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Boletim de Psicologia
versão impressa ISSN 0006-5943
Bol. psicol vol.62 no.136 São Paulo jun. 2012
ARTIGOS ORIGINAIS
Violência conjugal: estudo das características das relações objetais em homens agressores
Marital violence: a study of characteristics of objectal relations in male offenders
Suzana Catanio dos Santos Nardi*; Silvia Pereira da Cruz Benetti*
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, São Leopoldo, RS - Brasil
RESUMO
Este é um estudo sobre os processos psíquicos de homens agressores, tendo como referência a teoria psicanalítica das relações objetais, cujo objetivo foi identificar as características das relações objetais em homens envolvidos com violência conjugal. Participaram 15 homens envolvidos em processos judiciais, acusados de violência contra a parceira. Os participantes foram obtidos em um Fórum de uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul. Foram utilizados como instrumentos: entrevista, ficha de dados sociodemográficos e o inventário BORRTI-O, que visa avaliar as relações objetais, composto de cinco escalas: resposta patológica, alienação, vinculação insegura, egocentrismo e incapacidade social. Os resultados apontaram a presença de relações objetais deficitárias, especialmente na escala egocentrismo, indicando sérias dificuldades nas relações interpessoais.
Palavras-chave: Relações objetais; violência conjugal; agressores; psicanálise.
ABSTRACT
This research was conducted on the mental processes of aggressive men, taking as reference psychoanalytic theory from an object relation perspective. Its objective was to identify characteristics of object relations in males involved in marital violence. Fifteen men who were being prosecuted due to violent assault against their partners participated in the study. Participants were recruited at the forum of a town situated in the metropolitan area of Porto Alegre, Rio Grande do Sul. The instruments used were an interview, sociodemographic data sheet and the inventory BORRTI-O, used to assess the object relations, that is composed by five scales: pathological response, alienation, insecure relationship, egocentrism and social inability. The results indicated the presence of object relation deficits, especially in the egocentric scale. The prevalence of egocentric characteristics indicates serious difficulties in personal relationships.
Key words: Object relations; partner violence; offending; psychoanalysis.
INTRODUÇÃO
A violência conjugal tem se destacado nas últimas décadas como um tópico importante, associado tanto ao interesse em aprofundar a compreensão dos diversos fatores envolvidos nos atos violentos como à necessidade de desenvolver e implantar serviços de atendimento às vitimas. Observa-se, porém, que a grande maioria dos trabalhos volta-se para questões relativas às vítimas e, em menor número, ao agressor (Padovani e Williams, 2002).
Apesar de alguns estudos abordarem as questões envolvendo o agressor conjugal, algumas pesquisas nacionais (Padovani, Cortez e Williams, 2005; Dossi, Saliba, Garbin e Garbin, 2008; Deeke, Boing, Oliveira e Coelho, 2009) e internacionais (Dutton e Landolt, 1997; Dutton e Goland, 1997) têm se dedicado à análise das características gerais do agressor, bem como dos aspectos mais profundos relativos à personalidade e aos fatores determinantes de manifestações violentas.
Holtzworth-Munroe e Meehan (2004) indicam que existem dois tipos ou níveis de violência nas relações familiares, um deles ligado a características específicas anti-sociais do agressor e outro a aspectos de personalidade borderline. Dutton (2002), pesquisador canadense, considera que estes agressores apresentam manifestações de organizações de personalidade borderline em uma posição oposta ao transtorno de personalidade borderline, o qual se refere a uma manifestação mais grave, situando-se em um extremo das organizações borderlines (Kernberg, 1995).
Entende-se que indivíduos violentos apresentam uma organização psicológica borderline associada a tendências paranóicas, ao enfraquecimento das fronteiras do ego, a uma capacidade limitada de autorreflexão ou de contextualização da experiência, à desregulação afetiva e a uma tendência de pensamento concreto (Caligor, Diamond, Yeomans e Kernberg,2009). Essas características organizam-se em função de experiências primárias pouco empáticas, de cuidado inadequado e, até mesmo, associadas às vivências de violência com as figuras cuidadoras, gerando representações patológicas de si e dos demais (Zosky, 1999).
