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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.41 Belo Horizonte jul. 2014
O tempo em Freud
Time in Freud
Arlindo Carlos Pimenta
I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano
RESUMO
O autor parte da discordância de Freud da proposição kantiana de que o espaço e o tempo são formas necessárias ao pensamento. A proposição kantiana pode ser aplicada ao sistema PCS/CS, mas não do ICS, que tem sua temporalidade própria, o e também se dá no nível das pulsões.
Palavras-chave: Inconsciente atemporal, Efeito Nachtraglich, Repetição do mesmo e repetição diferencial, Tempo em anel e tempo circular, Entropia, Termodinâmica do não equilíbrio, Estruturas dissipativas.
ABSTRACT
The author disagrees between the Kantian proposition that space and time are necessary forms of thought. The Kantian proposition may be applied to the PCS/CS system, but not to the UCS, which has its own temporality, the same occurring alongside the pulsional level.
Keywords: Timeless unconscious, Nachtraglich effect, Repetition of the same and differential repetition, Ring shaped time and circular time, Entropy, Non equilibrium thermodynamics, Dissipative structures.
Freud nunca escreveu um texto especificamente sobre o tempo, o que não quer dizer que essa problemática não lhe dissesse respeito. Seu interesse por essa questão está esparso em sua obra, praticamente do início ao fim.
Em sua postulação fundamental, ou seja, o inconsciente enquanto sistema de funcionamento específico do psiquismo, o que é mais marcado é que o inconsciente é atemporal. O próprio Freud em alguns textos enuncia algumas teses sobre o tempo de uma forma ligeiramente diferente, mas que podem ser sumarizadas da seguinte forma, segundo Gondar (1995):
1. Os processos mentais inconscientes não são ordenados temporalmente.
2. O tempo de modo algum os altera.
3. A ideia de tempo não lhes pode ser aplicada.
No entanto, no capítulo IV de Além do princípio do prazer, Freud se posiciona frontalmente contra a proposição de Kant, quando o filósofo coloca o espaço e o tempo como formas necessárias do nosso pensamento. Freud vai discordar dessa universalidade. Se os pensamentos inconscientes escapam, ela deixa de ser universal (ASSOUN, 1978).
Procuraremos aqui, mostrar que cada instância psíquica tem seu tempo próprio e que o atemporal do inconsciente tem a ver com a referência ao tempo cronológico do PCS/CS.
O tempo da consciência
Este é o tempo que aparece em primeiro lugar nas elaborações de Freud.
No Projeto, de 1895, exatamente ao tentar explicar o tornar-se consciente, Freud descreve o sistema de neurônios ω (ômega), responsável pela transformação da quantidade em qualidade, portanto pela consciência. A estimulação desse sistema se daria por períodos de tempo numa espécie de pulsação temporal. Nesse sentido, por exemplo, a qualidade prazer/desprazer sentido em não seria apenas em função do aumento ou diminuição de Q ou Qn, mas do aumento/diminuição da excitação num determinado período de tempo (FREUD, 1950 [1895] 1996).
Nesse texto, no entanto, Freud não aprofunda mais a questão. Numa carta enviada a Ferenczi por ocasião da escrita dos artigos sobre metapsicologia (inicialmente em número de doze), Freud faz referência a um texto sobre a consciência. E afirma que esse tema é tão opaco que o deixará de lado.
No texto Uma nota sobre o bloco mágico (1925 [1924]) Freud atribui a descontinuidade do funcionamento perceptivo ao envio e à retirada de impulsos do inconsciente. Isso nos permite pensar que a produção de um tempo real, do qual derivaria uma ideia abstrata, pode estar relacionada ao modelo de operação dessa nova instância psíquica (GONDAR, 1995.)
