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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.55 Belo Horizonte jan./jun. 2021

 

PSICANÁLISE: CLÍNICA E TEORIA

 

Afeto, saber, virtude: os afetos em Lacan e a gaia ciência

 

Affect, knowledge, virtue: the affects in Lacan and the "gai savoir"

 

 

Bernardo Costa Couto de Albuquerque MaranhãoI, II; Guilherme Massara RochaI, III, IV

I Universidade Federal de Minas Gerais
II Escola do Legislativo de Minas Gerais
III Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
IV Society of Philosophy and Psychoanalysis

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, discutimos a abordagem do tema dos afetos por Lacan em uma passagem de Televisão ([1974] 2003). Para tanto, apoiamo-nos sobretudo nas elaborações desenvolvidas por Colette Soler em seu livro Les affects lacaniens (2011) e nas considerações feitas por Jacques-Alain Miller ([1986] 2016) no texto A propósito dos afetos na experiência analítica. O percurso aqui desenvolvido compreende três etapas. Tratamos inicialmente de retomar, em linhas gerais, os fundamentos freudianos que o próprio Lacan reivindica para sua teoria dos afetos. Em seguida, discutimos a hipótese formulada por Lacan no Seminário 20: Mais, ainda acerca da relação entre o afeto, o corpo e a linguagem. Por fim, fazemos uma leitura mais detida da passagem de Televisão na qual, em oposição à tristeza, o gaio saber é evocado por Lacan sob o estatuto tríplice de saber, virtude e afeto.

Palavras-chave: Afeto, Gozo, Lalíngua, Parlêtre, Gaio saber, Interpretação analítica.


ABSTRACT

In this article, we discuss Lacan's approach on the issue of affects in a sketch of his work "Télévision" (1974). In order to address this matter, the main references we have chosen are Colette Soler's elaborations in her book "Les affects lacaniens" (2011) and Jacques-Alain Miller's consideration in his article "Les affects dans l'expérience analytique" (1986). Our démarche comprises three steps: a brief review of the Freudian fundaments that Lacan himself claims for his own theory of affects; a discussion of the hypothesis formulated by Lacan in his seminar Encore, concerning the relationship between affect, body and language; a closer reading on the sketch of Lacan's "Télévision" in which the author evokes the gai savoir in opposition to sadness and under the triple status of knowledge, virtue and affect.

Keywords: Affect, Enjoyment, Lalangue, Parlêtre, Gai savoir, Analytic intepretation.


 

Introdução

Uma das teses fundamentais de Lacan, a de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, dá ensejo a formulações críticas – como as de Green (1982) e Laplanche – que o acusam de pretender tudo reduzir à dimensão do significante e de, por isso mesmo, excluir da experiência analítica o campo dos afetos. Já em um momento tardio de sua obra, em Televisão ([1974] 2003), Lacan responde às críticas desse teor formuladas por seus contemporâneos, e é nesse contexto que se encontra a principal menção direta de Lacan ao tema dos afetos. O argumento de Lacan nessa resposta avança no sentido de dissolver a acostumada antinomia entre o intelectual e o afetivo, ao indicar que o afeto é indissociável do pensamento e ao afirmar que o corpo é afetado precisamente porque sobre ele incide o significante. A fim de exemplificar suas teses, Lacan evoca alguns afetos, entre os quais se destaca, em oposição à tristeza, não a alegria simplesmente, mas o gaio saber.

Este artigo discute a abordagem do tema dos afetos por Lacan nessa passagem de Televisão. Para tanto, apoiamo-nos sobretudo nas elaborações desenvolvidas por Colette Soler em seu livro Les affects lacaniens e nas considerações feitas por Jacques-Alain Miller ([1986] 2016) no texto A propósito dos afetos na experiência analítica. O percurso aqui desenvolvido compreende três etapas. Tratamos inicialmente de retomar, em linhas gerais, os fundamentos freudianos que o próprio Lacan reivindica para sua teoria dos afetos. Em seguida, discutimos a hipótese formulada por Lacan no Seminário 20: Mais, ainda acerca da relação entre o afeto, o corpo e a linguagem. Por fim, fazemos uma leitura mais detida da passagem de Televisão, na qual, em oposição à tristeza, o gaio saber é evocado por Lacan sob o estatuto tríplice de saber, virtude e afeto.