Desta maneira, as organizações de personalidade borderline constituem-se como uma categoria clínica caracterizada por relações interpessoais instáveis, um sentido de self também instável, raiva intensa e impulsividade, base para os atos violentos. Dutton (2007) identificou em suas pesquisas, em uma abordagem social, que atributos da organização borderline, tais como raiva, apego ansioso, sintomas crônicos de trauma e também representação de rejeição paterna eram características comuns em homens agressores. Além disso, a origem dos comportamentos violentos foi associada a vivências abusivas durante a infância, apontando para a importância das experiências relacionais primitivas.
Nesse sentido, alguns modelos teóricos psicanalíticos têm auxiliado na compreensão dos processos relacionais envolvidos nas situações de violência, apontando principalmente o papel das características dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos primitivos com as figuras parentais, bem como as características das representações objetais sob a ótica da organização borderline. Segundo Bruscato (1998), as relações objetais estabelecidas com os objetos primários organizam as representações internas de si mesmo e do outro. Essas representações, por sua vez, estabelecem a forma contemporânea das relações interpessoais.
Assim, considerando as questões discutidas acerca das características do agressor conjugal, especificamente em relação aos aspectos intrínsecos associados às representações internas objetais, este estudo visa aprofundar o conhecimento sobre os processos psíquicos de homens agressores. Tomando como referência a teoria psicanalítica das relações objetais, esta pesquisa teve como objetivo identificar as características das relações objetais em homens envolvidos com violência conjugal. Nesse caso, violência entre cônjuges, no relacionamento de namoro e casamento formalizado ou não (Saffioti, 2004).
MÉTODO
Participantes
Este estudo foi desenvolvido por meio de um delineamentoquantitativo exploratório (Goldim, 2000), visando identificar as características das relações objetais de homens agressores. Participaram da pesquisa, 15 homens, maiores de 18 anos, com escolaridade mínima de ensino fundamental, que estavam envolvidos em situações de violência doméstica contra a companheira. Os participantes foram selecionados no Fórum Municipal de uma cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre, em um período de seis meses, entre maio e outubro de 2010. Dentre todos os mais de 100 casos que chegaram ao Fórum, foram incluídos os relativos à violência conjugal, sendo excluídos aqueles que envolviam violência em outras situações e uso crônico de drogas.
Instrumentos
Ficha de Dados Sociodemográficos: Compreende questões referentes à idade, naturalidade, grau de escolaridade, composição familiar, estado civil, emprego atual e profissão. Em relação ao envolvimento com violência, foram incluídos itens referentes aos episódios de violência, às características da relação com a vítima, à motivação para o ato violento e à presença de violência na história passada.
Entrevista: As entrevistas foram abertas e procurou-se esclarecer as informações contidas na ficha de dados sociodemográficos e acrescentar elementos que auxiliassem na compreensão dos aspectos intrapsíquicos dos participantes.
BORRTI-O (Bell Object Relations and Reality Testing Inventory Form O) (Bell, Billington e Becker, 1986, apud Bruscato e Iacoponi, 2000; Bruscato, 1998): É um instrumento que visa identificar relações objetais. Ele está alicerçado em pressupostos psicanalíticos e de recursos das avaliações psicológicas empíricas atuais. Constitui-se em um inventário autoadministrável, com 45 declarações descritivas que o sujeito marca como "verdadeiro" ou "falso", de acordo com suas experiências mais recentes. O instrumento oferece quatro tipos de resultados ou de fatores interpretativos, os quais demarcam quatro modos de relação objetal internalizada, além de um resultado numérico. Estes fatores são: alienação, vinculação insegura, egocentrismo e incapacidade social.
A escala de alienação tem como objetivo aferir a capacidade do sujeito de estabelecer confiança básica e em conseguir relacionamentos estáveis e satisfatórios. A escala de vinculação insegura diz respeito à sensibilidade à rejeição, ao desejo de estar próximo e à capacidade de suportar perdas; inabilidade para conseguir proximidade, sentimentos de culpa, preocupação e ciúme, levando a vínculos intensamente sadomasoquistas. A escala de egocentrismo afere a disposição para não confiar na motivação do outro, a manipular o outro para seus próprios objetivos, perceber os outros como se existissem somente em relação a si mesmos. A escala de incapacidade social mede timidez, nervosismo, a falta de habilidade para as amizades, dúvida em como agir com a pessoa do sexo oposto e experiência pessoal de inaptidão social. A correção do instrumento é feita por um software específico, que proporciona os valores brutos, que depois são transformados em escores t contínuos, de acordo com a folha de pontuação para elaboração do perfil (Bruscato, 1998). São considerados como índices de patologia nas relações quando o sujeito pontua 60% ou mais em cada escala.
