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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.34 Belo Horizonte dez. 2010
Entre desejo e lei: pedagogia institucional e conflitos na escola
Between desire and law: institutional pedagogy and conflicts in school
Fernando Cézar Bezerra de AndradeI,II1; Katherinne Rozy V. GonzagaIII2
ISociedade Psicanalítica da Paraíba
IIUniversidade Federal da Paraíba
IIIUniversidade Tiradentes
RESUMO
Após situar-se no debate sobre as possibilidades de interlocução entre a teoria psicanalítica e a educação, procede-se à apresentação dos principais pressupostos da Pedagogia Institucional (PI), criada por Fernand Oury, como uma pedagogia que lida em um de seus eixos centrais com a noção de conflito, entendido como resultado da tensão entre desejo e lei nas instituições escolares. Examinando uma experiência bem-sucedida de intervenção pedagógica em face de situações de conflito e violência numa escola a partir da noção e dos tipos de instituição desenvolvidos pela PI, o artigo ressalta a importância dessa pedagogia como demonstração da possibilidade de interlocução entre teoria psicanalítica e educação, particularmente útil para orientar práticas escolares voltadas para o manejo competente e educativo de conflitos relacionais na escola.
Palavras-chave: Teoria psicanalítica, Prática pedagógica, Pedagogia institucional, Conflitos, Escola.
ABSTRACT
After situating in the debate on the possibilities of dialogue between psychoanalytic theory and education, this article presents the main assumptions of Institutional Pedagogy (PI), which was created by Fernand Oury as a pedagogy that adopts the notion of conflict, understood as the result of tension between desire and law in schools. Examining a successful experience of educational intervention to cope with conflicts and violence in a Brazilian public school with the institutions developed by PI, the paper highlights the importance of that pedagogy as a demonstration of the possibility of interlocution between psychoanalytic theory and pedagogy, particularly useful to guide school practices aimed to deal efficiently with relational conflicts at school.
Keywords: Psychoanalytic theory, Pedagogical practice, Institutional pedagogy, Conflicts, School.
Psicanálise e educação: do debate à interlocução
Ainda que brevemente, a educação também mereceu da pena de Freud uma reflexão suficiente para garantir, na história da teoria psicanalítica, reflexões que contribuíram para pensar a pedagogia, não apenas porque, equiparada às outras duas tarefas que lidam com a incompletude (governar e psicanalisar), a educação lida com os fundamentos do humano, mas também porque nela se verificam processos psíquicos cuja especificidade é muitas vezes afetada pelo inconsciente (FREUD, 1996a).
A partir de Freud, portanto, uma história de aproximações e distanciamentos entre psicanálise e educação foi definida pelo debate sobre a viabilidade (e, se admitida, os limites) das contribuições que a teoria psicanalítica teria a trazer para a educação. Resultaram desse debate diferentes posições: desde aquelas que enfatizam a oposição entre psicanalisar e educar - negando, portanto, a possibilidade da interlocução - até aquelas que enxergam, nas muitas diferenças entre psicanálise e educação, a possibilidade de comunicação entre ofícios que, em suas especificidades, lidam com atividades humanas marcadas por um psiquismo dividido, também, em função do inconsciente (MILLOT, 1987; KUPFER, 1989; ANDRADE, 2005).
Com Freud (1996a) - que revelou identificações, transferência e atuações a ocorrerem durante o processo de ensino e de aprendizagem -, convencidos da possibilidade (e cônscios dos limites) do diálogo entre psicanálise e educação, reconhecemos que, no entanto, esse exercício inspirador de práticas pedagógicas mais eficazes ainda é pouco explorado (SPELLER, 2004).