 

1. Afetos freudianos

O postulado original de Freud, recorda Colette Soler (2011), é o de que os sintomas, com os afetos que os acompanham, são formações do inconsciente. No entanto, o acesso ao inconsciente não se dá pelo afeto, mas pelo deciframento. São categóricos quanto a isso os três estudos freudianos que assentam as bases do método psicanalítico: A interpretação dos sonhos, Os chistes e sua relação com o inconsciente e Psicopatologia da vida cotidiana. Em suma, diz Soler (2011, p. 3), o afeto, por mais pungente que seja para o sujeito, não é a bússola para a interpretação.

Esse dado é bem explicitado na teoria freudiana do recalcamento. O inconsciente recalcado é composto pelas representações [ Vorstellungen] e pelo representante das representações [ Vorstellungs-repräsentanz] acessíveis, em certa medida, pelo deciframento posto em ação na análise. A propósito, esse Vorstellungs-repräsentanz, diz Lacan, "equivale estritamente à noção e ao termo de ‘significante'". (LACAN, [1958] 2016, p. 62).

Mas, além dessas representações e de seus representantes, há outro elemento em jogo. Trata-se precisamente do afeto, que, desde o Projeto para uma psicologia científica até os artigos metapsicológicos de 1915, Freud designa como "quota de afeto" e situa sobre o eixo prazer-desprazer segundo uma escala em que as mudanças qualitativas derivam de alterações quantitativas. O afeto não é recalcado, isto é, não desaparece. No entanto, ele se desconecta de sua causa original e se desloca, passando de uma representação a outras. Não há, pois, oposição entre o afetivo e o intelecto, uma vez que o afeto é ligado a imagens e palavras e se subordina ao simbólico e à lógica do significante.

Contudo, o recalque não incide sobre representações quaisquer, mas sobre aquelas ligadas às experiências sexuais precoces, inadmissíveis à consciência do sujeito. É dessas representações que a "quota de afeto" se destaca, indo se deslocar por outras representações.

Como exemplos desse mecanismo encontrados na obra freudiana, Soler (2011, p. 6), cita dois casos. O primeiro deles, ainda do Projeto, é o da jovem que tem fobia de lojas e que, ao termo do trabalho analítico de deciframento baseado em suas diversas lembranças de ambientes comerciais, conclui que seu medo tem por verdadeiro objeto não propriamente as lojas, mas os homens que ali encontrou e que lhe causaram experiências sexuais perturbadoras. O segundo caso é o do Homem dos ratos, que, ante a morte de uma pessoa que lhe era quase indiferente, manifesta um luto compungido, com uma dor que a análise revela estar em deslocamento com relação à perda anterior de uma pessoa querida.

Em suma, o afeto, passando por uma série de representações, engana sobre sua origem, no dizer de Lacan. Na perspectiva lacaniana, indica Soler, o caráter subordinado do afeto em relação ao significante deriva da visada estrutural. Aquilo que Freud designa como recalcamento das Vorstellungen e do Vorstellungs-repräsentantz, corresponde, em Lacan, à substituição significante, ou seja, à metáfora; o que Freud denomina deslocamento do afeto é, no vocabulário lacaniano, metonímia do afeto. Assim, Lacan entende, como afirma em Televisão, "restituir" as teses de Freud sobre o tema.

A teoria freudiana do recalque fornece ao trabalho do deciframento uma referência técnica precisa, portanto, no sentido de esvaziar o valor epistêmico dos afetos e visar as representações a que eles se ligam. Essa teoria não proporciona, contudo, a plena medida do conceito do inconsciente freudiano. Confrontado, em sua prática clínica, com a resistência do sujeito à associação livre e à transferência, com a resistência do sintoma aos efeitos da interpretação analítica e com os fenômenos de compulsão à repetição, Freud é levado a admitir, em Além do princípio de prazer, de 1920, a hipótese da pulsão de morte.

Com relação a essa compulsão a repetir, observa Soler (2011, p. 7),

[...] o afeto, subordinado na técnica analítica, revela-se não o ser tão facilmente na experiência subjetiva.