O BORRTI-O é um instrumento novo, entretanto, os estudos de validade demonstram até o momento qu-e sua utilização é bastante promissora, tendo sido empregado nos Estados Unidos em numerosos estudos que exploram as suas propriedades psicométricas, utilizando amostras não psiquiátricas e também grupos psiquiátricos. No Brasil, o instrumento foi utilizados em alguns estudos (Bruscato e Iacoponi, 2000; Zogbi, 2007). Ele foi traduzido e validado para o Brasil por Bruscato (1998), que encontrou índices estatisticamente adequados de validade e confiabilidade, tais como correlações satisfatórias dos escores com a versão em inglês doBORRTI-O(0,62 para alienação, 0,82 para vinculação insegura, 0,83 para egocentrismo e 0,78 para incapacidade social). Quanto aos escores de confiabilidade, os valores do alpha de Cronbach para todos os itens foram de 0,59 e a confiabilidade das metades, corrigida pela fórmula de Spearman-Brown, de 0,63.
Procedimento
Depois de realizado contato com a Juíza Pretora do Município, responsável pelos casos de homens envolvidos em violência contra a companheira (Lei Maria da Penha), a coleta de dados foi iniciada e ocorreu durante um período de seis meses, nos dias de audiência. Os casos que atendiam os critérios de violência conjugal, isto é, homens maiores de 18 anos, com escolaridade mínima de ensino fundamental, foram convidados a participar do estudo. Todos os convidados aceitaram participar da pesquisa. A coleta foi realizada em ambiente judicial, no momento do término da audiência.
Muitos casos foram excluídos em função da baixa escolaridade, ausência do agressor, uso crônico de drogas e a não caracterização de violência no âmbito conjugal. Os participantes eram então encaminhados a uma sala reservada, onde eram apresentados os objetivos da pesquisa e realizada a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O processo de coleta de dados incluía a realização de uma entrevista e a aplicação dos instrumentos: ficha de dados sociodemográficos e o BORTTI-O. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) em 26 de maio de 2010, sob o número do processo: CEP10/040.
RESULTADOS
As informações obtidas por meio da ficha de dados sociodemográficos para fins de descrição da amostra foram agrupadas em função da idade, escolaridade, relacionamento com a parceira e situação empregatícia, na Tabela 1.
Verificou-se que o maior percentual de agressores tem idade entre 26 e 45 anos, indicando serem homens jovens, cujo ato violento é direcionado à companheira. No que se refere à presença de violência na infância, 66,7% (N=10) dos participantes afirmaram não terem presenciado ou sido vítimas de violência em suas histórias de vida. Entretanto, no momento da entrevista, ao relatarem suas experiências de vida, 60% (N=9) lembravam de episódios de violência entre os pais e violência psicológica infligida a eles por um dos genitores.
A Tabela 2 apresenta os resultados do instrumento BORRTI-O, em que se verificou que 73% (N=11) dos participantes apresentaram respostas indicativas de relações objetais patológicas, as quais também estavam presentes na escala de egocentrismo. Desses 11 casos, 27% (N=4) também tiveram índices patológicos na escala de alienação e na escala de vinculação insegura. Por último, na escala de incapacidade social, 20% (N=3) dos participantes apresentaram escores indicativos de patologia. A análise estatística por meio do teste binomial apontou diferenças significativas, indicativas de um maior número de casos com relações patológicas no egocentrismo. Ainda assim, chama a atenção, tomando-se o conjunto de casos, que dos 15 homens investigados, 11 deles mostraram relações objetais patológicas, sendo que em um dos casos foram encontrados escores clínicos em todas as escalas (Tabela 3).
