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Boletim de Psicologia
versão impressa ISSN 0006-5943
Bol. psicol v.58 n.128 São Paulo jun. 2008
ARTIGOS ORIGINAIS
A práxis clínica de um laboratório universitário como aconselhamento psicológico1
A university laboratory clinical praxis as counseling psychology
André Prado Nunes* I II; Henriette Tognetti Penha MoratoII
I Universidade Camilo Castelo Branco
II Universidade de São Paulo - Instituto de Psicologia - Laboratório de Estudos e Prática em Fenomenologia Existencial (LEFE)
RESUMO
Atenção Psicológica clínica em instituição, no campo do Aconselhamento Psicológico. O laboratório é apresentado a partir de depoimentos e entrevistas com a coordenadora do laboratório e alguns de seus integrantes. Nesse sentido, tal campo, apresentado a partir do laboratório universitário, se aproximou da vertente da Psicologia Social Clínica como possibilidade de escuta do sujeito na instituição, afastando-se de uma perspectiva institucional. Por outro lado, o laboratório também encontrou pertinência para suas reflexões em uma aproximação com o modo fenomenológico existencial, possibilitando a compreensão de um modo de subjetivação intimamente vinculado com os aspectos sociais, culturais e institucionais, além de uma temporalidade como ocorrência. Uma outra consideração possível é a conceitualização de uma atitude cartográfica como via para ações clínicas pertinentemente engendradas no contexto das instituições.
Palavras-chave: Plantão psicológico, Fenomenologia existencial, Psicossociologia.
ABSTRACT
This work investigates how a university laboratory may conduct Clinical Psychological Attention Projects in institutions in the field of Counseling Psychology. The laboratory is presented by the coordinator and some participants’ narratives, which presented a proximity to the Social Clinical Psychology by the possibility of listening to subjects in institutions. On the other hand, there are also resonances with the existential phenomenology view by the way it conducts theoretical reflection, revealing comprehension of the human subjectivizing modes related to temporalized social, cultural and institutional aspects. Another possible consideration is referred to a conceptualization of a cartographical attitude as a way to clinical actions pertinently engendered at institutional contexts.
Keywords: Psychological attention, Existential phenomenology, Counseling Psychology, Psycho-sociology.
INTRODUÇÃO
O presente artigo discute o modo como um laboratório universitário construiu e efetuou Projetos de Atenção Psicológica clínica em instituição, no campo do Aconselhamento Psicológico.
O Laboratório para Estudos e Prática em Psicologia Fenomenológica Existencial (LEFE) é um laboratório universitário que presta serviços no campo de Psicologia a instituições e organizações com atuação nas áreas de saúde e educação. Atualmente há projetos voltados à segurança pública e à justiça, sendo que o primeiro foi apresentado em dois Simpósios Internacionais de Iniciação Científica e agraciado com o título de Menção Honrosa. Em sua organização, ele conta com uma coordenadora, responsável pelo grupo de estudos, publicações, organização e participação em eventos, orientação de trabalhos e supervisão clínica da equipe de seniores, além de ser co-responsável por dois grupos nacionais de pesquisa.
A equipe de “seniores” instituiu-se a partir de um grupo de estudos entre a coordenadora e seus orientandos de doutorado, mestrado e iniciação científica, mais ou menos constante desde a criação do LEFE, mas consolidado em 2002. Daí o nome “seniores”: os mais antigos no que diz respeito à experiência em questão, cumplicimente pactuados a levar adiante essa proposta e colaborar para a formação de “juniores” da graduação, especialização e pós. Constituiu-se essa equipe como o primeiro grupo de multiplicadores formado pelo LEFE (Aun, 2005). Tal equipe de seniores é co-responsável pelo grupo de estudos e seus membros ocupam as funções de supervisores clínicos e supervisores de campo nos Projetos de Atenção Psicológica em Instituição. Cada projeto possui um supervisor clínico geral e há pelo menos um supervisor de campo em cada Projeto, que intervém no espaço do Plantão Psicológico.
