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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.39 Belo Horizonte jul. 2013

 

 

Neurótico obsessivo entre o mal constitutivo e a moral civilizatória

 

Obsessional neurotic between constitutive evil and moral civilization

 

 

Ramon José Ayres Souza

Universidade Tiradentes

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é parte de um capítulo da tese intitulada Do uso da ironia na neurose obsessiva: destrutividade e criação sublimatória, defendida em março de 2012 no programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. O texto aborda as primeiras relações entre destrutividade e neurose obsessiva na obra de Freud e ao mesmo tempo aponta algumas implicações constitutivas da impossibilidade de experimentação da destrutividade na organização obsessiva, a saber: as medidas protetoras características de um ritual e o caráter anal.

Palavras-chave: Psicanálise, Neurose obsessiva, Destrutividade, Caráter anal, Freud.


ABSTRACT

This paper is a part of thesis’ chapter called "The use of irony in obsessional neurosis: destruction and sublimation creation", defended in March 2012 at the Clinical Psychology program of the Institute of Psychology of the University of São Paulo. The text covers the first relations between destructivity and obsessional neurosis in Freud's work, while pointing some implications of the impossibility of experimentation destructivity in obsessive organization, mainly protective measures characteristics of a ritual and anal character.

Keywords: Psychoanalysis, Obsessional neurosis, Destructivity, Anal character, Freud.


 

 

Os estudos sobre a neurose obsessiva parecem conduzir Freud a um maior entendimento da destrutividade, exigindo inclusive reorganizações na própria teoria psicanalítica nas esferas metapsicológica, cultural e clínica. É tentador investigar, por exemplo, em que medida as teorizações acerca da neurose obsessiva colaboraram com a formulação de conceitos como supereu e pulsão de morte. Igualmente atraente é a hipótese de que a descoberta das fantasias agressivas do obsessivo em relação ao pai contribuiu para a formulação de uma teoria antropológica cultural em Totem e tabu (1913). Outra via interessante é compreender como o caso do Homem dos Ratos (1909) argui Freud a respeito do posicionamento clínico do analista diante de tanta destrutividade latente.

As vias sugeridas mereceriam uma investigação prolongada à luz da epistemologia freudiana, o que escapa ao escopo deste artigo. Ademais, o que está em jogo na neurose obsessiva, a meu ver, é uma impossibilidade de experimentação da própria destrutividade e da consequente ambivalência afetiva, suscitando um modo de ser reativo, erguido sob o domínio de formações substitutivas sintomáticas que visam impedir a própria verdade do desejo. Observamos, assim, claramente os sentimentos de inadequação do neurótico obsessivo, oriundos de uma constituição em ebulição que não se enquadra na moral civilizatória, enfatizando o conflito mal constitutivo versus moral civilizatória. A neurose obsessiva aparenta ser a neurose por excelência, com todos os seus elementos bem sublinhados. Eis o que pretendemos investigar: as primeiras relações entre destrutividade e neurose obsessiva na obra de Freud e algumas implicações constitutivas da impossibilidade de apropriação da destrutividade na neurose obsessiva, a saber, as medidas protetoras características de um ritual e o caráter anal.

Nos primeiros escritos, notamos a inauguração da relação entre agressividade e neurose obsessiva, que aparentemente vai perdurar ao longo de toda a obra freudiana. Decidido a compreender mais profundamente o motivo do processo de substituição presente na construção das obsessões, Freud ([1895]1996, p. 84) atribui a função de defesa do eu “contra a representação incompatível”. Essa função de defesa, efetivada pelo trabalho de recalque, é explorada no texto Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa ([1896]1996), uma espécie de complemento do artigo de 1894 (As neuropsicoses de defesa). Freud nesse momento promove uma investigação mais detalhada sobre o modo pelo qual a sexualidade se torna um afeto conflitivo e, principalmente, sobre as defesas que se erguem contra esse afeto. É através da recém-elaborada “teoria da sedução” que surge a explicação de que as neuroses estariam ligadas a uma sedução e um consequente abuso sexual na infância por parte de um adulto. Tanto a histeria quanto as obsessões se originariam do mesmo processo etiológico (o abuso sexual na infância), a não ser por uma diferença: enquanto a histeria — frequente no sexo feminino — se caracterizaria por um evento em que o indivíduo era submetido a um ato sexual passivo, a neurose obsessiva (com preferência pelo sexo masculino) associava-se a um ato de agressão ativo e prazeroso (FREUD, [1896]1996, p. 164-165).