Nas entrevistas realizadas foi apontada a presença de violência durante o período da infância, o que difere dos resultados obtidos na ficha de dados sociodemográficos. Além disto, cinco (33,3%) dos participantes informaram terem se envolvido com pessoas que moravam na vizinhança, mas dois deles tiveram dificuldade para caracterizar o vínculo com a vítima. A maioria dos homens mostrava-se muito nervoso, sempre na tentativa de se justificar, alguns diziam que nem sabiam o motivo de estarem ali.
DISCUSSÃO
Primeiramente, é importante mencionar alguns aspectos do presente trabalho, relativos ao grupo de homens investigados. Uma questão significativa refere-se à dificuldade de investigar sujeitos envolvidos com questões legais, neste caso homens agressores de suas parceiras. Conforme Cortez e Souza (2010), as dificuldades de trabalhar com esses grupos incluem desde a recusa na participação em trabalhos de pesquisa, até a resistência de estabelecimento de um vínculo entrevistador-entrevistado. Daí pode-se entender o pequeno número de trabalhos dirigidos para o tema. Em decorrência dessa característica, delineia-se outra questão desta investigação, que se refere ao tamanho limitado da amostra. Todavia, mesmo considerando essas questões, o grupo aqui investigado apresentou características importantes que merecem discussão e podem trazer contribuições para a área.
Em relação aos dados sociodemográficos, algumas das características identificadas são semelhantes a estudos nacionais sobre homens agressores. No estudo de Dossi et al. (2008), das 7.750 ocorrências de agressões registradas em Araçatuba, São Paulo, 1.844 estavam relacionadas à agressão física intrafamiliar, sendo que 81,1% envolviam parceiros íntimos. A prevalência maior nessas agressões foi de homens com idades entre 20-34 anos, solteiros, sendo o ciúme a causa mais citada nos episódios. Deeke et al. (2009), em um estudo com 30 casais envolvidos com agressão na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, encontraram que a média de idade dos homens agressores era em torno de 40 anos. Já a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2011) aponta para o dado de que 73,4% dos homens agressores estão entre 20 e 45 anos.
No presente estudo, ainda que a média de idade do grupo tenha sido também de 40 anos, cabe apontar que 80% dos casos estavam na faixa entre 26 a 45 anos de idade, indicando que a violência conjugal ocorre entre grupos etários jovens. Chama a atenção também que a maioria dos homens, eram cônjuges ou ex-cônjuges, namorados e companheiros da vítima e apresentavam uma ocupação laboral estável. Da mesma forma, 60% dos homens tinham nível médio ou superior de ensino, o que vai ao encontro dos resultados de outros trabalhos (Garcia, Ribeiro, Jorge, Pereira e Resende, 2008), tais como o da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que constatou que 55,3% dos agressores possuíam o ensino fundamental, indicando que a violência está presente em todos os níveis de escolaridade. Os participantes, em sua grande maioria, tinham atividade laboral no momento da agressão, o que leva a afirmar que, nesta amostra, o fator desemprego não é fator desencadeante, pois somente dois homens (13,3%) estavam sem trabalho.
Já quanto ao tipo de delito, foram encontradas ameaças, agressão física e agressão sexual, sendo que as ameaças variavam desde promessas de morte, de bater ou de retirar os filhos, até atear fogo na casa da vítima. O delito com maior número de ocorrências foi a ameaça, seguida de agressões físicas, nas quais as vítimas apresentavam lesões leves, como tapas ou puxões de cabelo, até lesões graves, como a perda de dente por soco e lesão por arma de fogo. O último tipo de delito relatado foi a agressão sexual, registrado por duas vítimas: uma delas a esposa e a outra, a ex-namorada. Assim, é possível perceber que a ameaça é o delito mais registrado pelas mulheres.
No que se refere aos dados obtidos pelas entrevistas, uma das questões levantadas é a tentativa de se justificar diante do fato ocorrido, o que pode estar associado aos temas do fator Alienação, tais como a posição defensiva, principalmente no que diz respeito à atitude autoprotetora, tentando explicar ou, até mesmo, dizendo que não sabiam o motivo de estarem ali. Além disto, os participantes mencionaram fatos importantes em suas histórias de vida, tais como brigas entre os genitores, uso de álcool e vitimização por violência emocional. Entretanto, estes dados são contraditórios, pois, na ficha de dados sociodemográficos, essas informações não são mencionadas, o que leva a pensar que os sujeitos associam a ideia de violência somente à agressão física. Por outro lado, quando questionados sobre suas histórias pregressas, identificam a presença de outros tipos de violência, além da física. Assim, dos 15 participantes, somente 33,3% (N=5) referem não ter vivenciado ou presenciado algum tipo de violência na família de origem.
