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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.44 Belo Horizonte dez. 2015
O exercício da parentalidade no contexto atual e o lugar da criança como protagonista
The parenting exercise in the contemporary context and the child role as protagonist
Ana Luíza Tomazetti ScholzI; Ana Luíza Xavier Scremin I; Cristiane BottoliI; Vanessa Fontana da CostaI
I Centro Universitário Franciscano
RESUMO
O trabalho consiste em uma revisão de literatura acerca do papel da criança na família contemporânea e as implicações da família para sua formação psíquica. Entende-se por família a instituição responsável pela inscrição cultural da criança na sociedade, através das suas relações subjetivas e com os outros. Para isso, é fundamental que a falta seja sentida tanto na transmissão do significante pela figura materna quanto na castração através da figura paterna. O que se percebe no contexto atual das famílias é a necessidade de gozo constante para que a falta não seja sentida, o que não permite o surgimento do sujeito desejante. Tal fenômeno faz com que a criança estabeleça uma relação de controle sobre o gozo, pois é colocada em evidência numa tentativa de evitar a falta.
Palavras-chave: Criança, Relações familiares, Psicanálise.
ABSTRACT
This paper consist in a literature review concerning the child role in the contemporary family, also, its implications for her psychic development. That said, family can be understood as the institution responsible for the cultural inscription of children in society, through their subjective relations and social ones. In this regard, it is essential the miss of lack, in either significant transmission, by the maternal figure, or in the castration, by the father figure. What is acknowledged in the current family context is the need of constant enjoyment so lack it is not missed, therefore, not allowing the emergence of the desiring subject. Thus phenomenon makes the child establish a controlled relation with the enjoyment, since the child is placed in evidence, in the attempt to avoid lack.
Keywords: Child, Family Relation, Psychoanalysis.
Introdução
As famílias passaram por grandes mudanças nos últimos anos, inseridas em um contexto sociocultural onde não mais existe um padrão de funcionamento e configuração familiar, fazendo com que os membros desse grupo precisem ressignificar seus papéis dentro da realidade atual.
Para Bernardino e Kupfer (2008) a família representa um suporte sociocultural para a criança, ou seja, seria sua função inserir a criança em seu contexto cultural, auxiliando a função simbólica, que por sua vez é condição fundamental para o desenvolvimento psíquico da criança.
Porém, como fazer essa inserção quando se está em conflito com a própria percepção social, uma vez que a família se encontra em processo de reestruturação, o que influencia diretamente nos vínculos estabelecidos? (BERNARDINO; KUPFER, 2008; COLLING, 2004).
Se antigamente a inserção social da criança era adiada, deixando-a no seio familiar até o ingresso escolar, onde tinha sua identidade e seu lugar referenciados à sua família, atualmente, devido principalmente ao trabalho e à falta de tempo, muitas vezes o cotidiano da criança é acompanhado desde muito cedo por profissionais. Os cuidados podem ser descritos como padronizados, uma vez que em creches e berçários, o número de crianças é muito maior que o número de cuidadores. Isso torna precoce o contato social, e a construção identitária ocorrerá de forma mais abrangente, influenciando na formação psíquica e na relação objetal (BERNARDINO; KUPFER, 2008). Consequentemente, o sujeito está mais atrelado ao social do que ao ambiente familiar, com um leque mais abrangente de referências, mas ainda muito vinculado ao seu ambiente familiar primário.
A família é responsável pela história e pelo contexto no qual se insere, e todo sujeito está imerso na cadeia transgeracional, Assim, cada membro do sistema familiar é um sujeito ativo e responsável pela história dessa família e pelo contexto onde está inserido. Dessa forma, não se pode analisar a família em um sujeito individual, já que ela é uma relação de vínculos, com membros interdependentes, agindo também por influências de gerações anteriores, mesmo que esse impacto de uma geração sobre a outra seja difícil de avaliar (BERTIN; PASSOS, 2003).
