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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.31 Belo Horizonte out. 2008

 

 

Humor e Psicanálise*

 

Humor and Psychoanalysis

 

 

Marília Brandão Lemos Morais**

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O humor, considerado pelo próprio Freud um dom precioso e raro e, também, teimoso e rebelde, distingue-se do chiste e do cômico na sua elaboração teórica de 1905, Os chistes e sua relação com o inconsciente, e de 1927, O humor, ensaio apresentado por ele ao X Congresso Internacional de Psicanálise. Se a vertente trágica que inspirou o pensamento psicanalítico e sua práxis já foi por muitos explorada, a vertente do humor, diferentemente, esteve por longos anos deixada de lado pelos seguidores da psicanálise. Winnicott e Ferenczi deram importantes contribuições sobre o humor e o brincar na clínica. Em 1957, Lacan revisita o assunto com o seminário As formações do inconsciente. Os psicanalistas de agora têm retomado (ou recobrado) o humor, considerado como o outro lado do trágico, frente e verso, trágico e cômico e valioso recurso a ser utilizado na clínica psicanalítica e na própria vida. O chiste, o humor e o riso podem ser considerados formas efetivas de se lidar com o mal-estar.

Palavras-chave: Humor, Chiste, Cômico, Trágico, Drama, Riso, Ética da psicanálise.


ABSTRACT

Humor, considered by Freud as stubborn and rebellious as well as a precious and rare gift, differs from jokes and comedy, as can be seen in his theoretical study of 1905 “Jokes and their relationship with the Unconscious” and also in the1927 essay “Humor” presented by him in the X International Congress of Psychoanalysis. If the tragic approach -that inspired the psychoanalytical thought and its practice- has already been widely explored, humor, on the other hand, has been neglected by psychoanalytic followers. Winnicot and Ferenzi presented valuable contributions on humor and playing in clinical work. In 1957, Lacan revisits the topic in the Seminar “The shaping of the Unconscious”. Psychoanalysts have retaken humor, viewed as the other side of tragedy, verse and reverse, tragic and comic, a valuable tool to be used in the psychoanalytical clinic and in life itself. Jokes, humor and laughter can be considered effective ways of dealing with discomfort/uneasiness.

Keywords: Humour, Jokes, Comic, Tragic, Drama, Laughter, Psychoanalytic ethics.


 

 

A importância que Sigmund Freud atribuía aos chistes era antiga, remonta aos primórdios da psicanálise. Na sua correspondência com Fliess (carta a Fliess de 12/06/1897), ele fala de seu interesse pelas piadas sobre judeus e confessa que colecionava uma série delas. Ele sempre temperava suas inquietações fundamentais com o relato de chistes. Em 1905, publicou o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, no qual tentava desvendar o que torna uma piada risível e o que é o riso para a economia psíquica. Quando escrevia A interpretação dos sonhos, Freud já notava nos sonhos algo curioso: a presença neles de alguma coisa semelhante aos chistes (carta de 11/09/1899 a Fliess). Mas, enquanto o sonho é solipsista, só envolve o sonhador (a não ser quando narrado), o chiste é a formação do inconsciente que mais se insere no social, necessita do outro para referendá-lo. Ele começou o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente ao mesmo tempo em que a Interpretação dos sonhos, mas este foi publicado em 1900, enquanto aquele, no mesmo ano da publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) e do Caso Dora, redigido em 1901 e mantido na gaveta (na verdade, Freud só resolveu publicá-lo quando compreendeu o mecanismo da transferência e escreveu o Posfácio). Algumas concepções fundamentais dos Três Ensaios foram incorporadas à teoria dos chistes, como a do prazer preliminar, conceito relacionado à sexualidade infantil e à sexualidade perverso-polimorfa. Em 1905, os alicerces fundamentais da psicanálise já estavam estruturados na obra freudiana: inconsciente, aparelho psíquico, defesa, pulsão, objeto, sintoma, interpretação, transferência. E ainda, durante os primeiros anos do século XX, o criador da psicanálise procurou estudar a lógica do inconsciente e mostrar que ela está presente não apenas nos sonhos e sintomas, mas também na vida cotidiana, nos atos falhos, chistes e, um pouco mais tarde, nas práticas religiosas e na arte.

