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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.39 Belo Horizonte jul. 2013
A pesquisa em psicanálise: o método de construção do caso psicanalítico
Research in psychoanalysis: method of construction psychoanalytic case
Denise Quaresma da Silva
Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Universidade Feevale
Centro Universitário La Salle
RESUMO
A autora aponta subsídios teóricos que possibilitem aos pesquisadores do campo das ciências humanas e da psicanálise reflexões acerca do método de construção do caso psicanalítico, como um aporte para as pesquisas qualitativas nesses campos. Discute teoricamente a construção da Psychoanalytische forschung (pesquisa psicanalítica), que aparece várias vezes ao longo dos textos freudianos.
Palavras-chave: Pesquisa psicanalítica, Caso psicanalítico, Pesquisa qualitativa, Psicanálise.
ABSTRACT
The author points out the theoretical subsidies that enable researchers in the field of humanities and psychoanalysis to reflect about the construction method of a psychoanalytic case as a contribution to qualitative research in these fields. Theoretically discusses the construction of Psychoanalytische forschung (psychoanalytic research), which appears several times over the Freudian texts.
Keywords: Psychoanalytic research, Psychoanalytic case, Qualitative research, Psychoanalysis.
Neste texto, aponto alguns subsídios teóricos que possibilitem aos pesquisadores do campo das ciências humanas e da psicanálise reflexões acerca do método da construção do caso psicanalítico, como um aporte para as pesquisas qualitativas nesses campos. Esse aporte teórico foi empregado em tese de doutoramento intitulada Mães-menininhas: a gravidez na adolescência escutada pela psicanálise e educação (QUARESMA DA SILVA, 2007).
Conforme explana Nogueira (2004), a psicanálise aplicada é o tratamento psicanalítico, e aquilo que escapa ao tratamento psicanalítico é a teoria psicanalítica. Já a psicanálise em extensão refere-se àquilo que o psicanalista pode aprender através da investigação da cultura humana, das atividades humanas. Esse autor refere que Freud, com a obra de Sófocles, Édipo Rei, pode aproveitar a tragédia grega para formalizar o que chamou de complexo de Édipo, aprendendo com a tragédia para fazer uma teoria psicanalítica. A própria expressão Psychoanalytische forschung (pesquisa psicanalítica) aparece várias vezes ao longo dos textos freudianos. Concordo com o autor e postulo que podemos aprender com todos os fenômenos humanos, tantos quantos nos façam questão.
A entrevista e a investigação narrativa: os contadores de histórias
Tomando como referência um caleidoscópio, podemos pensar o quanto, justamente girando seu prisma, se possibilita que a entrada de luz incida sobre outros ângulos, dando outra visão, outro aspecto de um mesmo raio de luz. Na pesquisa psicanalítica, o(a) pesquisador(a) se utiliza metaforicamente de um caleidoscópio para pensar na questão que é objeto de investigação, iluminando ângulos até então pouco percebidos ou ignorados, através de ferramentas múltiplas — nesta pesquisa, as entrevistas semiabertas.
Ao problematizar o papel das entrevistas nas pesquisas em educação, Silveira (2002, p. 120) contribuiu significativamente ao pôr em questão a tradicional concepção da entrevista com uma função “partejadora”. A autora ironiza a expectativa de que, através da entrevista, possamos “descobrir” dados fidedignos e “desnudar a verdade mesma” sobre aquilo que pesquisamos. A ironia da autora se dá em função da problematização que realiza em torno das pesquisas e entrevistas que se propõem encontrar e/ou descobrir a verdade absoluta sobre algum objeto de estudo. Nesse sentido, a pesquisa psicanalítica, por levar em consideração o inconsciente humano, propõe não a busca de uma verdade absoluta, mas a investigação de verdades contextuais, relativas e individualizadas.
Tomo a entrevista na pesquisa psicanalítica como uma ferramenta também produtora de subjetividades, pois aquele que ocupa o lugar de entrevistador fala de um lugar de saber e poder, produzindo efeitos sobre o(a) entrevistado(a). No momento da entrevista, o(a) participante entrevistado(a) vai escolher as palavras a serem ditas, levando em consideração o papel que o(a) pesquisador(a) ocupa e os sentimentos que são provocados. Nas entrevistas realizadas, inicialmente explica-se ao sujeito o trabalho de pesquisa buscando, desse modo, uma maior profundidade no diálogo. O engajamento dos(as) entrevistados(as) à pesquisa se dá por livre disponibilidade e, na medida do possível, busca-se um aprofundamento das questões.