Desse modo, cada família repassa ou constitui uma forma particular de entender, apreender e organizar o mundo, através de dispositivos psíquicos, interpretações e fantasias, onde seus membros vão se afetando e se influenciando na maneira de perceber, comunicar, agir, pensar, considerando uma dimensão intragrupal e histórica, formando o mundo interno.
Pensar nessa transmissão psíquica é pensar na criação e na formação do sujeito, no vir a ser sujeito, o modo como se caracteriza como tal e como se forma a subjetividade dentro e a partir da família, através das relações familiares. Recebe conteúdo dos outros membros e dá outros a eles, através de uma importante e necessária troca psíquica. Assim, pertencer a uma família, oferece ao aparelho psíquico em formação uma verdade que sustenta o sujeito dentro da própria história, gerando a vivência de ser amado e reconhecido, e sendo capaz de ocupar um lugar que já existia e o esperava (BERTIN; PASSOS, 2003).
O presente trabalho consiste em uma revisão de literatura, que surge com a proposta de refletir acerca do papel da criança na família contemporânea e as implicações para sua formação psíquica. Considera as relações familiares contemporâneas e as alterações nos papéis familiares, o que gera uma perspectiva sobre a formação psíquica infantil, que em geral coloca a criança como protagonista e em evidência como uma forma de evitar a falta.
Desenvolvimento
É dentro da sua família que a criança se identifica e se constitui como ser humano único, tendo origem nas gerações anteriores e delas recebendo influências. Todo discurso e toda expectativa que antecede a chegada de um bebê vêm dos pais e das gerações anteriores, e toda essa multigeracionalidade indica a posição e a função da criança dentro da vida em família.
De acordo com Bertin e Passos (2003, p. 74)
[...] cada sujeito precisa cumprir no mundo uma pauta narcísica, que indica uma missão destinada a cada membro para dar continuidade à geração que o precedeu.
Para manter a identidade familiar, é essencial não apenas essa transmissão de histórias familiares, fortalecendo-os e identificando-os como grupo, mas também um investimento narcísico do grupo em cada membro responsável pela continuidade da família.
A dificuldade da vida contemporânea traz grandes desafios para atender compromissos, espaços sociais, família, cônjuge, e até dar conta dos cuidados pessoais. A ausência diária dos pais no cotidiano doméstico e a diminuição da disponibilidade na execução das tarefas referentes às crianças podem acarretar dificuldades na educação dos filhos, já que a autoridade, junto com a responsabilidade familiar de ser agentes de socialização dos seus filhos e a transmissão de valores culturais, são tarefas que estão sendo compartilhadas com a escola, a internet, a televisão, que desempenham muitas vezes a ação socializadora que antigamente competia quase que exclusivamente à família (LEVY; JONATHAN, 2010).
A criança depende da família e, para se sentir amparada, precisa de uma rotina doméstica como referência, que tenha a função de ordenar seu cotidiano e proporcionar segurança.
Além desse apoio dos pais e da família de uma forma mais ampla, a presença de uma rede social como o ambiente escolar, que propicie outros tipos de relações com adultos fora do ambiente familiar, ajuda na estruturação do sujeito, proporcionando à criança proteção e promovendo o desenvolvimento de suas capacidades. Quando a criança interioriza imagos parentais seguros, fica mais fácil preservar outros vínculos no meio em que vive e conseguir ser resiliente apesar das circunstâncias e desafios vividos (LEVY; JONATHAN, 2010).
A família é considerada a base segura a partir da qual a criança sente que pode partir para explorar o mundo. Através de um estudo realizado em escolas particulares e públicas do Rio de Janeiro em relação à família, as crianças demonstraram que a manutenção inalterada de um vínculo afetivo é sentida como um bem que protege, permitindo-lhes desenvolver um sentimento de confiança em si e no outro (LEVY; JONATHAN, 2010).