A partir de uma compreensão do ser humano como tradutor de si mesmo (LAPLANCHE, 1995), entendemos a interlocução entre teoria psicanalítica e prática pedagógica como o efeito do exercício de atividades complementares: enquanto a educação propõe saberes, sentidos e identificações, a psicanálise investiga processos que, na direção contrária, pervertem aqueles saberes, imagos e significações, permitindo entender melhor por que por vezes a proposta pedagógica fracassa para indivíduos e, dados os vínculos relacionais, para grupos (como a turma e até a escola).
Como lembra Merch (2005, p. 19), "o laço social que ela [a educação] estabelece com professores, alunos e comunidade se tece de uma maneira muito mais complicada", envolvendo também processos inconscientes que, se podem derivar no sentido da aceitação da realidade e da lei constituída pelo contrato social, também se insurgem contra eles, em função da realização de desejos avessos ao societário. Entre desejo e lei, fica e deve ficar, pois, uma pedagogia que se inspire no diálogo com a teoria psicanalítica. Esse diálogo sugere, nas palavras de Speller (2004), educar para a realidade.
Educar para e na castração, na impossibilidade da completude e nas possibilidades da incompletude, nos recursos do simbólico e do imaginário para tocar o real, para a brevidade do prazer e para a presença da incerteza, para o mal-estar na cultura. Educar para que o humano se indague pelo desejo que anima seus atos, responsabilizando-se por eles, numa educação comprometida com a mudança e com a ética (SPELLER, 2004, p. 86).
Isso só pode dar-se numa dinâmica relacional em que, também, se produzem conflitos e tensões que, se não elaborados por vias socialmente desejáveis, culminam em violência, não só aquela que invade a escola, mas também aquela que é produzida pela instituição escolar, sua lógica e seus atores.
Ora, há uma pedagogia cuja especificidade faz-se pela consideração do que, nos vínculos, há das tensões entre desejar e sujeitarse à lei, e que, em sua teoria, adota explicitamente uma leitura psicanalítica das relações, concebendo, inclusive, a gestão não violenta de conflitos relacionais na escola: a Pedagogia Institucional (doravante, PI), ainda pouco conhecida no Brasil, que entendemos ser um exemplo feliz sobre um diálogo eficaz entre teoria psicanalítica e práticas pedagógicas. Ela ajuda a explicar várias iniciativas igualmente bem-sucedidas da gestão de violências e conflitos relacionais nas escolas - considerados como problemas dos mais preocupantes e de difícil solução, por sua complexidade.
Neste artigo, pois, inicialmente se apresentam seus pressupostos teóricos. Em seguida, analisa-se uma experiência bemsucedida de superação pacífica de situações de violência numa escola brasileira à luz da teoria da PI. Por fim, sugere-se que o recur-so teórico e/ou técnico à PI favorece o entendimento de projetos eficazes na gestão dos conflitos na escola, o que leva também a reconhecer a valiosa interlocução entre educação e psicanálise.
A pedagogia institucional: principais conceitos e sua relação com a psicanálise
Criada em 1958 por Fernand Oury, na França, a PI é definida como
um conjunto de técnicas, de organizações, de métodos de trabalho, de instituições internas nascidos da práxis das salas de aula ativas. Ela coloca adultos e crianças dentro de situações novas e diversificadas, que exigem de cada um engajamento pessoal, iniciativa, ação, continuidade (HÉVELINE; ROBBES, 2000, p. 15).
Desse modo, a PI
consiste numa abordagem educativa que ressalta, na situação pedagógica, os aspectos relacional e estrutural que sustentam o processo de ensino e aprendizagem. Na escola, portanto, educar é cuidar das condições que instituem e mantêm as relações intersubjetivas em torno do conhecimento - inclusive o que nelas há de conflito, tensão e violência (ANDRADE, 2007a, p. 95).
Para a constituição dessa proposta pedagógica, algumas fontes teóricas e técnicas são reconhecidas: o Movimento Freinet, a teoria da psiquiatria institucional (Jean Oury, Félix Guatarri), as teorias sobre psicologia de grupo (especialmente as de Lewin e Moreno) e a teoria psicanalítica (a lacaniana, marcantemente). Fernand Oury, professor na cidade de Nanterre, diante das tensões vividas em sua sala de aula numa escola, propôs então uma pedagogia que reunisse técnicas de expressão, de trabalho em grupo, de dinâmicas de grupo e do pensamento social em torno da educação (PAIN, 2009).