Nessa modalidade de pesquisa, podemos também utilizar a técnica da observação livre com registro em diário de campo, no intuito de complementar e validar as informações construídas. Esse diário constitui ferramenta importante da pesquisa, pois nele registramos as impressões subjetivas, os aspectos informais, os gestos, os comportamentos, enfim, as expressões emocionais que percebemos no decorrer da pesquisa, e as percepções que tivemos ao longo das entrevistas e que não couberam nas narrativas, por serem importantes expressões não verbais que “falaram”. Essas percepções, por vezes pouco consideradas ou não validadas pelas ciências exatas, encontram, no campo das pesquisas em psicologia e psicanálise, sua valia, pois os silêncios, os suspiros, o tom de voz revelam a emoção e a afetividade que permeiam o sujeito na temática que narra, muitas vezes denunciando o sujeito.
Os atos falhos, nessa assertiva, também são valiosas pistas de como psiquicamente o sujeito lida com a temática que narra. Há um sujeito racional que narra entendimentos e compreensões, e há a verdade inconsciente, que por vezes, metaforicamente falando, escorrega e sai pela janela, contrariando o orador que relata uma suposta verdade que deveria sair pela porta...
As entrevistas são gravadas e transcritas posteriormente, para poderem ser analisadas em toda sua extensão. No momento da transcrição, os nomes verdadeiros dos(as) entrevistados(as) são preservados garantindo, assim, o sigilo e o tratamento ético, fundamentais nas pesquisas psicanalíticas.
A partir do que dizem ou fazem, os(as) entrevistados(as) também exercem efeitos sobre o(a) entrevistador(a), desestabilizando suas “convicções” ou propósitos, ao se posicionarem de maneira diferente da esperada (que falem, que digam muitas coisas, que colaborem). Às vezes, até mesmo se negam a participar. Tais acontecimentos nos levam a vislumbrar a impossibilidade de que o andamento da pesquisa tenha o caráter linear e organizado que desejamos inicialmente, necessitando reavaliações e reconstruções na medida em que nos encontramos com as “realidades” do local e dos(as) participantes da pesquisa.
De acordo com Silveira (2002), as orientações tradicionais de entrevista oferecem uma série de receitas, atitudes e procedimentos que deveriam ser adotadas pelo entrevistador na situação de entrevista, “todas elas sob a égide de uma maior eficiência do partejar da palavra alheia e do direcionamento dessa palavra” para os objetivos de captação de “dados fidedignos” (SILVEIRA, 2002, p. 123). Atenta-nos para o fato de que não podemos ser ingênuos a ponto de achar que, nas entrevistas realizadas durante uma pesquisa acadêmica, as informações venham até nós de modo puro e que, por fim, acabem por expressar a verdade mesma das questões pesquisadas. Para ela, devemos nos posicionar de maneira realmente atenta, mostrando a impossibilidade de darmos conta de ideais tradicionais, como objetividade, atemporalidade, fidedignidade, exatidão, imparcialidade e autenticidade.
Em relação a essa discussão, as contribuições de Mannoni (1982) se mostram valiosas para que possamos pensar sobre a questão do saber e da verdade em psicanálise, na medida em que se constitui a disciplina que estuda o inconsciente. Para a autora, a psicanálise freudiana apresenta um duplo discurso: de um lado, busca o reconhecimento como “científico”; de outro, apresenta uma discursividade que se abre aos mitos, nos deixando atentos ao fato de que somos passíveis de nos enganar pelo saber. A autora entende que tomar a teoria analítica por um saber sem falhas seria danoso à psicanálise, pois estaria suplantando a dimensão da verdade.
Além desses elementos presentes na situação da entrevista, vejo-a também como mais uma forma de “produzir dados” para análise, na medida em que, como pesquisadora, escolhe as palavras da pessoa e faz uso delas de maneira certamente não desinteressada.
