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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017
PAINEL TEMÁTICO - DESAFIOS ATUAIS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA
Liberdade absoluta e individualismo na loucura moderna1, 2
Absolute freedom and individualism in modern madness
Martín Mezza
I Círculo Psicanalítico da Bahia
II Universidade Federal da Bahia
RESUMO
Este trabalho tem como propósito apresentar a relação entre os processos sócio-históricos e a fórmula geral da loucura desenvolvida por Lacan. Essa articulação será indagada a partir da noção de liberdade, utilizando principalmente a filosofia hegeliana e as contribuições de Charles Taylor.
Palavras-chave: Loucura, Modernidade, Liberdade, Individualismo, Lacan.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to present the relation between the socio-historical processes and the general formula of the madness developed by Lacan. This articulation will be asked from the notion of freedom, using mainly the Hegelian philosophy and the contributions of Charles Taylor.
Keywords: Madness, Modernity, Freedom, Individualism, Lacan.
A fórmula da loucura e a liberdade absoluta
Existe na obra de Lacan uma teoria da loucura, suportada nas noções da filosofia hegeliana, que não se confunde com as estruturas clínicas psicose, neuroses de transferências e perversão. A tese é que a loucura concerne uma das relações mais normais da personalidade: a relação do sujeito com os ideais.
Para explicitar essa relação e para fazer sentir a profunda diferença da loucura com a psicose, Lacan opõe uma série de imagens sugestivas e eloquentes. Lembra o conformismo de Descartes ao limitar a loucura a sujeitos que, sendo vagabundos, “[...] se acreditavam vestidos de ouro e púrpura”.
E salienta que
[...] convém assinalar que, se um homem [qualquer] que se acredita rei é louco, não menos o é um rei que se acredita rei (LACAN, [1950], 1998, p. 171).
Dessa maneira, se distingue psicopatologicamente psicose de loucura. A psicose, o sabemos, se teorizará a partir da forclusão do Nome-do-Pai; mas a loucura se resolverá no imediatismo da identificação em que o homem compromete sua verdade e seu ser. O que define o limite entre ‘normalidade’ e loucura é a relação mediata ou imediata da identificação ao ideal do Outro, que convém ler como um significante do Outro: I(A).
Longe da loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência [...] Um organismo débil, uma imaginação desordenada e conflitos que ultrapassem as forças não bastam. É possível que num corpo de ferro, identificações poderosas e as complacências do destino, inscritas nos astros, levem com mais certeza a essa sedução do ser (LACAN, [1950] 1998, p. 177).
Aqui não há nenhuma opacidade ou ambiguidade que possamos atribuir à pena de Lacan. A loucura não se inscreve na organicidade (frágil ou resistente; contingente ou herdada), senão na virtualidade permanente da fenda causada pela estrutura significante da linguagem. A loucura é uma modalidade de lidar com esse efeito estrutural da linguagem, em que o desenvolvimento dialético do ser, ou seja, as relações entre sujeito e Outro, vão se deter (estase) numa identificação ideal. O sujeito, efeito dessa identificação, fica “petrificado” nesse ideal (LACAN, [1960] 1998, p. 855).
Nesse tipo de relação com o ideal – imediata e petrificada – o sujeito acredita forjar uma “identidade própria”, ou seja, sem a mediação do Outro. Vemos que não se trata da inadequação de um atributo, pelo contrário, tudo se passa numa adequação sem resto ao ideal, que podemos enunciar como: ‘se acha’; ‘o eu se acha eu’; ‘o rei se acha rei’; ‘o presidente se acha presidente’.3
Essa ‘identidade’, que implica uma tentativa de nomeação sem passar pelo campo do Outro, constitui o desconhecimento essencial da loucura. Para melhor captar o significado e o alcance que pode ter essa posição de ‘ser’ sem mediação do Outro, me sirvo da pluralidade de planos e perspectivas propostas por Alfredo Eidelsztein (2008).