A equipe de seniores trabalha com o estágio supervisionado da equipe de juniores, estudantes de graduação em Psicologia e de psicólogos formados sem experiência nos projetos. Esses alunos de graduação são, na sua maioria, contemplados com bolsastrabalho pelo COSEAS/USP, através de projetos do LEFE. Sistematicamente desde 2000, eles têm sido aprovados na seleção de projetos de toda a universidade. Outros desses alunos, assim como alguns da pós-graduação, são contemplados com bolsas da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão. Por sua vez, através do oferecimento de uma disciplina de graduação (Prática de Pesquisa em Psicologia), alunos dos primeiros anos da graduação em Psicologia da USP participam dos projetos para iniciação em pesquisa numa perspectiva fenomenológica existencial. Desse modo, o estágio desses integrantes constitui-se em Plantão Psicológico na Instituição, Supervisão no momento do Plantão e, posteriormente, no grupo de supervisão do projeto, além de participação em grupos de estudo e atividades de pesquisa.
Além da modalidade de prática denominada Plantão Psicológico, o laboratório também intervém via modalidades de Supervisão de Apoio Psicológico, para profissionais na área de saúde e educação, e Oficinas de Recursos Expressivos, com atividades lúdicas e educativas propiciando situações de aprendizagem, promotoras de saúde e educação para o desenvolvimento pessoal e social.
Após essa breve apresentação da organização formal do laboratório é pertinente delimitar o contexto em que este laboratório se insere no supracitado campo de prática, pesquisa e estudos: o Aconselhamento Psicológico.
No Brasil, a constituição do campo do Aconselhamento Psicológico trilhou uma trajetória diferenciada dos contextos norte-americano e europeu. Assim como nesses outros contextos, tal campo de prática psicológica teve seu início a partir da prática de orientação em 1924. É importante frisar que a profissão de psicólogo ainda não era regulamentada por lei e a prática de orientação era exercida por outros profissionais.
Em 1962, o Curso de Graduação em Psicologia foi regulamentado pelo Conselho Federal de Educação. Em 1968, teve início o Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP), no então recente Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Assumiu-se formalmente a vertente da Terapia Centrada no Cliente como norteadora da compreensão de A.P. na Universidade de São Paulo. O objetivo principal do estágio era a relação psicólogocliente, tomada como básica para qualquer atendimento e daí a equivalência com a clínica geral médica. Em acordo com tal abordagem, o grupo do SAP afirmava que um “aprofundamento vivenciado desta relação pessoal” e distinta forneceria uma formação consistente e um atendimento de qualidade (Rosenberg, 1987, p.2). A proposta de Rogers era mais compreendida como uma plataforma para o pensar do que uma técnica ou uma teoria à disposição do psicólogo. Portanto não havia um “modelo” pronto de serviço de Aconselhamento Psicológico, aplicável independentemente da instituição e do contexto.
A partir de reflexões constantes da prática e de pesquisas acerca da população atendida (Rosenberg, 1987; Eisenlohr, 1997; Morato, 1999), foi configurado um esquema de “Plantão Psicológico”, inicialmente apresentado como um desafio do SAP para responder às demandas individuais no momento de seu surgimento aos profissionais do serviço. Nesse sentido, o cuidado já era oferecido sem a necessidade da elaboração de um diagnóstico tradicional e de um encaminhamento atrelado ao Plantão. Na perspectiva de uma intervenção norteada pelos referenciais do cliente, radicalizou-se a questão do poder do especialista no atendimento, assumindo, como ação efetiva do psicólogo, a responsabilidade do cliente para cuidar do seu sofrimento, implicando a sua efetiva participação no processo na busca por ajuda.
Entretanto, como serviço em instituição, aos poucos a sua capacidade dinâmica e criativa foi se perdendo na institucionalização de modos inicialmente contestadores. A isso também se relacionou um aumento expressivo no contingente populacional atendido, o que levou a uma regionalização do serviço para melhor qualidade do serviço (Eisenlohr, 1997).