Sequencialmente, outro aspecto importante em relação às entrevistas se refere à sua transcrição e à impossibilidade da transparência na reconstrução ou reintegração da narrativa de modo idêntico como foi enunciada: se veio ou não acompanhada de um choro, de dúvida, de um sussurro, de um silêncio, de um sorriso. Isso porque, ao ser dito e se tornar público, o enunciado se coloca fora daquele que enuncia, fazendo parte de outro contexto e de outro tempo, sendo reinventado na análise da pesquisadora.
No lugar de quem investiga e analisa, é importante compreender a entrevista no seu aspecto polifônico, ou seja, trazer para a análise justamente as “outras vozes”, a pluralidade discursiva que atravessa a narrativa da entrevistada; sem deixar de mencionar que a própria presença de quem investiga é parte dessa pluralidade discursiva, ou seja, sempre há uma interferência, mesmo que mínima e não intencionada. É importante então compreender, durante a entrevista e na análise, que o indivíduo é sujeito de uma série de discursos (ditos e não ditos) e que o mesmo indivíduo pode ocupar diferentes posições de sujeito: quem fala em mim?
Ao narrar uma história escutada ou dita, há toda uma plasticidade de significantes que a bordejam: uma interpretação da palavra dita pela entrevistada está muito mais ligada à interpretação significante da pesquisadora do que ao sujeito que fala. Dessa forma, como aponta Folberg (2002), podemos apenas nos aproximar do significado do que nos é anunciado.
Nesse sentido, aponto para a cautela necessária na escuta das vozes que falam: é preciso se perguntar várias vezes para que a verdade, ou parte da verdade, ainda que provisória e inconstante, venha à luz. Enfatizo que na pesquisa psicanalítica o trabalho com a escuta das múltiplas vozes passa pelo mundo interno do(a) pesquisador(a), fazendo, como sugere Barbier (1993), uma história que é construção da história do(a) investigador(a).
Nessa assertiva, as entrevistas são tomadas como narrativas e examinadas a partir dos pressupostos teóricos da teoria psicanalítica, para discutir e problematizar discursos e/ou fragmentos de discursos que, de forma articulada, permitam que as jovens (re)signifiquem esse momento.
Larrosa (2004) argumenta que o ser humano utiliza as narrativas constantemente para se autointerpretar. As histórias nos constituem e são produzidas no interior de determinadas práticas sociais mais ou menos institucionalizadas: instituições como família, escola, igreja, tribunais, relacionamentos amorosos, grupos terapêuticos, ou uma entrevista, um processo investigativo e programas televisivos se tornam espaços de produções narrativas e de constituição de subjetividades.
De acordo com Connelly e Clandinin (1995, p. 11), os humanos são “organismos contadores de histórias”, seres que, de forma individual ou social, vivem vidas relatadas. Para esses autores, estudar as narrativas é olhar para as formas pelas quais os seres humanos experimentam o mundo. Portanto, se a narrativa é uma maneira de caracterizar os fenômenos da experiência humana, então seu estudo vem a ser adequado em diversos campos das ciências sociais. A investigação narrativa dentro desses campos é uma forma de narrativa empírica onde os dados são fundamentais para o trabalho.
Para a análise dos dados colhidos nessas múltiplas vozes que constituirão o caso psicanalítico, conforme relata Iribarry (2003), a experiência do(a) pesquisador(a) psicanalítico(a) diante das entrevistas e questionários respondidos é tomada no sentido de uma aprendizagem que se transformou em saber, ou seja, uma Erfahrung, uma experiência decorrente do contato do(a) pesquisador(a) com os(as) participantes de sua investigação e com os dados coletados. O(A) pesquisador(a) psicanalítico(a) faz parte da experiência de aprendizagem extraída da pesquisa e, com base no estudo de caso, constrói o caso psicanalítico.
A construção do estudo de caso psicanalítico
Ao desenvolver seus estudos sobre a pesquisa em psicanálise, em especial sobre o estudo de caso, Stake (1994) refere que, por abordar aspectos privados, um código de ética estrito oferece proteção aos(às) participantes da pesquisa, já que esta se interessa por pontos de vista e circunstâncias pessoais. Segundo o autor, embora os casos lidem com assuntos de interesse público, a garantia de privacidade deve se situar em lugar privilegiado. Em um estudo de caso psicanalítico, as questões éticas estão na pauta das preocupações, as participantes são informadas do termo de consentimento pós-informado, do sigilo acerca de seu nome.