• Passar pela linguagem – entendida como conjunto de elementos discretos – e pelas suas leis de articulação (metonímia e metáfora);
• Pelo ato da palavra como lugar terceiro, ou seja, pelas pessoas que na história dos sujeitos encarnaram este lugar terceiro: pai e mãe (Édipo);
• E os substitutos dessas figuras edípicas, ou seja, as figuras sociais que variam em função da cultura e da sociedade: os professores, médicos, psicanalistas, etc.
Ora, essa identificação, cujo caráter sem mediação e ‘presunçoso’ eu quis fazer sentir há pouco, eis que ela se demonstra como a relação do ser com o que ele tem de melhor, já que esse ideal representa nele sua liberdade (LACAN, [1950] 1998, p. 173).
A identificação imediata com o significante ideal ‘libera’ ao sujeito da divisão subjetiva, efeito estrutural da linguagem. A partir daqui, o sujeito ‘liberado’ do espaço intervalar, evita a série de inversões estruturais que implica a pergunta pelo desejo do Outro (Che voi?), que o levariam inevitavelmente até a castração do Outro: constatação de que não há significante que garanta a verdade da sequência da cadeia significante.
Longe de [a loucura] ser para a liberdade “um insulto”, ela é sua mais fiel companheira, e acompanha seu movimento como uma sombra (LACAN, [1950] 1998, p. 177).
Subverte-se o pensamento que identifica a loucura com um entrave, com uma limitação e um obstáculo para a realização das capacidades e a expressão da verdade do ser; e propõe-se que pensemos a loucura do homem como uma sombra da liberdade. A cada passo em direção à liberdade, o homem arrisca sua verdade e ‘normalidade’.
Essa inversão exige do psicanalista uma revisão da sua posição epistemológica, ética e política em relação à loucura e à liberdade. Obriga-nos a repensar como nossa ação está comprometida no pano de fundo desenhado pela oposição entre as teorias da liberdade negativa e as teorias da liberdade positiva.
Liberdade negativa e positiva
Na base das teorias negativas encontramos a psicologia e a filosofia política atomista (Hobbes e Locke), de grande influência no senso comum. Apresenta-se a liberdade como a ausência de obstáculos materiais ou jurídicos para a realização de nossos desejos, em que o sujeito é a única autoridade na matéria.
Acredito que podemos reconhecer essa concepção de liberdade nas exigências das empresas multinacionais aos governos locais; nos tratamentos catárticos (início da cura analítica); no senso comum corriqueiro, que exige fazer o que se sente como garantia de sucesso ou como prevenção de doenças; e até na ideia que regula boa parte dos intercâmbios entre analistas e analisantes, passível de resumir assim: “já sei que você não vai me dizer nada, eu tenho que resolver por mim mesmo”.4
Por outro lado, temos as teorias positivas da liberdade que, ao considerar os obstáculos internos, introduzem uma maior complexidade (as ideias de Rousseau e Marx). A liberdade se exprime no controle coletivo: somente somos livres na medida em que há autodeterminação e controle sobre a própria vida. Aqui, o sujeito não representa a única autoridade, já que sua relação com a verdade está atravessada pelo engano. Os desejos que formam a base dos sintomas não se veem confirmados apenas pela sua intensidade (quantidade), pelos signos biológicos (palpitações, frio na barriga, etc.), ou pela vontade do indivíduo; ao contrário, eles se articulam na demanda do Outro. A transferência permite aos analistas intervir desde a alteridade, da "immixtion de Otredad", que resguarda tanto do perigo totalitário, que sempre ameaça a liberdade, quanto dos efeitos sugestivos de guiar as consciências.
Pois bem, são essas teorias da liberdade que estavam implícitas nas discussões entre Freud (1908) e os colegas médicos da época, no que diz respeito ao aumento da nervosidade (hoje diríamos sofrimento psíquico). Enquanto estes destacavam os fatores externos e estressantes decorrentes das mudanças sociais da modernidade, Freud, sem desconsiderá-los, salientava os obstáculos internos a partir do recalque das “pulsões sexuais orgânicas”. Temos aqui a matriz do pensamento freudiano desenvolvido no canônico texto Mal-estar na civilização (1930), que podemos resumir dizendo que a infelicidade e os sofrimentos da condição humana são decorrentes de uma renúncia pulsional em função das exigências particulares da civilização.