Outro aspecto mencionado durante as entrevistas foi o uso de álcool por um dos genitores, o que, segundo os participantes, era o estopim das brigas, assim como o ciúme como fator desencadeante das agressões. Hermann (2000) afirma que alguns destes fatores podem ser considerados facilitadores da violência, tais como o uso do álcool, drogas e desemprego. Todavia, Werlang, Sá e Borges (2009) destacam que a aproximação ao problema da violência deve partir de uma perspectiva multicausal, não podendo ser explicada por um único fator.
Além destes fatores, na década de 80, estudoscomo os deCarmen, Reiker e Mills (1984) e Walker (1984) já apontavam a relação entre experiência de violência na infância e comportamento adulto violento. Estes autores afirmam que homens violentos que foram testemunhas de violência entre os pais, ou foram vítimas de agressões, quando crianças, tornam-se adultos com dificuldade em se transformar em indivíduos saudáveis e demonstraram comportamento agressivo com suas parceiras. Sugerem, ainda, que essas crianças têm maior probabilidade de se identificar com o agressor original e perpetuar a agressão com seu cônjuge e filhos. Assim, confirma-se a importância do trabalho dirigido às situações de violência doméstica em função da possibilidade de perpetuação dos modelos interativos na esfera familiar.
Considerando o propósito principal do presente estudo de investigar aspectos intrapsíquicos de homens agressores, e identificando as representações das relações objetais por meio dos resultados do inventário BORRTI-O, verificou-se que grande parte dos casos apresentava patologia em suas relações objetais. Isto é, considerando a avaliação da capacidade dos sujeitos em estabelecer confiança básica e relacionamentos estáveis (escala de alienação), a sensibilidade à rejeição e a perdas (escala de vinculação insegura), a capacidade de confiar ou manipular os outros (escala de egocentrismo) e a experiência pessoal de inaptidão social (escala de incapacidade social), identificaram-se falhas importantes nessas dimensões. Assim, a maioria dos participantes apresentou escores que apontaram para relações objetais deficitárias, especialmente na escala egocentrismo.
O fator egocentrismo é composto pelos seguintes temas: os outros existem apenas com relação a si mesmo; os outros podem ser manipulados para objetivos próprios, atitude autoprotetora e exploradora, a intrusividade, coerção e exigência, crença em que a cooperação para objetivos comuns é impossível, porque cada um só pensa em si mesmo e alguém tentará humilhar e derrotar qualquer outro, se tiver a oportunidade, ver a si mesmo alternadamente como onipotente ou como impotente e sob o controle de alguma força invencível.
Assim, tendo-se em vista que o fator egocentrismo foi o mais pontuado, Morrell, Mendel e Fischer (2001) fazem referência a falhas nas relações objetais, as quais são identificadas como preditoras de distúrbios em relacionamentos posteriores. Igualmente para Bell (1995), os indivíduos com falhas ou distorções na dimensão egocentrismo não apresentam consciência real ou preocupação verdadeira com os sentimentos dos outros. Sua capacidade de empatia é limitada, o que fica mais evidente, quando não demonstram preocupação com a companheira, ou mesmo com os filhos, no momento em que usam o dinheiro, deixando a família em dificuldades financeiras e afetivas. Além disto, costumam ser manipuladores e controladores, conduta que apresentam no momento da audiência e da entrevista, quando, de alguma forma, apresentam um discurso em que aparecem como vítimas na situação.
O egocentrismo relaciona-se com uma limitação importante na capacidade de estabelecimento de relacionamentos interpessoais. Por exemplo, no estudo realizado por Kelsey, Ornduff, Reiff e Arthur (2002) com 50 mulheres para identificar características de personalidade narcisista e reação de enfrentamento ao estresse pelo BORTTI-O, as escalas de alienação e egocentrismo foram utilizadas para avaliar esses aspectos narcisistas. Considerou-se que alta pontuação na escala egocentrismo sugere um indivíduo egoísta, que apresenta atitudes de exploração, manipulação e autoproteção em relacionamentos, falta de consciência ou preocupação com os sentimentos dos outros, além de uma desconfiança em relação aos motivos dos outros. Nesse trabalho, os autores identificaram que escores altos em egocentrismo associavam-se à hiperreatividade e altos escores em alienação referiam-se à hipoatividade, frente ao estresse. Portanto, indivíduos egocêntricos são extremamente sensíveis a situações que lhes provoquem estresse, pois não toleram frustrações.