O que Freud denomina tempo nos permite compreender a tese da atemporalidade do inconsciente, explicitada nos três enunciados expostos anteriormente. A vitalidade desses enunciados só pode ser determinada por oposição ao tempo introduzido no psiquismo pelo sistema Pcpt-CS. Não haveria equivalência entre as duas instâncias PCS/ICS; pelo contrário, o que há é uma ruptura entre ambas. O inconsciente então despreza a ideia consciente de tempo; em outras palavras, o inconsciente é atemporal apenas se o referimos ao tempo cronológico.
O inconsciente implica um tempo em sua própria produção
Podemos dizer que o inconsciente é produzido pelo tempo. É o que Freud traz à baila sobre o termo Nachtraglich, indicando com isso sua concepção própria da temporalidade e da causalidade psíquicas.
Embora o conceito tenha sido herdado da teoria traumática das neuroses portanto de Charcot, o termo Nachtraglich aparece pela primeira vez no relato do caso Emma, na última parte do Projeto, de 1895, no capítulo denominado Próton pseudos (FREUD, 1950 [1895]).
No entanto, é importante notar que uma cena traumática não encontra sentido em si mesma. Ela só se torna traumática quando, transformada em representação – lembrança –, é evocada por uma segunda cena (sexualmente representável passando então a receber um sentido).
O efeito Nachtraglich nos põe diante de um paradoxo do tempo: o acontecimento posterior, que desencadeia a produção sintomática, não é verdadeiramente eficaz, enquanto a cena que corresponderia a uma eficácia autêntica não produz a princípio nenhum efeito. Isso significa que a eficácia traumática não é produto de um acontecimento do passado distante, e sim do enlace entre duas representações, que do ponto de vista da cronologia não teriam motivo para estar em relação.
De fato não há ordem cronológica entre as ideias, mas uma articulação lógica, que mantém a relação de causa e efeito, mesmo que a causa esteja presente “só depois”.
Se avançamos um pouco mais no tempo, vamos retomar a temática do Nastraglichkeit, em 1918, ligado ao caso clínico do Homem dos Lobos, onde Freud já construíra boa parte de seu arcabouço teórico (FREUD, 1919 [1918]). Aqui o conceito de Nachtraglich reaparece várias vezes e constitui o eixo interpretativo do sonho dos lobos em sua relação com a cena primária.
Vemos, a partir daí, então, que não é apenas na esfera do trauma que a noção de Nachtraglich terá valor operatório. Na verdade seu alcance se expande ao se libertar do modelo traumático. Desse modo, todas as formações do inconsciente – sonhos, chistes, sintomas, atos falhos – serão encaradas em função do efeito Nachtraglich. Nesse sentido, o inconsciente não existe. Somente podemos falar dele através de suas irrupções, que são constituídas por essa operação temporal singular.
O inconsciente é, por assim dizer, uma virtualidade que de forma súbita e descontínua (abertura e fechamento - Lacan) se atualiza em brevíssimas manifestações. Ele não está lá, antes que um sintoma ou um ato falho sejam produzidos. Impõe-se, assim, um tempo de efetuação, onde o sentido é o que faz existir aquilo que produz (GONDAR, 1995).
Tudo se dá num relance: o inconsciente emerge num momento preciso, embora inantecipável e se esvai entre uma abertura e seu fechamento. Em suma, Freud nos propõe uma modalidade temporal retrospectiva, onde o sentido do passado é dado a partir do presente.
Podemos, então, perceber que o próprio efeito de ato que a interpretação psicanalítica exerce depende desse efeito de ressignificação. Nesse sentido, o manejo do tempo como no corte da sessão tem efeito interpretativo. É, portanto, extremamente importante que esse manejo seja cuidadoso e bem efetuado.
Ousaria dizer que grande parte da eficácia de uma análise é tributária do manejo transferencial do tempo. Isso porque o deslizamento constante e contínuo da associação livre (cadeia significante), ao ser submetida a atos e corte (ponto e estofamento), vai provocar por efeitos Nachtraglich as ressignificações sucessivas e a dialetização dessa rede de representações ou cadeia significante.