Várias são as críticas que esse esquema conceitual tem recebido. Mas aqui destacarei o pensamento do sociólogo Zygmunt Bauman (1998) que de alguma maneira se inscreve na corrente que denuncia certo envelhecimento das noções teóricas da psicanálise. O autor centra sua análise da passagem da modernidade para a pós-modernidade, justamente nesse trabalho freudiano. Dirá que a civilização aludida por Freud é a modernidade, caracterizada por um mal-estar, em que a segurança deixa pouca margem para a liberdade individual; enquanto o mal-estar de nosso presente pós-moderno se exprime numa liberdade exagerada que deixa pouco espaço para a segurança.
Modernidade: liberdade e individualismo
Como vemos, a liberdade tem um lugar central tanto na loucura, na ação analítica, quanto no mal-estar da civilização moderna ou pós-moderna. Tal como identificado por Taylor (1979), o projeto hegeliano tem por finalidade articular, integrar e superar duas correntes contrárias, mas que tinham a mesma finalidade: opor-se à visão científica e objetivadora do homem, e à filosofia utilitarista contida no projeto do Iluminismo.
A primeira corrente é o expressivismo – Sturm und Drang –, elaborado por figuras como Herder e Goethe (este último muito presente nas referências freudianas), que entende o homem como uma obra de arte e em harmonia com a natureza.
A segunda corrente, identificada com a moral kantiana, propõe uma liberdade radical centrada na autoconsciência e em ruptura com a natureza, as leis externas e a autoridade de Deus.
Hegel entendia que o expressivismo, ao manter a intuição e desconsiderar a razão, promovia uma unidade ingênua e sem mediação, impedindo o desenvolvimento da autonomia. Além disso, via na razão a separação com a natureza, que possibilitava a liberdade e, ao mesmo tempo, engendrava os perigos que a contrariam: a vacuidade e o caráter destrutivo.
A radicalização da liberdade tem por finalidade reformular completamente a sociedade a partir da razão humana. Esse movimento leva até uma liberdade absoluta que, para se afirmar, precisa destruir toda estrutura prévia, toda tradição ou condição particular e diferenciada.
Ao não aceitar nenhuma autoridade que não seja a própria razão e a vontade humana, a liberdade absoluta se torna uma liberdade sem conteúdo, vazia e sem propósito, além de si própria.5 Em nossas categorias psicanalíticas, podemos dizer que é uma liberdade sem Outro, sem resto.
A consequência social dessa absolutização da liberdade se manifesta na liberação do homem dos estamentos da sociedade tradicional, tanto quanto na homogeneização dos sujeitos, em certo desencantamento do mundo e na dificuldade para se identificar com uma ordem maior.
Esses são os efeitos que Hegel considera como as condições de possibilidade para o surgimento de um individualismo moderno que ele considera “louco” e que reúne sob as figuras: “lei do coração”, “alma bela” e “a virtude do curso do mundo” (HEGEL, 1807). Verdadeiras posições subjetivas que Lacan retomará na sua teorização da fórmula geral da loucura.
No século XIX, e fundamentalmente a partir do elaborado por Marx, se produz uma antropologização da liberdade radical. O homem é pensado como um ser natural que media sua relação com a natureza a partir da ação transformadora do trabalho. Já não se trata mais da integração no espírito do povo – no Geist hegeliano – ou no reconhecimento; agora, a síntese se alcança na criação e na superação das divisões e alienações da sociedade de classe.
Os efeitos absolutistas e seculares da liberdade radical foram recolhidos magistralmente pelo tratado da desesperação de Kierkegaard e pelo niilismo de Nietzsche. O primeiro mediante sua apelação à exterioridade da autoridade de Deus; e o segundo, a partir de emitir o certificado de defunção de Deus e articular a rejeição de todos os valores (niilismo) com a ominosa vontade de poder.
