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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.48 Belo Horizonte jul./dez. 2017
SELETA DE COMUNICAÇÕES
Lou Andreas-Salomé: o que você tem a nos dizer?1
Lou Andreas-Salomé: what do you have to tell us?
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
I Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro
II Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
RESUMO
No presente artigo a autora abarca a vida e a produção psicanalítica de Lou Andreas-Salomé. Suas teorias sobre processo analítico, narcisismo, feminino, amor e erotismo, arte, religião e analidade são abordados realizando links com a vida da psicanalista.
Palavras-chave: Lou Andreas-Salomé, Biografia, Psicanálise.
ABSTRACT
The author describes the life and psychoanalytical production of Lou Andreas-Salomé. Her theories concerning the psychoanalytical process, narcissism, femininity, love and erotism, art, religion and anality. Her ideas are approached through links to her life as a psychoanalyst.
Keywords: Lou Andreas-Salomé, Biography, Psychoanalysis.
Introdução
Salomé nasceu em S. Petersburgo no ano 1861, como Louise von Salomé. Existem abordagens de seu estilo de vida e personalidade sob vários ângulos, principalmente sobre seu lugar na vida dos homens com os quais ela se relacionou. A biografia de Lou Andreas-Salomé, escrita por Heinz Frederick Peters em 1962, com tradução de Waltensir Dutra em 1986 e introdução de Anaïs Nin – Lou minha irmã, minha esposa –, é considerada a mais completa. Ernest Pfeiffer, responsável pela coletânea da correspondência entre Sigmund Freud e Salomé (1972), foi ferrenho defensor de suas memórias e o amigo íntimo que surgiu na velhice dela. Ele a procurou em 1930 para que atendesse um caso de neurastenia e acabaram se tornando muito próximos. Lou o nomeou herdeiro de toda a sua obra. Pfeiffer a via todos os dias quando, no final de vida, Lou se encontrava enfraquecida devido a um envenenamento urêmico. Algumas de suas produções em psicanálise não estão traduzidas para o português, e outras são pouco estudadas.
A vida humana, ah!
A vida, sobretudo, é poesia.
Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia.
Passo a passo –
mas em sua intangível plenitude
ela vive e nos traduz em poesia.
ANDREAS-SALOMÉ, L. casadevidro.com., p. 8.
Antes da psicanálise
Salomé faleceu aos 76 anos na cidade de Gottingen, onde viveu com seu marido Prof. Andreas. Poucos dias após sua morte, um caminhão com soldados da Gestapo parou em sua porta e recolheu todos os livros de sua biblioteca, com o argumento de que ela era psicanalista – uma ciência judaica – por ter sido colaboradora e amiga íntima de Sigmund Freud e por sua biblioteca estar cheia de livros de autores judeus.
Salomé era bela e voluntariosa. e Segundo sua amiga íntima Hélène Klingenberg, seus olhos azuis eram tão brilhantes que “Quando Salomé entra numa sala, era como se o sol tivesse aparecido”. Lou era chamada de “a feiticeira de Hainberg” pelas mulheres que moravam em Göttingen, por viver afastada da cidade, não frequentar as reuniões universitárias e viajar sozinha com outros homens enquanto casada com Prof. Andreas. Uma mulher comparada à lua pelas suas múltiplas faces (PETERS, 1986).
Para sua época Lou pode ser considerada amoral não só devido a sua vida amorosa pouco usual, mas também pelos relatos e descrições sobre ela em que parece não existir o sentimento da transgressão, mas de ser coerente com seus sentimentos e suas ideias.
Anaïs Nin (1903-1977), uma autora de livros e artigos sobre eroticidade feminina, foi convidada a fazer o prefácio do livro de Peters (1962), onde analisa que Salomé simboliza o transcender convenções, modos de viver e pensar. Lou viveu todas as fases das relações amorosas; casou-se e levou vida de solteira relacionando-se com homens tanto mais velhos como mais novos. Tinha o talento da amizade e do amor, mas não se deixou consumir por paixões românticas. Pelas atitudes, pensamentos e obras sempre esteve à frente de seu tempo. Anaïs cita Barbara Kraft, que fez um estudo sobre ela escrevendo: “Salomé foi a primeira mulher moderna”. Ainda com Anaïs, Lou copiou dos homens o modo de vida, mas não foi uma mulher masculina. Exigiu a liberdade de mudar, evoluir e crescer. Afirmou sua integridade contra o sentimentalismo e as definições hipócritas da fidelidade e do dever.
Alguns de seus críticos a consideravam impassível à felicidade ou à devastação que sua passagem e sua relação podiam provocar nos outros, como uma indomável e poderosa força da natureza, demoníaca, primitiva e sem fraquezas femininas. Porém, seus amigos discordavam dessa abordagem de Lou: para eles, ela era generosa, humana, despretensiosa com riso contagiante e espírito desarmante.
Lou resumiu sua vida da seguinte forma: “Sinto-me à vontade na felicidade”. Essa teimosia em ser feliz a fazia ser diferente. Uma persistência na busca do prazer indiferente ao meio a sua volta, como os felinos.
Na introdução Peters (1986) se refere à extensa correspondência trocada com Pfeiffer, que estava de posse de todo o legado literário de Lou, inclusive os inéditos. Pfeiffer cedeu o material desde que ele trabalhasse em Gottingen. A percepção do autor era de que Ernest o considerava um intruso perigoso em seu domínio e reticente em várias situações sobre a vida e a personalidade de Salomé, Peters utilizou de tudo que Pfeiffer contou e mostrou, mas principalmente, recorreu a muitas pessoas que tinham conhecido Lou Salomé e estavam vivas. Utilizou o material falado quando corroborado por pelo menos duas fontes independentes.