Mas isso significa então dizer que Freud inverte a direção do tempo? O a posteriori significaria um tempo reversível? Afirmamos que isso não acontece, pois o Nachtraglich não traz consigo uma noção abstrata do tempo, como é o caso da física newtoniana e do tempo especializado dos relógios. O tempo do sistema Pept-Cs. Como vimos, é justamente com relação a essa concepção que o inconsciente permanece atemporal.
Devemos levar em conta a dissimetria temporal implicada no Nachtraglich. Num tempo reversível nada permite diferenciar o antes do depois. A irreversibilidade supõe, ao contrário, que existe um marco diferencial entre ambos de modo que possamos reconhecê-los como desiguais.
Com relação ao inconsciente, esse marco reside na produção de sentido. A cada instante que os traços mnêmicos se rearranjam, um novo sentido se produz, e esse sentido é irreversível. Não porque não possa produzir um outro que o modifique, mas porque não há possibilidade de retorno ao instante anterior.
É fato que o efeito Nachtraglich implica uma repetição (traços - risos, roupas nas cenas I e II do caso Emma). Porém, para haver enlace de duas representações, é preciso que nessa repetição se insinue algo novo, capaz de conferir à primeira recordação um sentido que não lhe havia sido dado. Em termos de uma psicanálise podemos supor que o suposto saber da transferência constitua esse algo novo que aí se insinua.
Mesmo um sintoma não se manifesta exatamente da mesma forma, já que a cadeia de representações aqui posta em ação não se reproduz de forma idêntica a cada vez. Daí o efeito surpresa próprio do inconsciente.
Um novo ponto nos ajuda a uma compreensão melhor do processo analítico a partir do manejo do tempo na transferência, como já foi enfatizado anteriormente. Lembremos da proposta de Lacan do inconsciente estruturado como uma linguagem e que Freud, no seu artigo sobre o início do tratamento, ao falar do processo analítico, se utiliza da metáfora do jogo de xadrez, onde o estabelecido é a abertura e o término da partida.
Pensemos, então, a estrutura do inconsciente como um tabuleiro de xadrez com suas posições e leis. O jogo se faz quando as peças são movimentadas. Desde que a jogada seja feita, não mais se pode retornar à posição anterior, e o jogo se faz por continuidade a partir desse novo posicionamento. O que importa, então, é a disposição das peças no tabuleiro num determinado momento. Assim o jogo prossegue.
No entanto, apesar de ser boa a comparação, devemos ressaltar que a estrutura inconsciente é regida por uma lei de articulação que pode ser descrita como temporal próprio a ele. O inconsciente não funciona, segundo uma lógica simples, como o jogo de xadrez. O conjunto das representações inconscientes não está fixado a priori, bem como não está o movimento próprio de cada um delas no jogo. A causa desse movimento e de suas mudanças está relacionada à esfera pulsional, instituindo um vazio em torno do qual as diversas representações se articulam.
As atualizações do inconsciente são súbitas e descontínuas, mas a cada momento que se efetuam, são irreversíveis. Temos, então, uma irreversibilidade a partir de instantes descontínuos. A cada instante se institui um novo tempo que emerge de forma repentina, irregular e inantecipável (GONDAR, 1995).
Outras modalidades temporais na cena analítica - o tempo da pulsão
Como é o tempo do inconsciente, o Nachtraglich tende a ser considerado o tempo por excelência da psicanálise, mas parece não ser o único a se levar em conta.
Freud sempre adotou com relação à psicanálise uma atitude dualista, em que prevalecia o conflito entre dois domínios irredutíveis: inconsciente e pulsão, campo das representações/campo das intensidades, o que corresponde também em Lacan ao campo da linguagem e ao campo do gozo.
Portanto, dizemos que o pensamento freudiano é um pensamento complexo entendendo por complexo aquilo que não pode reduzido a elementaridade, a uma estrutura simples ou a único princípio. Não é a mesma modalidade temporal que atravessa o campo do princípio do prazer e seu além.
