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Boletim de Psicologia

versão impressa ISSN 0006-5943

Bol. psicol vol.62 no.136 São Paulo jun. 2012

 

RESENHA

 

Walter trinca e a pesquisa de modelos globais da mente

 

Walter Trinca and the research about global models of the mind

 

 

Resenhado por Walter José Martins Migliorini*; Helena Rinaldi Rosa*

Departamento de Psicologia Clínica - UNESP, Assis-SP - Brasil

 

 

Trinca, W. (2011). Psicanálise Compreensiva: Uma concepção de conjunto. São Paulo: Vetor. 435 páginas.

O nome de Walter Trinca é amplamente conhecido no campo da avaliação psicológica. Ele criou, na década de 70, o procedimento de Desenhos-Estórias, que vem sendo amplamente utilizado em clínica e pesquisa por sua simplicidade e adaptabilidade aos mais diferentes sujeitos e contextos. São necessários apenas lápis, uma folha de papel e o clima emocional adequado para que alguém faça um desenho e conte uma história. A simplicidade, entretanto, é apenas aparente, pois o alcance clínico e a riqueza do instrumento dependem essencialmente das qualidades e da profundidade de quem os utiliza. Na criação do procedimento do Desenho-Estória, já está posta a questão do ser.

No livro "Psicanálise compreensiva: Uma concepção de conjunto" (Trinca, 2011), a experiência de aproximação do próprio ser é colocada no cerne da reapresentação da psicanálise proposta pelo autor. Um fenômeno que se observa frequentemente na clínica e também na vida é que, no processo de adoecimento, há uma perda da visibilidade da própria pessoa para si mesma e para o outro. Algumas expressões traduzem essa experiência: "me sinto como um estranho", ou "fulano de tal está irreconhecível". Na perspectiva de Walter Trinca, o que se perde de vista ou se torna inacessível nos transtornos emocionais não é apenas a experiência subjetiva de si mesmo, mas o contato com o que ele denomina de núcleo essencial da pessoa ou o ser interior.

Assim, o grau de distanciamento de contato com o próprio ser interior é concebido como uma linha contínua, cujo marco zero é a experiência subjetiva de inteireza. Os limites inferiores e superiores dessa linha contínua são infinitos, o que coloca as incomensuráveis vivências do louco e do visionário, não como antípodas, mas como facetas das possibilidades de desvelamento do ser. Nessa perspectiva, tendo por referencial a experiência subjetiva de inteireza, há graus crescentes de gravidade das perturbações psíquicas e, na direção inversa, graus crescentes de expansão da consciência e de visibilidade de si mesmo. Isso ocorre à medida que o contato com o próprio ser diminui ou se intensifica.

O conceito de self, de uso tão multiforme na psicanálise - seja como representação de si mesmo, núcleo da personalidade ou experiência subjetiva de existência e de unidade - é redimensionado no modelo de Trinca. A experiência subjetiva de self se modifica e é modulada em consonância ao contato com o ser interior. Metaforicamente, essa relação é representada pela luz (ser interior) que varia em intensidade e incidência, revelando as reentrâncias, contornos, sombras e profundidade de uma caverna (self). O predomínio da influência do ser interior sobre o self corresponderia ao conceito winnicottiano de verdadeiro self. O ser interior é o que há de mais característico, pessoal e imaterial em cada um de nós e, desde sua interação com o self, o autor concebe "um modelo unificado para a abordagem e compreensão da vida psíquica".

Nesse modelo, o distanciamento de contato com o ser interior manifesta-se de duas maneiras fundamentais, acompanhadas ou não de angústia. A primeira é a fragilização do self, com suas nuances de enfraquecimento e esvaziamento, entre elas: a insegurança, os sentimentos de impotência e de retração diante da vida, os estados de vazio e nulidade, as dispersões de si mesmo, o alheamento, os endurecimentos e as aniquilações. A segunda é a intensificação da sensorialidade com o propósito de controlar, eliminar, preencher ou evitar as lacunas e esburacamentos do contato com o núcleo do próprio ser. Assim, no lugar da fragilidade passa a predominar a sensorialidade das drogas, do excesso de trabalho e uso de tecnologias, da sexualidade indiscriminada, da aderência irrefletida a valores e crenças, mesquinhez, ganância ou voracidade. Em outras palavras, o predomínio da coisificação e da desumanização.