[...] a sabedoria de um Platão nos mostra como a dialética comum às paixões da alma e da pólis, pode esclarecer-nos sobre a razão dessa barbárie [se refere ao século darwiniano]. Trata-se, para dizê-lo no jargão que corresponde a nossas abordagens das necessidades subjetivas do homem, da ausência crescente de todas as saturações do supereu e do ideal do eu que são realizadas em todo tipo de formas orgânicas das sociedades tradicionais, formas estas que vão dos ritos da intimidade cotidiana as festas periódicas em que se manifesta a comunidade [...]. Está claro que a promoção do eu em nossa existência leva, conforme a concepção utilitarista do homem que a secunda, a realizar cada vez mais o homem como indivíduo, isto é, num isolamento anímico sempre mais aparentado com sua derrelição original (LACAN, [1948] 1998, p. 123-124).
Bem longe de qualquer envelhecimento imputável à psicanálise, Lacan se adianta ao diagnóstico das ciências sociais, que nos últimos anos tem se debruçado sobre as causas e as consequências do individualismo nas sociedades contemporâneas. Assim, adverte sobre os efeitos de abandono e desamparo que se desprendem da realização do ser como indivíduo “livre”. Articulará a essa posição subjetiva não apenas as síndromes imputadas à fórmula geral da loucura, senão também toda uma série de sofrimentos (MEZZA, 2016)6 prevalentes na atualidade: neurose de autopunição, sintomas histérico-hipocondríacos, inibições funcionais, formas psicastênicas de desrealizações do outro e do mundo (boa parte das depressões atuais) e comportamentos sociais de fracasso e de crime.
Para os analistas o mal-estar na cultura implica essencialmente a função do desejo; mas isso não exclui que também esteja atravessado por sistemas de valores e que se torne objeto das tecnologias de poder. Por esse motivo, Lacan ([1958] 1959) provocava os psicanalistas perguntando: o que vocês entendem por realização do desejo? Nunca deixou de preocupá-lo a possibilidade de que a práxis duma comunidade como a psicanalítica que se considera “extraterritorial” e se “autossegrega” do próprio campo (LACAN, 1967; EIDELSZTEIN, 2008b), possa ir ao encontro de valores como a liberdade radical e o individualismo.
No homem “liberado” da sociedade moderna, eis que esse despedaçamento revela, até o fundo do ser, sua pavorosa fissura [...] É essa vítima comovente, avaliada de alhures, inocente, que rompe com o exílio que condena o homem moderno a mais assustadora galé social, que acolhemos quando ela vem a nós; é para esse ser de nada que nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade discreta em relação a qual sempre somos por demais desiguais (LACAN, [1948] 1998, p. 126, grifo nosso).
O homem moderno ao qual se refere não é outro senão o cidadão universal liberado da sociedade tradicional, transformado pela antropologização da liberdade absoluta num ser de nada que, sem conteúdo, experimenta os efeitos do niilismo como uma vítima inocente. Para esse sofrimento específico da modernidade, Lacan propõe a psicanálise e “a ação cotidiana do analista”.
A direção do tratamento proposta pode ser entendida melhor a partir de dois argumentos:
A neutralidade analítica adquire seu sentido autêntico [...] [se sabemos] que a doença contra a qual ele luta é e será sempre equivalente ao nível de sua particularidade, e que só existe progresso para o sujeito através da integração a que ele chega de sua posição no universal: tecnicamente, pela projeção do seu passado num discurso em devir (LACAN, [1952], 1998, p. 225).
O sentido autêntico da neutralidade analítica dista bastante da caricatura imaginária da sua função, onde a mudez e a distância comprimem a posição do analista e a dramatização das sessões breves a rejeição de um discurso em devir. A contramão dessa corrente, o progresso do tratamento analítico se produz desenvolvendo o problema da “mentira da sua particularidade” e “a formulação universal da sua verdade”.
[Vem falando da dialética hegeliana da consciência de si] Sobre este ponto não tenho mais a dizer, acho. Mesmo assim direi, mostrando-lhes o que isso quer dizer no discurso freudiano. Retomemos, por exemplo, o Wo ES war, Soll Ich Werden / Onde Isso era [eu] devo devir [...] Esse [eu] é o sujeito de um devir, de um dever que nos é proposto (LACAN, [1958-1959], 2016, p. 405, grifo do autor).