Do Movimento Freinet, Oury trouxe princípios (o trabalho como atividade educativa e a constante participação individual em função da vida coletiva, por exemplo) e técnicas (como a imprensa escolar, as viagens e passeios pedagógicos e os conselhos de classe), bem descritos por Sampaio (2007). Em relação à sociabilidade, seus valores e conflitos, isso implica afirmar, com o pressuposto escolanovista, que a sociabilidade se desenvolve não por doutrinamento, mas na convivência diária entre colegas na escola (SAMPAIO, 2007) - o que, no modelo escolástico e urbano (ainda muito presente mesmo hoje), não seria exequível. Assim, Oury, inspirado no método Freinet, propõe a prática da fala e a resolução de conflitos (HÉVELINE; ROBBES, 2000).
Influenciado pelo pensamento da psicoterapia institucional, Fernand Oury apoia-se em noções como a de coletivo e de instituição, desenvolvidas por seu irmão Jean (com a parceria, especialmente, de Félix Guatarri): o coletivo consiste no campo de vínculos intersubjetivos mantidos por pessoas que convivem em grupos e estabelecimentos (como a escola); a instituição, por sua vez, é entendida como procedimentos, regras, funções e atividades que servem ao bem-estar do coletivo, de caráter visivelmente mediador (CONDACK, 2009).
Tanto através da teoria da psicoterapia institucional quanto diretamente, a teoria psicanalítica (especialmente a de Lacan, a cujos seminários Fernand Oury também frequentou) faz parte dos alicerces teóricos da PI, que toma para si conceitos como o do inconsciente na classe, o do desejo e o da lei para pensar processos transferenciais e contratransferenciais que se dão nas relações de ensino e de aprendizagem (COLOMBIER; MALGEL; PERDRIAULT, 1989; HÉVELINE; ROBBES, 2000; ANDRADE; CARVALHO, 2009).
Com isso, as técnicas promovem o compromisso do aluno com sua produção con-creta, com o controle desse produto e com a sua participação na organização social dessa produção. Os grupos favorecem o surgimento de jogos de identificação, individualizando no aluno o que ele tem de particular e agrupando-o no que tem de comum com o outro. E o inconsciente, por ser valorizado, permite ao aluno existir de modo autônomo na sala de aula (HÉVELINE; ROBBES, 2000).
Sempre ressaltando o conflito entre desejo e lei, presente nos planos subjetivo e intersubjetivo, Oury pensou princípios básicos próprios à sala de aula e à escola, capazes de orientar intervenções que promovam a resolução pacífica dos conflitos, através das trocas materiais, afetivas e verbais (OURY; VAZQUEZ, 1998; HÉVELINE; ROBBES, 2000): o lugar, a lei, o limite e a linguagem, em razão dos quais funcionam lugares de fala e instituições na classe e na escola (ANDRADE; CARVALHO, 2009):
1. Lugar: trata-se tanto do espaço real quanto do espaço simbólico, feito das funções de cada um e de seus papéis nas relações com o coletivo. O lugar oportuniza distinguir-se diante do outro e do grupo, é poder reconhecer-se diferente do outro, dizer "eu" entre os outros (HÉVELINE; ROBBES, 2000). É ter a condição de tomar posse de si e se colocar diante do outro para reivindicar algo que lhe é de direito.