Diante dessa perspectiva, na década de 90, a equipe do SAP, coordenada por Henriette Morato, buscou efetuar uma retomada dos elementos instituintes do SAP desde a sua formação. Nesse contexto, surgiu o Laboratório para Estudos e Prática em Psicologia Fenomenológica Existencial. Diferentemente do SAP-IPUSP, este laboratório construiu outros modos de interlocução com sua prática no Campo de Aconselhamento Psicológico.
Após essa contextualização do campo do Aconselhamento Psicológico, essa outra via construída pelo laboratório pode ser pertinentemente revelada. Entretanto, será discutido primeiramente a metodologia de pesquisa trabalhada para a (re)construção dessa via em suas rupturas e continuidades com a trajetória até então apresentada.
METODOLOGIA
Em um modo de pesquisa no qual o próprio pesquisador também se insere como um interlocutor de experiências, a abordagem ou “démarche” clínica de pesquisa, conforme compreendida pelo psicossociólogo Lévy (2001), pode ser de grande auxílio. Para este autor, o clínico nas Ciências Humanas trabalharia principalmente no campo, buscando teorizações a partir de uma ação situada, pautada não somente numa compreensão de problemas demandados, mas também em sua compreensão pelos seus interlocutores. Desse modo, o conhecimento é construído a partir da ação com o outro, que, por sua vez, se apresenta como sujeito em posição e pela autenticidade da palavra (Aun 2005). O posicionamento do sujeito refere-se aqui a uma atitude em relação a si mesmo e ao outro no contato estabelecido e não a uma postura rígida e reificante, aprisionando as possibilidades de dispor-se em situação, o que geralmente também pode ser designado por posição.
Para um trabalho no campo, junto aos interlocutores, é preciso que o pesquisador se desloque do já conhecido e formalizado como conhecimento, possibilitando abertura para aquilo que é imprevisto e inesperado (Lévy, 2001).
A partir dessa delimitação inicial de démarche clínica pode-se revelar também um outro aspecto dessa abordagem de pesquisa, que diz respeito ao conduzir-se ao longo de uma trajetória. O deslocar-se do pesquisador não ocorre apenas na explicitação de seu espaço de pertencimento, assumindo-se como participante, mas se desenvolve, simultaneamente, numa temporalidade. Atentar para a construção do conhecimento em situação é privilegiar como ocorreu o “como” investigativo. Por sua vez, esse “como” segue uma temporalidade marcada pela busca de sentido, como possibilidade de orientar uma compreensão. Desse modo, o sentido de algo está na ação que o reitera enquanto passado, ou seja, no movimento do pensamento que busca repetir o caminho trilhado.
A idéia de percorrer um caminho por entre vestígios, no qual o pesquisador esteja presente e implicado, pode se aproximar da concepção de um trabalho cartográfico (Rolnik, 1987). Numa tal compreensão, o próprio pesquisador, buscando investigar trilhas no terreno do vivido, faz uma trilha com suas pegadas e olhares, constituindo também a paisagem que busca observar, descrever e compreender. Observar aqui é um modo de compreender no qual a própria percepção do pesquisador é considerada. Assim disposto, o trabalho cartográfico encontra-se em sintonia com a démarche clínica de pesquisa de orientação fenomenológica existencial.
Assim, para refazer uma trajetória que se pretende, ao mesmo tempo, singular e coletiva, procurou-se realizar uma cartografia do laboratório a partir de seus integrantes. A opção de colher um depoimento da coordenadora do LEFE visa apresentar uma narrativa da constituição desse laboratório. A narrativa se apresenta como registro da experiência, sendo, por excelência, a forma de sua construção e da construção da memória. Ela se desenvolve numa temporalidade, enquanto articulação tempo-espaço, oferecendo-se como objeto de um movimento histórico de sedimentação e reconstrução, capaz de dar significado e contextualização ao vivido. Nesse sentido, o trabalho com a narrativa encontra-se em sintonia com a proposta cartográfica de investigação numa abordagem clínica de orientação fenomenológica existencial.