Ao reler a sentença freudiana a partir da dialética hegeliana, a direção do tratamento conduz inevitavelmente à tentativa da inscrição da particularidade do sujeito no campo do Outro. Propor a inexistência do Outro (MILLER, 2005) como caminho possível para os tratamentos analíticos, além de concordar com a normatização social e as tecnologias atuais de poder, pode levar à loucura ou aos sofrimentos vinculados com o desamparo.
Mas, se para alguns, isso não bastasse como para fazer sentir que a psicanálise de Lacan propõe uma orientação contrária ao mal-estar de época que definimos como individualista e niilista, podemos invocar a potência dessa orientação implícita na construção dos conceitos fundamentais com os quais Lacan reformula toda a experiência freudiana. Começa seu ensino – e a termina – salientando a necessidade de não confundir sujeito e eu; teoriza o eu a partir da Verneinung freudiana e da identificação com a imagem do outro; o desejo do homem como desejo do Outro; o inconsciente será o discurso do Outro, estará estruturado como uma linguagem e será a política; a pulsão deixará de situar-se no organismo para entrar em relação com a demanda do Outro; e o Gozo também deverá passar pelo campo do Outro, pela falta e pelo impossível.
Individualismo e autenticidade na contemporaneidade
Desde os famosos estudos de Luis Dumont (1999) sobre o individualismo de massa em Ocidente, vários são os trabalhos que vêm identificando nuanças em função das diferenças culturais e das transformações sociais.
Mencionemos brevemente alguns deles:
• The closing of the american mind, de Allan Bloom, onde o autor identifica o “relativismo acomodatício” como um traço marcante do individualismo da juventude Americana. Essa posição subjetiva se resolve num respeito extremo pelos valores e as formas de vida dos outros, o que impede qualquer possibilidade de interferir na vida dos outros (cada um é como é, e ninguém tem autoridade para opinar sobre esse estilo de vida tão pessoa e singular).
• Os famosos trabalhos de Christopher Lasch A cultura do narcisismo e The minimal self, onde se desenvolve o egoísmo e o caráter plano da vida dos sujeitos identificados com posições narcísicas.
• A era do vazio, de Gilles Lipovetsky, onde se destaca a falta de transcendência política, religiosa, histórica ou de qualquer outro tipo, das vidas centradas no eu.
• Immunitas. Proteção e negação da vida, de Roberto Espósito, onde o autor trabalha “o enigma da biopolítica” a partir de considerar as “estratégias imunitárias” como modalidade de articular os efeitos antinômicos entre o poder de conservar e destruir a vida.
• Sociedade de indivíduos, de Norbert Elias, onde se releva o funcionamento de um pensamento que apenas reflete a estrutura espacial da consciência. O individuo se identifica com algo autêntico e puro dentro de si, para depois se relacionar com os Outros (a frase que melhor expressa essa realidade é: primeiro tenho que estar bem eu, saber quem eu sou, para depois estar bem com os outros).
Essas são apenas algumas das novas características do individualismo contemporâneo que Taylor (1994) articula a partir do funcionamento degradado do ideal de autenticidade. Encontra a origem desse ideal numa doutrina do século XVIII (Hutchesson), que surgiu com a finalidade de se opor a outra doutrina que entendia a escolha moral do bem e do mal a partir de um cálculo das consequências. A doutrina da autenticidade afirma que não se trataria de um cálculo e sim de uma voz interior – sentimentos – que auxilia as pessoas na hora de tomar decisões importantes (escutar o coração).
Com o tempo, essa voz interior se desloca da sua finalidade original (tomar decisões) e passa a identificar o que há de mais ‘real’ e ‘original’ em nós. Essa voz permite que o ser humano se mantenha fiel a si mesmo e o protege das influências externas e dos efeitos desviantes da imitação dos outros (a experiência que se invoca como matriz dessa conduta é o sentimento de existência, de Rousseau).
Taylor explica esse funcionamento degradado do ideal de autenticidade por sua combinação com o expressivismo e a liberdade radical. Assim, o romantismo fica encapsulado na vida privada dos sujeitos contemporâneos, que passam a se entender como uma unidade em si mesma – imediata – e com a finalidade de expressar sua forma original, singular e irrepetível, a partir apenas da vontade individual livre de influência externa e prescindindo de qualquer reconhecimento.