Vale dizer que os temas do riso e do cômico estavam na moda, na segunda metade do século XIX, e vários autores escreveram sobre eles, antes e depois de Freud. No campo da filosofia, o livro O riso, de Henri Bergson, publicado originalmente em 1899 na Révue de Paris, obra de grande bojo teórico, era conhecido por Freud e foi incorporado e criticado por ele no seu livro de 1905. Outra obra foi Komik und Humor, do filósofo Theodor Lipps1. Mas a originalidade do livro de Freud e sua contribuição maior foram inscrever o chiste como uma formação psíquica do inconsciente, destacando as dimensões do sentido e do desejo presentes na sua produção pelo sujeito e tê-lo inserido no corpo teórico da psicanálise, que estava, naquele momento, sendo constituído. O que o discurso freudiano vai enfatizar na técnica do chiste e do seu efeito humorístico são os mesmos mecanismos da condensação e deslocamento, pelos quais o inconsciente se apresenta, como nos sonhos, atos falhos e sintomas. Se o chiste está estruturado como uma formação do inconsciente, é por isto mesmo um trânsito para que alguma coisa da ordem do recalcado abra passagem e se mostre, sem pagar o preço neurótico da angústia ou do padecimento dos sintomas. O humor atua como álibi de alguma verdade do sujeito que, até então, não fora capaz de ser dita. “Numa brincadeira pode-se até dizer a verdade”, enuncia Freud no seu livro Os chistes e sua relação com o inconsciente. O recurso ao falei de brincadeira ou é de mentirinha pode ser a maneira de uma verdade ser anunciada, através do faz-de-conta: Foi sem querer querendo, como diz o Chavez do programa humorístico da TV. Esta verdade se diz através de um sentido insólito brotado do non-sense, do paradoxo, do absurdo, ao qual se segue uma revelação de sentido, que é sempre surpreendente e fugaz, seguido da descarga do riso. Qualquer tentativa de explicar ou aprisionar esta verdade num discurso formal levaria à perda do seu sentido humorístico, fazendo dela um saber triste ou sério. Por meio do atalho do humor, diferentemente, o sujeito assiste, ao mesmo tempo em que tangencia a sua própria divisão, sua condição sexuada e mortal.

Apesar da importância do livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, e de ser um assunto sempre atual, este ensaio foi o menos consultado pela comunidade psicanalítica, segundo Ernest Jones. E a produção escassa de artigos sobre este tema, pelos psicanalistas pós-freudianos, reforça esta constatação. Ferenczi e Winnicott ofereceram importantes contribuições sobre o humor e o brincar na clínica. Lacan, em 1957, resgata a importância dos chistes em seu seminário As formações do inconsciente, mas, tendo em vista que esse seminário só foi publicado na França em 1998 e no Brasil em 1999, continua válida a constatação de Jones, pelo menos até recentemente2. Já em Função e campo da fala e da linguagem, de 1953, Lacan escreve que esta obra (Os Chistes) era “a mais incontestável, porque a mais transparente, em que o efeito do inconsciente foi demonstrado nos confins de sua sutileza”. Isto porque, nesta gratuidade criativa da linguagem, o chiste desafia o real, no seu próprio não-sentido.