Na metapsicologia psicanalítica, o narcisismo é descrito por Freud (1914/1996) como uma fase estrutural no desenvolvimento do indivíduo, quando ocorre a constituição do ego como uma unidade diferenciada. Logo, o narcisismo, como etapa evolutiva, não é, necessariamente, um aspecto patológico do desenvolvimento. Ao contrário, é o momento em que o bebê investe a libido em si próprio, enquanto objeto sexual. Este investimento ocorre por meio dos primeiros cuidados que recebe da mãe ou de um cuidador, por intermédio da identificação com o outro e do investimento sobre si mesmo de toda a libido que a mãe ou o cuidador direcionaram a ele.
No entanto, se ocorrerem faltas ou excessos de investimento pulsional, bloqueando a formação desta base narcísica, poderão ocorrer dificuldades no desenvolvimento da independência relacionada ao outro. Nesse sentido, ao se analisar a história de vida dos homens investigados nesse estudo, as entrevistas indicaram que 66% dos participantes vivenciaram algum tipo de violência na infância, desde brigas dos pais, até o rompimento de vínculos precoces, tais como: morte de um dos genitores, abandono ou outros rompimentos com figuras de importância afetiva.
Portanto, mesmo que, neste trabalho, a análise do funcionamento psíquico tenha se limitado às características das relações objetais de homens agressores, os resultados encontrados, principalmente levando em conta a grande frequência de características egocêntricas, permitem levantar possíveis hipóteses acerca das experiências primárias e da organização de personalidade. Neste sentido, quando crianças experienciaram qualquer tipo de violência na infância, as representações derivadas destas vivências podem ter bases negativas internalizadas, continuando a causar distorções nas relações de adultos, percebida subjetivamente de acordo com o modelo interno anterior negativo (Zorski, 1999).
Além destes aspectos, segundo as entrevistas, os participantes demonstraram grande dificuldade no reconhecimento do ato violento, delegando a responsabilidade pela agressão à mulher. Estes aspectos ficam mais claros, quando eles verbalizavam que a mulher provocava, agredia primeiro ou, então, mesmo a mulher apresentando lesões corporais, negavam terem sido eles os agressores. Logo, a capacidade de julgamento da realidade encontra-se prejudicada. Havendo dificuldade de aceitação da autoria do ato violento, o ódio fica sem integração, o que pode indicar a utilização do mecanismo da identificação projetiva, mais transtorno dissociativo no Ego (Klein, 1932/1969). Neste sentido, o funcionamento mental descrito pelo mecanismo de identificação projetiva pode ajudar a explicar os sentimentos de posse, poder, controle do objeto, acompanhado de fantasias agressivas, que explicam a violência e a crueldade, cuja função é proteger o ego contra o insuportável conflito entre amor e ódio.
Assim, os estados afetivos são resultados dos déficits que aconteceram na infância e que, na relação conjugal, se reatualizam (Andrade, 1980). Nesta perspectiva, a violência acontece pelo medo da separação e da perda do objeto de amor, suscitando no agressor o impulso pela busca do poder como garantia contra o sentimento de dor pela separação do objeto.
Em relação à estrutura de homens violentos, Kernberg (1995) identifica uma fragilidade egóica, como a falta de tolerância à angústia, controle pulsional, desenvolvimento da sublimação, assim como uma volta ao processo de pensamento primário. Além disso, manifestam-se defesas ligadas à dificuldade em aceitar ser um agressor, utilizando-se da clivagem, recusa, identificação projetiva, idealização primitiva, onipotência e desvalorização. Quanto às identificações, elas são superficiais, contraditórias, clivadas (bom/mau), assim como as representações de objeto continuam cindidas. Todas essas características relacionam-se ao funcionamento borderline, confirmando os estudos de Dutton (2002), nos quais ele associa a personalidade abusiva com esta organização de personalidade.