Sabemos que em 1897, ao deslocar o plano concreto da agressividade para o plano da fantasia, Freud abandona a teoria da sedução. Apesar disso, percebemos naquele momento psicanalítico embrionário um quadro descritivo bastante rico da organização obsessiva, elaborado a partir de pequenos fragmentos de casos utilizados com fins ilustrativos. Já é evidente o funcionamento mental baseado em defesa, seguida de falha da defesa com o retorno do recalcado e do surgimento de sintomas como formações de compromisso e medidas protetoras. O advento de certos sentimentos “sociais” (vergonha, conscienciosidade, superstição, angústia social, fobia) já nos coloca diante da neurose como um sistema de impedimento e punição. Marcada por uma agressão sexual que aprisiona o sujeito em uma dívida moral, a neurose obsessiva é a forma mais acentuada desse modo inibido de ser.

Sem dúvida, o recém-descoberto desejo edípico de matar o pai traz implicações na teorização da neurose obsessiva. Na carta a Fliess de 31 de maio de 1897 (Rascunho N), Freud (1986, p. 251) levanta a hipótese de que os “impulsos hostis contra os pais (mais especificamente o desejo de que morram) são também um elemento integrante das neuroses. Eles vêm à luz, conscientemente, como ideias obsessivas”. Logo em seguida, na mesma carta, ele se pergunta: “Seria possível que mais tarde os impulsos também derivassem das fantasias?” Eis o contexto que vai compor o quadro presente em A interpretação dos sonhos:

Numa outra ocasião, tive a oportunidade de chegar a uma compreensão profunda da mente inconsciente de um rapaz cuja vida se tornara quase impossível em virtude de uma neurose obsessiva. Ele estava impossibilitado de sair à rua porque era torturado pelo medo de matar toda pessoa que encontrasse. Passava seus dias preparando um álibi para a eventualidade de ser acusado de um dos assassinatos cometidos na cidade. Desnecessário acrescentar que era um homem de moral e educação igualmente elevadas. A análise (que, aliás, o levou a recuperar-se) mostrou que a base dessa torturante obsessão era um impulso de assassinar seu pai extremamente severo. Esse impulso, para a surpresa dele, fora conscientemente expressado quando tinha sete anos, mas se originara, é claro, numa fase anterior de sua infância (FREUD, [1900]1996, p. 260-261).

Parricida latente, o neurótico obsessivo é constituído por intensos impulsos hostis contra um pai severo e uma vivência de moralidade igualmente intensa. É interessante constatar que já em 1900 está presente o esboço do conflito entre o desejo de satisfação e um elemento censor que se interpõe a essa satisfação. Como já mencionamos no início do artigo, sabemos ainda que a ideia do assassinato do pai conduzirá Freud a uma teoria antropológica cultural em Totem e tabu. Agora vale apenas destacar que já se encontra aqui, no momento inaugural dos conceitos de inconsciente e de aparelho psíquico, delineado o conflito obsessivo por excelência: o mal constitutivo versus a moral civilizatória.