Joel Birman apresenta uma hipótese para este desinteresse dos psicanalistas pós-freudianos pelo tema do humor e do riso, e diz que foi perdida a sintonia da psicanálise com o registro do trágico e este fixou-se no registro do drama, “pois o que existe de risível e irônico nas diferentes formações do inconsciente foi devidamente recalcado, sendo aqueles substituídos pelas cavilações dramáticas”3. O próprio Freud, após escrever o livro Os Chistes, só retomou o tema vinte e dois anos depois, no pequeno e importante ensaio O Humor, de 1927. E sempre manteve com ele uma relação ambivalente: apesar de ter escrito a Ferenczi que o inseria entre as coisas boas de sua vida, mas, em seu Estudo Autobiográfico, diz que considera “mais importantes que este estudo as minhas contribuições à psicologia das religiões, de 1907”. E, ao contrário de seus outros assuntos, nos quais ele acrescentava notas de rodapé, posfácios e modificações nas edições posteriores, o livro dos chistes e o ensaio O Humor nunca foram mudados ou sofreram apenas pequenos acréscimos. Talvez porque, no seu tempo, a ciência estava impregnada de solenidade, e o humor e o riso seriam incompatíveis com a seriedade dela e deturpadamente associados à puerilidade e ao descompro-misso. Fliess, ao ler as provas de A interpretação dos sonhos, queixara-se do uso freqüente dos chistes nos textos de Freud, por isso acredita-se que o livro Os Chistes tenha sido uma resposta deste às críticas de seu amigo.

O criador da psicanálise utilizava os chistes e o humor em seus textos e em sua vida. Se o humor consiste numa forma inteligente de lidar com a dor e o sofrimento e ainda tirar prazer disto, na sua própria vida observamos isto, em duas situações descritas por Peter Gay (e citadas por Daniel Kupermann). Por exemplo, em 1938, na época de deixar a Áustria dominada então pelo nazismo, após a prisão e interrogatório de sua filha Anna, Freud foi obrigado a assinar um documento para a Gestapo dizendo que não havia sofrido maus-tratos. Após assiná-lo, ele acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo a todos”4. Esta tirada de humor foi, no início, interpretada por Gay como uma tentativa inconsciente de suicídio, uma vez que a ousadia do médico vienense punha em risco sua própria vida, caso as autoridades nazistas reconhecessem ali uma fina ironia. Mas, num segundo tempo, o mesmo Gay reconhece que esta atitude demonstrava uma grande coragem e vitalidade de Freud e “seu senso de humor irreprimível”. Esta ambigüidade, que aponta tanto para a vida como para a morte, revela a ambivalência e o paradoxo próprios do registro do tragicômico e do humor negro, nesta estranha proximidade da angústia e do riso. Ou de como o humor pode ser um último véu a cobrir e descobrir o horror. É famoso o chiste de humor negro escrito por Freud, o do condenado à morte que numa segunda-feira pela manhã, ao ser levado para execução, comenta: “É, a semana está começando otimamente”5. É o humor enquanto afirmação do desejo diante da adversidade e da morte. Humor lúcido e trágico, ao mesmo tempo triunfal, alegre, ou seja, o humor freudiano, em sua associação íntima com a morte, é tragicômico.

Alguns episódios da vida de Freud, especialmente na sua velhice, quando – acometido por um câncer de mandíbula que lhe causava muito sofrimento – assistia ao advento do nazismo na Europa, demonstram este fino humor. Em maio de 1933, ao saber que seus livros estavam incluídos nos que seriam queimados em praças públicas das cidades alemãs e nos campi universitários, fez o seguinte comentário: “Que progressos estamos fazendo. Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia, eles se contentam em queimar meus livros”6. Mal sabia ele o quanto estava sendo profético!

Numa conversa com o jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, Freud teria dito: “Setenta anos de existência ensinaram-me a aceitar a vida com alegre humildade [...] Não gosto de meu palato artificial, porque a luta para mantê-lo em função consome minha energia. Prefiro, entretanto, um palato postiço a nenhum; ainda prefiro a existência à extinção... Não sou pessimista, não permito que nenhuma reflexão filosófica me faça perder o gozo das coisas simples da vida”7. Sábias palavras de alguém que, apesar dos sofrimentos pelos quais passou, ainda amava a vida e pode expressar, aos 71 anos, a sua criatividade e escrever sobre o valioso dom do humor para aliviar as dores da existência, pois só através dele é possível divertir-se no infortúnio. O humor permite a inscrição da intensidade pulsional no universo das representações, ainda que em situações-limite. Permite que o sujeito afirme seu desejo contra a pulsão de morte que o habita.