2.Linguagem, que perpassa toda e qualquer interação social, permite dizer de si e dos outros, expressarse, desde que regras da própria linguagem e de seu uso social sejam respeitadas. "O desejo encontra na linguagem uma via privilegiada de expressão e regulação, pois a linguagem é feita do dito, do interdito e do entredito" (ANDRADE, 2007a, p.97). Portanto, pela linguagem é possível a contenção e a expressão adequada de impulsos e a mediação de conflitos relacionais, preservando-se ou reparando-se o vínculo social (ANDRADE, 2007b). A linguagem, assim, permite a enunciação do desejo (e, sempre que necessário, de sua interdição), de modo que "[abre] as melhores possibilidades subjetivas para a aprendizagem dos conhecimentos" (COLOMBIER; MANGEL; PERDRIAULT, 1989, p.11). Pela linguagem, desde tenra infância, o sujeito se cria, atinge o outro e se é reconhecido por este, enunciando-se, então, a própria subjetividade e reconhecendo a do outro (ROZA, 1993).
3.Lei: feita dos acordos fundadores, das regras básicas inegociáveis, que materializam os limites e servem de parâmetros a serem respeitados nas relações interpessoais.
Elas permitem o desenvolvimento da sociedade e o progresso do indivíduo nas suas relações sociais e não podem ser questionadas nem pelo professor e nem pelo aluno. As leis estruturam o jogo escolar e pedagógico, fazendo do espaço um meio para a expressão dos desejos daqueles que dele participam (HÉVELINE; ROBBES, 2000). As leis não podem surgir de um arbitrário estritamente perverso (por exemplo, aquele vindo de um adulto que não quer sujeitar-se à lei), mas derivam das trocas humanas, que, na sala de aula, tornam-se possíveis em razão de três imperativos:
a. Trabalhar para sobreviver: na escola e na sala de aula, isso implica, sobretudo, em empenharse para ensinar e para aprender;
b. Interditar a violência: na escola e na sala de aula, não são permitidas agressões físicas nem emocionais, mas é permitida a expressão respeitosa de insatisfações implícitas na violência, por exemplo;
c. Proibir o incesto: o incesto, na sala de aula, seria equivalente ao tratamento privilegiado dado pelo(a) professor(a) a um(a) único(a) aluno(a), excluindose os outros da possibilidade de aprender com a ajuda docente. Não é permitido atuar a contratransferência, ensinando so-mente à pessoa por quem se tem simpatias!
4. Limite: são as regras negociadas coletivamente, sujeitas a modificações em função dos interesses e mudanças no coletivo. Eles colaboram também na conscientização do lugar de cada um, demarcando esses lugares, o que auxilia na diferenciação, no caso da escola, entre professores e alunos (HÉVELINE; ROBBES, 2000).
Dificuldades e necessidades, à exceção das leis mencionadas, são tratadas em reuniões semanais, com duração de 30 a 60 minutos, de preferência com horário fixo e previamente definido e animado por um presidente. Nelas, elogios e insatisfações são expressos, recompensas e sanções são decididas, determinações são adotadas, são reconhecidos os progressos e os fracassos, supervisionados os projetos coletivos e responsabilizado cada participante. Tudo isso caracteriza o conselho de turma, fórum coletivo em que o grupo intervém e medeia as relações entre todos. Nos conselhos, os li-mites são instituídos a partir das situações, sendo os professores os responsáveis pelo cumprimento das leis básicas (HÉVELINE; ROBBES, 2009; POCHET; OURY, 1997).
O objetivo da pedagogia institucional é precisamente organizar um ambiente da classe através do conselho, mas isso não quer dizer que não haja problemas de convivência na turma. Com efeito, as reflexões, as propostas feitas semana após semana pelos/as alunos/ as conduzem a soluções que evitam disputas (HÉVELINE; ROBBES, 2009, p. 41).
O conselho de turma (ou de classe) é um dos lugares de fala (estratégias de conversação e diálogo sobre temas diversos, na turma, obedecendo a rituais que prescrevem as marcações consideradas desejáveis para a comunicação). Na verdade, é o mais difícil de todos, pois requer um processo gradual de atividades articuladas pela prática, ao longo de pelo menos um ano escolar.