Roudinesco e Plon (1998, p. 539) afirmam que Freud só voltaria a se interessar pela neurose obsessiva em 1907, com a exposição na Sociedade das Quartas-Feiras de um início de atendimento daquele que viria a se tornar conhecido como O homem dos ratos, o que suscitaria dois textos importantes sobre a temática: Atos obsessivos e práticas religiosas e Caráter e erotismo anal. No entanto, não podemos esquecer que antes disso Freud se dedicou a alguns elementos essenciais à compreensão dessa neurose e, em um sentido mais amplo, ao desenvolvimento da própria teoria psicanalítica. Refiro-me particularmente à agressividade/sadismo, ao desenvolvimento libidinal (de acordo com fases oral, anal, fálica, genital) e ao conceito de pulsão, presentes em 1905 no artigo sobre os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Entre as organizações pré-genitais apresentadas nesse último texto, ressaltamos a importância da erogeneização da zona anal, conceitualmente importante para a neurose obsessiva.

Em relação ao sadismo, este “corresponderia a um componente agressivo autonomizado e exagerado da pulsão sexual, movido por deslocamento para o lugar preponderante” (FREUD, [1905]1996, p. 149). Em outro nível teórico, o texto resgata também a antiga ligação entre a pulsão sexual e o que Freud chama de crueldade:

Que a crueldade e a pulsão sexual estão intimamente correlacionadas é nos ensinado, acima de qualquer dúvida, pela história da civilização humana, mas no esclarecimento dessa correlação não se foi além de acentuar o fator agressivo da libido. Segundo alguns autores, essa agressão mesclada à pulsão sexual é, na realidade, um resíduo de desejos canibalísticos e, portanto, uma coparticipação do aparelho de dominação, que atende à satisfação de outra grande necessidade ontogeneticamente mais antiga (FREUD, [1905]1996, p. 150-151).

Somente com o conceito de “pulsões parciais”, ao considerar o componente de crueldade da pulsão sexual que se desenvolve na criança como independente das zonas erógenas, é que Freud parece avançar um pouco mais na questão dos impulsos hostis, apresentando-nos duas novas ideias. A primeira diz respeito à ambivalência. Segundo ele, é através da ligação entre a crueldade e a libido que se dá “a transformação do amor em ódio, das moções afetuosas em moções hostis, que é característica de um grande número de casos de neurose e até, ao que parece, da paranóia em geral.” (FREUD, [1905]1996, p. 158). Logo em seguida, a crueldade é considerada “perfeitamente natural no caráter infantil, já que a trava que faz a pulsão de dominação deter-se ante a dor do outro — a capacidade de compadecer-se — tem um desenvolvimento relativamente tardio” (FREUD, [1905]1996, p. 181).

Compreendemos que a temática da agressividade vai ganhando importância ao longo da obra de Freud. Os componentes hostis fazem parte da constituição infantil, mas ao mesmo tempo é preciso renunciar a eles para ingressar na civilização. O obsessivo, hobbesiano por natureza, é aquele que desenvolve intensas proteções para evitar esse mal que o constitui. Algumas dessas proteções se assemelham aos rituais religiosos, conforme é descrito em 1907 em Atos Obsessivos e práticas religiosas.

Freud ([1907]1996, p. 109) abre o artigo afirmando que não é o momento para definições, uma vez que “ainda não chegamos ao critério distintivo da neurose obsessiva”. Esse critério estaria, segundo ele, “oculto em camadas muito profundas, embora pareça revelar sua presença em todas as manifestações da doença”. Trata-se de uma tentativa de compreensão dos chamados cerimoniais obsessivos, à luz da comparação com as práticas religiosas. Na observação das semelhanças entre ambos, aparece mais uma vez o excesso de escrúpulos e a consciência moral. A diferença estaria entre a privação dos atos neuróticos e o caráter de rito público dos atos religiosos. Além disso, ao contrário do simbolismo próprio dos cerimoniais religiosos, na neurose obsessiva — essa “caricatura, ao mesmo tempo cômica e triste, de uma religião particular” (FREUD, [1907]1996, p. 111) — os ritos têm caráter obrigatório e à primeira vista parecem bobos e sem sentido, além de qualquer possibilidade da renúncia suscitar angústia. Esse absurdo, entretanto, desaparece após uma investigação psicanalítica:

Descobre-se que todos os detalhes dos atos decisivos possuem um sentido, que servem a importantes interesses da personalidade, e que expressam experiências ainda atuantes e pensamentos catexizados com afeto. Fazem isso de duas formas: por representação direta ou simbólica, podendo, consequentemente, ser interpretados histórica ou simbolicamente (FREUD, [1907]1996, p. 111).