O termo Witz, traduzido na edição brasileira por Chiste, tem raízes no romantismo alemão e é de difícil tradução para o português. Os franceses preferiram esprit, espírito, o dom de quem é espirituoso. Podemos traduzir do alemão por dom de contar acertadamente algo alegre e divertido, dom de replicar pronta e alegremente, graça de espírito, o espírito da coisa, inteligência, engenhosidade, esperteza. O termo remete também para o verbo wissen que significa saber, ou seja, um gaio saber, um saber alegre. Consideraremos tanto as piadas quanto o humor apresentações privilegiadas do Witz, porém elegeremos o humor com o papel de destaque que lhe é dado por Freud no seu texto de 1927 – O Humor, vinte e dois anos após ter escrito o primeiro livro sobre o assunto.

O humor seria uma criação simbólica repentina, quando através da surpresa e do inesperado eclode um sentido novo. É articulado e depende totalmente da linguagem e do deslizamento de sentido da palavra. Enquanto o cômico tende à universalidade (por exemplo, o Charles Chaplin do cinema mudo, o Gordo e o Magro), o humor marca o traço do particular, é preciso ser da paróquia para se entender uma piada ou um dito espirituoso. A referência de Freud à terceira pessoa coloca em cena o Outro como o lugar do simbólico, do código da linguagem, com toda sua ambigüidade, polissemia, equívoco e jogos de palavras, além da pessoa de carne e osso que a encarna. Poderíamos buscar exemplos de humor na literatura e no cinema com Cervantes, Tchekhov (que nos diz que a realidade pode ser vista tanto pela janela do cômico como pela do trágico), Alfred Hitchcock, Woody Allen, que com seu filme Melinda e Melinda nos mostra uma mesma história vista pelas duas janelas de Tchekhov, a do drama e a da comédia.

O humor torna o sujeito capaz de rir de si mesmo e mostra que toda verdade é incompleta, que o ser humano é insuficiente, e quando a vida mostra a sua imperfeição e falha, ainda assim vale a pena uma boa risada.

No último capítulo do livro dos Chistes, são tecidos alguns comentários sobre o humor. O humor “é um meio de obter prazer, apesar dos afetos dolorosos que interferem com ele; atua como um substitutivo para a liberação destes afetos, coloca-se no lugar deles [...] O prazer do humor[...] procede de uma economia na despesa do afeto, ao custo de uma liberação de afeto que não ocorre”[…] (p. 257). A natureza do sentimento economizado a favor do humor pode ser compaixão, raiva, dor, ternura, etc., humor úmido, humor do sorriso entre lágrimas.

O humor completa o seu curso dentro de uma única pessoa; não é necessário uma outra para a fruição do prazer humorístico. Mas, quando o humor é comunicado ou compartilhado pelo humorista, sentimos o mesmo prazer que ele. O deslocamento no humor foi inicialmente considerado por Freud, em 1905, um mecanismo de defesa, a realizar a tarefa de impedir a geração de desprazer, a partir de fontes internas. Está em conexão com o infantil, que lhe coloca à disposição os meios para executá-lo, pois apenas na infância existem afetos dolorosos dos quais o adulto ri hoje, de si mesmo, assim como o humorista ri de seus afetos dolorosos atuais. Existe uma exaltação do Eu cuja tradução seria: “Sou grande ou bom demais para me deixar atingir por estas coisas” (nessa época, o conceito de narcisismo ainda não fora desenvolvido). Freud enuncia, ainda, que o prazer nos chistes procede de uma economia na despesa psíquica com a inibição; o prazer no cômico provém de uma economia na despesa com a representação; e o prazer no humor, de uma economia na despesa com o sentimento (os afetos). E, podemos hoje acrescentar, após as contribuições de Lacan: o chiste é da ordem do simbólico, o cômico, da ordem do imaginário e o humor, da ordem do real.