Nesse estudo de Freud, especialmente em seu terceiro capítulo, que tem como tema principal a "neurose de transferência", ganha destaque o fenômeno da repetição no contexto da relação transferencial, sob a forma do retorno insistente dos dissabores vividos pelo paciente em sua infância, uma repetição que o próprio paciente causa, muitas vezes sem o perceber, por meio de seus atos. Como exemplo daquilo que causa esses desgostos da infância, Freud menciona as tentativas de satisfação pulsional dirigidas aos objetos do complexo edipiano nos primeiros anos de vida e os esforços da criança para gerar um bebê. Todos esses intentos, incompatíveis com a realidade por estarem em confronto com a ordem simbólica ou, não fosse por isso, por força da própria imaturidade biológica da criança, são fadados a um fracasso que deixa como marca sentimentos de inferioridade, derrota, traição e humilhação. Essas dores são inevitáveis, diz Freud, não importa quão zelosa seja a educação dada à criança.

A propósito, é de se notar que

Freud não convoca em nada a falta parental, o adulto insuficiente, a mãe má ou o pai faltoso, etc., caros aos pós-freudianos e à nossa pós-modernidade. (SOLER, 2011, p. 8).

Em seguida, Freud evidencia que a repetição de todos esses afetos negativos no contexto transferencial é movida pelas pulsões de origem que não levaram nem levarão a nenhuma satisfação que seja da ordem do prazer. O caráter repetitivo da transferência se revela então como reiteração inexorável do fracasso de origem, "como se os afetos inevitavelmente encontrados de partida constituíssem destino", comenta Soler (2011, p. 8).

Desse modo a pulsão de morte, manifestada como compulsão à repetição, articula-se à castração, figura sob a qual se declinam os afetos dessa decepção primeira e indelével, sob a forma de "rochedo" com que o sujeito se vê confrontado mesmo na experiência do final de análise.

Alguns anos mais tarde, em Inibição, sintoma e angústia, Freud ([1926] 2014) opera uma inversão no modo como concebe a relação entre angústia e recalque. Nessa virada, a angústia passa de efeito a causa do recalcamento. Sob a nova perspectiva, a angústia, doravante concebida como o primeiro dos afetos, passa a ser concebida como um derivado da situação originária de desamparo. Descrita como percepção, pelo indivíduo, da fragilidade de suas forças em face de um excesso de excitação que ele experimenta como perigoso e intratável, essa situação de desamparo é vinculada às cenas originárias de gozo, seja do sujeito, seja do Outro.

Esse tema será retomado por Freud mais de uma década depois, em Moisés e o monoteísmo, de 1939. Nesse estudo, Freud indica que os traumas angustiantes da primeira infância – excitação, ameaça de castração, sedução, cena primitiva –, encontrados na origem dos sintomas, bem como nas elaborações fantasmáticas do sujeito, são experiências e impressões,

[...] sejam experiências que tocam o próprio corpo do sujeito, sejam percepções que afetam quase sempre a vista e o ouvido. (FREUD, [1939] 1996, p. 97).

Em suma, ainda que tenham passado por diversas modificações ao longo da obra freudiana, as construções sobre o tema do afeto apontam sempre para o estatuto subordinado dessa dimensão na técnica analítica. Essas construções avançam no sentido de evidenciar o modo como os afetos derivam de sua ancoragem originária em experiências e impressões de natureza sexual e traumática. E, embora Freud talvez não tenha explicitado todas as consequências, no que concerne aos afetos, de sua tese sobre a origem traumática, elas convergem para o veredito freudiano sobre o rochedo da castração, ponto de chegada ao final da análise, recorda Soler. Ao mesmo tempo, a angústia adquire estatuto de afeto primordial. Trata-se de uma angústia que Freud qualifica como "real" e que é ao mesmo tempo efeito e causa. Efeito da excitação excessiva advinda dessas primeiras experiências e impressões sexuais, ante as quais o indivíduo se percebe em situação de desamparo; causa do recalcamento, do qual derivam os demais afetos e se originam os sintomas.

Entre esses afetos derivados, Freud destaca a "angústia-sinal", que é, como observa Soler (2011, p. 11),

[...] ao mesmo tempo memorial e advertência: memorial do primeiro trauma e advertência de um perigo iminente.

Em qualquer caso, destaca a autora, o afeto é efeito.

Na origem, efeito do desamparo sexual, está a angústia; depois, quando o recalcamento fez seu trabalho graças à angústia precisamente, efeito do retorno do recalcado no desprazer do sintoma. (SOLER, 2011, p. 11).

Desse modo, Freud postula a origem traumática dos primeiros afetos e o vínculo entre o sofrimento neurótico e a sexualidade, dos quais dá testemunho a repetição dos desgostos da infância no contexto da transferência. E é sobretudo a partir da constatação clínica dessa compulsão a repetir que Freud elabora sua concepção do além do princípio do prazer e estabelece como ponto de chegada da experiência analítica o encontro com a castração.