Nessa ocasião ainda percebemos a mesma premissa de tratamento: tornar o ato consciente, ou melhor, interpretar o sentido por trás do aparente absurdo. A defesa em forma de medida protetora é erguida contra o mal e, ao mesmo tempo que causa sofrimento, promove satisfação, o que expõe o quanto a renúncia é parcial. Mesmo com o recalque e a formação de sintomas, é certo que há algum tipo de satisfação. A satisfação nesse caso vem através da formação reativa, a responsável por conduzir os impulsos primitivos à consciência de modo invertido.

A neurose obsessiva é considerada por Freud ([1907]1996, p. 116) “o correlato patológico da formação de uma religião”. Embora ambas renunciem aos impulsos constitutivos, na neurose obsessiva os impulsos “são exclusivamente sexuais em sua origem, enquanto na religião procedem de fontes egoístas”. Não nos esqueçamos dos impulsos hostis, mesclados às pulsões sexuais. Freud, então, conclui que a “renúncia progressiva às pulsões constitucionais, cuja ativação proporcionaria o prazer primário do eu, parece ser uma das bases do desenvolvimento da civilização humana” (FREUD, [1907]1996, p. 116). Trata-se da ideia desenvolvida, no texto Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (FREUD, [1908]1996), de que a civilização se funda sob a renúncia pulsional. O obsessivo seria, então, o representante maior dessa moral civilizada.

Para além dos cerimoniais semelhantes aos ritos religiosos, também não podemos deixar de mencionar como sendo implicações da destrutividade renunciada alguns traços que vão compor esse modo de ser obsessivo. Refiro-me particularmente àquilo que Freud denominou em 1908 de Caráter e erotismo anal ([1908]1996). No texto, são identificadas três características encontradas em pacientes obsessivos: “elas são especialmente ordeiras, parcimoniosas e obstinadas”. Cada um desses traços pode se apresentar através de outras formas, por exemplo, “a parcimônia pode aparecer de forma exagerada como avareza, e a obstinação pode transformar-se em rebeldia, à qual podem facilmente associar-se a cólera e os ímpetos vingativos” (FREUD, [1908]1996, p. 159, grifos do autor). A explicação para esse tipo de comportamento obsessivo é fornecida pelo erotismo anal; “essas pessoas nasceram com uma constituição sexual na qual o caráter erógeno da zona anal é excepcionalmente forte” (FREUD, [1908]1996, p. 160). Vale lembrar que o erotismo anal foi tratado primeiramente no texto dos Três ensaios para em seguida ser abordado mais profundamente em A predisposição à neurose obsessiva ([1913]2010). A mim interessa destacar o marcante papel da formação reativa — consequência da ambivalência afetiva — na transformação de sentimentos em seu oposto: “A limpeza, a ordem e a fidedignidade dão exatamente a impressão de uma formação reativa contra um interesse pela imundície perturbadora que não deveria pertencer ao corpo” (FREUD, [1908]1996, p. 162). A vergonha, a repugnância e a moralidade obsessivas também se originam a partir das “formações reativas”:

Ora, o erotismo anal é um dos componentes da pulsão sexual que, no decurso do desenvolvimento e de acordo com a educação que a nossa civilização exige, se tornarão inúteis para os fins sexuais. Portanto, é plausível a suposição de que esses traços de caráter — a ordem, a parcimônia e a obstinação —, com frequência relevantes nos indivíduos que anteriormente eram anal-eróticos, sejam os primeiros e mais constantes resultados da sublimação do erotismo anal (FREUD, [1908]1996, p. 161).