Com a aplicação das leis e a definição dos limites e lugares, sempre através do emprego da linguagem, cria-se uma turma institucionalizada. A organização da turma e do espaço físico da sala de aula são aspectos importantes para o desenvolvimento de um bom trabalho na escola (HÉVELINE; ROBBES, 2009). Para cada atividade deve-se prever a melhor e mais produtiva disposição no espaço, assim como organização de cronograma para o cumprimento da tarefa. Quem é educador(a) já reconhece nestas características o planejamento educacional eficaz; quem é psicanalista pode enxergar nas atividades, vínculos e ideais da turma institucionalizada vários processos em que motivações inconscientes deixam sua marca (o desejo de saber, os objetos de aprendizagem sobre os quais se investem pulsões, os jogos identificatórios e narcísicos etc.). Como diz Pain:
Faça da sala de aula um meio ativo, graças às ‘técnicas de vida' bem conhecidas dos/as pedagogos/as do Movimento Freinet: o diário escolar, a correspondência interescolar, o texto livre, a aula-passeio, o conselho; ponha a turma em análise; proponha formação ao/à professor/a... e você terá, assim, em gestação lenta, uma classe "institucionalizada", como se diz hoje (PAIN, 2009, p. 17).
Espaço e tempo servem, então, como referências para a constituição do campo coletivo na turma institucionalizada: rituais e palavras de ordem são gradativamente estabelecidos e constituem uma referência comum para o grupo, favorecendo a tomada de decisões e atitudes; o trabalho em equipe também é um dispositivo significativo para a instituição, porque favorece a individuação e também a identificação com o coletivo, articulando cognição, afetos, sociabilidade, subjetividade (COLOMBIER; MANGEL; PERDRIAULT, 1989; HÉVELINE; ROBBES, 2000; ANDRADE; CARVALHO, 2009).
O conflito consiste num dos conceitos relevantes de que não se pode deixar de tratar, ao apresentar a Pedagogia Institucional. Valorizando-se, de um lado, os desejos, inclusive os inconscientes, como motivadores intrínsecos de discentes e docentes; e, de outro, o estabelecimento de limites e a demarcação de lugares em função das leis fundado-ras, aparecerá, inevitavelmente, a questão do poder e, com ele, os conflitos. O conflito supõe, subjetivamente, a divisão psíquica bem conhecida pela teoria psicanalítica (instâncias psíquicas cujas forças motivadoras competem por predominância), desde Freud; e, intersubjetivamente, a circulação de objetos de desejo comuns (como é o caso do saber). Há conflito dentro de cada um e entre todos, já que a cultura, que não se sustenta sem o desejo, impõe a cada indivíduo o adiamento de seus impulsos, em favor do bem comum - este mesmo tornado objeto comum de desejos, como aparece, por exemplo, nas disputas por lugares e funções considerados de destaque na turma institucionalizada (é o caso, por exemplo, das faixas de habilidades e comportamentos, desenvolvidas por Oury a partir da inspiração do Judô).
A PI assume-se como uma pedagogia da contenção da violência (PAIN, 2006). É, pois, para demonstrar essa potencialidade de gerir pedagogicamente conflitos que a seguir se analisa, à luz da PI, uma experiência bem-sucedida de gestão escolar de conflitos, apresentada por Abramovay e outros (2003): ainda que a intervenção pedagógica não se tenha orientado pela PI, seu sucesso sugere a presença de alguns princípios e práticas comuns à pedagogia francesa, confirmando sua validade.
Uma experiência bem-sucedida de gestão de conflitos na escola à luz da PI
Tal como narrado por Abramovay e outros (2003), a Escola Estadual Parque Piratininga localiza-se na periferia de Itaquaquecetuba, situada na grande São Paulo. Fundada em 1991, a escola inicialmente funcionava em um espaço, de madeira, provisório, pichado e sujo, frequentemente depredado pelos alunos e pela comunidade. Era difícil limpar e organizar a escola nessa fase: ela funcionava em quatro turnos e os índices de evasão e repetência eram altos. Não havia projetos em prol do funcionamento da escola, nem horário de planejamento pedagógico por parte dos professores.