Lou recebeu o nome de sua mãe, Louise, uma mulher 19 anos mais nova que o marido considerado um belo, elegante e educado oficial da guarda russa. Nascida em uma família abastada e cercada de toda a pompa e mimo, era a mais nova e única menina entre os seis filhos. Havia tensão na sua relação com a mãe, o que não acontecia com o pai que a mimava: a sua preferida, já que ansiava por uma filha mulher. Sua relação com a religião – no caso Deus – equiparava-se àquela que tinha com o pai: um senhor generoso, compreensível e protetor. Imagem que marcou sua relação com os homens. Certo dia um criado lhe conta a história de dois mendigos parados à frente de sua casa durante dias, até restar apenas sapatos e chapéus (bonecos de neve). Chocada ao ver o que restou das pessoas, Lou inquire Deus, que não responde. Nesse momento perde a crença e a fé recebendo em troca o peso da responsabilidade de sua própria imaginação (FORRESTER, 2011, p. 374).
Na adolescência, por exigência familiar, estudou religião com o conservador pastor Dalton, com o qual discordava e do qual lutava para se libertar. Nesse período chegou a São Petersburgo Gillot, um pastor casado e com dois filhos, que não era insensível aos encantos femininos. Lou demorou a ir ouvi-lo em suas pregações, apesar de saber de sua fluência e capacidade de seduzir a plateia. Assim que viu Gillot no púlpito pensou: “Agora minha solidão acabou, eis o que eu procurava, se referindo ao homem”.
Escreveu-lhe, e na data e hora marcada Lou foi até ele e caiu aos prantos em seus braços. Manteve as conversas com Gillot durante meses em segredo. Ele, por sua vez, ao perceber sua inteligência, foi educando-a intelectualmente e permitindo que ela escrevesse muitos de seus discursos, despertando-lhe o prazer e a arte de escrever. O aprimoramento espiritual/intelectual de Lou afastou-a dos resquícios da infância, de seu país e de seu lar, jogando-a no mundo. No período de encontros com o pastor Gillot, seu pai faleceu, ela se afastou da igreja luterana e acabou por contar à mãe os encontros com Gillot. A mãe o chamou acusando-o de ter sido causador do abandono da filha da igreja. Gillot convenceu-a da genialidade de Lou pedindo para continuar a ser seu professor. Madame Salomé concorda, e Lou continuou seus estudos até que Gillot apaixonado confessa seu amor e desejo de se casar com ela. Bastou isso para Lou abandoná-lo sentindo que tinha perdido o homem que tanto admirava e amava, mas de forma infantil, como a seu pai e o Deus de sua infância (PETERS, 1986).
Lou resolveu ir para Zurique e em sua confirmação religiosa Gillot esteve presente e disse: “Não temas, pois eu te redimi, te chamei pelo seu nome: Tu és minha”. Lou compreendeu que Gillot faria parte para sempre de sua vida e nascia LOU, como Gillot a chamou!
Em Zurique Lou se dedicou aos estudos de forma intensa, era admirada, temida e considerada muito independente para uma moça. Estudou com a mesma impetuosidade que sempre imprimiu a tudo que a seduziu: amores, saberes, experiências. Acabou por adoecer, e sua mãe a levou para Roma, a fim de se recuperar.
Em Roma morava Malwida von Meysenbug, feminista ativista, pertencente à nobreza, idealista e ardente advogada da justiça social: escrevia artigos, fazia movimentos, gritava pela liberdade humana e, com isso, ganhou admiração da elite revolucionária da Europa. Todos a conheciam: Froebel, Wagner, Garibalde, entre tantos. Cuidava de Nietzsche, que estava sempre doente, conhecia o jovem filósofo Paul Rée, e Romain Roland era um de seus visitantes assíduos. Lou tinha lido as memórias dessa mulher e com ansiedade esperou encontrá-la. Malwida a recebeu com bondade e adotou-a como filha. Nessa situação Lou vem a conhecer Rée e Nietzsche, que na convivência se encantaram por Lou e fizeram um projeto de viver um ano juntos como a “Santíssima Trindade”. É famosa a foto de Salomé com um chicote, arreios de uma carroça e os dois apaixonados. Sua saúde melhora apesar das recomendações de não retomar logo os estudos. Sua mãe resolve levá-la de volta para casa, e os dois amigos combinaram encontrar as duas para seguirem em direção à Suíça. Porém, os ciúmes e os afetos dos dois homens por Lou acabaram por separá-los, e o grupo se dissipou. Tempos depois Lou e Nietzsche passaram um mês juntos, o que provocou reação violenta de Elizabeth, a irmã do filósofo, e a explosão ocorre com ele rompendo com a irmã.
Lou vai encontrar com Rée e vivem juntos em Leipzig deixando Nietzsche desesperado com a ideia, até que compreendeu que Lou não voltaria para ele. Em sua biografia Salomé se refere a uma amizade muito profunda e não a um caso amoroso Lou vs Nietzsche. Essa relação teve muitos desdobramentos que incluem a irmã de Nietzsche, que nunca simpatizou com Lou e alimentou o desafeto entre os três. O filósofo se referiu a Salomé assim: “astuta como uma águia e corajosa como um leão, mas, ainda assim uma garotinha muito feminina” (FORRESTER, 2011, p. 371).
Muitas são as produções ligando Lou/Nietzsche: filmes, romances, biografias do autor. Em algumas Lou é descrita como aquela por quem o filósofo sofreu e em outras como uma rapariga inconsequente e oportunista. Na publicação Carta aberta a Freud, em que discorre sobre religião e Deus, Salomé cita Nietzsche várias vezes ao expor seu pensamento (SALOMÉ, [1931] 1972, p. 65).
Em Berlim, vivendo com Rée, em meio a intelectuais de várias áreas, Lou era chamada de “Sua Excelência”, o que denuncia como era vista e percebida por todos. Vivia feliz com Rée, mas isso não a impedia de viver cercada de apaixonados e ter vários affaires!
