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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.40 Belo Horizonte dez. 2013

 

 

Reflexões sobre a "teoria do pensar", de Bion

 

Reflection about the "theory of thinking", by Bion

 

 

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo surge em decorrência de uma reflexão sobre a teoria do pensar de Bion. A teoria do pensar não se refere a uma função meramente cognitiva, mas fala da inauguração de um espaço de autoria. Segundo Bion, a experiência de frustração vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la origina um protopensamento, desenvolvendo então um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma solução para se lidar com a frustração. A teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica.

Palavras-chave: Teoria do pensar, Bion, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper comes from reflection on the Theory of Thinking by Bion. A Theory of Thinking does not simply refer to a cognitive function, but speaks the opening of a space of authorship. According to Bion, the frustration experienced by a psychic apparatus able to bear it originates a proto-mental system which develops a psychic apparatus capable for thinking it. In other words, the thinking comes as a solution to cope with frustration. The Theory of Thinking enables an understanding of the formation of the psyche, tapering listening to the acquisition of symbolic capacity.

Keywords: Theory of Thinking, Bion, Psycoanalysis.


 

 

Ao longo da formação psicanalítica entramos em contato com a obra de alguns importantes psicanalistas que no decorrer do último século vêm dando continuidade à obra de Freud. Melanie Klein aprofundou o conceito de fantasia, deu ênfase ao mundo interno, introduziu a ideia de posição. Winnicott descreveu fenômenos como a regressão à dependência, elaborou o conceito de mãe suficientemente boa, abriu caminho para a análise de pacientes difíceis. Em relação a Bion, antes de iniciar as leituras sobre sua obra, já conhecia sua importante contribuição acerca dos fenômenos grupais. Mas, mesmo assim, me questionava: Qual a originalidade de suas contribuições? E foi dessa forma que pensei em escrever sobre a teoria do pensar, elaborada por ele em 1962.

Segundo Zimerman (1995), no curso das análises de psicóticos, Bion ficou fortemente tentado a se aprofundar nos problemas de linguagem e nos problemas da origem e função dos pensamentos. Para tanto, se inspirou nos postulados de Freud sobre o princípio do prazer e da realidade, além de ter sido influenciado pelas ideias de Melanie Klein e Ferenczi.

Partindo de Freud, sabemos que o processo primário está ligado à satisfação imediata das necessidades básicas portanto ligado ao princípio do prazer, ao passo que o processo secundário está relacionado ao princípio da realidade, o qual vai se impondo sobre o princípio do prazer, gerando a capacidade de adiar a descarga pulsional e abrindo espaço para a capacidade simbólica.

Segundo Bion, a experiência de frustração oriunda desse processo — também chamada de experiência do não seio, vivida a partir de um aparelho psíquico capaz de suportá-la — origina um protopensamento desenvolvendo, então, um aparelho psíquico para pensá-lo. Em outras palavras, o pensar surge como uma saída, uma espécie de solução para se lidar com a frustração. Mas, se ao contrário disso, a capacidade de tolerar frustração for precária, o não seio ou o seio mau deve ser expulso através do uso maciço de identificações projetivas.

Dessa forma, Zimerman (1995), ao explicar a teoria do pensar de Bion, coloca que, se o ódio resultante da frustração não exceder a capacidade do ego do lactante de suportá-lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento através do que Bion denominou de função alfa, a qual integra as sensações provindas dos órgãos dos sentidos com as respectivas emoções. No entanto, se o ódio for excessivo, protopensamentos denominados por Bion de elementos beta — experiências sensoriais primitivas e caóticas que não puderam ser pensadas — encontram saída através do alívio imediato de descarga, o que é feito por meio de agitação motora, atuações ou somatizações, mas que sempre utiliza a identificação projetiva como mecanismo.

Assim, de acordo com essa teoria, a consciência de si depende da função alfa. Claramente influenciado por Melanie Klein, Bion coloca que é o êxito da posição depressiva que permite a formação de símbolos, os quais substituem e representam todas as perdas inevitáveis do curso do desenvolvimento. Consequentemente, a formação de símbolos possibilita a capacidade de abstração e criatividade, inscrevendo o sujeito no campo do simbólico.