É certo que Freud nunca se preocupou em problematizar a pulsão sob a ótica do tempo. O que encontramos em seu texto são vagas indicações de que o campo das pulsões não funciona segundo a lógica do Naschtraglich. Por exemplo, ao contrário da descontinuidade no tempo, encontrado no inconsciente, no campo pulsional encontramos uma pressão constante (Konstant Kraft), isto é, contínua no tempo.
Já vimos que o Nasctraglich supõe uma articulação temporal entre diversas representações e lembranças. Como poderia a pulsão de morte, que não possui nenhuma representação no psiquismo, estar submetida à mesma lógica temporal que rege as representações inconscientes?
Não seria ilícito afirmar que uma determinada concepção sobre o tempo subjaz às diversas características que Freud atribui às pulsões. Basta lembrar o conceito de repetição, modalidade temporal que impele Freud à grande transformação de 1920.
Sabemos que é do lugar da representação que a psicanálise pode suspeitar de uma força que, enquanto silenciosa, foge à possibilidade de detecção, mas cuja potência (Drang) pode ser inferida a partir dos efeitos que ela produz. O momento anterior a esses efeitos seria apenas suposto como além.
São quatro elementos propostos por Freud como constitutivo da pulsão: fonte, força, objeto e alvo, que, como afirma Lacan, no Seminário XI, se apresentam de forma disjunta. Sabemos que a satisfação pulsional é sempre incompleta, pois seu barramento pela linguagem obriga a pulsão a uma eterna substituição de objetos, tentando sempre e mais uma vez alcançar a satisfação impossível.
Isso configuraria um eterno vaivém sugerindo a circularidade do percurso. O circuito pulsional ao redor do objeto faz finalmente seu retorno em direção à fonte para novamente recomeçar. Daí o caráter essencialmente repetitivo dessa articulação – o movimento visa desde já e desde sempre a sua própria repetição. Portanto, o movimento num registro temporal, repetitivo cujo percurso pulsional supõe a existência de um tempo em anel que se fecha sobre si mesmo.
Podemos aqui, em se tratando de repetição, fazer uma distinção entre repetição do mesmo e repetição diferencial. A primeira se aproxima da ideia de reprodução, enquanto a segunda demanda o novo, produzindo transformações, estando colocada na dimensão do sentido e da linguagem. Mesmo a repetição de uma palavra não traz consigo a repetição de um mesmo sentido. A hipótese da repetição diferencial não coloca em questão a circularidade no percurso da pulsão, tampouco o tempo em anel que nela estaria implicado. Esse tempo circular, no entanto, não poderia ser reversível, o que faz pensar no Automaton e Tyché, propostos por Lacan. Pensar a temporalidade pulsional nos levará a combinar dois diferentes modos temporais: um circular e outro reversível num único mesmo tempo (GARCIA-ROZA, 1990).
Poderíamos pensar em espiral, onde a repetição não conduz à mesmidade, e o recomeço se faz sempre a partir de um novo momento. Essa proposta de Edgar Morin nos parece bastante adequada para pensar a temporalidade no percurso pulsional. Mas apenas na medida em que a pulsão é capturada pela ordem simbólica é que se pode estabelecer sua trajetória e seu tempo.
E quanto à pulsão por excelência, aquela que é proposta para além da linguagem? Poderiamos lhe atribuir um tempo? Para que possamos avançar um pouco mais na questão, é interessante levar em conta os recentes avanços no campo da ciência.
Freud e a nova ciência
Sabemos como Freud aspirou por toda vida um estatuto científico para a psicanálise. Seus primeiros escritos são marcados fortemente por uma tendência fisicalista, que predominava sobretudo no final do século XIX.
Em Freud, encontramos a descrição da pulsão de morte não somente na sua face de pulsão de destruição mas também como potencialidade criadora. Para que surja o novo, se faz mister que o velho seja destruído.