No ensaio de 1927, Freud retoma o tema do humor exatamente onde tinha terminado no livro Os chistes e sua relação com o Inconsciente. E repete que há duas maneiras pelas quais o processo humorístico se faz. Quando uma pessoa se torna o humorista, o processo de prazer se faz nela mesma e o outro se torna a platéia que retira prazer dela. Ou pode efetuar-se entre duas pessoas, uma das quais não toma parte no processo, mas é tornada objeto pelo humorista. Assim, o humor pode ser dirigido ao Eu do próprio humorista ou a outra pessoa e causa prazer ao humorista e àquela que é o ouvinte não participante. O assistente espera uma emoção do humorista (que ele fique zangado, ou horrorizado, ou manifeste sofrimento numa determinada situação). Mas esta expectativa é frustrada e, ao invés do afeto esperado, escuta uma pilhéria. A essência do humor é poupar afetos.

Mas o humor possui, segundo Freud, “qualquer coisa de grandeza e elevação8, que faltam ao chiste e ao cômico: o Eu se recusa a sofrer as provocações impostas pela realidade. Significa a vitória do Eu sobre o mundo externo e a vitória do princípio do prazer, do modo de funcionamento do processo primário, característico do inconsciente. O desejo se afirma perante a pulsão de morte e a pulsão traça novos caminhos simbólicos, encontra outros objetos de satisfação. A despeito do triunfo do narcisismo enfatizado por Freud, o humor denuncia o fracasso e a impossibilidade de realização das ilusões narcísicas do Eu, leva a uma desidea-lização e desmontagem das certezas, permitindo que o desejo abra caminhos. Estamos lidando, na questão do humor, não com o triunfo do Eu, mas com a afirmação teimosa e rebelde do erotismo e do desejo do sujeito, diante das adversidades impostas pelo destino, pelo acaso e pela morte. O caráter rebelde do humor se opõe à resignação masoquista do sujeito diante do real e aos imperativos sociais.

O humor não é resignado, mas rebelde9. Assim, o humor possui uma dignidade dos processos que a mente humana cria para se desviar do sofrimento, dignidade esta que o chiste não possui, segundo Freud, uma vez que se presta apenas à produção de prazer ou a serviço da agressividade. Apesar de o humor não propiciar um prazer de intensidade semelhante ao chiste, este prazer tem um valor maior, pois ele é liberador e até mesmo enobrecedor. É das funções psíquicas mais elevadas e reconhecidas pelos pensadores e intelectuais. Freud considera o humor uma contribuição do superego ao cômico, um superego complacente para com o Eu, como um pai para seu filho. O que o humor transmite significa: “Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”10.

O humor é um dom precioso e raro!11, diz ele. São os humoristas aqueles que captam a fragilidade do homem, seus conflitos, sua finitude, sua dor e seu sofrimento, cravam as unhas no mal-estar, desviam do interdito e dali saem com um dito espirituoso que os faz rir de si mesmos, ou do outro, e faz o outro rir. São eles que revelam nossas contradições, nossas falhas, nossas imperfeições. Através do humor, todo poder constituído é gozado, as teorias perdem sua pomposidade, as religiões, as ideologias mostram sua face frágil e nua. O humor é transgressor!

O humor enquanto desconstrução de poder está exemplificado por Birman com o famoso humor judaico. O judaísmo utilizou-se do humor para a sua sobrevivência, enquanto cultura minoritária e enquanto ethos, como forma de reação criativa ao anti-semitismo. Os judeus não se colocaram numa posição de vítimas, nem de mortificação masoquista, passiva, mas opuseram-se ativamente a isto, através de uma desmontagem social promovida pelo chiste, propiciadora da circulação do desejo e da abertura de novas vias de discurso. Birman diz que “transformar a agressão mortífera em chiste e ainda gozar com o que se realiza, pelo riso que provoca, implica, para a tradição judaica, não se identificar com o agressor e esvaziar em ato, em cena social, o aniquilamento presente no gesto anti-semita”12. Na virada do século XIX para o século XX, quando foi escrito o livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, uma Áustria anti-semita foi o palco para a criação da psicanálise. Não é por acaso que a singularidade da criatividade judaica, a qual permeia este livro recheado de piadas sobre judeus, contribuiu para a sua própria constituição.

