No final de uma sessão, faço a seguinte intervenção a um paciente de 62 anos: “Sua filha teve a coragem que você não teve com o seu pai”. Após dizer isso, fiquei incomodado. Foi rápido demais, sem elaboração nenhuma, direta e, sobretudo, precoce, porque se tratava de um paciente de apenas dois meses de análise e com a frequência semanal. No final de semana, por vezes, me deparei pensando sobre o que aconteceu e me senti o difamado analista de Bagé. Somado ao receio de que o analisando pudesse abandonar o tratamento recém-iniciado, me deparei com interrogações, como: De que terá sido uma interpretação? O que é uma interpretação.
A interpretação é uma das principais formas de intervenção na clínica e há particularidades quanto a seu uso: quando, onde e como deve ser utilizada. Para aqueles que vêm de outras áreas do conhecimento, a interpretação deve ser compreendida que não é somente, mas também sobre a linguagem. Nas limitações de espaço deste texto, o objetivo é entender certas nuances dessa ferramenta de fundamental importância na clínica.
Sobre a estrutura lógica que possibilita que a linguagem comunique algo, por si só, já é bastante complexa. Em Da interpretação,Aristóteles (2013) elabora as teorias do uso da linguagem enquanto possibilidade de manifestação das coisas, não do pensamento. O filósofo compreende a linguagem como um instrumento convencional que, por meio dos símbolos, de signos, procura a natureza das coisas. Porém, dada a variedade de símbolos necessária para essa qualificação, torna-se, ao mesmo tempo, a solução e o entrave devido a sua diversidade e polifonia:
Há os sons pronunciados que são símbolos das afecções da alma, e as coisas que se escrevem que são os símbolos dos sons pronunciados [...] nem a escrita é a mesma para todos, nem os sons pronunciados são os mesmos (Aristóteles, 2013, p. 3).
Nessa obra, o filósofo pontua que palavras sozinhas não revelam muita coisa e que, portanto, precisamos de outras para que haja algum significado, como os verbos que permitem ligar dois nomes e definir uma ação pela linguagem. Ambos os nomes isolados não são nem falsos, nem verdadeiros, certos ou errados, são apenas nomes. Outras definições, além do nome e do verbo, fazem parte dessa obra de Aristóteles, como a negação, a afirmação, a declaração e, por fim, o discurso.
Contudo, o nosso psiquismo não é somente organizado em uma linguagem que, estruturada por uma lógica de comunicação, procura manifestar a essência da natureza das coisas, como introduziu Aristóteles. A interpretação em psicanálise é, por outra via, embora a linguagem faça parte desse quadro, “[...] a função da interpretação é exatamente a de produzir a inteligibilidade desse sentido oculto” (Roza, 2009, p. 63). O que estaria oculto?
A arte pode nos indicar outros caminhos de interpretação dessa linguagem logicamente estruturada que oculta algo. Finicius Revém, de Joyce (2004), enquadra nomes desarticulados de verbos, falsos e verdadeiros, certos ou errados, discurso e declarações próximas daquilo que, manifesto pela linguagem escrita, tenha significações que carecem de outras formas de interpretação, que não a lógica argumentativa. Se não for assim, com essa possibilidade de outras interpretações, como compreender esse texto, mesmo dentro dos limites da lógica interpretativa aristotélica:
[...] depois desse copcioso, pelegrino, marco-polado, vespuciado levanta o mento, as orelhas, os olhos da escuridão desde o tomo de Tito Uvido e, (mira!), quão prazível, irenicamente todas as dunas creposculares gladíolo glamorosas sestendem afora nas planícies de nossa freudlândia! (Joyce, 2004, p. 53).
É possível uma interpretação desse texto? Logicamente, parece que sim, que essa frase não tem sentido, não somente por sua construção como também por inúmeras palavras que não existem. Porém, algo está sendo dito, supondo que a linguagem tentaria, por convenção, dizer algo daquele que diz, algo de sua essência, mesmo que pareça que não exista sentido.