Mas cabe a Lacan, principalmente ao abordar a sublimação no Seminário 7: a ética na psicanálise, enfatizar a criação ex-nihlo, onde o objeto é elevado à dignidade da coisa. Vemos aí como o conceito de sublimação em Lacan, a criação artística em particular, é tributária da pulsão de morte (LACAN, [1959-1960] 1988).
Os princípios da termodinâmica são fundamentais na proposta do Projeto, de 1895. Clausius, em 1895, já havia proposto o termo “entropia” (volta, retorno) para expressar o quanto um sistema se afasta de sua possibilidade de retorno a um estado inicial, devido ao aumento da desordem interna que sofre pela ação de trocas energéticas.
Ao designar uma evolução espontânea e irreversível dos sistemas físicos, a entropia está indicando uma temporalidade intrínseca à matéria, e não mais um tempo abstrato, independentemente dos corpos. Ela se torna um indicador da evolução, um marco diferencial entre o antes e o depois trazendo à ciência a possibilidade de admitir uma flecha do tempo: o futuro é a morte térmica, a indiferenciação absoluta (princípio da inércia ou princípio do Nirvana em Freud). No entanto, vem uma questão: poderia o crescimento monótono da entropia dar conta da temporalidade da pulsão da morte?
Alguns aspectos importantes, mormente em Além do principio de prazer (1920), falam a favor da tese fisicalista, ou seja, na hipótese de uma evolução espontânea da vida no sentido da desordem e da indiferenciação. Assim é que Freud ([1920] 1996, p. 25) afirma que “[...] tudo o que vive, morre por razões internas, torna-se [...] inorgânico [...] o objetivo de toda vida é a morte” (grifos do autor).
No entanto, o próprio Freud é quem salienta em várias ocasiões a impossibilidade de uma ligação imediata corpo-mente, processos físicos e processos psíquicos. Portanto, submeter aos dois princípios da termodinâmica o funcionamento psíquico e o pulsional não é pertinente, e o próprio Freud revê sua proposta enunciada no primeiro parágrafo do Projeto, quando descreve a experiência de satisfação e a importância do Nebemensh.
A pulsão de morte, no entanto, tem uma característica particular: a insistência. Sem dúvida, a pulsão sexual também apresenta uma dimensão repetitiva, mas sua repetição é movida por outra mais fundamental: se a pulsão de morte é a pulsão por excelência, sua repetição é a repetição primeira.
O que nela se repete é uma pressão sem objeto ou direção, uma energia indiferenciada, que desafia o psiquismo no sentido de dominá-la, de colocá-la sob controle, a fim de que um certo equilíbrio possa ser assegurado.
É uma insistência sem descanso e sem finalidade, uma repetição que, inútil e gratuita, está o tempo todo incomodando o equilíbrio do sistema psíquico. Ou, como afirma Lacan ([1964] 1985, p. 157), “[...] ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida”.
Existe então uma outra leitura além da fisicalista, que privilegia não o equilíbrio final, mas a dimensão de desarmonia como característica do humano. A pulsão de morte torna o homem incapaz de progredir em linha reta. É devido a sua insistência que o sujeito não consegue assegurar um bom domínio dos impulsos que o invadem, portanto não pode se adequar ao meio externo.
Não estaria a pulsão de morte indicando a possibilidade de uma outra concepção de tempo na teoria psicanalítica, uma temporalidade de uma outra concepção de tempo na teoria psicanalítica, uma temporalidade mais complexa, capaz de conjugar a desagregação à produção de diferenças?
A partir das décadas de 1960 e 1970 surge uma questão na ciência contemporânea: como pensar o problema da criação de ordem? Nesse período aparece na física a termodinâmica do não equilíbrio, ou seja, a termodinâmica abandona a restrição aos sistemas isolados e volta sua atenção para os sistemas longe do equilíbrio, capazes de promover uma evolução no sentido oposto ao da entropia, isto é, num sentido neguentrópico (PRIGOGINE, 1996).