Dito de outro modo,

[...] a análise fracassa ante a repetição como a maior manifestação clínica do além do prazer. (SOLER, 2011, p. 11).

O limite posto por Freud no horizonte do final de análise sob a figura do rochedo da castração será, como se sabe, franqueado por Lacan, à medida que sua obra vai se direcionando para uma abordagem do real. Esse processo começa a se delinear, em grande medida, no estudo lacaniano do tema da angústia, com as primeiras elaborações em torno do objeto a. Em seguida, as mutações por que passa a concepção desse objeto – que de causa de desejo passa a ser também mais-de-gozar –, articuladas à formulação de conceitos como gozo, lalíngua, parlêtre, sinthome, marcam essa progressiva aproximação da obra lacaniana ao campo do real, com amplas consequências sobre o modo de conceber o final de análise.

 

2. Afeto, corpo, linguagem: a hipótese lacaniana

Na abertura do Seminário 10: A angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) adverte que não fará "uma teoria geral dos afetos", porque, em suas palavras, "não somos psicólogos", isto é,

[...] não fazemos um discurso sobre a psique, mas sobre a relação do sujeito com o significante. (MILLER, [1986] 2016, p. 108).

Contudo, no trecho de Televisão que nos interessa mais diretamente – mais de uma década, portanto, após o seminário sobre a angústia –, Lacan ([1974] 2003) desenvolve, pode-se dizer, uma pequena teoria dos afetos.

Embora continue a recusar qualquer abordagem psicológica ou psicofisiológica do tema, Lacan admite que é preciso "passar pelo corpo" para pensar o afeto e que os afetos são todos acompanhados de alguma manifestação corporal, a exemplo da descarga de adrenalina por ele mencionada.

Reconhecer que o afeto passa pelo corpo, que ele perturba as funções corporais, deixa em aberto a questão de saber quem é o afetante e quem é o afetado. Acredita-se de bom grado que o afetado é o sujeito, dado que é ele quem experimenta "toda a paleta das paixões humanas". (SOLER, 2011, p. 49).

Por outro lado, é no real do corpo – ou seja, no corpo que abriga o gozo, no corpo pulsional, suscetível aos sintomas – que incidem os efeitos da linguagem, os quais repercutem no sujeito e são por ele vividos como satisfações ou insatisfações. Pode-se dizer, então, que o afetado é antes de tudo o corpo, e não apenas o corpo em sua consistência imaginária permeada pelas significações e normas dos discursos que circulam na cultura, mas principalmente o corpo em sua capacidade de gozar, o corpo como substância gozosa.

O afetante é, pois, a linguagem, da qual o gozo leva a marca. Na espécie humana, o corpo é civilizado por intermédio da linguagem. Sob essa perspectiva, comenta Soler, são generalizáveis os fenômenos de conversão postos em evidência por Freud em sua abordagem da histeria. "O corpo se corporiza de maneira significante", diz Lacan ([1972-1973] 1985).

Além disso, comenta Soler (2011, p. 51),

[...] os gozos do falante são gozos convertidos para a linguagem – dito de outro modo, afetados pela cifração do inconsciente, sendo o afetado o indivíduo corporal em sua carne. (Grifos da autora).

Essa discussão tem por pano de fundo a hipótese proposta por Lacan ([1972-1973] 1985) no Seminário 20: Mais, ainda, acerca da relação entre a linguagem e o corpo: o significante afeta o indivíduo corporal que, então, se faz sujeito.

Em outras palavras, deriva da linguagem um "efeito sujeito". Efeito de perda, desde logo, no processo de constituição do sujeito, com um menos-de-gozar resultante da incidência da lei simbólica – perda compensada, sempre parcialmente, pela proliferação dos objetos mais-de-gozar.

Desse primeiro efeito sujeito são solidários os efeitos da linguagem sobre o real do corpo que dizem respeito à regulação do gozo no sintoma. Assim, se, por um lado, a linguagem, em relação ao gozo, produz um esvaziamento, por outro, ela abre ao sujeito possibilidades de regulação desse gozo. A linguagem constitui, sob essa perspectiva, um "aparelho" do gozo, como se verifica no sintoma, que conjuga os elementos verbais do inconsciente e a substância gozosa do corpo.