Essa obra, que está construída inteiramente dessa forma e não exclusivamente nessa frase, é possível aproximá-la de um sonho no qual elementos, imagens, sensações e percepções coabitam e criam uma narrativa com um mínimo de significação, mesmo que absurdas. Por esse motivo, a interpretação psicanalítica se inicia em Freud, a partir de suas elaborações sobre o sonho visando o que está oculto, buscando as formas de manifestação do inconsciente. Dessa forma, as interpretações psicanalíticas possíveis do texto de Joyce partem da hipótese de que nem mesmo o autor sabe qual a motivação, o sentido e o significado do que foi dito.
Nos estudos iniciais de Freud sobre a histeria, o termo “interpretação” não estava bem delineado (Laplanche, 2001, p. 246). Sua função na dinâmica do tratamento enquanto técnica psicanalítica amadurece, portanto, a partir das investigações acerca de A interpretação dos sonhos (1900). O termo “interpretação” [Deutung] tem o sentido de explicação da significação de algo. É possível perceber por que a interpretação dos sonhos tem uma importância fundamental no entendimento do significado do termo “interpretação”. Em resumo, o que resta do conteúdo latente de um sonho, aquilo que foi sonhado, por passar pela consciência do indivíduo, torna-se o conteúdo manifesto, passando a ter um sentido, mas não há uma significação. A interpretação, portanto, tem a função de desvendar essa significação [Bedeutung] do que o sonho tenta trazer à tona.
A condensação, o deslocamento, a elaboração secundária e a simbolização são leis inconscientes que regem as produções oníricas nos sonhos (Sharpe, 1971, p. 22). Atos falhos, lapsos, certas resistências, chistes e associação de ideias seriam as formas de manifestação do inconsciente, além dos sonhos. Dessa forma, a interpretação que buscava, primeiramente, a significação dos desejos proibidos e do conteúdo recalcado nos sonhos, originários do inconsciente, alcança o status de uma ferramenta técnica para a regra fundamental e diabólica de Freud, segundo Green, que é a associação livre “[...] a regra da associação livre é uma regra diabólica [...] a pobre criatura não sabe a que está se metendo” (Green, 1990, p. 19). Logo, são duas as condições, até agora, para que a interpretação seja realizada: a existência do inconsciente e a condição de fazer valer a regra que propicie sua manifestação, a associação livre. O inconsciente pulsional permeia o trabalho do pensamento, do representável e do irrepresentável.
O termo “analisar”, segundo Greenson (1981, p. 40), significa uma expressão que compreende técnicas que têm como finalidade melhorar a compreensão interna do paciente. Para isso, o analista faz uso da teoria, da intuição e, sobretudo, do seu próprio inconsciente. O analisar se dá por meio de quatro passos não necessariamente na ordem a seguir: confrontação, esclarecimento, interpretação e elaboração. Para Greenson, (1981), a interpretação é o instrumento único e decisivo, e tem como objetivo a máxima de Freud: tornar consciente um fenômeno inconsciente, “[...] tornar consciente o significado, fonte, história, modo ou causa inconsciente de um determinado fato psíquico” (Greenson, 1981, p. 40). São procedimentos que contribuem para que a interpretação seja pronunciada, para que ela seja eficiente, mas há o momento adequado, que produz efeito. Como se faz e como saber se a interpretação causou algum efeito?