Muitos alunos estabeleciam com a escola uma relação de repulsa e a violência interna e externa eram marcantes. As relações eram permeadas pela agressividade e individualismo, e os comportamentos dos alunos, criticados e repreendidos, favoreciam um círculo vicioso de desrespeito. A comunidade não se envolvia com a escola. Sua localização e infraestrutura não colaboravam, uma vez que ficava em espaço aberto, não tinha muros e era constantemente invadida, preocupando os pais quanto à segurança de seus filhos.
Dentre as dificuldades mais penosas enfrentadas pela escola, estavam: as dificuldades de relacionamentos, o aumento do uso de drogas, ameaças (uma delas com revólver) dirigidas aos professores e direção e depredação do prédio. Além disso, docentes e técnicos não se envolviam em intervenções para reverter a situação, mas alguns deles também agrediam verbalmente o alunado. Internamente, estouravam bombas nos banheiros e havia brigas entre alunos. Através de seu comportamento, alunos, professores e gestores comunicavam: pouco valor ao espaço escolar, sentimento de falta de pertença, falta de compromisso consigo mesmos e comprometimento da capacidade de se preocupar (consigo e com o outro), assim como esperança e demandas de contenção e segurança.
Em 1996, os pais foram convocados e, assim, instalou-se um processo de diálogo. Os familiares foram solicitados a colaborar com a limpeza, segurança e alteração do perfil da escola; criaram-se mutirões para melhorar a infraestrutura, estabeleceu-se um sistema de rodízio para garantir a presença diária na escola e a cooperação nas tarefas de manutenção do espaço escolar e contatos e estabelecimento de relações de proximidade com entidades do bairro e associação de moradores. Em 2001, no terreno ao lado da instituição, construiu-se uma nova escola que foi nomeada de Parque Piratininga II. Nesse mesmo ano, a escola chegou a receber prêmios.
Algumas razões para essa mudança gradual devem-se às estratégias utilizadas: abertura de espaço para a escuta dos jovens e sensibilizações com eles, conduzidas pelos próprios jovens, juntamente com a direção e os professores; realização de atividades durante os finais de semana, abertas à comunidade, tais como, festas, esportes, trabalhos voluntários e projetos da própria escola; disponibilização do pátio e da quadra de esportes para os jovens; participação da comunidade na tomada de decisões quanto às atividades a serem realizadas; criação de espaços para reuniões pedagógicas, envolvendo professores e funcionários; renovação do espaço de reunião com os pais, tornando-a mais atrativa e convidativa, e estabelecimento de uma relação esporádica com o Conselho Tutelar.
Segundo Abramovay e outros (2003), foi o emprego dessas estratégias que levou a uma evidente transformação do clima escolar, que passou a inspirar segurança e orgulho - a es-cola chegou a dispensar suas grades e a utilizar-se de vidros para reduzir barreiras (além, obviamente, de facilitar o controle).
Como entender esse processo à luz dos conceitos da PI e da teoria psicanalítica que a inspira? Em todas as estratégias adotadas, um princípio fundador da PI é comum: o recurso à linguagem como mediação para os conflitos. Diferentes intervenções (programas, projetos e experiências) apoiaram-se na conversa, no diálogo, no uso da fala, levando finalmente a crer que falar pode substituir o agredir.
Nesse sentido, vale lembrar: para Freud (1996b), o que estimula o crescimento da civilização está, paralelamente, estimulando a pacificidade, sendo o poder falar uma condição sine qua non à transformação e desenvolvimento da condição humana. A fala é flexível, comunicativa e, portanto, participativa do processo de enfrentamento da violência e mediação de conflitos (KAUFMANN, 1996).