Um dos desdobramentos dessa hipótese se condensa na substituição do termo "sujeito" pelo termo " parlêtre" no ensino de Lacan. Essa nova designação, comenta Soler (2011, p. 54-55), é proposta

[...] para dizer que o operador linguagem, pela via da palavra, toca na substância gozosa não somente para negativá-la, mas para regulá-la e para positivá-la de outro modo.

Verifica-se, de modo correlato, uma mudança na própria concepção do inconsciente, em que o inconsciente decifrado, estruturado como uma linguagem, cede lugar ao inconsciente que é mistério do corpo falante. No limite, dissolve-se a heterogeneidade entre a linguagem e o gozo, que passam a constituir um amálgama:

[...] coalescência do verbo e do gozo, nos dois sentidos: gozo do corpo por efeito do simbólico sobre o real do vivente, mas também gozo do próprio verbo. (SOLER, 2011, p. 54).

O gozo passa, portanto, ao significante por ele investido, e goza-se do inconsciente. Eis aqui um passo novo, pois, embora Lacan tenha, bem cedo em sua obra, reconhecido que a linguagem produz efeito sobre o gozo, a dimensão da linguagem permanecia até então heterogênea à dimensão do gozo.

No entanto, essas duas dimensões passam a ser concebidas como homólogas quando Lacan formula a concepção de lalíngua, "aparelho de condução do gozo" (SOLER, 2011, p. 56), e admite a possibilidade de "gozar do inconsciente". (LACAN, [1972-1973] 1985).

Em suma, na hipótese formulada por Lacan, a dinâmica do afeto envolve três termos: a linguagem, o corpo e o sujeito. A linguagem é o afetante que, apoiando-se no corpo de gozo por ela afetado, passa do simbólico ao real. Essa afetação tem como efeito um sujeito, que é o afetado pelo estatuto desse gozo.

Nas palavras de Soler (2011, p. 57):

O afeto se desdobra então entre gozo afetado pelo significante – essa seria uma possível definição do sintoma – e um sujeito correlativamente afetado sobre o eixo satisfação-insatisfação. Um sujeito como tal não tem nada a ver com o gozo, diz Lacan, mas pelo fato de gozar do inconsciente, ele próprio é afetado por uma "outra satisfação", diversa de suas necessidades, ligada ao que é dito e não dito, como se, por uma espécie de capilaridade, o gozo ferido obtivesse sua revanche ao se insinuar no espaço do verbo.

Dito de outro modo, o gozo do ser falante está não apenas nos sintomas, tomados como "acontecimentos de corpo", mas em toda parte; não apenas na vida de vigília, mas também no sonho; não apenas nos efeitos de afeto próprios da canção e da poesia, mas na fala cotidiana, na tagarelice – o que nos leva a considerar sob um prisma renovado o que está em jogo na associação livre. A própria materialidade das palavras – sua moterialidade, dirá Lacan – é objeto de gozo a cada vez que se diz algo.

Como observa Soler (2011, p. 58):

Fora de questão, portanto, opor palavra e gozo e imaginar que se possa, ao falar, reduzir o gozo em prol do puro desejo. Deslocar o gozo, sim; fixá-lo, também – mudar, pois, sua economia – mas reduzi-lo, não.

O dispositivo analítico tem por horizonte operar modificações na economia do gozo de um sujeito, ao propiciar que ele construa a seu modo arranjos sintomáticos novos, mais consoantes com a tônica do desejo. Ganha destaque nesse processo, em sintonia com a ética do bem-dizer, que norteia a práxis psicanalítica, a singularidade da invenção de que é capaz cada um, às voltas com sua própria história.

Contudo, a economia de gozo é também função da História maiúscula: há sintomas e afetos comuns a uma dada época, ao mesmo tempo que parece haver algo de trans-histórico nas paixões humanas. Os discursos que em cada época presidem a civilização dos corpos e a normatização das relações de indivíduos, classes e povos uns com os outros inscrevem-se na realidade social e no inconsciente, como indica o aforismo lacaniano "o inconsciente é a política".

Ainda no que concerne à ética, é o caso de destacar que, embora o afeto seja concebido como efeito, não se trata de um efeito automático, mas de uma resposta que, por ser variável, modulável, põe em jogo a responsabilidade do sujeito.

A esse respeito, comenta Soler (2011, p. 63):

Os afetos engajam a ética do sujeito [...] como uma posição em face do real – e não em face dos valores do Outro como se crê comumente – da parte de um ser que sofre os efeitos da estrutura. Ou seja, a estrutura não faz lei, somente condição necessária que não cessa de se escrever, ao passo que a condição complementar está do lado do sujeito.