Enquanto método interpretativo, Quinet (2012, p. 54) cita a interpretação como equívoco. Ressalta que o termo “enunciação” é expresso pelo conjunto corpo e fala, portanto, ao tom de voz, ao olhar, ao afeto do que se diz, enquanto o enunciado é aquilo que foi dito, mas muitas vezes não é assimilado. A teoria de Lacan (Quinet, 2012) sobre a interpretação vai contra o sentido de um discurso todo articulado de um sujeito da neurose, a partir de seu enunciado. O analista tem como objetivo quebrar a cadeia de significantes, que é o nome que dá sentido às coisas. Esse procedimento técnico é possível por meio da pontuação. Um ponto final, uma vírgula, reticências, um corte, uma interrogação, uma interjeição, uma citação e a suspensão são formas de pontuar. Para exemplificar, um corte pode ser de uma palavra, uma frase, um raciocínio, bem como o tempo da sessão. As reticências, por sua vez, são enunciadas por via de frases inacabadas. As citações ocorrem quando o analista usa palavras que o próprio analisando mencionou. Sendo assim, o gesto, um silêncio, o tom de voz e a verbalização são elementos de enunciação que constituem a interpretação pelo analista, indicando que é possível quebrar o sentido (significantes e significados) ao qual o analisando está vinculado inconscientemente por via dessa pontuação. E esse é o objetivo da interpretação. A interpretação enquanto equívoco serve, portanto, para provocar que as ambiguidades de manifestação do inconsciente apareçam, para que os paradoxos da linguagem se manifestem, por exemplo “eu gosto de você, por isso vou me afastar enquanto é tempo”. Os equívocos, desse modo, produziriam essa possibilidade de adentrar o campo do inconsciente acionado por fantasias provocadas no analisando no espaço transferencial que o analista adentra por via da interpretação. Ressalta-se, logo, outro elemento fundamental da clínica: a transferência.
A interpretação parte do analisando e atravessa ambos (Nasio, 1999, p. 150; Quinet, 2012, p. 55). O analista tem o papel de embaixador daquilo que diz, sem saber que diz. O inconsciente do analista é o agente dessa interpretação; “[...] ele não tem o alcance do lugar, do destino dessa palavra” (Nasio, 1999, p. 151). Embora não saiba o que diz, sabe a posição em que se encontra. São quatro as possíveis: a de mestre, a universitária, a histérica e a de analista. “[...] o analista sabe o que faz, isto é, reconhece os movimentos, as variantes, os deslocamentos que se produzem na sua posição” (Nasio, 1999, p. 151).
Dessa forma, as interpretações podem ser compreendidas quanto a sua finalidade como classifica Zimerman (2010, p. 385): (a) compreensivas, que fortaleçam o vínculo, principalmente, no início de um tratamento; (b) integradoras, que promovam o resgate de valores capacidades e identificações atrofiadas; (c) instigadoras, que propiciem novos vértices de percepção; (d) disruptoras, que vão ao encontro das fantasias narcisistas; (e) nomeadoras, que auxiliem na simbolização daquilo que não tem nome; e (f) reconstrutoras, que consigam costurar o presente com o passado.
Todavia, é o efeito dessa intervenção na forma de uma interpretação que irá determinar se ela foi efetiva ou não,
[...] se mede por seus efeitos, pela modificação que introduz na posição do sujeito, do seu discurso ou de seu sintoma. Ela deve ser supressiva, concisa e cair no tempo exato (Dunker, 1966, p. 18).
Pode-se perceber, na própria sessão, com o silêncio do analisando, com expressões como “nossa, não tinha pensado nisso”; ou, numa outra sessão, a partir de uma elaboração do analisando sobre a última “sabe, eu estava pensando naquilo que você falou”.
Nos primórdios da clínica psicanalítica, a interpretação visava a primeira tópica (Ics, PsC e Cs) e, até os dias atuais, esse objetivo de desvelamento não se dissipou. Todavia, a interpretação sofreu modificações, embora preserve a sua intenção inicial, por exemplo, para com resistências ao analisando, que se denomina a interpretação das resistências (Fenichel, 1981, p. 21; Greenson, 1981, p. 121). Atualmente, a interpretação visa a produção de insights (Zimerman, 2010 p. 379) que produzam mudanças e transformações nos problemas psíquicos e afetivos do sujeito.
Retomando a indagação inicial, a partir da autocrítica acerca de minha precoce intervenção, um mês depois, o paciente me disse:
Sabe, aquilo que você falou para mim aquela vez, que minha filha teve a coragem que eu não tive com o meu pai? Você tem razão. Sabe, eu fiquei pensando, fiquei com muito orgulho dela, ela me enfrentou! Eu realmente não tive a coragem que ela teve.