Os autores destacam as ideias de Bowlby (1982) sobre a necessidade de a criança sentir confiança em relação ao meio em que está inserida, pois assim ela conseguirá ter uma relação segura com um adulto próximo para progressivamente se afastar da mãe e explorar o mundo, compreendendo que poderá voltar e ter o afeto de que necessita. Logo, isso seria a base da segurança psíquica da criança, iniciada e constituída na primeira infância, fazendo com que o bebê tenha capacidade de enfrentar problemas posteriores, com mais facilidade de superá-los e se adaptar.
Desse modo, entende-se que, ao refletir acerca da constituição do sujeito, sua subjetividade e questões intrapsíquicas, é imprescindível que o tema família seja discutido. Outras percepções sobre a concepção familiar se referem a ela como o primeiro círculo social da criança. A família é compreendida como uma rede de amparo e subjetivações tanto conscientes quanto inconscientes, que produz um efeito significativo e determinante na construção psíquica da criança. Diante disso, torna-se pertinente acertar sobre a presença relevante de novas configurações familiares em nossa sociedade.
Segundo Passos e Polak (2004, p. 40), a família é um espaço de investimentos libidinais, identificação e construção de vínculos, independentemente de como se dá essa organização; para as autoras, tais atribuições exercidas pela família são denominadas “psiquismo familiar”.
O psiquismo familiar tem como objetivo auxiliar a criança a construir experiências psíquicas próprias, processar melhor suas angústias, principalmente, permitir e contribuir para a constituição do seu mundo interno. Para tal, é necessário que os pais, ou quem ocupa esse lugar, contenham os impulsos arcaicos da criança, com o intuito de metabolizar suas angústias e delinear as relações que serão criadas entre o mundo interno e externo do sujeito, ou seja, a relação indivíduo/sociedade que está sendo estabelecida. Como principal ponte para essa comunicação está a identificação da criança com seus pares e a maneira como ela irá lidar com as frustrações e as conquistas que acompanharão seu desenvolvimento (PASSOS; POLAK, 2004).
Além disso, essas autoras afirmam que os processos de identificação da criança irão influenciar consideravelmente as escolhas a respeito de sua identidade sexual. Salientam ainda que a maneira como a criança se posicionará como protagonista na instituição familiar está relacionada com sua habilidade de se constituir a partir do complexo de Édipo e suas possíveis formas de dissolução. Por isso, é importante salientar que a identificação da criança se relaciona não somente com as ações de seu pai e sua mãe, mas também com seus discursos, que podem ser caracterizados como inconscientes.
Vale ressaltar que a transmissão psíquica instaurada entre pais e filhos é um conjunto de identificações, transferências, vínculos, vivências e conteúdos narcísicos que são elaborados pela criança no meio familiar. Portanto, a maneira como a criança se posicionará ou não como protagonista de seu círculo social está relacionada com a forma como o psiquismo familiar se dá em seu meio, suas complexas resoluções e com as diversas facetas que a sociedade contemporânea pode atribuir ao sujeito da psicanálise e à família (PASSOS; POLAK, 2004).
Assim, com relação ao processo de subjetivação da criança e a maneira como ela irá se constituir dentro de sua família, é necessário considerar o que Magalhães e Féres-Carneiro (2004, p. 243) denominam “transmissão psíquica”. Para as autoras, essa transmissão é resultado de um conjunto de investimentos narcísicos e das diversas facetas da identificação. Tudo isso corrobora para um estado familiar psíquico-geracional, onde o desenvolvimento de seus membros se dá através de transmissões e laços afetivos. Além disso, a transmissão psíquica é atemporal e dinâmica, por isso tem seu deslocamento fluído e representações livres, que circulam no espaço do consciente e do inconsciente de acordo com o sujeito.