O sucesso do livro Uma luta por Deus (1885), escrito por Lou aos 23 anos de idade e o sentimento de fracasso que Rée sentia por muitos de seus sonhos não terem se concretizado levou-os à separação. O período coincidiu com Lou ter conhecido Friedrich Carl Andreas, professor de línguas, e anuncia a Rée que continuaria a vê-lo. Tudo isso ocorreu em meados 1884. Rée foi encontrado morto em 1901, no Rio Inn, perto do local onde 15 anos antes ele e Lou tinham passado bons momentos.
Neste ponto vale a pena introduzir duas obras que Lou publicou e que esclarecem sua forma de pensar o amor e erotismo. A primeira, Reflexões sobre o problema do amor, foi escrita em 1900, e a segunda, O erotismo, em 1910, ambas quando já estava casada com o professor Andréas.
No primeiro Lou se refere ao amor como união, já que em toda criação jorra amor, e todo amor é ato criador e se relaciona com o amor que o criador tem por si. Amar é conhecer alguém que colore todo o mundo à sua volta, todas as coisas. Para o amor permanecer, há que manter a liberdade individual e não contaminá-lo com a ferocidade sexual. Muitos, quando amam, tendem a incluir o outro em seu universo ou entrar no universo do outro. Ocorre a morte da criação. Por isso, quando as pessoas se separam após um longo período juntas, elas florescem, porque o nós não foi capaz de carregar o eu. Ninguém suporta comer todos os dias a mesma comida mesmo sendo a mais requintada. Vai acabar em tédio. Assim, os dois amantes nunca devem procurar se conhecer perfeitamente (SALOMÉ [1900], 2005)
Quanto ao erotismo, Salomé considerava difícil de ser conciliado com a fidelidade, já que a sexualidade implica um sinal de ascensão para conexões vitais ainda mais amplas. Por isso, a vida erótica natural funda-se no princípio da infidelidade (SALOMÉ, [1910], 2005).
Nessas produções Salomé discorre sobre arte, religião, sociedade, a mulher, maternidade, masculino e feminino, trabalho intelectual, união dos amantes. Todos os temas analisados pela sua ótica de amor e erotismo traduzem sua forma de encarar a vida, os amores, o trabalho. Essas duas obras encarnam o estilo de vida de Lou Andreas-Salomé. Quando ela se aprofundou na psicanálise, passou a usar os conceitos na sua visão de mundo, que se manteve inalterada. Foi essa percepção do amor e erotismo que guiou sua vida com os homens.
Nas duas obras, lendo-as com cuidado, encontramos expressões presentes em autores das várias áreas que viviam nesse período. Filósofos, sociólogos, psicanalistas ou dissidentes da psicanálise. Identificação? Mimetismo? Ou podemos considerar que era um leitmotiv da época, que respirava questionamentos e descobertas?
Andreas tinha 41 anos e vivia em Berlim quando bateu à porta de Lou para conhecê-la, não se sabe por quê. Na época Lou tinha 26 anos. Foi decisivo para ambos! Nos primeiros anos de casamento, como Lou se recusava a envolvimentos sexuais, e isso fazia Andreas sofrer, Salomé propôs o divórcio, que Andreas recusou. E continuaram casados dessa forma, sem envolvimentos sexuais, que Lou acreditava que acabariam com o amor. Ele teve dois filhos bastardos com a governanta: um deles faleceu, e a filha sobreviveu e residia próximo ao casal. Lou, por sua vez, teve várias paixões por outros homens, mas continuou casada por 43 anos. A filha ilegítima de Andreas foi feita herdeira por Lou. Salomé, ao desposar o Prof. Andreas, já tinha sucesso e independência financeira e, após alguns anos de casada, começa a viajar sozinha pela Europa durante uma parte do ano. Nesses períodos vivia com os homens com os quais porventura estivesse envolvida.
De todos os homens com quem Lou viveu de forma idílica a nenhum nomeia como amante e a todos trata como grandes e caros amigos.
Em 1897, em Monique, ela estava com 36 anos quando conheceu Rainer Maria Rilke, então com 22 anos. Lou o reconhece como seu homem. Em uma carta a ele escreve:
Fui sua mulher durante anos, porque você foi a primeira realidade onde homem e corpo são indiscerníveis. [...] Foi assim que nos tornamos marido e mulher (PETERS, 1986, p. 170).
Lou não era mulher de se sujeitar, lançar-se nos braços ou querer se separar de Andreas para se casar com outro homem. Entre brigas e retornos, num dos últimos períodos passados juntos, Rilke lhe dedica O livro das horas com o poema:
Arranca-me os olhos, e ainda te poderei ver.
Arranca-me os tímpanos, e ainda te poderei ouvir,
Sem pés, ainda poderei caminhar para ti,
Sem língua poderei invocar-te a qualquer hora,
Arranca-me os braços, poderei abraçar-te
e agarrar-te com o coração, como se a mão fosse.
Para meu coração e meu cérebro baterá com a mesma fidelidade
E se meu cérebro incendiares,
Então em meu sangue te carregarei
(PETERS, 1986, p. 191).
Quanto mais dependente Rilke ficava, mais Lou ansiava por independência até sentir que a relação tinha de terminar para recuperar sua liberdade. No retorno à Rússia, novamente no seio de sua família, Lou reencontra a juventude que deixara para trás há quase vinte anos devido à influência de Gillot. O sofrimento e a colagem de Rilke não combinavam com esse momento de grande florescimento em que ela se encontrava. Separam-se apesar de Rilke custar a perceber essa decisão, enviando cartas com pedidos de desculpas e solicitando reencontros. Mas Salomé já partia para outras paragens em busca de outros círculos de amigos.
Numa correspondência a Salomé, Rilke lhe pinta o retrato:
Esta mulher possui a habilidade de penetrar nas coisas mais maravilhosas, mais esplêndidas; ela transforma, no momento certo, tudo aquilo que os livros e as pessoas trazem, na mais abençoada compreensão; ela entende, ama e se move, sem medo, entre os mistérios mais ardentes. Estes não lhe causam nada, apenas brilham para ela com a mais pura chama (FORRESTER, 2011, p. 371).