No psiquismo deste indivíduo, segundo Kernberg (1979b), existiriam sistemas de identificação responsáveis pela existência de dois níveis de organização do ego: um nível de organização egóica seria resultado do processo de internalização das relações de objeto e o outro seria decorrência da imagem de si mesmo ligada a estas mesmas relações, ambos estabelecidos sobre configurações primárias da relação self-objeto. Estes dois níveis de organização egóica permanecem de forma não metabolizada no psiquismo, constituindo um ego frágil e uma insuficiência psíquica para integrar experiências primitivas diferentes, boas e más (Kernberg, 1967).
A fragilidade do ego torna o indivíduo deficitário em sua capacidade de tolerar frustrações e é necessário lançar mão de defesas contra a inveja e a raiva. Kernberg (1979a) sugere, então, a grandiosidade narcisista como um modo de proteção contra esta fragilidade egóica. Esta grandiosidade narcísica, enquanto defesa, é um alto preditor de agressividade em resposta a insultos e outros fatores estressantes (Bodadilla, 2008).
Portanto, são evidentes a relevância e o aprofundamento da pesquisa sobre o tema das relações objetais em associação ao desenvolvimento de patologias, principalmente no que se refere à compreensão das singularidades das manifestações e dos arranjos do funcionamento psíquico de indivíduos violentos. Isto porque, para o adequado planejamento do tratamento do indivíduo, é importante reconhecer as distintas manifestações clínicas. Nesse sentido, Holtzworth-Munroe e Meehan (2004) destacam que este conhecimento auxilia na identificação dos casos e do planejamento da intervenção. Ressaltam, entretanto, a necessidade de se investigar também o contexto social e cultural amplo de inserção familiar.
CONCLUSÕES
A agressão é um dos fenômenos mais complexos e importantes do comportamento humano. Compreender sua origem é crucial para o desenvolvimento e para a evolução do tratamento de pacientes. Até o momento, além de haver poucos estudos sobre intervenções clínicas dirigidas a homens violentos, esses são tratados de forma indiferenciada, sem se considerar o tipo de patologia que o individuo é portador.
Diferentes aspectos patológicos estão envolvidos na personalidade violenta, implicando características de funcionamento psíquico particular a cada caso. Assim sendo, a avaliação necessária para o encaminhamento e o atendimento psicoterápico deve levar em conta as características psicológicas que certamente vão interferir na adesão terapêutica, na aliança de trabalho e no próprio prognóstico do caso.
Neste sentido, observa-se que a contribuição psicanalítica tem se orientado para o trabalho clínico, principalmente considerando os aspectos estruturais da personalidade, identificando padrões agressivos de interação nas situações de funcionamento limítrofe ou borderline. Além destas contribuições, para a melhoria do atendimento de tais patologias, torna-se necessária a compreensão mais aprofundada dos aspectos intrínsecos dos vínculos na violência conjugal. Na medida em que esse entendimento ocorre, novas possibilidades acontecem no sentido de criação de intervenções psicoterapêuticas adequadas, surgindo aspectos a serem ponderados no planejamento de um tratamento. Assim, as avaliações clínicas dos indivíduos fornecem subsídios importantes na recomendação do tratamento e informações prognósticas.
Outro padrão identificado é a do homem borderline como um sadomasoquista, que projeta seu ódio do self atacado para o próprio corpo, com comportamentos de automutilação, ideação suicida ou comportamento destrutivo, como a anorexia nervosa. Estes comportamentos podem se alternar com períodos de agressão ao terapeuta ou de percepção de que este o agride de modo sádico. O terapeuta deve ficar atento para não participar dessa encenação proposta pelo paciente borderline (enactment) (Kernberg, 2006).
Portanto, para conhecer as características intrapsíquicas e o funcionamento mental do indivíduo violento, segundo Fonagy (2003), é fundamental entrar no mundo subjetivo da pessoa violenta, não apenas no sentido de ser capaz de oferecer o tratamento, mas de antecipar a natureza dos riscos que estes representam tanto para si quanto para sua parceira. Compreender para explicar, esse é o primeiro passo no sentido de prevenir a violência.
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Recebido em 25/08/11
Revisto em 26/03/12
Aceito 30/03/12
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