Após a elaboração dessa narrativa, o pesquisador se dirigiu aos estagiários dos projetos de atenção psicológica do LEFE, com o intuito de descobrir as contribuições possíveis que esse laboratório possibilitou à formação de seus alunos. Dentro desse universo de possibilidades, a intenção do pesquisador foi revelar um modo de prática clínica em instituição que vem se realizando pelos integrantes desse laboratório. Ou seja, a partir dos relatos de experiências singulares e coletivas abre-se a possibilidade de se organizar uma metodologia própria da ação clínica em instituição.
Por essa via, a interlocução se apresentou como modo mais pertinente de se colher os relatos de experiência. A interlocução possuiria um foco clínico, pois visa um aprofundamento reflexivo a partir da questão inicial disparadora, que o pesquisado poderia nunca ter tido, não fosse pela situação de interlocução, revelando, desse modo, essa situação como também uma construção de conhecimento (Bourdieu, 1997).
Posto isso, a estratégia, entendida como uma provocação ao outro para despertar seu depoimento, foi lançar a seguinte pergunta disparadora aos estagiários:
Como você percebe que o LEFE contribuiu, ou não, para você organizar uma compreensão de uma prática clínica em instituição?
Apresentado o modo de colheita de interlocuções como da construção da narrativa da coordenadora do laboratório, o pesquisador partiu para a construção de um mosaico de experiências como possibilidade de análise, tendo como fio condutor a busca de sentido. Desse modo, a análise pode ser compreendida como uma interpretação possível a partir das compreensões prévias e atualizadas na situação de pesquisa.
Embora marcada por uma originalidade e uma ousadia, esta construção metodológica, apesar de recorrer a autores e reflexões de áreas como a Filosofia e a Psicossociologia como perspectivas pertinentes para o pensar e construir conhecimento, fundamenta-se basicamente no fenômeno da aprendizagem significativa como experiência propriamente humana, a partir de Gendlin (1962). Refletindo acerca desse fenômeno, esse autor resgata a relevância do sentido experiencial para a formulação de significados articulados, ao mesmo tempo em que explicita a significância da linguagem em nosso experienciando. Experienciando, para Gendlin, é uma dimensão subjetiva de eventos; refere-se ao que a pessoa “conhece” intimamente. Ela vive “em seu experienciando subjetivo e olha o mundo a partir dele e através dele” (traduzido de Gendlin, 1962, p. 228). O termo em inglês é “experiencing”, portanto gerúndio, e sua tradução correta seria experienciando. Traduzi-lo por experienciação, portanto como substantivo, pode alterar o significado que o autor quer transmitir, pois substantivar pressupõe criar uma entidade, um conceito. Isto se desvia da intenção de Gendlin que fala em modo de processo e, assim, está se referindo a movimento, ação. Neste sentido, um gerúndio de verbo é o mais próximo, pois se refere àquilo que está ocorrendo, a uma fluidez, correspondendo mais ao sentido que Gendlin procura transmitir sobre “experiencing” em seu livro “Experiencing and The Creation of Meaning”. O termo é uma criação com novo sentido e esta é a proposta do autor. A partir de agora será conservado em sua forma originária, como proposto por seu próprio autor (Gendlin, 1964).
Por essa perspectiva, um contexto metodológico, como o aqui discutido, possibilita a construção de conhecimentos e teorizações que não se apresentam como idéias “fora-do-lugar”, ou seja, desvinculadas de uma experiência contextualizada, prestando-se, apenas, a servirem para posições e reconhecimento sociais e não, efetivamente, como metodologia para o pensar acerca do que é propriamente o modo humano de ser (Figueiredo, 1995).