Antes de encontrar Rilke, Lou se relacionava com Dr. Friedrich Pineles, codinome Zemek, que já a havia socorrido em momentos de angústia. Passaram a viver como marido e mulher quando, segundo Peters (1986), Lou engravidou, mas não pretendia se separar de Andreas e perde a criança, situação que Pfeiffer dizia não saber. Ficaram juntos durante doze anos, eram tratados como casal pela família dele e em todos os lugares que frequentaram durante esse período. Até que Zemek se cansou do lugar em que ela o colocava. Queria mais! Porém, ela não o faria e, assim, terminaram.
Como Lou vivia cercada de adoradores e se recusava a ter envolvimentos sexuais com alguns com os quais conviveu, consegue-se entender como foi possível ela se envolver com dois homens ao mesmo tempo, e o Prof. Andreas considerar como admiradores os homens que a cercavam. Há uma situação relatada por Peters. Numa primavera ela estava com Rilke, e o professor Andreas resolveu visitá-la. Lou fez de tudo com ajuda de uma amiga para que Rilke contivesse sua paixão e seu marido não desconfiasse de nada. No final, tudo transcorreu conforme o desejo de Salomé (PETERS, 1986).
Talvez Salomé tenha tido envolvimento com vários homens ao mesmo tempo, inclusive por ser discreta nos comentários sobre seus envolvimentos amorosos e sexuais. Os que chegaram até nós são relacionados a homens que passaram para a história por sua produção.
A belle epóque, surgida na França, se alastrou por toda a Europa, durou de 1871 a 1914, com a eclosão da II Grande Guerra. Época do elogio à beleza, inovação e paz. Período da invenção do telefone e do cinema, do desenvolvimento dos transportes, que permitiu maior deslocamento das pessoas. Nesse período Salomé circulava pela Europa publicando e aprendendo sobre o novo que emergia.
Lou Andreas-Salomé fez parte de todos os círculos existentes na época. Período de fin-de-siècle e de progressos em todas as áreas: física, politica, economia, filosofia, ciência, cinema, fotografia, música, literatura e psicanálise, além da gestação da semana de Arte.
Salomé participou dos círculos de vanguarda em Berlim, Paris, Munique e por último Viena (MATTOS, 2011). Circulava pela Europa como no quintal da mansão de sua família na Rússia. Eram pessoas questionando o novo tempo, a modernidade, a crise do sujeito e comungavam com Lou, ou Lou comungava com elas, no desejo de liberdade e nos questionamentos do que o progresso estava a fazer com as pessoas. Publicou em grandes revistas da época como colaboradora, fazendo críticas e revisões como partícipe dos grupos de vanguarda.
Relacionou-se com Poul Bjerre (1876-1964), psiquiatra sueco, casado com uma mulher doente. Ele estudou um pouco de psicanálise, mas considerava a consciência mais importante que o inconsciente e achava exagerada a atenção que Freud concedia à sexualidade, portanto acabou se afastando dessa teoria.
Ele e Salomé foram amantes durante dois anos, e foi ele que, ao convidá-la para o congresso de psicanálise de 1911, a perde para Freud e a psicanálise (PETERS, 1986). Aqui Lou encontrou o espaço de vanguarda sobre o sujeito, o ouvir, o investigar-se fora de padrões e pressões religiosa, políticas e/ou culturais. Tudo isso coincidiao com o que pensavam os grupos que Salomé frequentava: a descrença no homem da razão, a recusa da tirania das leis apostando na construção de uma humanidade mais livre.
Salomé apud Mattos (2011) diz em suas memórias:
O ser humano se tornou poderosamente comprometido com um êxtase de progresso e, violado por metas opressoras [...] se mostra como um ser amputado em uma parte importante dele mesmo.
A Lou Andreas-Salomè que se depara com a psicanálise é uma intelectual com várias produções. Escreveu sobre Frederich Nietzsche e Rainer Maria Rilke. Publicou romances e ensaios, muitos deles sobre o feminino submisso ou independente e as mulheres de Ibsen. Considerada uma escritora psicológica e criativa, estudou filosofia e história da religião. Por frequentar os espaços mais modernos de discussões e produção de ideias, chegou ao grupo de Freud com percepções e visão de mundo delineadas, construídas ao longo de seus estudos e seu convívio com as cabeças pensantes mais originais da época. Tal situação levou estudiosos sobre ela a afirmar que Salomé se apoderou de conceitos da psicanálise que pudessem referendar suas ideias já existentes e não modificá-las (PEREIRA, 2016).
Mas há reticências sobre o que Salomé trouxe ao Círculo Vienense de Psicanálise. Se lembrarmos que ela era a mais viajada e partícipe de outros grupos, ficamos desconfiados da pouca importância que suas ideias podem ter influenciado esse grupo de pensadoras da alma humana, principalmente se levarmos em conta que Salomé não se abstinha de emitir sua opinião. Afinal, era uma crítica literária.
Com a psicanálise
O período entre 1911 e 1937 é de Lou e Freud, Lou e a psicanálise. Salomé entrou nos cinquenta anos sentindo-se jovem, com o brilho e a vitalidade dos vinte anos. O contraste entre a sua idade e sua aparência fazia com que muitos brincassem que ela havia descoberto a fonte da juventude ou que seu marido Andreas, por ter vivido no mundo oriental, devia possuir a fórmula mágica da juventude. Para Lou a fonte da juventude era o amor em todas as suas manifestações: o amor à natureza, o amor pelos animais, o amor dos sexos.
Na percepção daqueles que a estudaram e, principalmente na de Sigmund Freud, Lou Andreas-Salomé possuía uma segurança inabalável, um sentir-se bem entre os homens e uma confiança de seu lugar entre eles por ser a mais nova numa família com tantos homens e por ter tido como pai um homem mais velho, que a mimava demais. Com essa segurança, vitalidade e curiosidade Lou Andreas-Salomé adentrou no grupo de psicanalistas, composto em sua maioria por representantes do sexo masculino.