É essa relação que permite a transformação e o resgate do que é transmitido, possibilitando compreender qual é o lugar que a criança ocupa em sua família. Esse jogo transferencial representa uma importante função na transmissão intrapsíquica, pois promove vinculações e desvinculações, para que a criança possa se dirigir a um processo futuro de individuação. A dificuldade se instala quando os pais, responsáveis pela manutenção dos limites e intermediários do mundo externo e subjetivo da criança, não conseguem, ou simplesmente não o fazem, numa tentativa de não privar a criança do gozo, provocando, com isso, possíveis falhas na filtragem e regulação das articuladas transmissões (MAGALHÃES; FÉRES-CARNEIRO, 2004).
Dolto (1982) enfatiza que essa problemática, especificamente falando entre sujeito e desejo, origina-se na infância, pois a criança é impedida de experienciar suas perdas e de aprender e refletir sobre elas. É necessário que ela sinta a falta para dar valor simbólico ao objeto e lidar com a culpa de tê-lo perdido ou estragado. Mas como a falta é diretamente relacionada ao sofrimento, não é dada a abertura para que a criança elabore, repreendendo-o ou repondo o que foi perdido. Sendo assim, pode-se inferir que a falta, mesmo necessária, pode ser banida com o consumo de algo físico ou simbólico.
Para Bernardino e Kupfer (2008) a realidade atual propicia um grande número de objetos que prometem gozo ilimitado e a ilusão de não se ter nenhuma falta, o que acaba por interferir no sujeito que passa a não saber desejar e, assim, não poder alcançar a satisfação.
De acordo com Homem (2003), para poder desejar, primeiramente o sujeito precisar sentir a falta ao elaborar a ausência, o não possuir e reconhecer mais o próprio desejo. Todavia, atualmente o que se vê é uma constante reposição; não se pode sentir a falta, a privação, já que isso é associado ao sofrimento,
[...] o que passa a se estabelecer, entretanto, é a necessidade contínua de dar cabo da falta e instaurar o novo objeto, o novo produto, o novo falo que irá imaginariamente bloquear o acesso ao vazio (HOMEM, 2003, p. 4).
A importância da elaboração da falta também é trazida por Roudinesco (2000), que a coloca como a principal causa de depressão, que seria o grande mal da sociedade atual. Essa epidemia depressiva está relacionada à perspectiva do “não sujeito”. Quando não se sente a falta, não se percebe o desejo e não se responde às suas pulsões, tornando-se amorfo, pois se perde social e psiquicamente.
Esse sofrimento pode envolver todos os membros da instituição familiar, pois a angústia gerada por essa constante insatisfação não deixa de se presentificar nos diversos sintomas que se apresentam na infância, no exercício da parentalidade e no campo social.
Para Bernardino e Kupfer (2008) a tendência atual é renegar essa condição através da biologização e da medicalização desses sintomas, ações que não dão conta totalmente do mal-estar sentido, porque não cumprem os desígnios psíquicos.
Em O mal-estar na civilização Freud ([1930] 1996) afirma que o homem necessita abrir mão de certos desejos para que possa viver em sociedade. Entretanto, a frustração de tais pulsões resulta num mal-estar recorrente, uma luta entre o gozo e uma cultura castradora. Tal sacrifício pulsional é redirecionado para outros contextos, ou seja, com a tendência de evitar o sofrimento, busca-se o gozo de outras maneiras, por vezes tornando-se dependente da fonte prazerosa.
Na estruturação familiar a criança passa a ser o objeto de gozo e é inundada de estímulos que interferem em sua estruturação psíquica. Enquanto a figura paterna não consegue desempenhar sua função simbólica, já que a função biológica foi reduzida socialmente, a figura materna, que teria a função de produzir marcas singularizantes nos filhos, não o faz porque possui um estatuto simbólico social masculino. Esse estatuto se caracterizaria por trabalhar fora, ausentando-se de casa por grandes períodos dificultando, assim, que a criança perceba sua falta e dificultando a trajetória edípica, pois a essa mãe nada parece faltar (BERNARDINO; KUPFER, 2008).