RESULTADO
O laboratório trilhou um outro caminho possível no campo do Aconselhamento Psicológico, marcando continuidades e rupturas. Uma das continuidades percorridas está relacionada à compreensão de uma práxis psicológica em instituição, revelando a pertinência e a possibilidade de constituição de modalidades de prática psicológica que renunciam à necessidade de conceber um modo de subjetivação destacada e desvinculada dos aspectos institucionais, culturais e sociais, inclusive, do contexto concreto e real no qual ela se presentifica. Isso se encontra presente nas experiências vividas de não-dualidade entre sujeito e instituição, nos atravessamentos revelados pelo sujeito em suas ações.
Se, por um lado, essa perspectiva produz uma fragilidade na autonomia do sujeito, ao apresentá-lo constituído por outros atravessamentos, por outro lado não nega a possibilidade de um situar-se desse sujeito nessa condição e da realização de ações reflexivas e apropriadas. Tal termo se refere a ações que se tornam próprias e legítimas para o sujeito ao responder aos seus anseios e não no sentido de uma adequação irrefletida ao que se revela “aí” disposto.
Desse modo, o laboratório busca romper com uma visão romântica do sujeito, no sentido de que sua constituição e destinação independeriam do contexto e dos atravessamentos que o constituem. Por outro lado, também busca se afastar de um pólo disciplinar de compreensão do sujeito. Mesmo atravessado e constituído por aspectos, em grande parte, anteriores e externos à sua existência, dos quais os conhecimentos não lhe são pronta e integralmente dados, a questão do sentido lhe é apresentada como tarefa para realização, sendo esse um constante movimento de destinar-se que demanda um responder autêntico e singular (Critelli, 1996).
Dispõe-se, assim, uma compreensão do sujeito com aproximação da Filosofia fenomenológica existencial. Aproximação essa que foi um ancoradouro possível para reflexões já em andamento pela equipe do laboratório, que nela encontraram uma fundamentação possível para a compreensão de ser. Essa possibilidade de compreensão do sujeito encontrase intimamente vinculada com o espaço no qual foi possível o seu surgimento e elaboração: as modalidades de prática psicológica em instituição, denominadas como Plantão Psicológico e Supervisão de Apoio Psicológico.
Embora as modalidades de prática psicológica possam se revelar como serviços às instituições, o que fundamentalmente as constitui é uma ação clínica que configura um espaço clínico na relação com os sujeitos dentro da instituição. O termo “Serviço de Plantão Psicológico”, por exemplo, é utilizado para marcar um espaço de reconhecimento e legitimação desse lócus dentro da instituição, referente ao atravessamento dos projetos por pertencerem a uma instituição universitária. Ou seja, uma instituição dentro de outra instituição. Entretanto, foi se percebendo, que para preservar e cuidar do espaço clínico nessas modalidades, elas não poderiam se dispor somente como serviços: tal termo implica uma série de burocratizações e institucionalizações que dificultam o olhar e a escuta que circulam, questionam e intervêm. Ou seja, o termo marca um determinado atravessamento, mas é imprescindível que o psicólogo tenha esclarecido como aquilo, que fundamenta a sua ação ali, está marcado por uma imprevisibilidade e pode assumir diversas formas, que em nada se aproximam da configuração de um serviço.
Constituídas fundamentalmente por essa ação clínica, as modalidades de prática psicológica não se atêm somente à perspectiva do atendimento individual, embora ele possa, também, ocorrer. A ação clínica que as fundamenta é marcada, sobretudo, por uma prontidão de sentidos do psicólogo, que pode ou não intervir naquele momento.
As conversas informais, os olhares, o silêncio e o não-dito são constitutivos dessa ação clínica em situação e não somente o atendimento individual com o cliente. As intervenções podem ser pertinentemente feitas nessas diversas formas que o Plantão assume. Por outro lado, o atendimento individual pode encontrar-se desvinculado de um esquema processual, sem, contudo, perder a sua efetividade terapêutica, visto que o sujeito a quem esse atendimento se dirige pode ser compreendido como não-processual: ele pode se desvelar na emergência da situação, na ocorrência de um acontecimento, tendo o presente como trânsito desses acontecimentos.