Em Viena, enquanto estudava psicanálise, Lou se envolveu com vários homens. Mas quem conquistou seu amor foi Victor Tausk (1879-1919), 16 anos mais novo, e cunhado por ela como “seu irmão animal”. Era considerado um dos mais inteligentes e promissores discípulo de Freud, porém devido às transferências e às relações ambivalentes com Freud e sua analista Helen Deutsch, ficou mais distante provocando o desafeto de Freud. Mas Lou se encantou com sua capacidade de inovar. Tausk (KAUFMANN, 1996) estudou a psicose provocada pela guerra e aprofundou seus estudos na ilusão comum de esquizofrênicos que acreditam ter um extraterrestre influenciando seus pensamentos. Essa análise gerou sua obra mais importante: Da gênese do aparelho de influenciar na esquizofrenia (1919).
Lou e Victor cabulavam os estudos para ir ao cinema assistir aos primeiros filmes mudos, que Lou considerava um divertimento excelente para descansar a cabeça de trabalhos intelectuais pesados. Ele tinha a coragem de se aventurar nos campos que ainda não eram muito estudados na psicanálise e levaram Freud a lhe pedir cautela, mas era exatamente essa qualidade que atraía Lou. Ela o chamava de animal predador, um homem com força primitiva. Victor suicidou-se aos 47 anos castrando-se primeiro. (PETERS, 1986).
Roudinesco (2016) na sua biografia de Freud dedica a Lou duas folhas no item sobre as mulheres na terceira parte, cujo título é Freud na intimidade. Aí ela é analisada como a contrapartida feminina de Freud: igualmente desmedida e orgulhosa, a mesma energia, coragem e maneira de amar e possuir os objetos escolhidos. Um seguia a abstinência sexual com a mesma intensidade com que a outra saciava seus desejos (ROUDINESCO, 2016, p. 350). Roudinesco sinaliza o apaixonamento manifesto de Sigmund Freud por Salomé; ele, porém, afirmava que nada havia de atração física nessa relação.
Temos conhecimento, graças ao estudo de Perestrello (1976), de que Freud possuía uma educação tradicional, era um homem pertencente à classe média vienense. Essa condição não impedia que soubesse dos ventos que sopravam em relação ao sujeito, à cultura e às instituições.
Seu texto Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) mostra isso assim como os seguintes sobre a Psicologia do amor I, II e III, escritos em 1910, 1912 e 1917, respectivamente. Mesmo que mais tarde ele reformule um pouco suas ideias, para ser aceito na sociedade burguesa vienense. Em nenhuma das cartas trocadas com Salomé percebe-se um Freud que avalie sua conduta ou a critique, ou que lhe sugira cautela em sua conduta.
Por outro viés, Lou e Freud tinham visões diferentes do homem e da cultura. Para Freud, a felicidade não faz parte da cultura, e o desprazer implica uma tensão interna constante. Para Salomé, o prazer é acessível, e o homem se encontra em unidade maior com tudo que existe no universo. Porém, Freud analisa que cada um deve encontrar por sua própria conta a melhor forma de conseguir felicidade e prazer. Lou Andreas-Salomé o fez.
Inquirida por Freud sobre o motivo por que se dedicar com tanta intensidade à Psicanálise, Lou respondeu: (a) um interesse objetivo, (b) encontrar-se diante de uma ciência em gestação; e (c) a satisfação íntima que disso decorre.
Essas razões combinam com a forma de Lou se aprofundar no novo. Pereira (2016), por sua vez, analisa que a Viena daquele período tinha muitos estudiosos da alma humana. Em contraste com as discussões políticas e sociais do resto da Europa e após o III Congresso Psicanalítico Internacional, de 1911, e os estudos da teoria psicanalítica, Lou se deu conta do destino psicológico de cada ser humano.
No Congresso de 1911 havia 55 participantes. Ao ser apresentada a Freud, ele achou graça no entusiasmo quase infantil de Salomé. Enquanto iam conversando, Freud foi ficando intrigado com aquela mulher – da qual já ouvira falar – pela sua insistência em ser otimista e alegre (PETERS, 1986, p. 216).
Após o Congresso Salomé solicita fazer parte da reunião das quartas e, com a aquiescência de Freud, ela chega a Viena em 1912, num momento de dissidências. Foi bem aceita pelo grupo e ficava em silêncio, ouvindo e tricotando, levando Freud a desconfiar de que ela não entendia a profundidade dos conceitos elaborados, mas no momento seguinte se espantava com suas articulações e sínteses aprofundadas, até se referir a ela como a “mais dedicada dos intèrpretes”, “a poeta da psicanálise”, aquela cuja inteligência Freud adjetivou como demoníaca (PETERS, 1986, p. 239).
Ao longo do tempo Salomé foi emergindo como grande “entendedora” da metapsicologia freudiana. Vista por alguns como a “mãe da psicanálise”, seus escritos contêm otimismo e amor à vida se centrando na sexualidade feminina, no amor,
Lou se dedicou à psicanálise com a mesma intensidade e paixão com que se dedicou a tudo o mais em sua vida. Atendia uma média de dez pacientes por dia e todo tipo de perturbação psíquica! Após uma gripe forte que a fez perder cabelo, sente-se envelhecida, doente, e Freud a convida a estar com ele em Viena. Ela aceita e nessa viagem torna-se amiga de Ana e confidente do velho Freud. Depois que retorna a sua cidade Freud lhe escreve, em novembro de 1912: “[...] gosto de fixar meu olhar em alguém [quando falo], ontem fixei meu olhar, como se estivesse enfeitiçado no lugar que lhe era reservado (PFEIFFER, 1966). A primeira publicação de Lou na Imago IV foi O anal e o sexual (1916).