Freud ainda não havia desenvolvido o conceito de sublimação, cuja primeira aparição se deu em 1905, nos Três ensaios. Em 1908, como é o caso da citação acima, a sublimação ainda é tratada como sinônimo de formação reativa. Apesar de não ser objeto de investigação desse artigo, cabe destacar que é somente em 1915 ([1905]1996, p. 168) que Freud acrescenta uma nota de rodapé ao texto dos Três ensaios afirmando que a sublimação e a formação reativa são “dois processos conceitualmente diferentes”, além de a sublimação “dar-se por outros mecanismos mais simples”.

De volta ao nosso percurso, é preciso mencionar uma passagem do texto Sobre transformações dos instintos em particular no erotismo anal (1917), mais especificamente uma relevante questão a respeito do destino do erotismo anal após a instauração da organização genital: estaria submetido ao recalque, à sublimação, à transformação em qualidades de caráter (formação reativa) ou seria acolhido na nova configuração da sexualidade? (FREUD, [1917]2010, p. 254).

Através da associação fezes, criança e pênis, principalmente a relação entre criança e pênis, ficamos sabendo que o erotismo pré-genital pode fazer parte da organização genital: a inveja do pênis proporciona a aquisição de um substituto, tanto no que diz respeito ao desejo de ter uma criança — que no caso, seria um substituto do excremento-presente —, quanto à escolha amorosa de um homem — “apêndice do pênis” (FREUD, [1917]2010, p. 256-258). Esse interesse pelo pênis, bem como o traço de caráter da teimosia (ou obstinação) também se origina do simbolismo das fezes. No caso deste último, a origem mais precisa se dá pela retenção como ato de satisfação autoerótica narcísica, em oposição à atitude de amor ao objeto, representada pelo ato de presentear o outro com as fezes.

Por fim, Freud ainda apresenta no mesmo texto, apesar de não explorar, a “degradação regressiva da organização genital” na neurose obsessiva, “manifestada no fato de toda fantasia originalmente concebida no plano genital ser transposta para o anal, o pênis ser substituído pela vara de fezes, a vagina pelo intestino” (FREUD, [1917]2010, p. 259).

É certo que os estudos sobre o caráter anal foram expandidos por Ernest Jones em Traços do caráter anal-erótico, publicado originalmente em 1918. Jones começa diferenciando dois tipos de traços anais de caráter: os que têm uma “natureza positiva — ou seja, são sublimações que representam simplesmente um desvio do objeto original” e aqueles que possuem uma “natureza negativa — ou seja, constituem formações reativas erigidas como barreiras contra as tendências recalcadas” (JONES, [1918]2005, p. 297). Como resultado do processo sublimatório, teríamos a parcimônia, os impulsos de colecionar e estocar, bem como o seu oposto: a generosidade, a extravagância, as produções artísticas e criativas (pintura, escultura, culinária). Entre as formações reativas, encontramos: a ordem, a intolerância para o desperdício, o asco e a aversão à sujeira.

Jones também apresenta alguns traços de caráter mais relacionados com o ato da defecação em si. Por exemplo, a procrastinação remete ao prazer obtido pela criança através do adiamento do momento de defecar. Enquanto adiam e protelam o ato, elas “mergulham no trabalho com uma energia desesperada e quase sempre feroz que nada deve desviar, nem a mínima interferência deve ser sentida” (JONES, [1918]2005, p. 298). A inibição, então, dá lugar à obstinação e à persistência para se alcançar um estado de perfeição. “Nada pode ficar pela metade” (JONES, [1918]2005, p. 301). Há também uma “extrema sensibilidade acerca da interferência” (p. 302). O obsessivo não tolera interrupções durante suas atividades, correndo o risco de reagir com rebeldia, irritabilidade e mau humor:

Tais pessoas não aceitam bem conselhos, ressentem-se de qualquer pressão sobre elas, lutam por seus direitos e dignidade, rebelam-se contra qualquer autoridade e insistem em seguir seu próprio caminho; nunca são induzidas, podendo apenas ser comandadas. Como crianças, são extremamente desobedientes, existindo, com certeza, uma constante associação entre a desobediência desafiadora e o erotismo anal não controlado (JONES, [1918]2005, p. 302).