Desse modo, o espaço do Plantão passa a ser referência para o sujeito: referência que é dada pelo Plantão, mas também é construída pelo cliente e, destarte, móvel e provisória. O atendimento psicoterapêutico processual não é descartado, mas também não é dado como condição única de cuidado para o sujeito: ele pode ser fruto dos encaminhamentos possíveis, construídos a partir da relação no espaço clínico e da construção de uma demanda específica para tal fim.
Aqui se pode atentar, mais particularmente, para a compreensão dessa ação clínica, proposta e efetivada nos projetos, como revelada pela narrativa: partindo de uma compreensão presente na etimologia grega da palavra clínica (klinein), surge a ação de ‘inclinarse para” disponibilizando atenção e cuidado para o sujeito em situação. A atenção encontrase contemplada na prontidão do olhar e da escuta que, situando o psicólogo, possibilita que ele situe o sujeito demandante por cuidado. Por sua vez, o cuidado contempla o encaminhar uma comunicação rumo ao sentido, orientando significados que possibilitam o questionamento, a reflexão e o situar-se do sujeito na direção do bem-estar. O bem-estar aqui, estaria intimamente relacionado à saúde, no sentido de propiciar meios para que o sujeito trace um caminho pessoal e original em sua existência (Almeida, 1999). Desse modo, bem-estar não é compreendido como um ponto de chegada estático e definido, mas se refere à possibilidade de trânsito, movimentação e deslocamento do ser nas suas condições delimitadas concretamente.
Revela-se também a questão do pedido, queixa e demanda apresentados por esse sujeito. O pedido é o enunciado que abre espaço para uma intervenção do psicólogo. Nesse pedido, o cliente revela um lugar pré-determinado para esse profissional, a partir do qual este pode revelar outras possibilidades de intervenção para o cliente.
A queixa é aquilo de que, no enunciado, se reclama e se apresenta, inicialmente, como foco de sofrimento ou interrogação. Vale lembrar, aqui, que, por essa flexibilidade do Plantão Psicológico, o sofrimento presente nos pedidos ou queixas muitas vezes não é aquele encontrado na clínica tradicional. Ele pode ser um questionamento, uma curiosidade, uma aproximação e não, necessariamente, estar vinculado à dor, mas vincular-se-ia à possibilidade de interlocução e diálogo para a condução de uma experiência vivida significativamente, no sentido de um olhar dentro da instituição que singulariza o sujeito, legitimando um cuidar de si.
Já a demanda é algo que não se encontra presente nesses enunciados iniciais. Tampouco ela se encontra “escondida” em algum sítio inconsciente. Ela é construída no diálogo com o psicólogo e pode assumir diversas expressões, pois se vincula ao olhar e à escuta que singulariza o sujeito. Pode-se considerar que a queixa seria compreendida como a emergência de um sinal de crise, na formulação pré-concebida tanto de um problema quanto do “espaço psicológico” a ele reservado. Por sua vez, a demanda seria compreendida como a urgência por uma atenção psicológica, não concebida a priori, para construção de sentido possível, através da investigação cuidadosa da situação de crise (Morato, 1999).
Contextualizando a relação entre queixa e demanda, embora houvesse uma compreensão da instituição como o lugar das relações institucionalizadas e, desse modo, desvinculadas de um sentido presente para os sujeitos na instituição, o mosaico narrativo revela um outro atravessamento da instituição para além dessa compreensão: houve uma demanda presente na instituição para que os psicólogos melhorassem a visão da instituição perante outros órgãos, representantes da comunidade e da sociedade. Essa demanda estaria vinculada aos altos escalões que compõem e coordenam a instituição e não se revelaria nas relações institucionalizadas. Algumas experiências apresentadas revelam que, quando essa demanda é descoberta e apresentada aos seus destinatários, o pretenso interesse pela ajuda psicológica se esvai e o projeto finda. O que não impede que um conhecimento e um registro dessa comunicação possam ser elaborados e discutidos, visando intervenções posteriores e compreensão da prática.