Para Pfeiffer (1966), Salomé viveu à sombra dos grandes homens presentes em sua vida. Essa não é a percepção de Peters nem de Anaïs, nem de Forrester, tampouco de outros biógrafos e analisadores da vida de Salomé. Mas a leitura de Pfeiffer coincide também com estudiosos das personalidades daquele tempo, para os quais ela foi a grande sedutora, a mulher atraente que envolve todos a sua volta, sem receio das consequências da satisfação de seus desejos e sem nada de seu a acrescentar.
Nos tempos em que repensamos a técnica e o lugar da psicanálise, Salomé analisa:
Nossos adversários, ou as pessoas bem predispostas, alteram a pureza da psicanálise, associando-se a ela a título de conselheiros em matéria de religião, moral ou pedagogia (ANDREAS-SALOMÉ, 1971, p. 14).
Continua pontuando, que é natural o analisando se esquecer do analista, mas que este talvez tenha dificuldade de esquecê-lo pelo espetáculo único e singular que é cada pessoa. Ao final do trabalho, na despedida do fim do processo, cada profissional deveria se perguntar se sobreviveria ao que seu paciente sobreviveu, agora indo em direção à vida. Se conseguiria ser tão bem-sucedido quanto ele.
Curar é um ato de amor, é voltar-se para si mesmo com o sentimento de ser acolhido, a psicanálise não cria nada, ela exuma, descobre, desvela até que a totalidade viva se manifesta a nossos olhos. No interior dessa situação analítica toca-se de muito perto a intimidade e a vida, descobrindo a profundidade da natureza humana que se abre ao conhecimento de si mesma (ANDREAS-SALOMÉ, [1931] 1971, p. 14).
Há outra forma de perceber o processo analítico?
Sobre o erotismo anal em O anal e o sexual (1916), Salomé analisa que é um ensaio para o erotismo genital e reproduz a luta entre desejo e prazer. A proximidade física entre ânus e genitália significa que no ato sexual a morte (território dos excrementos) é transmitida pelas forças da vida e da reprodução. O erotismo anal se relaciona à importância dos primeiros anos de vida (FORRESTER, 2011, p. 405).
Freud ([1905] 1979, nota 1, p. 192) cita seu trabalho numa nota de rodapé de 1920 nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, no item sobre atividades masturbatórias da zona anal.
Para Salomé, o período anal se liga à “alegria criadora”, na medida em que representa uma tentativa de unificação entre o eu e o mundo que existia antes do primeiro recalcamento da libido, quando o mundo em redor considerou “ruins” as fezes, que deviam ser tratadas de forma desprezível. As mudanças e as renovações da vida estão ligadas a esse período, um devir que pode se separar de si mesmo, se transformar em eliminação e atrair o estranho, transformando-se novamente em si mesmo (PEREIRA, 2016, p. 102). Liga prazer/defecação e futuro/transitoriedade com analidade. Relaciona a posse do objeto de paixão com a relação inicial com excrementos.
Para Lou, se a vivência do prazer na analidade segue um caminho onde o recalque desse período não é violento, as pessoas transferem e transformam as sensações iniciais na sexualidade adulta. O nojo, o sujo, o vergonhoso não contaminam a sexualidade madura. Para Lou, é no erotismo anal que o olfato tem sua importância: o mais animalesco dos sentidos tocando pontos profundos da unificação do humano com o todo (PEREIRA, 2016).
Com relação às mulheres, Lou considerou a maternidade um dom por reproduzir uma réplica de si mesma, sendo procriadora, nutriz e guia tutelar. É assim que a mulher chega à felicidade e ao pleno desabrochar erótico, compreendendo que o destino do sexo feminino é a felicidade e não resignação (ANDREAS-SALOMÉ, [1935] 1972, p. 34).
Nas novelas de um tempo anterior à psicanálise, as mulheres retratadas por Lou estão em busca de um lugar, lutando por independência, liberadas sexualmente, mas sempre em conflito consigo mesmas e com seu entorno.
Com a psicanálise, suas personagens femininas parecem ter resolvido seus conflitos, mas abrindo mão de algo (PEREIRA, 2016). A mulher é um ser abençoado, que vive um estado harmonioso de autossuficiência, depois de suas brigas interiores. As mulheres são diferentes, mas não inferiores ou complementares aos homens (PEREIRA, 2016).
No texto O erotismo, de 1910, portanto antes da psicanálise, Salomé se refere aos dois tipos de feminilidade: a maternidade e a virgem. A última com negação da sexualidade, submetida ao que a religião aprova e santifica, e a primeira submetida à cultura. A prostituta e a virgem se assemelham na caricatura do modelo vivo, e é significativo que não haja correspondentes para o homem (ANDREAS-SALOMÉ, [1910] 2005, p. 96-97). Assim, o conceito de mulher recobre as qualidades mais inconciliáveis, a mulher é a contradição encarnada: loucura e realismo, delicadeza e brutalidade, demônio e anjo (ANDREAS-SALOMÉ [1910] 2005, p. 101).
A análise de Pereira (2016) sobre as construções de Salomé com relação ao feminino é que são ambivalentes e divergentes de sua forma de viver a própria vida. Acredito que seja uma crítica difícil, porque, por mais que Salomé, Freud ou qualquer outro pesquisador-teórico construíssem teorias consideradas inovadoras e libertadoras, ainda são sujeitos de seu tempo. E o conflito é a matéria-prima da psicanálise e matéria-prima de qualquer ideia inovadora que vai receber recusas tanto mais violentas quanto mais transgressoras parecerem à sua época.
Outro conceito sobre o qual Salomé se debruçou foi o narcisismo, para ela muito além do “amor a si mesmo”. Lou tinha muito cara a si a ideia de comunhão com o mundo, alegria de viver, estar ligada a todas as coisas viventes e não viventes. O narcisismo é um conceito limite, tem dupla função: é o reservatório, o substrato de todas as manifestações do psiquismo, incluindo a mais individualizada e sutil, como também de toda recaída, toda tendência à regressão. A tarefa da psicanálise, específica, como se refere Lou, é aprofundar no fundo narcísico para travar combate com o patológico, com formações regressivas, para liberar a energia vital criadora (ANDREAS-SALOMÉ, [1931], 2005).