Quando nos referimos à pesquisa em psicanálise, logo entra em discussão a questão do domínio desse campo do saber, tantas vezes tomado como específico do trabalho clínico terapêutico. Argumento que Freud desenvolveu a psicanálise para além de uma teoria, como um método de pesquisa tantas vezes empregado por ele fora dos limites do setting terapêutico, analisando produtos da criação humana como obras de arte, textos, instituições, etc.
Retomamos a ideia de que uma ciência se define pelo seu objeto e pelo modo de investigação (método) desse objeto. Silva aponta:
O objeto da psicanálise é o inconsciente, é a gama de significados emocionais possíveis que se organizam segundo um fio condutor que batizamos de desejo, com tendência a se manifestar à consciência e daí ao ambiente. O método da psicanálise apresenta-se com uma dupla face: de um lado, a associação livre — a oferta de material sem crítica ou intenção determinada, e de outro, a atenção flutuante — captação de material sem crítica ou intenção predeterminada. Na prática, isso se traduz por uma espécie de jogo em que as fantasias de ambos os interlocutores organizam-se em busca de um consenso sempre questionado a respeito do avesso do que foi dito. Ou seja, o método da psicanálise caracteriza-se por abertura, construção e participação (SILVA, 1993, p. 20).
Além disso, é um método receptivo em que se valoriza mais a escuta do que a fala, no qual o objeto não é simples de ser apanhado: mostra-se esquivo, permitindo apenas furtivas observações de sua presença.
Na transposição da escuta psicanalítica clínica — de consultório — para a prática psicanalítica de pesquisa, alguns ajustes devem ser realizados no que tange ao tipo de material a ser analisado. Porém, algumas características essenciais devem ser preservadas para que se possa ainda considerar o método como psicanalítico, isto é, possibilitador da emergência de sentidos submersos.
A mais fundamental dessas condições, citada por Silva, é que não se dê início a uma investigação trazendo alguma resposta, teoria ou conhecimento anterior; é importante que se tenham hipóteses, mas que não limitem a escuta, “não impeça[m] a aventura da busca do desconhecido” (1993, p. 21). Para a autora, “a demonstração de um saber prévio, ao estilo de um teorema, não pode ser psicanalítica pela simples razão de que essa resposta já é consciente” (SILVA, 1993, p. 21). Os conhecimentos prévios podem servir muitas vezes como formas de resistir ao novo, ao não sabido, ao que se desconhece.
À medida que elementos possibilitadores de análise e clarificadores em relação ao objeto e às questões de pesquisa emergem no decorrer da pesquisa, passam a acontecer os movimentos analíticos que buscam compreender as manifestações emergentes.
Segundo Fédida (1991), a construção do caso se oferece como ferramenta própria ao método psicanalítico de pesquisa, ao permitir o exame metapsicológico da dimensão inconsciente posta em jogo em um tratamento psicanalítico.
O caso é construído através da conjunção das experiências de vida dos(as)entrevistados(as), num trabalho metodológico que se propõe a contemplar a singularidade dos(as)participantes da pesquisa. O caso é composto enquanto uma história que vai sendo construída à medida que é escrita pelo(a) pesquisador(a). Com base no observado e escutado durante a pesquisa, se constrói uma narrativa pessoal que, por fim, acaba sendo o “caso”, ou seja, o caso do(a) pesquisador(a). De acordo com Stake (1994), o modo como os fragmentos das entrevistas e das cenas observadas são apresentados aos leitores é o produto de uma tentativa do(a) autor(a) de fazer com que o leitor conheça as histórias contadas e analisadas, e possa senti-las como se as tivesse vivenciado.
As narrativas construídas a partir das falas das pessoas entrevistadas são objeto de interpretações enquanto caso de análise. Fédida (1991) refere que o caso é uma teoria com capacidade de transformação psicológica e, em função disso, é necessário entender a história do caso como algo dinâmico, uma construção permanente produzida pela ficção das ideias.