Conforme esses autores outra grande mudança ocorre devido ao excesso de objetos de gozo, resultando na desvalorização da vida, pois não há mais limites para o gozo e para a satisfação. Assim, não contendo os excessos, não se pode conter também as pulsões, tornando ridicularizado, questionável e impostor todo aquele que representa uma figura castradora e/ou de poder. Ou seja, acaba por tornar os pais impotentes diante das vontades dos filhos, que já não reconhecem a autoridade parental (BERNARDINO; KUPFER, 2008).
Para Zanetti e Gomes (2011), na contemporaneidade as crianças pequenas desafiam constantemente a autoridade dos pais, apresentando um comportamento muito mais intenso no que se refere à indisciplina do que em crianças de gerações anteriores. Essa fragilização refere-se às responsabilidades e aos posicionamentos com relação à autoridade dos pais. Buscando dar conta dessa realidade, diversos estudos focam a relação entre as práticas parentais e o desenvolvimento emocional dos filhos, o seu comportamento.
Conforme as autoras e através de estudos na área, percebe-se que esses comportamentos poderiam ter a influência do comportamento dos pais e, assim, definiu-se esse fenômeno como “fragilização das funções parentais”, caracterizada por pais que sentem culpa, dúvida e insegurança com relação à forma como se posicionam diante do que podem, devem ou não fazer com os filhos. Assim, é necessário compreender quais determinantes históricos, socioculturais e econômicos contribuem para esse comportamento dos pais atualmente.
Ao definir os principais determinantes históricos, Zanetti e Gomes (2011) destacam a importância de refletir sobre como o relacionamento criança e adulto foi se estabelecendo ao longo do tempo, a fim de compreender como isso interfere na representação que se tem da criança e em que condições se desenvolveu a relação pais e filhos.
Ariès (1975) apresenta a infância como algo não natural: as concepções e os sentimentos sobre a criança foram construídos historicamente.
A partir do século XIII a criança era representada sempre na família, e a necessidade de uma educação inaugurou os primeiros conceitos sobre a infância. Essa realidade muda a família, e daí surge a necessidade de os pais assumirem a educação das crianças, mais tarde delegada para as escolas. A relação pais e filhos passa ser vista a partir da proximidade, da intimidade e do carinho, valorizando a vida privada e o sentimento de família.
Zanetti e Gomes (2011) questionam atualmente o que sustenta a família, destacando o desaparecimento da infância, uma vez que é considerada uma construção sociocultural e histórica. Uma das justificativas apresentadas pelas autoras para tal desaparecimento é a era da informação em que vivemos hoje: devido à incessante influência e presença da mídia, não há mais a linha divisória entre infância e idade adulta.
Dessa forma, nesta era da televisão, as etapas da vida estariam divididas em apenas três: recém-nascidos, adultos-crianças e senis, através da justificativa de que os veículos de comunicação não fazem exigências complexas de compreensão do que é veiculado, não tendo a intenção de segregar seu público.
Diante disso, é possível perceber que a mídia vende a ideia de que crianças são seres em condições de igualdade para serem beneficiadas e, consequentemente, consumidores em potencial. Tal percepção reverbera para as diferentes esferas do social, fazendo com que crianças passem a reivindicar um lugar de igualdade na sociedade e na família, reiterando que não há razões para tratá-las com autoridade nem de modo diferenciado uma vez que pertencem à mesma categoria dos adultos (ZANETTI; GOMES, 2011).
A partir dos séculos XX e XXI a criança se tornou o centro da atenção e da preocupação dos adultos, dando início a uma constante interferência de especialistas sobre como os pais devem tratar suas crianças e como agir com elas. De acordo com Zanetti e Gomes (2011), essa perturbação presente na família fez com que os pais passassem a desconfiar de suas competências para educar seus filhos, uma vez que seus saberes são desqualificados em relação aos dos especialistas.
Assim, as autoras afirmam que está cada vez mais presente a dificuldade que os pais têm de dizer “não”, pois esperam que o social e a mídia o façam. Além disso, é importante ressaltar que não há referências claras sobre a importância e a necessidade do princípio de autoridade nas relações pais e filhos, fazendo com que pais e mães não tenham muita clareza do que fazer em questões simples do cotidiano na contemporaneidade.