Enquanto homens, estamos ameaçados constantemente pelo sofrimento psíquico provocado pela nossa condição humana — a morte, o envelhecimento, a doença, ameaças do mundo externo, a natureza com suas fúrias —, e pelos nossos companheiros de descrença, os outros homens. Em face destas exigências, criamos defesas regressivas contra o sofrimento psíquico que são a neurose, o delírio, as drogas, o auto-abandono, o êxtase, as sublimações. O humor, assim como a arte, é um destes caminhos onde o princípio do prazer triunfa sobre o princípio da realidade, dentro do campo da saúde psíquica, onde o desejo se realiza e se contrapõe à pulsão de morte, onde, na situação-limite de encontro com o real, a pulsão se inscreve no campo das representações, produzindo um efeito simbólico. Se o chiste é um modelo para se pensar o inconsciente, o humor é uma forma sublimada de lidar com as dores do existir, sem perder a graça.

O chiste é considerado um modelo do ICS, pois é composto apenas de palavras, de um jogo de palavras; existe nele um levantamento da inibição e uma criação, quando uma representação ICS pega carona numa pré-consciente e apresenta-se ao consciente do piadista, que a conta ao terceiro e produz nele um efeito, constatado pela risada. A piada só é piada se o terceiro é tocado por ela e a referenda com o riso.

O psicanalista Abrão Slavutzky13 sempre diz aos seus amigos contadores de piadas, que anunciem que vão contar uma estória e não uma piada, pois esta só será piada num segundo momento, se houver o desencadeamento do riso no outro. Assim como a interpretação, quando o analista faz uma intervenção e só se sabe se é uma interpretação a posteriori, ao produzir o efeito simbólico no paciente, que pode tanto chorar, como rir com uma risada estridente, mostrando que algo foi tocado.

Numa nota de rodapé, no capítulo VI, do livro Os chistes e sua relação com o inconsciente, Freud fala sobre o riso como um dos efeitos regulares da intervenção analítica:

Muitos de meus pacientes neuróticos, sob tratamento psicanalítico, demonstram regularmente o hábito de confirmar algum fato pelo riso quando consigo dar-lhes um quadro fiel de seu inconsciente, ocultado à percepção consciente; riem mesmo quando o conteúdo desvelado não justifica absolutamente o riso. Tal fato sujeita-se, naturalmente, a uma aproximação do material inconsciente, íntima bastante para captá-lo, depois que o médico o detecta e o apresenta a ele. (FREUD, 1980, p. 195).

Isso demonstra, mais uma vez, que a verdade do ato psicanalítico só é dada a posteriori, neste caso, confirmada pelo desencadeamento do riso. O ato analítico não pertence exclusivamente ao patrimônio psíquico do analista, mas produz-se a partir de uma relação transferencial e pode ser avaliado pelos efeitos reais no psiquismo do analisando. Pode-se rir, diz Freud, ainda que o saber produzido pela análise provoque dor. O riso seria um signo de que algo fundamental produziu-se no analisando e abre para ele novos canais de acesso à experiência analítica. Algo da ordem do registro do trágico, quando é tocado no decorrer de uma análise, pode desencadear uma risada estridente e entreabrir caminhos para que alguma coisa da ordem do não previsível, do não-familiar, surja, possibilitando o encontro com o horror presente nos meandros do psiquismo. Uma porta se abre através do riso, o princípio do prazer abriria, paradoxalmente, as comportas para o além do princípio do prazer, contornando as interdições e abrindo novas possibilidades de simbolização.