Conforme Barth (2006), o uso da ficção como ferramenta do psicanalista pode a princípio causar certo desconforto:
Assim, é o efeito capaz de ser produzido que dará o caráter de bem fundado a um conceito psicanalítico, uma vez que, antes da formulação teórica, o psicanalista dá testemunho de sua escuta. A ideia de que um caso clínico seja uma ficção nasce do fato de que o relato de um tratamento psicanalítico jamais consegue reproduzir o acontecimento concreto, mas sua história reformulada, a partir de uma reconstituição fictícia (BARTH, 2006, p. 40).
Desse modo, o caso se configura enquanto uma ficção, resultado da produção/exposição de uma hipótese teórica ao mesmo tempo que tem a capacidade de revelar o seu(sua) autor(a). Souza (2000) se remete ao caso clínico psicanalítico como um novo gênero literário, residindo nesse aspecto a explicação para o fato de muitos lerem os casos de Freud como se fossem romances. Postulo que a pesquisa psicanalítica proporciona da mesma forma a criação de um caso: o caso do pesquisador.
Santos (2005), ao justificar o uso da metodologia de construção de caso na realização de seu estudo de mestrado, postula:
Nesse sentido, o relato da experiência também seria uma construção particular do pesquisador, que envolve o registro de fragmentos que não têm sentido aparente, mas que o adquirem na relação com as construções teóricas subsequentes. Se as construções do analista a partir de fragmentos do atendimento podem ajudá-lo a dirigir a cura de um paciente, aqui elas poderão possibilitar a elaboração que pode viabilizar a comunicação de uma experiência para a comunidade científica (SANTOS, 2005, p. 15).
De acordo com Fédida (1991), a construção do caso é um método de pesquisa psicanalítica utilizado pelo psicanalista na situação de tratamento, constituído a partir do registro das lembranças e dos fragmentos narrados pelo paciente. À realização dos registros se segue/sucede um exercício metapsicológico enquanto ficção de conceitos, que se inicia no momento da escuta do paciente e que tem andamento na elaboração, efetivada em momento distinto do processo analítico. Posteriormente, o analista reflete sobre sua prática e produz uma fecunda elaboração sobre sua prática clínica. Esse modo de conduzir a técnica psicanalítica foi introduzido por Freud, que dele fazia uso para, constantemente, reconstruir e reorganizar os conceitos que estava produzindo teoricamente.
A ficção de conceitos é discutida por Fédida (1991), apontando que ela se estrutura em torno não de um simples relato do caso, mas sim da construção de um enigma do caso, que vai sendo organizado durante a escuta do analista ao paciente e que se dirige posteriormente ao supervisor de sua prática clínica. Algumas hipóteses em torno do enigma são os motores que direcionam a pesquisa psicanalítica, embora se procure manter o enigma durante a sua prática.
Barth (2006), ao discutir a construção do caso como ferramenta da pesquisa psicanalítica, cita Fédida (1991) e seu texto A construção do caso. Nele o trabalho de supervisão com uma analista é tomado como ponto de partida para o estudo, demonstrando como o relato de um caso de análise poderá se transformar em uma construção do caso. É preciso cautela, pois o enigma citado por Fédida “só pode ser entendido enquanto enigma da vida psíquica do paciente, estabelecido a partir da escuta oferecida por um analista, ou seja, o caso não está dado, pronto, antes do advento da relação transferencial” (1991, p. 25-26). Sendo assim, o analista está implicado no caso levado à supervisão. Na pesquisa psicanalítica, da mesma forma, as hipóteses são produzidas pela fantasia do(a) pesquisador(a) e, justamente por isso, não está autorizado(a) a formular sobre essas hipóteses interpretações que possam ser comunicadas aos participantes da pesquisa.
O caso é sempre uma construção realizada em supervisão baseada no mundo interno do pesquisador. Constitui-se a partir da travessia de observações e escutas realizadas pelo seu mundo interior, resultando em produção narrativa significada pelas suas experiências e vivências subjetivas. Outro aspecto importante é o fato de a construção do caso funcionar como um método de escrita no qual o(a) psicanalista/pesquisador(a) produz uma transfiguração das narrativas do(a) paciente/participante da pesquisa possibilitando, assim, que os leitores consigam compreender o caso. A construção realizada pelo(a) analista/pesquisador(a) proporciona a inteligibilidade da trama. Fédida (1991) argumenta que o caso publicado é sempre do(a) analista. Nessa assertiva, postulo que o caso na pesquisa psicanalítica é sempre do(a) pesquisador(a).
