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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.29 Belo Horizonte set. 2006

 

TEXTOS SELECIONADOS

 

Anjo negro: gozo da cor

 

Black angel: colour enjoyment

 

 

Eliana Maria Delfino1; José Tiago Reis Filho2; Sílvia Regina Gomes Foscarini3; Wanda Avelino4

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Analisam à luz da psicanálise a problemática racial tendo por base a peça teatral Anjo Negro, de Nelson Rodrigues. Apontam para as dificuldades e contradições que operam nas realidades insuportáveis e excludentes fazendo com que, dessa forma, o negro renegue a própria cor.

Palavras-chave: Preconceito, Discriminação, Recalque, Trauma, Gozo.


ABSTRACT

Based upon the play of Nelson Rodrigues, “The Black Angel”, the authors analyse racial problems in the light of psychoanalysis. They point out the difficulties and contradictions that interact with the unbearable and excluding realities which cause a black individual to deny his own colour.

Keywords: Prejudice, Discrimination, Repression, Trauma, Colours enjoyment.


 

 

Nelson Rodrigues desejou escrever a peça Anjo Negro desde que sua sensibilidade foi tocada ao perceber o preconceito de que o negro é alvo na sociedade brasileira e a existência de preconceito no negro em relação a outro da mesma cor. A peça foi escrita em 1946, mas dentre todas as suas obras é a que foi encenada em apenas dois períodos, em 1948, sob a direção de Ziembinski, e em 1994, sob a direção de Ulisses Cruz. Na primeira montagem, três meses antes da estréia, a peça foi interditada pela Censura Federal. O teatro de Nelson Rodrigues é tido e havido como malvisto, mal falado, mesmo assim, suas peças vêm sendo representadas e adaptadas para cinema e televisão, o que tornou sua obra conhecida e reconhecida.

Anjo Negro é apresentada em três atos. O cenário, conforme concebido pela produção, apresentava-se sem nenhum caráter realista: um pequeno caixão de seda branca ocupa o andar térreo da casa onde dez senhoras pretas se postam em semicírculo e formam um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada, ajudam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa o anjo, veste um terno branco, engomadíssimo, e calça sapatos de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, traja luto. “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (p.125). É nesse cenário que se inscreve o drama, que também reproduz cenas da infância do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança, Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam a morte dos maridos.

O que, na peça, é fadado ao silêncio? O que não pode ser mostrado e, ao mesmo tempo, é explicitado no texto? Nelson aponta para a problemática racial em que, certamente, se articulam os subsídios para uma teoria social do Brasil, onde se destaca a violência como fator de base dos fundamentos estruturais do modelo étnico-social brasileiro. A peça explicita a vivência de amor/ódio num casal inter-racial e a ambigüidade diante de sua linhagem mestiça. O estilo poético-realista de Nelson Rodrigues revela, de maneira perturbadora, temas adormecidos no inconsciente. Ele revolve esse universo profundo do espectador trazendo à consciência o recalcado e utiliza-se da tragédia para falar do racismo. Assim, remete-nos ao drama grego: a tragédia, pois somente o trágico daria conta de desvendar essa realidade brasileira relegada às trevas – o racismo. Algo da ordem do trágico, tal qual é explicitado no drama grego, pode estar muito próximo de nós, se considerarmos que, enquanto humanos, vivenciamos as emoções que o perpassam.

Virgínia assassina um a um os filhos que trazem em si a marca da mestiçagem e odeia a filha, fruto do adultério com o cunhado. Ela tem preconceito, mas mesmo assim sente-se atraída pelo marido negro, que vive o complexo da própria cor. Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que esses crimes os uniam ainda mais. Ambos recusavam a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e culpá-la por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir o fato de ter a pele negra.