Marca-se, aqui, justamente, um limite e uma pertinência para essa ação clínica dos projetos de Atenção Psicológica: atenção psicológica para o sujeito em instituição como possibilidade de bem-estar contextualizado, por meio de um cuidado a um sujeito atravessado por aspectos culturais e institucionais, que se revelam pela escuta e olhar do profissional. A instituição ou organização, que não possibilitar uma atenção, mesmo que mínima, às singularidades presentes em seu contexto, não leva adiante a condução do pedido de ajuda nessa perspectiva.
Desse modo, o posicionamento clínico em instituição não se refere a promoções de espaços de mudança social e nem a trabalhos de fortalecimento do ego ou centramento do sujeito (Machado, 2001). As mudanças ocorrem, mas não são controláveis, uma vez que o imprevisto é fundamental na ação clínica. Tal imprevisto se remete à situação de crise e, embora “escape” dos mecanismos de controle e predição, pode ser cuidado como construção de sentido na ação clínica. Controle e cuidado não se encontram necessariamente interligados. Priorizar o cuidado implica, na abordagem clínica proposta, em uma atitude ética básica perante o outro, norteando a ação do psicólogo.
Essas considerações possibilitam uma compreensão da cartografia nesses projetos. Como revelado na narrativa, a cartografia se configura como um conhecer e um dar-se a conhecer, como possibilidade de passar pela experiência e sendo por ela marcado. Embora ela possa se constituir como uma etapa inicial de intervenção em cada projeto, ela não se encerra nessa etapa, configurando-se para o psicólogo como uma atitude cartográfica constante e presente, que ele carrega desde que entra no contexto da instituição. Atitude esta que possibilita e engendra ações clínicas pertinentes, contextualizadas e reflexivamente refletidas.
Por outro lado, a metodologia interventiva como pesquisa se refere à possibilidade de pesquisar essa alternativa de prática psicológica em instituição. Ela surge das reflexões produzidas no espaço de supervisão e possui a intenção de comunicar uma experiência vivida, revelando-se como intervenção ao possibilitar novas reflexões na clínica em construção.
Nesse sentido, o laboratório, assim como a universidade pública na qual se insere, coloca-se como local privilegiado para contribuições efetivas visando o exercício do bem-estar em comunidade numa ação ética reflexiva e contextualizada através de projetos de extensão universitária (Morato, 1999; Santos, 1999).
Desse modo, opta-se pelo termo práxis psicológica e não prática, pois se visa marcar o caráter eminentemente ético desse trabalho na comunidade. Ético porque diz respeito a um posicionamento, perante esse sujeito ou instituição demandante, que visa um cuidado efetivo e responsável das singularidades ali presentes, no sentido do bem-estar. Parte desse posicionamento revela-se na consideração de que esses projetos de extensão universitária implantam serviços, marcando-se como presença: uma constância e uma permanência nessas instituições, e não intervenções pontuais, pré-determinadas e, enfim, distantes da realidade vivida pelos sujeitos nesse contexto.
Assim, mais do que a construção de uma alternativa, por meio de uma criação, o que marca uma pertinência para essa “invenção” no campo do Aconselhamento Psicológico é o ânimo para ousar e bancar o conflito entre diferenças quaisquer.
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Recebido em 31/07/07
Revisto em 02/10/07
Aceito em 06/10/07
1 O presente artigo é uma condensação das reflexões apresentadas na seguinte dissertação: Nunes, A. P. (2006). Entre aprendizagem significativa e metodologia interventiva: Cartografia de um laboratório universitário como Aconselhamento Psicológico. Dissertação de Mestrado. Instituto de Psicologia da USP, São Paulo.
* Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia - Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco D, sala 229. São Paulo. CEP 05508-900. Telefone: 3091-4285. E-mail: lefe@usp.br.