Na relação amorosa, quanto mais intensa e exclusiva, mais existe o combate para afirmação do eu, já que há uma ameaça sobre a conservação do eu. Na análise da interdependência do amor e do ódio, Salomé analisa que, para o homem que odeia no sentido pulsional, não basta destruir, ele também usufrui do sofrimento do outro. Torturar a quem não se ama mais é angustiante e desvia de outros objetivos, só quando há atrativo erótico que a crueldade é despertada, surgindo a pulsão do poder e fazendo disso um meio de alegria (ANDREAS-SALOMÉ, [1931] 2005, p. 40).
Sobre a pulsão de morte analisa o seu positivo: que a vida vale a pena, apesar de qualquer falta de ilusão a respeito.
O amor sexual, a criação artística e o fervor sexual estão ligados a uma mesma força vital. Para Lou o amor sexual é belo e perigoso, portanto não devemos esperar que dure. Deve-se usar dele como uma grande forçca regeneradora como ela fez, satisfazendo seus desejos eróticos e produzindo, produzindo, produzindo. Hoje temos estudos sobre o narcisismo, o objeto narcisado, a metapsicologia do recalque e o comprometimento decorrente de seu excesso, estudo sobre ideais e sublimação. Lendo as obras dos pioneiros, percebemos as sementes de estudos futuros. Nesse pensar incluo obras de Lou Andreas-Salomé.
Começou a se sentir velha aos 60 anos, quando teve uma gripe que a fez perder os cabelos. Mais tarde sofreu de câncer de mama e precisou retirar um seio, passando a sofrer de diabetes. Na velhice Lou atendia um ou outro cliente, mas era procurada por muitos para conversar e se aconselhar.
Podemos nos perguntar por que tão poucos trabalhos citam Salomé e sua produção. Sua história fica ligada a Nietzsche, Rilke, Reé e Freud, entre outros, como uma mulher que passou pela vida deles como companheira, abrilhantando seu mundo sem que houvesse uma vontade independente e voluntariosa. A personalidade autônoma, curiosa e narcísica é analisada como característica da grande sedutora e muitas vezes com tom pejorativo de menosprezo. Ela é vista como alguém que girou em torno das grandes personalidades masculinas de seu tempo.
Mas é pouco aprofundado seu questionamento do mundo das ideias, suas publicações em literaturas de vanguarda, sua insistência na felicidade apesar de toda a mudança do mundo europeu. Seu nome entra em publicações da história dos grandes homens de seu tempo.
O livro da correspondência Salomé/Freud, expõe a cumplicidade e o afeto entre os dois. Escreve Freud para Salomé:
[...] fico encantado em observar que nada se alterou nas respectivas maneiras de abordar um tema, qualquer que seja. Toco uma melodia – em sua maior parte muito simples, você lhe fornece as oitavas mais altas; separo uma da outra, você que foi separado numa unidade maior; aceito silenciosamente os limites impostos por nossa subjetividade, enquanto você presta uma atenção especial a eles. De modo geral entendemo-nos e estamos de acordo em nossas opiniões. Apenas eu tendo a excluir todas as opiniões com exceção de uma, enquanto você tende a incluir todas as opiniões juntas (PFEIFFER, 1966, p. 241).
Passeamos por leituras da história e personalidade de Salomé, porém não podemos deixar de reconhecer a coerência entre sua forma de viver, pensar e articular as ideias. Pode não ter sido grande inovadora na teoria psicanalítica, contudo sua personalidade intensa levou para a psicanálise todas as ideias que adquiriu na convivência com outros grupos.
Pereira (2016) cita a autobiografia de Salomé Minha vida (1985) para analisar a dedicação de Salomé à psicanálise: por descobrir o destino psicológico de cada indivíduo, percepção que combinava com a espontaneidade maior que o povo russo possuía, segundo Lou.
Faz-se necessário acrescentar que, diante de todas as discussões políticas e econômicas da Europa, Viena concentrava os estudiosos da alma humana incluindo Sigmund Freud e seus pares. Assim, aceitaram de bom grado aquela mulher que já conheciam por comentários, publicações e amores. O texto acima, retirado da correspondência Freud/Salomé, pontua o que percebemos em seus escritos: tentativa de unir ideias e percepções numa única construção teórica. Afinal, Salomé era a cosmopolita do grupo.
Então, Salomé...
Então Salomé, pelo que temos partilhado em nossas conversas, sua vida foi um fervilhar de amores e paixões, em todos os sentidos. Posso compreender seu sentimento de perda nessa altura de sua vida por tudo que precisou suportar e abrir mão em nome de paixões maiores que a consumiam. Não é assim a vida? Pulsionando e nos levando em direção a objetos que acreditamos nos preencher, até sermos capturados por outro brilho.
Enquanto fiéis a nós mesmos, não há como esperar compreensão de todos que nos cercam.
Sua risada é compreensível assim como o fulgor de seus olhos azuis quando escutas que fostes a manipuladora e feiticeira sedutora, sempre bela e jovem, de todas as cabeças masculinas brilhantes com quem partilhastes saber, intimidades, amor e sexo. Comparada a sua xará bíblica, que pede a cabeça de João Batista!
Monzie (1947) a incluiu no grupo de viúvas abusivas, coquete estudiosa, sereia calculista, com um cinismo frio e odioso! Seu olhar de desdém também faz sentido se pensarmos que, ao ser assim analisada, menospreza-se toda a percepção, a inteligência, a perspicácia das marcantes inteligências de seu tempo, com as quais convivestes! E você fica realmente elevada a uma posição de poder e soberania. A Eva que não resistiu ao desejo da maçã oferecida pela serpente seduz Adão desviando-o do bom caminho e sendo responsável pela expulsão do Éden. Não é pouco!