Lacan faz uma diferença entre ato e ação: o ato significa alguma coisa de inaugural, nova, que traz consigo uma mudança e aproxima o ato psicanalítico do ato político, pelo que ele tem de revolucionário. A peculiaridade deste ato é que ele apresenta um efeito a posteriori na resposta que provoca no analisando.

Daniel Kupermann, em seu livro Ousar rir, considera o humor uma ferramenta efetiva de intervenção clínica, justamente por promover esta subversão. A criação existente no humor surge da insistência pulsional, da teimosia do humor, que não é resignado, mas rebelde, surge do acaso e mobiliza o sujeito a sair de um lugar repetitivo para um lugar do desafio criativo. Quando o analisando ri de uma intervenção do psicanalista, é ele próprio a terceira pessoa que ri, mas o alvo de seu riso é também uma parte alienada de seu Eu. Isto mostra que ele é capaz de reconhecer como familiar aquilo que estava escondido nas dobras de seu psiquismo. E nos faz pensar na proximidade do humor com o estranho, o Unheimliche, o horror mesclado ao riso, o riso úmido de lágrimas. O ato psicanalítico promove efeitos de saber sobre o sujeito e provoca o estranho e a possibilidade do encontro com algo familiar, naquilo que é verdadeiramente não familiar. Existe uma aproximação entre a experiência do estranho e os efeitos esperados do ato psicanalítico; a intervenção do psicanalista provoca uma surpresa e um choque no analisando, uma sensação de desamparo e estranheza, seguidos de um rápido preparo para a inibição, que não chega a se consolidar e origina uma liberação afetiva e uma elaboração psíquica. Existe uma aproximação entre o ato psicanalítico, o estranho e o humor.

O dito humorístico só é humorístico e desperta o riso se preencher determinadas condições: a surpresa, a ambigüidade, o afeto doloroso suprimido. A mesma situação que despertou o riso passa a não ter graça se contada de outra maneira.

Nos primórdios da psicanálise, Freud referencia o método catártico como uma proposta terapêutica para regular e eliminar os efeitos nocivos dos afetos penosos sobre o psiquismo. Ele retirou este conceito da Poética de Aristóteles, numa teoria sobre a tragédia. Segundo Aristóteles, a tragédia é a representação imitadora, uma mimesis, de uma ação séria que, através da compaixão e do horror desencadeado nos expectadores, provoca a liberação de tais afetos, ou seja, uma purgação, uma catarse, que protege o indivíduo da passagem ao ato. E a palavra drama provém do dórico drân, correspondente ao ático práttein, agir.

Em 1905, o discurso freudiano deslocou-se do registro do trágico para a teoria dos chistes, partindo para o pólo oposto, o riso. No intervalo de 12 anos, de 1893 a 1905, a psicanálise foi constituída, num movimento da teoria das psiconeuroses, as quais tinham a catarse como tratamento, para uma teoria da fantasia inconsciente, fundada agora no conceito de inconsciente. De 1893 a 1905, ele deslocou-se do drama ao chiste, ao riso, polaridade esta na qual o discurso psicanalítico foi tecido.

Se na neurose o sujeito se mantém preso numa relação dramática com seu sofrimento e na sua maneira de estar no mundo, a experiência analítica oferece uma possibilidade de esvaziamento deste gozo masoquista, através de uma desdramatização narrativa desta seriedade exagerada e fatalista que os pacientes atribuem aos seus males, de modo a se defrontarem de uma outra forma com o imprevisível brotado dos labirintos de seu psiquismo, não se levando tão a sério e podendo confrontar-se com as suas falhas com uma maior leveza, a ponto de conseguirem rir de si mesmos, algum dia.