O ideal de autenticidade com o qual Taylor pensa a normatividade social de boa parte dos sofrimentos e dilemas morais de nosso tempo contempla as mesmas referências – expressivismo e liberdade radical – das quais se serve Lacan na fórmula geral da loucura. Assim como para Taylor, o problema não é o ideal de autenticidade, mas o funcionamento degradado do mesmo, ou seja, sua independência do reconhecimento do Outro. Para Lacan, o problema não é a identificação com o ideal, e sim a identificação imediata, sem resto, sem passar pela alteridade do Outro.
Para concluir
Embora a experiência analítica se circunscreva ao sujeito lógico – do inconsciente –, é necessário que nós, analistas, forjemos uma concepção coerente de nossa função respeito das normas e das estruturas sociais. É a parir daí que poderemos oferecer uma resposta a um mal-estar de época articulado as condições sociais de existência.
No que diz respeito a esta questão, o diagnóstico de Lacan é claro. A modernidade impulsiona o sonho dos “fabricantes de automatas” (LACAN, [1950] 1998, p. 160) e a armadilha da livre e “insondável decisão do ser”, que se materializa na “lei de nosso devir: Genoi, oíos essí” – Chega a ser tal como você é (LACAN, [1950] 1998, p. 179), ou seja, idêntico a si mesmo, como exige o ideal de autenticidade.
Essa captação do ser é operada tanto na ideia – na vida espiritual – quanto na existência como organismo. Para este último dirá
[...] que se tende a dissimular que o homenzinho que está dentro do homem sempre está disposto a fazer com que a maquina funcione (LACAN, [1950] 1998, p. 161)
E no que atinge ao aspecto espiritual, dirá que se trata já não dos valores integrados, mas dos valores integradores explorados pela técnica científica.
Enfim, para Lacan ([1950] 1998, p. 161) essa captação do ser articula um “psiquismo avesso ao juízo lógico” – ao sujeito do inconsciente – e um “projeto contrário à consciência moral”, que leva tanto à loucura como à “produção de um fascista ou, mais simplesmente, um imbecil ou um trapaceiro”.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: mezzamartin@yahoo.com.ar; martinmezza@hotmail.com
Recebido em: 30/11/2017
Aprovado em: 17/12/2017
SOBRE O AUTOR
Martín Mezza
Psicanalista argentino, atualmente residente em Salvador (BA).
Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Membro de Apertura (Buenos Aires).
Mestre em Saúde Mental Comunitária pela Universidad Nacional de Lanús (UNLa - Arg).
Doutorando no Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia.
Trabalha com clínica de adolescentes e adultos.
Vinculado aos movimentos de reforma psiquiátrica.
Foi professor da Universidad de Buenos Aires (UBA).
Trabalhou na gestão de saúde.
1 Trabalho apresentado no painel Desafios atuais da clínica psicanalítica, do XXII Congresso do Círculo Psicanalítico da Bahia. Salvador (BA), nov. 2017. O presente artigo apresenta importantes modificações em relação ao trabalho do congresso.
2 O sintagma loucura moderna exprime o objetivo específico desta apresentação (a relação entre o mal-estar de época e a fórmula geral da loucura). Algumas passagens da obra de Lacan permitem considerar a loucura como essencial ao ser do homem.
3 Alu são à atualidade política do Brasil.
4 Essa ideia de neutralidade tão promovida no ambiente psicanalítico, que surgiu oportunamente para se opor aos excessos da normalização exercida pela posição social do médico na sociedade e a identificação com o eu ideal do analista, hoje, por seus efeitos imaginários, deveria ser revisitada e considerada inclusive na sua dimensão técnica como um possível obstáculo à transferência.
5 Hegel via a concretização dessa liberdade absoluta nos efeitos de terror provocados pelos jacobinos.
6 Nesse trabalho se propõe a categoria neurose moderna, extraída da pena de Lacan, para reunir essa diversidade de sofrimentos.