Ser uma mulher livre e independente naquela época não foi fácil! Ainda hoje não o é! A maioria de suas irmãs modernas não tem a coragem de correr atrás de si mesmas como você o fez. E mesmo hoje você seria acusada com adjetivos pesados, o que não aconteceu provavelmente, com violência, porque estavas na belle époque, e muitos experenciavam a vida sob todas as formas como você. E as pessoas eram um pouco mais elegantes que nos tempos atuais.
Você talvez não saiba, mas com o fim da Segunda Grande Guerra o mundo ficou muito puritano. Sua insistência em ser feliz continuaria incomodando. Afinal, o oficio que escolhestes investiga e trabalha com castração, objeto a, pulsão de morte, inveja e tantos outros sofreres que acometem os humanos na sua busca de bem amar e trabalhar. Como ousas ser feliz tendo de aprofundar em tantas dores!
Ah, Salomé, o ser humano ainda acredita que é preciso sofrer e fazer sofrer para se alcançar a paz da alma e do corpo. E que a alegria é sinal de pouco juízo e sabedoria, um pouco como Prof. Freud quando a conheceu, que ficou curioso com o seu desejo de querer tudo e de insistir em ser feliz! Mas na sua leitura, são assim as mulheres, múltiplas fases como a lua. Contraditórias em seus sentimentos, ambíguas em atitudes. Sua leitura de que a submissão das mulheres provoca um prazer erótico é interessante porque em tempos atuais a submissão feminina é estudada como um tempo de espera, fingindo-se de objeto, preparando e acumulando forças para uma ação futura (Soller, 2005). Hoje estudamos passividade feminina, masoquismo/submissão feminina e a dificuldade de algumas mulheres de reagir a violências físicas e verbais a que são submetidas.
O amor de seu pai e irmãos, que a idolatravam e mimavam, talvez tenha realmente possibilitado, como analisou nosso professor Freud, sua segurança na vida, na relação com os homens e no combate a desafios para alcançar seus interesses. Existem comentários sobre o texto Introdução ao narcisismo (1914) que, quando Freud se refere às mulheres belas e aos animais felinos, está se referindo a você e ao gato que o visitava em seu escritório. Pela admiração e afeto que lhe dedicava, é possível que pensasse realmente em você ao escrever aquelas passagens. Mas seja ou não por narcisismo passastes pela vida encantando e fazendo jus ao que Simone de Beauvoir vai escrever “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Você fez sua escolha, num período em que não havia escolhas para as mulheres. Recusou a maternidade, teve seus amores e satisfez suas paixões eróticas enquanto escrevia e trabalhava.
Caríssima Lou, você escolheu o oficio de psicanalista tarde em sua vida. Mas o exerceu com prazer, chamando-o de o mais belo dos ofícios! Você o exercitou com tanto afinco que Freud precisou lhe dar ordens para diminuir o número de clientes que atendia por dia. O que, típico de seu ser, você não fez. Seguiu a sua leitura do processo analítico, o analista deve usar toda a sua energia e experimentar do interior as manifestações do outro, pressupondo uma receptividade total de seu próprio inconsciente, não havendo, então, economia de forças!
Ao ler algumas de suas produções, e mesmo quando leio outros textos originais de nossos pares, me vem à lembrança o texto de Freud Moisés e o monoteísmo ([1938] 1979). Você chegou a lê-lo? Há uma passagem que me acompanha a cada vez que ouço rejeições ao novo ou algo considerado muito de vanguarda. Nesse texto, no item sobre a latência e tradição, Freud analisa a rejeição violenta que ideias novas produzem num tradicional. São rejeitadas e ficam em latência até que vão emergindo como algo novo, como se nunca tivesse sido ouvido ou vivido anteriormente (FREUD [1938] 1979).
Esta análise me faz pensar sobre a irritação de algumas pessoas quando veem suas ideias emitidas por outros, quando num tempo passado foram recusadas. Também me faz pensar e são só associações livres, cara Lou, de quantas ideias você pode ter exposto e que foram recusadas, para depois lentamente surgirem como novas. Como escrevi anteriormente neste trabalho, algumas ideias, frases, pensamentos são muito parecidas como um leitmotiv constante. E mesmo hoje, ao ler algo considerado novo, fico com a sensação de um ruído já ouvido. Mas são apenas ideias soltas, Lou, só ideias. Quem sabe, em outro momento me dedico a pesquisar esses comuns a vários pensadores de uma mesma época.
Querida Salomé, permite que eu a trate assim? Uma última notícia que me chegou pelos meios de comunicação modernos, não por missivas encantadoras como em seu tempo. A notícia é um filme alemão dirigido por Cordula Kabletz, tendo como título o apelido dado por Gillot: Lou, que estreia daqui a dois meses em terras brasileiras. No trailler você é cunhada de independente, rebelde, adorada, filósofa, escritora e por último aquele que constituiu a razão do primeiro contato entre nós: psicanalista. Grande mudança nos adjetivos que lhe deram. Podemos esperar, provavelmente, de nossos pares de oficio trabalhos sobre você e sua vida.
Gosto de imaginá-la recebendo esta notícia, soltando uma gargalhada como diziam que você fazia, virando as costas e seguindo a sua estrada.
Salomé foi um bálsamo ao meu coração conhecê-la!
Obrigada.
Referências
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Endereço para correspondência
E-mail: stetina-dacorso@ig.com.br
Recebido em: 17/11/2017
Aprovado em: 05/12/2017
SOBRE A AUTORA
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Psicóloga.
Mestre em Literatura Brasileira CESJF-PUC Minas.
Psicanalista.
Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro (CBP-RJ).
Professora Titular do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (CESJF-PUC Minas).
Presidente Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) 2010-2012 e 2012-2014.
Didata e Coordenadora da Formação em Psicanálise do Instituto Brasileiro de Psicanálise, Dinâmica de Grupo e Psicodrama-JF (SOBRAP-JF).
1 Texto apresentado no XXII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise Assim caminha a psicanálise: Indagações do século XXI. Salvador (BA), nov. 2017.