Elias, irmão de Ismael, era branco e cego. Na infância, Ismael o cegou, vingando-se dele por ser branco e bonito. No velório do terceiro filho do casal, Elias conhece Virgínia, apaixona-se por ela e dessa relação nasce Ana Maria, branca, que será criada por Ismael como filha. Ismael a cega para que ela não descubra que ele é negro e, dessa forma, vivem uma relação marcada por um “ar incestuoso”.

A peça nada esclarece sobre o pai do anjo negro. Que versão do pai teria marcado e entrado em jogo no destino de Ismael? O fato de ele compactuar com o assassinato dos filhos marca a possibilidade da sua não nomeação pelo pai, fato que dificulta a todo homem se nomear enquanto pai. “Pater incertus est, mater certíssima”. Sendo o pai incerto, a criança fica na dependência da fala da mãe, que pode instituí-lo ou não na função simbólica de paternidade. E que peso esse desconhecimento teve na sua imagem de homem negro?

Ismael não consegue disfarçar nem superar as contradições de um corpo marcado insistentemente pelo efeito da voz que, em seu ato complexo de vocação e invocação, reproduz o efeito do olhar, inscrito historicamente por um passado escravista. Paralisado, ele não consegue alçar à condição de desejante, sujeito este capaz de sustentar suas escolhas, com todas as particularidades que uma posição assim nos revela e nos exige em termos de renúncia.

O que faz uma pessoa renegar a própria cor? Este é o questionamento rodrigueano expresso pela voz de Elias.

Em “A Negativa”, Freud (1925) pontua a propriedade de certos conteúdos recalcados que só podem ter acesso à consciência sob uma única e importante condição: a de serem negados. No processo de negação – Verneinung –, responder com o não evoca a idéia de rebater ou rejeitar algo, denotando indício da presença e resistência de material recalcado e muitas vezes deixado de lado pela negação verbal ou intelectual. O que é importante nesse processo é o efeito da suspensão do recalque, mesmo que isso não signifique aceitação do que está recalcado. A denegação aponta, faz surgir o que não é aceito, o que a difere do mecanismo da recusa – Verleugnung –, no qual o que está em jogo é a veracidade da existência do objeto, e o que se faz presente é um diálogo sobre a existência ou não do conteúdo negado – “Eu sei, mas mesmo assim...”.

Importante também é a causação do efeito da representação do significante na constituição psíquica e o efeito traumático que o impacto de alguns desses significantes exerce sobre o sujeito, especialmente aqueles que expressam realidades insuportáveis e excludentes como no caso do negro, marginalizado social, cultural e intelectualmente.

Talvez seja importante falarmos um pouco sobre a questão traumática e de como pensamos em articulá-la a situações vividas pelo negro. Vejamos, a princípio, o conceito de trauma na obra freudiana. Este foi primeiramente descrito sob o ponto de vista energético. Em seu texto Projeto para uma Psicologia Científica (1895), Freud descreve o trauma pelo viés de uma realidade factual de cunho ameaçador, um estímulo externo que, ao romper as barreiras de contato, cuja função é proteger o psiquismo dos excessos energéticos, coloca em risco a sobrevivência do indivíduo. A teoria da sedução faz sua aparição neste período e ganha então o estatuto de fator desencadeador da neurose. Mais tarde, em 1897, numa carta a Fliess (Carta 69), reconhece a teoria da fantasia e a idéia do trauma/sedução perde relevância. Em 1920, o trauma ressurge como trauma da pulsão, carente de representação no aparelho psíquico, apontado no texto Além do Princípio de Prazer, referendado pela pulsão de morte e pela repetição.

Se em Freud, como vimos, o trauma apresenta-se como sexual, para Ferenczi (1933), o trauma se constitui como uma nova forma de interpretação, que não só reafirma a presença de excesso de excitação e a sua não-representação psíquica, mas, sobretudo, que se refere à realidade de um abuso, seja ele de ordem sexual ou de ordem interna ou externa. O desmentido faz sua aparição e se desenvolve como uma importante expressão de formação traumática.