Ao reafirmar a inscrição dos afetos no campo da ética, em Televisão , Lacan ([1974] 2003) convoca Dante e Spinoza, os quais, cada um a seu modo, qualificam eticamente as paixões e reconhecem nos afetos da tristeza, notadamente, uma falta, um pecado. Ao retomar essa perspectiva herdada da tradição, Lacan o faz em termos laicos e engaja tanto o plano da ética individual quanto o da ética a que se vincula o discurso analítico, conforme trataremos de evidenciar a seguir.

 

3. Afeto, saber, virtude: oposto à tristeza, o gaio saber

Desde o Seminário 10: A angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) já indica que o campo dos afetos é atinente à relação do sujeito com o Outro, relação articulada pelo significante. A esses dois termos, o significante e o Outro, é preciso, diz Miller ([1986] 2016, p. 108), acrescentar um terceiro: o gozo. Sob essa perspectiva, os afetos derivam não de uma relação direta do sujeito com o mundo, mas de uma relação mediada pelo desejo, e consistem em efeitos de gozo produzidos pela linguagem no corpo desse sujeito.

Em síntese, diz Miller ([1986] 2016, p. 109):

[...] o que Freud denomina a separação entre a cota de afeto e a ideia se torna, para nós, a articulação do significante e do objeto a/i>.

Em Televisão, Lacan ([1974] 2003) inscreve expressamente os afetos no campo da ética. Ao tratá-los como "paixões da alma", na esteira de Platão, Aristóteles e Tomás de Aquino, afasta-os das visadas psicológicas e psicofisiológicas próprias da contemporaneidade e, sem deixar de reconhecer que eles têm uma ancoragem no corpo, toma os afetos em consideração a partir da relação que eles possam guardar com o problema do bem, ou mesmo do soberano bem.

Não se trata, contudo, de transportar para a psicanálise a questão do soberano bem, tão cara ao pensamento antigo e medieval, mas de indicar que "é nessa abordagem tradicional da questão que a psicanálise encontra sua orientação" (MILLER, [1986] 2016, p. 109).

É eloquente, quanto a essa consideração dos afetos sob uma perspectiva ética, o exemplo da oposição evocada por Lacan entre a tristeza e o gaio saber. Essa oposição é amplamente lastreada nas doutrinas médicas e filosóficas da Antiguidade e da Idade Média (AGAMBEN, [1977] 2007), que associam a tristeza ao pecado mortal da acídia – posição demissionária do sujeito em face do soberano bem – e reconhecem no gaio saber – ramo da arte do bem-dizer – um remédio para esse mal que nem a religião, nem a filosofia, nem a medicina sabem curar.

Desse par de opostos herdado da tradição, Lacan ([1974] 2003) faz uma apropriação à sua maneira. A tristeza constitui para Lacan um problema ético – e é para dar evidência a esse ponto que, nessa passagem de Televisão, ele recusa expressamente o termo "depressão", próprio ao campo semântico de uma abordagem psicofisiológica dos afetos. Com apoio em Dante e em Spinoza, caracteriza a tristeza como "lassidão moral", isto é, como um abandono, por parte do sujeito, em face de um dos deveres éticos fundamentais.

No entanto – e aqui se destaca o aspecto particular da leitura proposta por Lacan –, esse dever ante o qual o sujeito se omite não é, como quereria o filósofo seiscentista, o de bem-dizer o supremo bem divino, mas o de encontrar seu próprio lugar na estrutura, ou seja, sua posição em face do inconsciente (LACAN, [1974] 2003) e, consequentemente, bem-dizer a causa do desejo (TEIXEIRA, 2008). Esse dever, em sua versão lacaniana, também se enquadra na ética do bem-dizer e engaja a relação entre o saber e o gozo.

Nesse sentido, observa Miller ([1986] 2016, p. 111):

A ética do bem-dizer consiste em discernir, em circunscrever, no saber, aquilo que é impossível de dizer. [...] Quando o saber é triste, ele é impotente para pôr o significante em ressonância com o gozo; esse gozo permanece exterior.

