trata-se da ‘longuíssima via’, que não é uma reta, mas uma linha que serpenteia, unindo os opostos à maneira do caduceu, senda cujos meandros labirínticos não nos poupam do terror. Nesta via ocorrem as experiências que se consideram de ‘difícil acesso’. Poderíamos dizer que elas são inacessíveis por serem dispendiosas, uma vez que exigem de nós o que mais tememos, isto é, a totalidade. Aliás, falamos constantemente sobre ela &– sua teorização é interminável -, mas a evitamos na vida real. Prefere-se geralmente cultivar a ‘Psicologia de compartimentos’, onde uma gaveta nada sabe sobre o que a outra contém (Jung, 1994, p.20).

Na possibilidade de que nosso intuito não tenha sido atingido, esperamos pelo menos ter aberto, no corpo desse artigo, nossa “gaveta” e ter convidado outros a fazer o mesmo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Recebido em 22/05/06
Revisto em 28/08/07
Aceito em 30/08/07

 

 

1 Os autores do pôster são: André Mendes (que também o diagramou eletronicamente), Elenice Giosa, Guilherme Scandiucci, Iara Lopes Patarra, Laura Villares de Freitas, M. Beatriz Vidigal B. de Almeida, Rinaldo Miorim, Santina Rodrigues de Oliveira e Tânia Pessoa de Lima.
2 Coordenadas por Norberto Abreu e Silva Neto.
3 Realizadas por Laura Villares de Freitas.
4 Realizados por Maria Adelina Rennó, com a colaboração de Marianne Ligeti.
5 Realizadas por Marina Pacheco Jordão, com a colaboração de Márcia Martins.
6 Realizado por Marina Halpern-Chalom e Laura Villares de Freitas.
7 Em parceria com Alberto Pereira Lima Filho, da Opus Psicologia e Educação.
Endereço para correspondência: Av. Prof. Mello Moraes, 1721. São Paulo - SP. CEP: 05508-900; Telefone: (11) 3091-4172; Fax: (11) 3813-8895; E-mail: lep@usp.br.

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