Em A Psicoterapia da Histeria, Freud faz uma referência à desdramatização do infortúnio (termo usado por Joel Birman) na experiência analítica14, ao dizer que o tratamento analítico deveria transformar a miséria histérica em infelicidade banal15. Neste fragmento de discurso, no qual está presente o ethos da psicanálise, ele reconhece que a psicanálise deveria desdramatizar a miséria histérica e reafirma uma infelicidade banal à qual estamos sujeitos enquanto humanos e da qual não podemos escapar, ou seja, a dimensão trágica da existência. É justamente neste caráter tragicômico que reside a experiência da ação humana.

Foi fundamental a condição judaica de Freud para inscrever o humor e as piadas em uma das formações do inconsciente, ao lado dos sonhos, atos falhos, lapsos e sintomas, pois o humor se insere nesta tradição judaica como meio de superar o sofrimento e as adversidades produzidas pela diáspora. Os impasses do sujeito puderam ser interpretados como algo da ordem do trágico e não da do drama, pois no trágico existe sempre o humor como possibilidade, ao contrário do drama, em que habita o ressentimento a ser transformado em masoquismo e melancolia.

Em O mal-estar da civilização, com o conceito de pulsão de morte já criado, ele afirma que o mal-estar e a infelicidade banal estão registrados na condição humana, encontrando-se aí a dimensão trágica do sujeito. A psicanálise carrega em si a dimensão do trágico.

Mas, se a psicanálise traz o convívio e a proximidade com o trágico, carrega também implícita a desdramatização da existência, já que a neurose é a encarnação do drama e possibilita a construção, pelo sujeito, de instrumentos para se lidar com esta tragicidade inerente, da qual não se pode escapar, permitindo-lhe desgarrar-se do drama da neurose, num movimento para o trágico da existência. Ou seja, o sujeito mudaria o ritmo da dança da vida, de um repetitivo tango argentino ou dos dolorosos lamentos de um fado português para uma bossa-nova. Este é um dos objetivos da análise. E nesta dimensão trágica da existência, o chiste, o humor e o riso aparecem como formas efetivas de se lidar com o mal-estar.

Finalizando, o humor é ético porque é afirmação do desejo ante a pulsão de morte; é estético, pois criativo contorna os interditos e causa prazer da ordem da sublimação; e político, pois que é uma forma de desconstrução, pelas beiradas, do poder instituído, para que o sujeito reafirme o seu desejo e restaure o seu direito de existir numa comunidade social. Sem perder a graça!

 

Referências

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Recebido em 02/05/2008

 

 

* Psiquiatra, Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
** Texto apresentado no Seminário do Texto Freudiano do CPMG em outubro de 2007.
1 Apud STRACHEY, James. Prefácio do editor inglês [1964] a Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.VIII, p.13.
2 Jones apud KUPERMANN, D. Perder a vida, mas não a piada: o humor entre os companheiros de descrença. In: SLAVUTZKY, A.; KUPERMANN, D. (Org.). Seria cômico... se não fosse trágico, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.29.
3 BIRMAN, Joel. Frente e verso. In: SLAVUTZKY, A.; KUPERMANN, D. (Org.). Seria trágico... se não fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 95
4 GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 567.
5 FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. In:___. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas, op. cit., p.258.
6 GAY, Peter. Freud: uma vida para nosso tempo, op. cit., p. 536.
7 VIERECK, G. O valor da vida: uma entrevista rara de S. Freud. Reverso, n. 48, set.2001.
8 FREUD, Sigmund. O humor, op. cit., v. XXI, p. 190.
9 Id., ibid., p. 191.
10 Id., loc cit.
11 Id., loc. Cit.
12 BIRMAN, Joel. Frente e verso, op. cit., p. 104
13 SLAVUTZKY, Abrão. O precioso dom do humor. In: SLAVUTZKY, A.; KUPERMANN, D. (Org.). Seria trágico... se não fosse cômico, op. cit., p. 201-208.
14 BIRMAN, Joel. Frente e verso. In: Slavutzkyi, A.; KUPERMANN, D. (Org.). Seria trágico... se não fosse cômico, op. cit., p.89.
15 FREUD, Sigmund. A psicoterapia da histeria, op. cit., v.II, p.363.

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