Mas não basta abrir apenas o espaço de fala. Torna-se necessário instrumentalizar as pessoas para que elas consigam falar. Sobre esse aspecto, La Taille, (apud Tognetta e Vinha, 2008) afirma que:
Pensemos nos dois adolescentes americanos que em 1999, metralharam colegas e professores. Eles queriam, por algum motivo, matar, matar e matar. Mas por que não escolheram um supermercado, a rua, um bar, onde há até mais gente? Eles escolheram a escola. Por quê? Talvez porque ela não esteja dando a seus alunos algo que eles querem, mas que não sabem formular. Ora, o papel dos adultos é ajudar as novas gerações a formular seus desejos e projetos. E, para isto, não basta dizer-lhes falem, como se fosse a coisa mais simples do mundo. É preciso ensiná-los a pensar, a refletir, darlhes conhecimentos variados para, assim, poderem aprender a falar. (p. 240).
A considerar o relato de Abramovay e outros (2003), a noção de linguagem proposta pela PI é explorada por esta escola, principalmente, através da abertura de espaço para a escuta dos jovens, sensibilizações com eles e conscientização, da participação e responsabilização da comunidade em questões da escola, da criação de espaços para reuniões pedagógicas e da renovação do espaço de reunião com os pais. Como exemplo, os projetos de conservação do espaço escolar e presença de todos os alunos na escola, que se utilizaram do exercício da fala através, especialmente, da conscientização, que se mostrou um aspecto chave influente nos positivos desdobramentos alcançados.
A linguagem é o agente de mediação dos conflitos relacionais, presente nas situações de grupo. Onde há grupos, estabelecem-se relações interpessoais e onde há essas relações, há de se ter conflitos, uma vez que cada um carrega seus desejos – individualizados – e para constituí-los em coletivo é, pois, necessário engendrar-se com o outro, gerando tensão. Como nos lembram as esclarecedoras palavras da diretora: "Quando cheguei à escola, a situação estava muito violenta, e o que mais dificultava era o comportamento das pessoas e as posturas umas com as outras. Foi um desafio lidar com a agressividade e com o individualismo." (ABRAMOVAY et al., 2003, p.297).
Também é possível entender na mudança de aspecto da escola um símbolo para uma renovação dos lugares: se o vidro sugere a possibilidade do controle, também pode indicar a assimilação da noção de limite e de lugar, a começar pela própria escola, que se tornou um lugar valorizado pela comunidade, visto como apreciável e integrado à vida do lugar. Serve de exemplo para isso o projeto de conservação do espaço escolar.
Originado a partir de sugestões dos pais, professores, funcionários e alunos, ele transformou uma escola depredada e pichada com frequência em um prédio onde o estado de conservação de cada recanto se tornou do interesse de todos, através da estratégia de criação e manutenção de um mural no pátio: um inspetor acompanharia e exporia sobre o estado de conservação de cada sala. Uma vez que alguma sala se apresentasse suja, haveria uma conversa com os alunos e professores, no sentido de conscientizar quanto à importância da limpeza e preservação do ambiente escolar, gerando, ao longo de seis anos, uma escola limpa, sem pichação, além da diminuição do dinheiro para manutenção, com a possibilidade de investir mais recursos em materiais didáticos. O projeto proporcionou um espaço em que, essencialmente, a linguagem funcionava como suporte às leis e aos limites – pois não se podia sujar a escola, e o mural anunciava aqueles que transgrediam – e como interdito, impelindo atos de transgressão à fala durante as conversas de conscientização.