Em 1972 Ilya Prigogine recebe o Prêmio Nobel por seus trabalhos sobre “estruturas dissipativas” – criação de ordem a partir da desagregação da energia. Prigogine demonstra experimentalmente que os fluxos energéticos em condições de desequilíbrio e instabilidade podem se transformar súbita e imprevisivelmente em estruturas ou formas organizadas.
A ordem emerge da desordem. A dissipação pode criar uma estrutura. Daí o nome ‘estruturas dissipativas’. Essa estrutura é, no entanto, imprevisível e inantecipável. Estrutura e desordem coexistem sem que nenhuma delas possa se assenhorar do processo.
Por meio da noção de estruturas dissipativas, Prigogine se depara não só com o papel construtivo dos fenômenos irreversíveis, mas também com o tema da multiplicidade dos tempos.
Haveria de se supor na natureza uma flecha do tempo tendendo para desagregação progressiva, coexistindo com outra que aponta para produção de ordem. A natureza seria complexa e comportaria determinação e imprevisibilidade, agregação e desagregação.
Ao se deparar com a multiplicidade de tempos, afirma Prigogine, a ciência contemporânea precisou desistir dos objetos simples tornando-se uma ciência do complexo. E ao eleger o tempo como seu objeto primeiro, ela se viu obrigada a reconhecer o limite de seus esquemas conceituais, admitindo a impossibilidade de um conhecimento absoluto (PRIGOGINE, 1996).
A multiplicidade de tempos se torna um fator essencial para a construção do que se chamará de “objeto complexo”, objeto que, não submetido a um único principio ou a uma única lei estrutural, requer uma convergência de campos explicativos diversos.
Sob esse aspecto o pensamento de Freud convergiria com o de Prigogine: a dispersão pode gerar uma ordem e, ao mesmo tempo, impedir que essa ordem se estabeleça como absoluta. Haveria, nesse caso, uma coexistência entre ordem e desordem, colocando-o sempre na condição de novos começos.
Como já assinalamos, Freud tinha a pretensão de construir um objeto de ciência capaz de funcionar apesar de e com a equivocidade e a desordem. Ao legitimar o complexo como um novo modelo de construção do saber, a ciência contemporânea passa a valorizar justamente aquilo que, à época de Freud era visto como ilusão dos sentidos. Demonstração de falta de rigor ou falta de instrumental teórico suficiente.
Todavia, o que marca a especificidade freudiana, não é simplesmente a coexistência entre os diversos tempos entre ordem e desordem ou entre diferentes princípios reguladores.
Em resumo, poderíamos dizer que o tempo em Freud estaria sempre referindo a uma disjunção pela qual o mesmo é impedido de se reunir ao mesmo. Essa disjunção estaria presente nos diversos registros psíquicos e pulsionais, engendrando a modalidade temporal que caracteriza cada um deles. No plano da pulsão sexual, a disjunção aparece entre os quatros termos que balizam o funcionamento pulsional, possibilitando seu circuito espirilado. No registro inconsciente, a disfunção ocorre entre a experiência do real e a representação, que permite contorná-lo, produzindo um efeito a posteriori.
O campo da pulsão de morte é disjuntivo por excelência.
A psicanálise engloba o domínio do acaso e da ordem psíquica. Esta comporta várias formas de organização, e cada uma delas comporta um regime temporal específico: o psiquismo traz consigo várias modalidades de tempo.
Em compensação, o outro domínio, o domínio do Além e tão somente intensivo e nele encontramos uma energia caótica e indeterminada. Para a estruturação subjetiva, é necessário um ordenamento, tornando possível para o sujeito a referência ao tempo e no tempo.
Referências
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Endereço para correspondência
Rua Paraíba, 1317/201 - Savassi
30130-141 - BELO HORIZONTE/MG
E-mail: arlindopimenta@gmail.com
Recebido: 31/03/2014
Aprovado: 03/04/2014
SOBRE O AUTOR
Arlindo Carlos Pimenta
Psiquiatra. Psicanalista. Sócio do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Participante da Associação dos Fóruns do Campo Lacaniano (AFCL).