Zanetti e Gomes (2011) reafirmam também a importância das relações de autoridade e poder na família, pois se constituem como elementos ordenadores, os quais definem posições, direitos e deveres.
Portanto, condições socioculturais e econômicas interferem consideravelmente na formação dos vínculos das famílias; prejudicando valores relacionados à individualidade, liberdade, igualdade de direitos e até mesmo a falta de confiança no grupo social. Essa interferência corrobora para a fragilização do desenvolvimento infantil, pois os pais, responsáveis por transmitir ordenações simbólicas e delimitações de lugares, não mais se implicam em tal tarefa, resultando na fragilização para estabelecer uma categoria parental, produzindo um efeito direto na categoria filial.
Esse fenômeno coloca em discussão o papel da criança na família: devido ao medo da separação, questões narcísicas e tentativas de suprir toda e qualquer necessidade da criança, os pais acabem proporcionando a seus filhos modelos de relação ofuscados (ZANETTI; GOMES, 2011).
O desequilíbrio nos papéis familiares pode resultar na criança como protagonista de uma relação familiar fragilizada, que não reconhece que a criança deve ser orientada, receber limites e respeito diante de suas possibilidades e suas capacidades.
Com isso, torna-se necessário não apelar mais para uma prática autoritária, mas para uma relação potencializada, onde a criança possa se apropriar de suas transmissões psíquicas, com espaço para participar da família, através de relações compreensivas, onde ela continue sendo criança, e não um pequeno adulto. Finalmente, espera-se que os pais possam assimilar as transformações de sua época e construir novas maneiras de se relacionarem em família e com seus filhos, exercendo sua parentalidade de modo construtivo e equilibrado.
Considerações finais
Através deste estudo e a partir dessas relações que envolvem a criança, seu meio familiar, as transformações sociais, pode-se compreender como se dá a transmissão psíquica bem como a importância da falta para a constituição do sujeito. Dessa forma, entende-se que a falha na manutenção dos limites pode ser justificada, em grande parte das vezes, pelo mundo contemporâneo em que se vive hoje. O excesso de exposição, a interferência da mídia e a rapidez com que as situações acontecem e se dissolvem propicia uma ilusão de que os limites e a manutenção das relações não são estritamente necessários provocando, assim, uma proteção ilusória e precária para a criança.
A imposição do gozo constante não permite que o sujeito possa articular e desenvolver mecanismos para lidar com as dificuldades, com os limites, com seus medos e suas frustrações. A criança se torna protagonista de uma história em que ela mesma terá dificuldades para se desenvolver de forma saudável e individual.
Por isso, é essencial que a família, em todas as suas configurações e ampliações, consiga formar laços e discursos que irão considerar a criança como um todo, como um indivíduo em desenvolvimento. São necessárias transmissões e identificações psíquicas saudáveis, independentemente da época em que se encontram.
Referências
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Endereço para correspondência Ana Luíza Tomazetti Scholz
E-mail: anascholz@gmail.com
Ana Luíza Xavier Scremin
E-mail: a.luiza.xavier@hotmail.com
Cristiane Bottoli
E-mail: cbottoli@hotmail.com
Vanessa Fontana da Costa
E-mail: vfc_vanessa@yahoo.com.br
Recebido em: 04/09/2015
Aprovado em: 13/10/2015
SOBRE AS AUTORAS
Ana Luíza Tomazetti Scholz
Acadêmica de Psicologia do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria (RS).
Ana Luíza Xavier Scremin
Psicóloga. Aluna egressa do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria (RS).
Cristiane Bottoli
Mestre em Psicologia. Docente do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria (RS).
Vanessa Fontana da Costa
Acadêmica de Psicologia do Centro Universitário Franciscano, Santa Maria (RS).