Enquanto expressões do distanciamento do contato consigo mesmo, o grau de fragilidade do self e de sensorialidade adquirem configurações específicas para cada sujeito, ou seja, ao se combinarem, definem estados e padrões predominantes de funcionamento mental, os sistemas mentais determinantes, passíveis de ordenação e classificação.

A ideia central do livro é oferecer uma concepção de conjunto, estrutural, ou seja, uma Psicanálise Compreensiva, norteadora do pensamento e da intervenção clínica. Para tanto, os capítulos são organizados como um estudo sistemático dos sistemas mentais determinantes que sustentam o distanciamento do ser interior, por meio da descrição e da classificação do modo como se configuram a fragilidade e a sensorialidade nas perturbações psíquicas. A teoria e observação ganham complexidade à medida que esse modelo é explorado pelo autor e novas variáveis são introduzidas: os efeitos da pulsão de morte, a angústia de dissipação do self e o nível de estruturação dos processos psíquicos em estados consciente, inconsciente e oclusivo.

O texto é entremeado de vinhetas, o que possibilita vislumbrar o modelo teórico - e o próprio autor - em ação. Um esboço de classificação é desenvolvido ao longo dos capítulos, cujo princípio organizador não é o sintoma ou a entidade nosológica, mas a descrição dos mecanismos e dinamismos subjacentes às perturbações psíquicas segundo uma nova lógica. A lógica do ser. Nessa perspectiva, uma verdadeira espectrografia dos estados psíquicos é apresentada por Trinca ao operar o seu modelo ordenador. Esse modelo possibilita uma concepção de conjunto da psicanálise, ao mesmo tempo unitária e essencialmente aberta a novos detalhamentos e explorações de estados mentais. Para realizar essa tarefa, Trinca transita pelas psicanálises - especialmente as de Freud, Winnicott, Klein e Bion - visando estabelecer constantes conceituais que possibilitem articular, numa visão unitária, a diversidade da clínica e estabelecer um código de comunicação comum entre os diversos modelos teóricos em psicanálise.

Embora o foco do livro sejam as perturbações psíquicas, o penúltimo capítulo é dedicado às experiências de expansão da consciência de si, por meio do contato com o núcleo do próprio ser. Algumas palavras, recolhidas no próprio texto, descrevem esse processo: liberdade, flexibilidade, espontaneidade, ancoragem, sustentação da própria vida e exercício de comando sobre os processos mentais, alegria de existir por existir, capacidade de brincar, integração, gesto espontâneo, elasticidade, plasticidade, sensibilidade, sonho, imagens espontâneas, radiância do mundo, memória espiritual e silêncio interior. Assim, a concepção de conjunto ganha amplitude, incluindo as experiências de sanidade mental e integração, muitas vezes esquecidas ou relegadas a um segundo plano pela psicanálise.

Uma das principais reflexões que a leitura provoca é a seguinte: em que ponto do eixo de contato com o ser interior se encontra o próprio psicanalista? Ele está verdadeiramente presente na relação que estabelece com o paciente? De que maneira a inteireza da experiência clínica pode estar, por exemplo, sendo saturada sensorialmente por excesso de teorizações ou por uma presença humana minguada do profissional? Nesse sentido, a leitura pode se converter num importante exercício de reflexão e autoanálise para o clínico.

Por outro lado, em nosso percurso como estudiosos da psicanálise, alcançar uma concepção de conjunto é algo bastante difícil frente a um século de literatura psicanalítica e diante do longo percurso que a nossa experiência clínica requer para amadurecer. Trinca é um conhecedor profundo da alma humana e seu livro, um verdadeiro curso de psicodinâmica e diagnóstico das perturbações psíquicas.

Na prática clínica, é comum nos darmos conta desse fenômeno de distanciamento de si mesmo, no qual o paciente, por fragilização, apego aos objetos ou coisificação de si e do outro, não consegue ou nunca conseguiu ser ele mesmo. A contribuição de Walter Trinca foi conceber uma linha contínua de contato com o núcleo do próprio ser, tomando-a como um dispositivo organizador em que se classificam esses estados de distanciamento de si e suas manifestações essenciais. A sua inventividade como clínico e pensador reaparece nessa súmula preciosa de sua trajetória e de sua experiência, que é a Psicanálise Compreensiva.

 

 

Recebido em 25/06/12
Aceito em 25/06/12

 

 

* Endereço para correspondência: Avenida Dom Antonio, 2100. - Assis - SP. CEP: 19806-900. E-mail: walter@assis.unesp.br; helenarr@osite.com.br