Bion extraiu o termo função do campo da matemática e, segundo Zimerman, a equivalência entre ambos é que na matemática função alude a um elemento variável que satisfaz os termos de uma equação, e do mesmo modo a função alfa representaria uma incógnita à espera de uma realização para satisfazer-se. Assim, a função alfa, na teoria de Bion, é a primeira que predominantemente existe no aparelho psíquico. Ou seja, se o indivíduo tiver capacidade de tolerar frustração, é a função alfa que vai transformar as primeiras impressões emocionais (prazer e dor) em elementos alfa. Estes últimos, sendo processados pela função alfa, abrirão passagem para os pensamentos oníricos, produção de sonhos, memória e funções do intelecto. Os elementos alfa é que darão origem ao que Bion chamou de barreira de contato, tendo a função de separar interno e externo, inconsciente e consciente, estabelecendo uma espécie de contorno e de alguma forma fornecendo ao sujeito uma sensação de integração.

Os elementos alfa não são a experiência da coisa em si, mas uma abstração e uma representação dessa, que enquanto se faz simultaneamente representada em ambas as formas consciente e inconsciente, fornece à personalidade uma "visão binocular" da experiência, de onde deriva o "sentimento de confiança" na sua realidade (MELTZER, 1998, p. 73).

Os elementos beta, ao contrário, se proliferam de forma caótica e constituem o que Bion chamou de pantalha beta, não possibilitando uma diferenciação entre consciente e inconsciente, entre fantasia e realidade, não permitindo a elaboração dos sonhos. Bion (1994) mostra que nos pacientes psicóticos prevalece a formação da pantalha beta, bem como há uma prevalência da posição esquizoparanoide sobre a posição depressiva. Dessa forma, o pensamento adquire uma concretude, uma dureza, capaz de causar danos reais e precisam ser expulsos imediatamente. Não há possibilidade de simbolização. Referindo-se aos pensamentos que ainda não adquiriram um sentido tampouco um nome, Bion coloca que nos psicóticos predomina o pensamento vazio, por isso nas situações de angústia ele vem acompanhado de um estado psíquico que ele chamou de terror sem nome.

Além das duas formações citadas — alfa e beta, Bion coloca uma terceira forma possível de subjetivação que veio a denominar reversão da função alfa. Trata-se de casos em que a função alfa já opera no psiquismo, mas, por alguma dor vivida em excesso, ela recua e produz elementos beta, já diferentes dos originais. Nesses casos ocorre uma regressão rumo a um pensamento concreto, o que, segundo Bion, pode regredir ao ponto de chegar ao nível da linguagem das sensações psíquicas corporais, como ocorre nos distúrbios psicossomáticos.

Ao propor sua teoria, Bion entende o pensar como um processo que depende de dois desenvolvimentos básicos: o primeiro é o dos pensamentos que requerem um aparelho mental que deles se encarregue, e o segundo é o desenvolvimento do aparelho que inicialmente chamou de faculdade de pensar. "O pensar passa a existir para dar conta dos pensamentos" (BION, 1994, p. 128).

Isso significa que para Bion existe um pensamento que é anterior à capacidade de pensar e que denominou pensamento sem pensador. O próprio autor diz que sua teoria difere de qualquer teoria do pensamento na medida em que considera o pensar um desenvolvimento imposto à psique pela pressão dos pensamentos, e não o contrário.

Através do texto Uma teoria sobre o pensar, Bion classifica os pensamentos conforme sua natureza evolutiva: pré-concepções, concepções e conceitos. Coloca que a concepção inicia através da conjunção de uma pré-concepção com uma realização. Por exemplo, quando o bebê é colocado em contato com o seio real, a pré-concepção, que nada mais é do que a expectativa inata por um seio — conhecimento a priori de um seio, se une à realização, dando origem a uma concepção. Assim, as concepções estão associadas a uma experiência emocional de satisfação. O termo pensamento é empregado por Bion para se referir ao resultado de uma pré-concepção com uma frustração. Seguindo essa lógica, o pensamento vazio equivale a uma pré-concepção à espera de uma realização. Nas palavras de Bion:

O modelo que proponho é o de um bebê cuja expectativa de um seio se una a uma "realização" de um não-seio disponível para satisfação. Essa união é vivida como um não seio, ou seio "ausente", dentro dele. O passo seguinte depende da capacidade de o bebê tolerar frustração. Depende de que a decisão seja fugir da frustração ou modificá-la (BION, 1994, p. 129).