Já no que concerne à gaia ciência, virtude de um saber alegre que se encontra em oposição ao vício do saber faltoso da acídia-tristeza, Lacan a considera não somente como a arte de entrelaçar com engenho as sílabas às notas musicais e as palavras umas às outras, mas também como uma arte de "gozar do deciframento" (LACAN, [1974] 2003, p. 525), um modo de dar lugar ao gozo no exercício do saber, de propiciar alguma reconciliação entre o saber o e gozo.

Como observa Miller ([1986] 2016, p. 110-111),

[o] gaio saber admite a extimidade do gozo, ele admite que esse gozo não é, decerto, absorvível no saber, mas que tampouco lhe é exterior. Notemos, quanto a esse aspecto, que o saber alegre não é o saber onipotente, mas aquele que faz passar da impotência ao impossível. A tristeza é a impotência [do saber], ao passo que o gaio saber é o impossível do saber. Por essa via, ele toca no real.

De que maneira o saber alegre toca no real? As palavras de Lacan ([1974] 2003, p. 525), no trecho de Televisão em que ele se refere ao gaio saber, propiciam o vislumbre de uma resposta a essa questão:

No polo oposto da tristeza existe o gaio saber [ gay sçavoir ] o qual, este sim, é uma virtude. Uma virtude não absolve ninguém do pecado – original, como todos sabem. A virtude que designo como gaio saber é o exemplo disso, por manifestar no que ela consiste: não em compreender, fisgar [piquer] no sentido, mas em roçá-lo tão de perto quanto se possa, sem que ele sirva de cola para essa virtude, para isso gozar com o deciframento, o que implica que o gaio saber, no final, faça dele apenas a queda, o retorno ao pecado.

A partir desse dito de Lacan, é possível, ainda, considerar que o gaio saber fornece um paradigma para a escuta analítica: "não compreender, fisgar no sentido, mas roçá-lo tão de perto quanto se possa". Essa divisa nos parece articulável, do lado da interpretação analítica, àquilo que Éric Laurent (2018) recorta do ensino de Lacan sob a forma da interpretação que se liga menos ao conteúdo semântico de determinado significante que a "um efeito de sentido real" (LAURENT, 2018, p. 70) produzido pela maneira como esse significante é veiculado pelo analista.

Em suas palavras:

Essa interpretação não é o acréscimo de um significante dois com relação a um significante um. Ela não visa à concatenação ou à produção de uma cadeia significante. (LAURENT, 2018, p. 71).

Trata-se, como explica Laurent mais adiante nesse mesmo texto, de um significante que seria novo em razão de sua capacidade de desencadear um despertar, o qual se conecta "à produção de um efeito de sentido real como produção de um evento de corpo". (LAURENT, 2018, p. 71).

O gaio saber se afigura, portanto, no ensino de Lacan, ao mesmo tempo como afeto, saber e virtude. Sob o prisma do afeto, o gaio saber se apresenta como alegria, em posição de mediania entre, de um lado, a tristeza-acídia que acompanha o abandono, pelo sujeito, da relação com a causa de seu desejo e, de outro, a mania que advém de uma recusa do inconsciente.

Considerado como saber, corresponde a um saber-fazer que – a partir da experiência analítica e de uma conjugação do saber do analista com o dos poetas e trovadores –, cada sujeito, à sua maneira, inventará para se virar com o real do gozo de lalíngua.

Como virtude, por fim, o gaio saber é aquele que reconhece que esse real impõe um limite ao que se pode saber e dizer, e inscreve a relação entre o saber e o gozo no campo de uma ética do bem-dizer.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Bernardo Maranhão
E-mail: maranhao.bernardo@gmail.com

Guilherme Massara Rocha
E-mail: massaragr@gmail.com

Recebido em: 10/06/2021
Aprovado em: 25/06/2021

 

 

SOBRE OS AUTORES

Bernardo Costa Couto de Albuquerque Maranhão
Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).
Mestre em Direito pela PUC Minas.
Doutorando em Estudos Psicanalíticos no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor na Escola do Legislativo de Minas Gerais.

Guilherme Massara Rocha
Mestre em Filosofia/UFMG.
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP).
Psicanalista.
Professor-Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Áreas de Investigação: Psicanálise (teoria e clínica) e Filosofia (Ética, Estética e Política).
Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (FAFICH-UFMG).
Membro do GT - Psicanálise, Política e Cultura/ANPEPP.
Membro do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia da UFMG.
Filiado à International Society of Philosophy and Psychoanalysis (SIPP) e à Fédération Européenne de Psychanalyse (FEDEPSY).

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