O modo pelo qual o pesquisador vai apresentar sua narrativa, sua construção do caso será, conforme Stake (1994), escolha do(a) próprio(a) pesquisador(a) e oriundo de sua forma pessoal de escrever e de narrar. Os aspectos que considerará importantes em sua construção também serão escolhas do pesquisador, que necessitará “recortar” tais elementos, observando o foco de seu estudo e levando em conta que jamais seria possível narrar ‘toda a história’. Outra contribuição importante desse autor é o alerta para o fato de que os pesquisadores que optam por trabalhar com a metodologia de estudo de caso acabam transmitindo alguns de seus próprios significados aos aspectos estudados em detrimento de outros.
Para Barth (2006), essa questão merece destaque, já que, frequentemente em torno dela, são construídas fortes críticas. Diz o autor:
Como garantir a apropriação dos dados coletados durante a observação, por exemplo, para uma forma final de apresentação do caso? Aqui, destaco que os “próprios significados pessoais”, os quais parecem confirmar a fragilidade desse método de investigação psicológica, são a condição sine qua non para a efetivação de uma pesquisa psicanalítica (BARTH, 2006, p. 19-20).
Ao discutir as funções de um estudo de caso quanto à descrição e à transcrição dos dados, Allonnes (1989) aponta que consistem em informar e formar; em ilustrar, por ser esta a mais rigorosa ferramenta de ilustração; em problematizar, estabelecendo uma relação de troca entre a teoria e o material, evitando-se que aquela funcione de forma implícita ao fazer referência ao que não está dito; em apoiar e convencer, na medida em que a questão não é provar, mas convencer pela persuasão, já que muitas vezes o que se pretende num estudo de caso é a imposição de um sentido ao qual nada no sujeito pode opor resistência. Para tanto, o autor diz que o mais correto seria denominar “registro” de caso.
Barth (2006, p. 17) discutindo Allonnes, diz que ele parece não acreditar em um trabalho que vá além do estabelecido pela observação do material coletado, no qual a observação figura como um dispositivo privilegiado. A psicanálise, para Barth, rompe com esse modelo.
Outro aspecto que facilmente gera polêmica diz respeito aos riscos de o estudo de caso produzir generalizações. Allonnes (1989) entende que é possível buscar uma forma limitada e controlada da generalização. Isso porque o estudo de caso pretende conhecer os processos de uma (ou mais de uma) história singular a partir dos elementos coletados, voltando-se para a singularidade do caso, ou para o estudo dos seus procedimentos, ou ainda para os modelos de funcionamento.
Outro pesquisador da psicanálise que apresenta importantes contribuições para pensarmos o estudo de caso é Nasio (2001). Discute que o movimento do analista de construir um estudo de caso em torno de algum paciente revela seu interesse por questões desse paciente. Refere que
[...] definimos o caso como o relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e respaldar um avanço teórico. Quer se trate do relato de uma sessão, do desenrolar de uma análise ou da exposição da vida dos sintomas de um analisando, um caso é sempre um texto escrito para ser lido e discutido. Um texto que, através de seu estilo narrativo, põe em cena uma situação clínica que ilustra uma elaboração teórica. É por essa razão que podemos considerar o caso como passagem de uma demonstração inteligível a uma mostra sensível, a imersão de uma ideia no fluxo móvel de um fragmento de vida, e poderemos, finalmente, concebê-lo como a pintura viva de um pensamento abstrato (NASIO, 2001, p. 11 12).
As palavras de Nasio (2001) me remetem a pensar que, enquanto estudo de caso, a pesquisa psicanalítica não se fecha em si mesma e nas verdades que se propõe construir; ao contrário, é construída para ser lida e discutida, a fim de que sua presença no meio acadêmico possibilite a abertura de novas janelas do saber humano interessado em debater os aspectos pesquisados.