Em Lacan (1985), o trauma é situado enquanto articulação da função sexual com o discurso do Outro, fazendo com que a atribuição recuse ao sujeito os outros significantes, ou seja, a partir do momento em que o sujeito recebe uma palavra atributiva, este se vê dividido entre a palavra recebida e todas as outras que ficaram em suspenso. A percepção não é anulada, mas também não se inscreve simbolicamente na cadeia significante, permanecendo no psiquismo como uma espécie de quisto sempre pronto a irromper. Para compensar, uma nova realidade é criada em substituição àquilo que falta, através do fetiche, do sadismo ou do masoquismo. Não é à toa que Ismael nunca se embriagou e tampouco conseguiu “matar” em si o desejo que tinha por negras. Por que ele cega Elias e Ana Maria? Para que estes não o vejam? Para não verem a si próprios? Para viverem na escuridão? O racismo induz o indivíduo negro a uma covardia diante da verdade que se faz mister assumir, isto é, a aceitação de que se é negro.

Na “Proposição de 1967”, Lacan pontua que a destituição do sujeito é cruel, pois ela o reduz ao silêncio. É o que se observa. O segregado não se pronuncia, vítima da máquina da discriminação. Máquina que o induz a uma passagem para um real insuportável, conduzindo o negro a não dizer de si, mas, muito pelo contrário, a ser dito pelo Outro. Contudo uma questão se presentifica: será realmente que o negro não fala? Ou o desconhecimento é de tal ordem que ele não se dá conta do grito que ficou estagnado na sua garganta? Grito que ressoa, produz restos. E quão ruidosos são os restos. O negro não fala de sua miséria, ele a vive na sua pele, na sua dificuldade de se assumir, enfim, na covardia perante o real do corpo. É vítima da segregação racial instalada pela abjeção da coletividade diante de um real a que a própria sociedade não faz face; sobretudo porque teme abordá-la e desmitificá-la.

Elias procura Ismael portando um recado da mãe: sua maldição. É ele quem vem revelar a condição de negro de Ismael, este que nada diz de seu pai, recusando também a paternidade (simbólica) de Elias a quem, quando menino, cegou, em quem bateu, tornando-se uma figura amedrontadora para este. Nunca perdoou o fato de Elias ser branco, de ser filho de brancos e ter tomado Ismael como pai, o Outro, lugar do código, enigma. É Elias quem realiza o desejo de Ismael de ter um filho branco. Essa é a função de Elias: levar Ismael a se confrontar com a castração, com sua condição de negro. Ele que tudo fez para apagá-la; ele que no dizer de Elias “é todo sensual”.

 

Bibliografia

CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.         [ Links ]

FERENCZI, Sandor. “Confusão de línguas entre adultos e crianças” (1933). Obras Completas IV. São Paulo: Martins Fontes, p. 97-108.        [ Links ]

FREUD, S. “Projeto para uma psicologia científica” (1895). Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de, v. I., p. 387-529.. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

FREUD, S. “A negativa”. ESB, v. XIX, p. 295-300. Rio de Janeiro: Imago, 1976.         [ Links ]

FREUD, S. “Além do princípio do prazer” (1920) ESB, v. XVIII, p. 17-85. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

LACAN, Jacques. “Proposição de 9 de outubro”. Letra Freudiana, n 0, 1987.        [ Links ]

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.        [ Links ]

RODRIGUES, Nelson. “Anjo negro”. In MAGALDI, Sábato (org.) Nelson Rodrigues: teatro completo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 125-192.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Antonio Albuquerque, 743/805
30112–010 – Belo Horizonte – MG
E-mail: josetiago@brfree.com.br

Recebido em 10/04/2006
Aceito em 10/05/2006

 

 

1 Psicóloga. Participante do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
2 Psicólogo. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG. Doutor em Psicologia Clínica PUCSP.
3 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

4 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

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