E modificá-la nesse contexto é abrir caminho para o universo simbólico e, consequentemente, para a capacidade de pensar. O pensar ao qual Bion se refere não fala de uma função meramente cognitiva, mas da inauguração de um espaço de autoria que acontece desde muito cedo. Realizações na teoria bioniana, segundo Zimerman, consistem em experiências emocionais resultantes de frustrações da onipotência do lactente e, por isso, ele precisa se voltar para o mundo real (real-ização). Essa realização pode se desenrolar de forma positiva ou negativa. Na realização positiva há uma confirmação de que o objeto necessitado está realmente presente e atende às suas necessidades. Na realização negativa o lactante não encontra um seio disponível para a satisfação, e essa ausência é vivenciada com a presença de um seio ausente mau dentro dele.

De acordo com a teoria de Bion, o surgimento da capacidade de pensar depende do quanto de frustração o bebê tem condições de suportar, e isso também tem relação com suas inatas demandas pulsionais. Mas, além disso, Bion afirma que a capacidade de tolerância do bebê em relação às frustrações depende também fundamentalmente da forma pela qual o cuidador recebe suas identificações projetivas. É aí que introduz a noção de capacidade de reverie. Reverie vem do francês, significa 'sonho' e, segundo Zimerman (1995), designa uma condição pela qual a mãe é capaz de captar o que se passa com seu filho muito mais através de um estado de sonho e intuição do que propriamente através dos órgãos do sentido. A mãe-reverie é aquela que consegue acolher, conter e fazer ressonância com o que é projetado dentro dela, dando sentido aos elementos beta maciçamente projetados e devolvendo elementos alfa nomeados e significados. Bion parte da noção de que todos nós temos a priori recursos para desenvolver o pensar, por isso diz que há um pensamento em busca de um pensador. Entretanto, essa capacidade pode ser desenvolvida ou não, dependendo também da capacidade de reverie do cuidador.

 

Considerações finais

A produção deste artigo foi uma tentativa de responder à pergunta introduzida no início, e ao término é possível constatar a importância desse autor no campo psicanalítico. O estudo da teoria do pensar possibilita um conhecimento sobre a formação do psiquismo a partir dos postulados de Bion, afinando a escuta para a aquisição da capacidade simbólica. Além disso, através dela, é possível conhecer um pouco do Bion teórico. O Bion psicanalista aparece claramente no texto Sobre uma experiência pessoal com W. R. Bion, de Luiz Alberto Py, onde conta pormenores do seu processo analítico realizado com Bion. Nesse artigo vemos um Bion bem-humorado, perspicaz e sensível na relação com seu paciente.

A capacidade de pensar depende de uma dose de frustração e aponta, mais uma vez, como o nascer, o crescer e o viver são experiências dolorosas na sua essência. Assim também é o processo analítico: doloroso, na medida em que nos coloca exatamente numa posição de consciência de nós mesmos. Por outro lado, o processo de saber sobre nós mesmos nos permite maior flexibilidade diante da vida, no sentido de desfazer nós e angústias que nos paralisam e nos aprisionam.

Por fim, também nós enquanto analistas precisamos dispor da capacidade de reverie conceituada por Bion, na medida em que nos cabe conter a angústia e devolvê-la aos pacientes de forma que ela possa ser transformada e nomeada.

 

Referências

BION, W. R. Estudos psicanalíticos revisados. Tradução: Wellington M. de Melo Dantas. 3 ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.         [ Links ]

MELTZER, D. O desenvolvimento kleiniano III. O significado clínico da obra de Bion. São Paulo: Escuta, 1998.         [ Links ]

ZIMERMAN, D. Bion, da teoria a prática. Uma leitura didática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Dr. José Montaury, 325/107 - Centro
95330-000 - Veranópolis/RS
E-mail: waleska.pessato@terra.com.br

Recebido: 08/10/2013
Aprovado: 29/10/2013

 

 

SOBRE A AUTORA

Waleska Pessato Farenzena Fochesatto
Psicóloga. Mestre em Ciências da Saúde pela PUCRS. Candidata a psicanalista pelo Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.