Outro projeto, chamado "Presença 100%", estimulou o alunado a frequentar e manter-se na escola. A escola passou a controlar diariamente a frequência de todos os alunos e convocar os pais, através de carta, a cada duas faltas semanais, para uma reunião individual com o intuito de conscientizá-los da importância da assiduidade para a aprendizagem. Se antes muitos pais e mães não consideravam problema os filhos faltarem as aulas, e vários alunos ausentes não eram controlados, as cartas e reuniões reverteram o grande número de faltas, promovendo, implicitamente, um estreitamento das relações entre pais, mães e escola, aumentando e melhorando o diálogo com a comunidade local. Nesse projeto, a linguagem - escrita e oral – permitiu, em reuniões, a retomada dos lugares e limites, ao tempo em que, da parte dos educadores, exigiu o compromisso de garantirem sua própria presença e assiduidade (vários professores também faltavam), com atividades atraentes e relevantes.
As atividades realizadas influenciaram desde o desenvolvimento de um sentimento de pertença dos alunos à escola – com a conservação do espaço físico – até a renovação do clima de bem-estar em sala de aula a partir de mudanças na prática pedagógica, aspecto importante para o processo de ensino-aprendizagem, tornando-o mais profícuo (ABRAMOVAY et al., 2003), além de estimular a participação dos professores na discussão de dificuldades, com a apresentação de propostas e soluções para o enfretamento de desafios cotidianos. Desse modo, ainda que tenuemente, a noção de coletividade em torno da instituição escolar (e das várias instituições relacionais que a constituem) passou a ser desenvolvida e empregada pelos vários atores escolares.
Considerações finais
Lei, lugar, limite e linguagem compõem, da perspectiva da PI, um todo unitário, atravessando-se para instituir coletivos escolares em que a subjetividade se renova no contexto intersubjetivo - e este se vitaliza pela participação de cada um com seus desejos e interdições.
No caso da escola aqui considerada, esses princípios, ainda que não explicitamente adotados para constituírem turmas institucionalizadas, podem ser entrevistos nas estratégias adotadas para a renovação das relações e do clima institucional. Desse modo, poder falar, simplesmente, já garantiu a produção de desejo em torno do objeto "escola", com todos os significados a ela atribuídos. Poder desejar permitiu querer lugar, o que por sua vez demandou limites e a invocação da lei.
Os projetos Presença 100% do aluno na escola e Conservação do espaço escolar, lei, lugar, limite e linguagem permitiram a criação de dispositivos originais - talvez ainda frágeis, porque aparentemente provisórios-, fazendo implicar-se alunos, professores, gestores, pais, mães e comunidade no exercício de regras que remetem a valores necessários à convivência pacífica.
Os princípios da PI, sobretudo, ajudam a entender por que as trocas passaram a ser verbais e renovaram o contrato social da es-cola com a comunidade, o alunado e o professorado: instituíram-se lugares em que os poderes individuais complementavam-se e se revezavam. Se "instituir é estabelecer em comum as condições estruturais necessárias às trocas intelectuais e afetivas vividas na classe e na escola, em torno do conhecimento" (ANDRADE, 2007a, p.96), o revezamento do poder areja as situações de conflito e lembra que os objetos de desejo são negociáveis, mudam e, assim, também se conservam. De objeto de ódio e depreciação, a escola, investida de desejo, tornou-se protegida pela lei que interdita a violência.
Entre o desejo e a lei que nos constitui, está também a escola e, nela, estão seus dispositivos. Entendê-la à luz da PI é enriquecer consideravelmente a compreensão sobre os processos que subjazem à dinâmica relacional na sala de aula e na escola. Valer-se da teoria da PI para compreender a dialética incompleta própria aos conflitos que permeiam a educação é, também, reconhecer a valiosa interlocução entre educação e psicanálise.
Referências
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Endereço para correspondência
Av. Epitácio Pessoa, 753 - Sala 809
580030-904 - João Pessoa/PB
E-mail: frazec@uol.com.br
Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 22/11/2010
1 Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Doutor em Educação – UFPB; Professor do Departamento de Fundamentação da Educação da Universidade Federal da Paraíba.
2 Doutora em Psicologia Clínica e Psicopatologia - Université de Nice Sophia Antipolis - França. Professora Titular da Unit.