Fédida (1991) postula que a narrativa construída pelo(a) analista/pesquisador(a) está tão submetida às questões inconscientes quanto o relato da pessoa ouvida no decorrer da pesquisa/tratamento. Nessa direção, Barth (2006) nos alerta que a pesquisa psicanalítica constitui um exercício metapsicológico; o(a) pesquisador(a) não está desvinculado do objeto que pretende estudar. É possível compreender, a partir desse autor, que a construção psicanalítica do(a) analista/pesquisador(a) implica inicialmente a necessidade de ter seu olhar voltado sobre seu próprio inconsciente, num processo analítico em que ocupa o lugar de paciente. Essa vivência criará condições de realização do exercício metapsicológico necessário à construção teórica psicanalítica.
A metodologia da construção de caso possibilita que as produções psicanalíticas não se restrinjam aos consultórios, contribuindo com as formações oferecidas nos espaços acadêmicos.
Havendo inicialmente um distanciamento entre a psicanálise e a formação universitária, a verdade é que, por suas tantas e possíveis contribuições, a psicanálise tem sido demandada pelas mais diversas formações acadêmicas. Portanto, se faz necessário que ela encontre meios de apresentar seus achados de modo que possa ser compreensível a sujeitos que não estão inseridos nos espaços privados da formação psicanalítica, pois por bastante tempo a psicanálise foi mantida longe dos currículos acadêmicos. Porém, isso não impediu que se desenvolvesse enquanto campo do conhecimento produtor de um amplo arsenal teórico. As instituições criadas com a finalidade de formar psicanalistas se ocuparam da continuidade dos estudos psicanalíticos, e nos últimos anos as universidades têm realizado movimentos de incluir a psicanálise em seus currículos, bem como têm se direcionado às pesquisas nessa área.
Conforme Mezan (1993), tal movimento nos incita a indagar sobre as condições e os limites do ensino da psicanálise nas universidades, uma vez que elas se voltam fundamentalmente para o desenvolvimento e o fomento da pesquisa, diferentemente das instituições psicanalíticas focadas na formação de novos psicanalistas.
De acordo com Silva (1993), a pesquisa em psicanálise se configura num empreendimento bastante complexo e fecundo. É a construção da teoria em psicanálise um trabalho de pensamento do(a) analista a partir de sua prática. Aponta para a fundamental importância de três elementos na pesquisa e na formação do(a) psicanalista/pesquisador(a): a própria análise pessoal, os estudos teóricos e as trocas com outros(as) psicanalistas/supervisores(as).
Os elementos de minha própria formação como psicanalista e como educadora possibilitaram minha entrega ao estudo proposto como tese de doutorado e anunciado no início deste texto: um objeto de pesquisa que me fazia questão — as significações da gravidez para as adolescentes —, além de minha formação teórica constante, das trocas realizadas em supervisão com a orientadora acadêmica, da condição de escuta do outro a partir da escuta de mim mesma e da elaboração de minhas próprias questões, analiticamente.
Ou seja, a iluminação, a clareagem, a escuta e a leitura das vozes e dos silêncios foram propostas por um sujeito ativo, participante, não neutro: o(a) pesquisador(a) na pesquisa psicanalítica não é alguém distante, “esterilizado”, à parte da questão. Pelo contrário, sente em seu íntimo os ecos da pesquisa e por ela é atravessado(a).
A neutralidade necessária na pesquisa psicanalítica se refere ao compromisso de não interferir com a escolha íntima de cada sujeito participante, de não demandar assumir escolhas em seu nome, sugerindo-lhe possibilidades baseadas nas escolhas pessoais do(a) pesquisador(a), permitindo assim que surjam aspectos, sentimentos e pensamentos que muitas vezes não são percebidos ou não aparecem em modalidades de pesquisa mais cartesianas e mais diretivas.
Referências
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Endereço para correspondência
Rua Presidente Lucena, 3569/203
93600-000 – Estância Velha/RS
E-mail: denisequaresmadasilva@gmail.com
Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 27/03/2013
SOBRE A AUTORA
Denise Quaresma da Silva
Membro do Instituto de Estudos de Psicanálise do CPRS, Pós-Doutora em Estudos de Gênero pela UCES (Argentina), Doutora em Educação pela UFRGS, Professora da Universidade Feevale (Novo Hamburgo/RS) e do Centro Universitário La Salle (Canoas/RS).