Podemos inferir a relação entre erotismo anal e rebeldia a partir do comentário de Lou Salomé sobre a primeira proibição imposta à criança durante o ato de defecar, mais precisamente em extrair prazer dessa atividade. “A partir daí, o ‘anal’ permaneceria como símbolo de tudo o que deve ser repudiado, afastado da vida” (SALOMÉ apud FREUD, [1905]1996, p. 176).

Em 1921, no artigo Contribuição à teoria do caráter anal, Abraham ([1921]1970, p. 178) retoma as ideias de Jones com o objetivo de “ampliação e acabamento”. É apresentado um relato de uma paciente acometida por um conflito “entre uma atitude consciente, por um lado, de submissão, resignação e disposição a sacrificar-se e, por outro, um desejo inconsciente de vingança”. Tais impulsos de vingança, segundo o autor, surgem por conta de uma atitude autoritária da mãe, que exigia a “obediência da parte da criança com referência a fazer suas necessidades mais cedo que o costumeiro”, chegando a distribuir umas palmadas por isso. Mais uma vez temos a rebeldia (camuflada através de uma atitude oposta de submissão) contra uma figura de autoridade no inconsciente do obsessivo.

Ao procurar impor “seu próprio sistema” em tudo, indica Abraham, o neurótico obsessivo tende a criticar os outros exageradamente, “e isto facilmente degenera em mera cavilação [ironia maldosa, zombaria]. Na vida social, constituem eles o grupo principal dos descontentes” (ABRAHAM, [1921]1970, p. 181). Por último, Abraham também comenta aquilo que Jones considera “um dos mais interessantes resultados do erotismo anal” ([1921]1970, p. 193): a tendência à oposição do psiquismo. Para o primeiro, o motivo da inversão é o deslizamento da libido da zona genital para a anal:

Nesse sentido, pode-se mencionar a conduta de muitas pessoas que são consideradas excêntricas. Sua natureza é construída, na maior parte, por traços caracterológicos anais. Elas tendem a agir, tanto em grandes quanto em pequenas coisas, de maneira oposta à das outras pessoas (ABRAHAM, [1921]1970, p. 193).

Somente depois é explicada a transformação reativa dos impulsos sádico-anais e coprofílicos em excessivo amor à limpeza e à ordem. Para o psicanalista, tais tendências revelam um “instinto erótico anal recalcado ou sublimado” (ABRAHAM, [1924]1970, p. 92-93).

Por fim, interessa apenas ressaltar o marcante papel da formação reativa — resultado da destrutividade e da ambivalência afetiva — na transformação de sentimentos em seu oposto e, consequentemente, em um modo de ser impedido pela moral civilizatória. Eis por que, ao levar em conta a clínica na neurose obsessiva, devemos lançar mão do encontro lúdico e do compartilhamento afetivo no processo de experimentação e estetização da destrutividade e da ambivalência. Essa via fértil, entretanto, merece ser explorada em outro momento.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Tenente Wendel Quaranta, 1315, ap. 902
49052-260 – Aracaju/SE
E-mail: ramon.souza@usp.br

Recebido: 15/03/2013
Aprovado: 24/04/2013

 

 

SOBRE O AUTOR

Ramon José Ayres Souza
Professor Titular I do Curso de Psicologia da Universidade Tiradentes. Psicólogo. Psicanalista. Doutor em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP.