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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.57 Belo Horizonte jan./jun. 2022  Epub 14-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n57a10 

PSICANÁLISE: CLÍNICA, TEORIA E HISTÓRIA NO BRASIL

O silêncio dos torturadores: a neutralidade e a violência psíquica

The silence of torturers: neutrality and psychic violence

Jhéssyca Dias de Carvalho1 

Luan Sampaio Silva2 

1Psicóloga. Pós-graduada em atenção à saúde mental pela Universidade Estadual do Pará (UEPA) e Fundação Pública Hospital de Clínicas Gaspar Vianna (FPHCGV). Pós-graduada em fundamentos da psicanálise pela Faculdade Inspirar. Servidora pública estadual lotada na Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAP). Servidora Pública Municipal lotada na Secretaria Municipal de Saúde e Meio Ambiente (SESMA). E-mail: jhessycadias@hotmail.com

2Psicanalista. Psicólogo. Professor de psicanálise em cursos de graduação e pós-graduação. Doutorando em psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em psicologia na linha de psicanálise, teoria e clínica pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Formação em psicanálise pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA/CBP). Especialista em psicanálise com crianças e adolescentes: teoria e clínica. Supervisor clínico de psicanálise. E-mail: psi_luansampaio@hotmail.com


Resumo

O presente artigo surge com a intenção de relembrar um momento doloroso da história do País, em que o uso da violência, nas suas diversas formas, funcionava como um dos principais meios de lidar com a diferença ou os diferentes. Rememorar essa história é uma forma de resistir àquilo que insistentemente retorna em outros períodos, caso não se tenha a oportunidade de elaborar seu conteúdo. Através da pesquisa em psicanálise, que abrange a exploração histórica, pretende-se problematizar o conceito psicanalítico de neutralidade e as repercussões no uso que alguns psicanalistas e instituições psicanalíticas fizeram dessa nomenclatura para perpetuar e legitimar o sofrimento psíquico no período do regime ditatorial no Brasil e nos anos que se seguiram. A posição por eles assumida esteve vinculada à tentativa de mascarar a verdadeira face da violência psíquica ocorrida nos porões da ditadura e se amparava em uma visão deturpada do conceito de neutralidade.

Palavras-chave Neutralidade; Psicanálise; Ditadura; Violência

Abstract

This article appears with the intention of remembering a painful moment in the country’s history in which the use of violence, in its various forms, functioned as one of the main means of dealing with difference and/or those who are different. Remembering this history is a way of resisting what insistently returns in other periods, if one does not have the opportunity to elaborate its content. Through research in psychoanalysis, which encompasses historical exploration, it is intended to problematize the psychoanalytic concept of neutrality and the repercussions on the use that some psychoanalysts and psychoanalytic institutions made of this nomenclature to perpetuate and legitimize psychic suffering in the period of the dictatorial regime in Brazil and in the years that followed. The positions taken by them were linked to attempts to mask the true face of the psychic violence that took place in the basements of the dictatorship and that was supported by a distorted vision of the concept of neutrality.

Keywords Neutrality; Psychoanalysis; Dictatorship; Violence

Introdução

Somos filhos da época

e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas

diurnas e noturnas,

são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,

teus genes têm um passado político,

tua pele, um matiz político,

teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,

o que silencia tem um eco

de um jeito ou de outro político.

SZYMBORSKA, W. Filhos da época.

Com este trabalho, pretende-se apresentar uma forma de resistência por meio da palavra, na medida em que pode suscitar reflexões sobre questões de ordem institucionais, sob as quais interesses escusos faziam com que permanecessem encobertas. Discutir a chamada neutralidade científica a que a psicanálise tanto se reportou, seja para se valer dela, seja para criticá-la ao longo dos anos, é uma forma de resistir àquilo que censura, silencia e tortura.

A história do Brasil é atravessada por inúmeras violências que silenciaram, exploraram e oprimiram povos marginalizados sob a premissa da colonização, da escravidão, além de mais de duas décadas de repressão ditatorial. Não se pode deixar no esquecimento uma história tão dolorosa. Afinal, quando não é possível tratar de determinadas questões, seu conteúdo retorna e se manifesta por outras vias, restando a sua repetição ao longo do tempo.

Partindo desse pressuposto, esta pesquisa não se configura como um trabalho neutro e deve possibilitar ao leitor que assuma uma posição crítica diante de assuntos que perpassam pela violência, psicanálise, ditadura e tantos outros que se relacionam com estes, considerando que a teoria e a clínica psicanalítica não se sustentam em ambientes antidemocráticos e que tal posição nada tem a ver com o lugar de neutralidade que o psicanalista deve ocupar primordialmente na relação transferencial.

Ora, se o conceito de neutralidade está direcionado à questão da transferência, que não haja, então, justificativa para se adotar uma posição de isenção em uma clínica que desconsidera as questões políticas que permeiam os sujeitos e a própria clínica, e que não se atenta para o fato de que o psicanalista também é sujeito que circula na pólis e por ela é atravessado. Isentar-se de assumir um posicionamento que considere a dimensão política seria muito mais valer-se de um silenciamento, o qual pode ter como uma de suas consequências o furto de algo crucial para a realização do trabalho do psicanalista: a palavra.

Nesse sentido, como é possível que a escuta do psicanalista opere efetivamente em um cenário atravessado pelo autoritarismo e pela intolerância às diferenças? Seria esse cenário uma ameaça ao lugar que o psicanalista ocupa na relação transferencial, que é justamente um lugar que suporta e sustenta o discurso do paciente para que sua palavra circule livremente por meio dessas mínimas condições?

Partindo dessas discussões introdutórias, objetiva-se problematizar o conceito psicanalítico de neutralidade, bem como suas repercussões no que tange ao uso dessa categoria por alguns psicanalistas e entidades de psicanálise no período em que esteve vigente o regime civil-militar no Brasil.

A psicanálise no Brasil dos anos 1960

No Brasil, a psicanálise surgiu no século XX, por meio de médicos, como Juliano Moreira e Franco da Rocha, que se interessaram pela teoria psicanalítica e passaram a proferir conferências e outros trabalhos, que permaneceram até então somente no campo teórico ou especulativo, sem adentrar a prática clínica. Por esse motivo, ambos os médicos foram considerados os precursores da teoria freudiana no país (Salim, 2010).

Já os pioneiros da psicanálise em território brasileiro foram aqueles que, desde o início, se interessaram pela prática clínica, tendo como referência principal o psiquiatra paulista Durval Bellegarde Marcondes, que introduziu as ideias psicanalíticas em sua clínica, já no ano seguinte ao de sua formação (Salim, 2010).

De acordo com Salim (2010), a primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise objetivou tanto a divulgação da psicanálise no Brasil quanto a criação de um espaço de debates científicos entre os membros participantes, tendo permanecido ativa por aproximadamente três anos e se extinguiu após esse período, em decorrência da discordância por parte dos seus membros em relação ao sistema de formação psicanalítico que Durval passou a considerar.

Já no estado do Rio de Janeiro, o interesse médico pela psicanálise surgiu a partir de 1940, por meio de um movimento de psiquiatras liderados por Danilo Perestrello, que desejavam qualificar-se como psicanalistas. Após diversas tentativas de trazer um analista didata para o Brasil, em 1949, o psicanalista alemão Werner Kemper aceitou o convite, iniciando a análise de alguns candidatos (Salim, 2010).

No ano 1953, o grupo foi finalmente reconhecido pela International Psychoanalytical Association (IPA) no Congresso Internacional de Londres. Dois anos mais tarde, no Congresso Internacional de Genebra, esse grupo foi declarado como Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SBP-RJ). Por conseguinte, o grupo recebeu cada vez mais adeptos e se uniu à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBP-SP), que em 1957 formou o Study Group, assim chamado pela IPA (Salim, 2010).

Vale ressaltar que a entrada do discurso psicanalítico no Brasil está entrelaçada às demandas da inteligência nacional, que perpassam pela tentativa de construção de um projeto de nação que objetivava a modernização do país, elevando-o à condição de país civilizado. Diante das consequências deixadas pelas transformações, como a abolição da escravidão e a implantação da República, ocorridas na virada do século XIX para o XX foi sendo construído um movimento de reformulação do que se pensava a respeito do Brasil e do brasileiro (Torqua-to, 2014).

Esse autor explica ainda que, para atender a tais demandas, a ciência médica passa a ir além do corpo doente do sujeito, tratando também do corpo social ao tomar para si a missão de regular e organizar o funcionamento social por meio de uma perspectiva sanitária que garantisse a segurança e a prosperidade da nação.

Na verdade, médicos e psiquiatras higienistas viam a população brasileira como sendo tomada por um excesso de paixões, algo que era da ordem do instintivo, e que, obviamente, se opusera ao modelo de estado nacional que se pretendia implantar no País. Esses profissionais acreditavam que a nação somente alcançaria a prosperidade caso sua população indisciplinada fosse devidamente tratada (Torquato, 2014).

O cenário descrito tornou-se cada vez mais forte à medida que os anos transcorreram, até que, finalmente, se mostrasse mais evidente a partir do golpe civil-militar, ocorrido em 1964, momento em que o país mergulhou em um período de intensa repressão, censura, controle do Estado e violência de ordens diversas, instaurando-se na sociedade brasileira acirrados conflitos entre os detentores do poder e aqueles que se opunham a ele.

Golpe Civil-Militar de 1964

Reis (2000) aponta que em 1964 ocorreu uma vitória fulminante do conservadorismo no Brasil. Tal fato foi desencadeado por meio da unificação de praticamente todas as forças armadas e das instituições republicanas, que contaram com o apoio de grande parte da população, que possibilitou driblar os movimentos de resistência da época e culminar num golpe civil-militar, encerrando o governo do então presidente da república João Goulart e instaurando uma ditadura que durou cerca de 21 anos.

Durante esse período, tentou-se silenciar a população brasileira por meio da força e do discurso da repressão ditatorial, e o país foi subjugado e reprimido por um regime considerado “uma chapa de metal pesado, caída sobre vontades e pensamentos que aspiravam à liberdade” (Reis, 2000, p. 2). Muitas perdas de direitos concretizaram-se por meio dos atos institucionais e dos órgãos de repressão do Estado, para o qual toda e qualquer pessoa considerada suspeita de agir contra o governo era presa e interrogada, sem ao menos ter o direito à defesa própria.

Toledo (2004), em seus estudos, considera que a ditadura foi um movimento de caráter político-militar que significou um golpe tanto contra as reformas sociais, defendidas por uma parcela da sociedade brasileira, quanto contra a democracia política burguesa de 1945. Somado a isso, era a representação de um movimento contrário à incipiente democracia, às reformas sociais e políticas, além de reprimir a politização das organizações de classes trabalhadoras e agir na suspensão do debate ideológico e cultural que vinha sendo feito no país.

A partir daí, configurou-se o impedimento de um potente e amplo debate político, ideológico e cultural que se efetuou em diversos grupos sociais, o qual era considerado uma prática bastante comum nos anos 1960, na medida em que grupos de conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas se organizavam politicamente na defesa de seus ideais e projetos de sociedade e costumavam expor as suas propostas (Toledo, 2004).

Durante esse período, o Brasil vivenciou uma série de violações dos direitos humanos, da repressão do Estado e da censura nos mais diversos meios de comunicação e de expressão popular (Rezende, 2013). Para se ter uma ideia, segundo os dados coletados pela Arquidiocese de São Paulo (1985), foram praticadas de pelo menos 285 modalidades de torturas físicas e psicológicas que iam desde o famoso “pau-de-arara” até choques elétricos, afogamentos, “cadeira do dragão”, etc., os quais eram direcionados aos presos políticos.

Ainda com base nos dados coletados por meio do Projeto Brasil: Nunca Mais (1985), embora a tortura seja utilizada há tempos no mundo, ela adquiriu no Brasil dos anos 1960 a conotação de instrumento recorrente nos porões da ditadura e foi empregada para a obtenção de informações sobre as ações de oposição ao regime militar mediante as confissões dos prisioneiros. Isso geralmente acontecia nos órgãos de repressão do Estado, onde os suspeitos de ser contrários ao regime eram presos e interrogados sob diversas formas de violência, pois era desse modo que se tinha acesso a informações sigilosas que tais prisioneiros supostamente detinham.

Nas sessões de tortura, algo minimamente curioso acontecia: eram acompanhadas por médicos que avaliavam os limites máximos de dor e sofrimento daqueles corpos vulneráveis. Como nem sempre o acompanhamento era realizado com precisão, caso os prisioneiros viessem a óbito, legistas e peritos forjavam laudos que atestavam falsas versões das mortes, alegando-se, muitas vezes, acidentes fatais ou suicídios (Rezende, 2013).

Conforme apontado anteriormente, a psicanálise chegou ao Brasil e foi progressivamente incorporada aos interesses médicos, e no período da ditadura houve registros do caso de um médico, em formação para se tornar psicanalista, que fazia das sessões de tortura o seu laboratório para a prática clínica, por exemplo. Seu supervisor e algumas das instituições psicanalíticas, ao tomar conhecimento do caso, mostraram-se neutros ao se ancorar em uma (in)conveniente leitura do conceito de neutralidade, que operou como tentativa de abafar o caso em questão.

O caso Amílcar Lobo

Durante a década de 1970, o médico do exército e candidato do Instituto da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro Amílcar Lobo passou a ser acusado de participação nas sessões de tortura. Por vários anos foi treinado pelo psicanalista Leão Cabernite, que, além de negar conhecimento dos fatos, o defendeu das acusações, sob a justificativa de que queriam apenas subtrair a psicanálise (Kyrillos Neto; Pádua, 2015).

Para Kyrillos Neto e Pádua (2015), houve uma longa e dolorosa crise nos aspectos éticos e institucionais proveniente de tais denúncias, principalmente no que diz respeito ao período posterior à queda da ditadura civil-militar, que seguiu como um processo desgastante durante os anos 1990 e se restringia não somente às instituições psicanalíticas brasileiras, mas também à própria IPA.

Lobo exerceu a função de médico do I Batalhão de Polícia do Exército, entre os anos 1970 e 1974, e trabalhou no Departamento de Operações e Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), concomitantemente à sua formação como psicanalista na SBP-RJ. Em 1968, inscreverase como candidato à formação psicanalítica na SBP-RJ, tendo como didata o Dr. Antônio Dutra Júnior (Coimbra, 1995).

Para Coimbra (1995), ao utilizar o codinome de Dr. Carneiro, sua função no DOI-CODI/RJ era atender os presos políticos durante o período de custódia, oferecendo-lhes um tipo de acompanhamento nas sessões de tortura, conforme pode ser observado no relato da única presa política, Inês Etienne, sobrevivente da chamada Casa da Morte, o aparelho clandestino e repressivo que o Estado utilizava para torturar e assassinar:

Antes, durante e depois! Antes das torturas, executa um ‘trabalho preventivo’, no sentido de torná-las mais eficazes, procurando saber se há alguma doença, se o preso é cardíaco, etc. (a primeira ‘entrevista’ antes das torturas de muitos que são conduzidos para o DOI-CODI/RJ é feita com o Dr. Carneiro, que vai às celas dos recém-chegados). Durante, executa também um ‘trabalho de prevenção’, no sentido de testar a resistência do torturado, e avaliar até que ponto ele pode aguentar. Depois das torturas, faz ‘curativos’ quando ‘cuida’ dos farrapos humanos em que o terror converte as pessoas para que, se necessário, voltem a ser torturadas (Coimbra, 1995, p. 99-100).

Quando o psicanalista didata de Lobo se tornou Leão Cabernite, ainda na década de 1970, surgiu uma série de denúncias dirigidas a Lobo, desde as que eram publicadas na Revista Questionamos n. 2 até aquelas que eram feitas nas instâncias locais e internacionais da IPA e em outras instituições psicanalíticas na Europa, que exigiam explicações a respeito do fato (Oliveira, 2017).

Mesmo diante de tantas denúncias, Lobo era defendido com veemência pelo seu psicanalista didata e por representantes das instituições envolvidas no caso (Oliveira, 2017), tornando cada vez mais evidente em seus posicionamentos que, muitas vezes, utilizavam-se da justificativa do lugar de neutralidade que um psicanalista deveria assumir ou negavam tais acusações alegando se tratar de calúnias à psicanálise, como já foi mencionado anteriormente.

Dessa forma, Lobo continuou exercendo suas atividades como médico e como aspirante a psicanalista da SPRJ, tendo dado prosseguimento à sua formação enquanto psicanalista, sendo apenas desligado da instituição dez anos após o surgimento das acusações que o associaram às sessões de tortura. Ainda assim, em circular emitida pela própria instituição, de 12 de fevereiro de 1981, sua saída da SPRJ é justificada por meio das normas e regulamentos previstas pela instituição, alegando que a formação de Lobo estava suspensa há mais de seis anos (Sério, 1998).

É interessante notar que, enquanto o caso de Lobo continuava sendo abafado pelo seu analista e por representantes das instituições ou quando era defendido por eles, o mesmo não acontecia com a sua principal denunciante, a psicanalista Helena Besserman Vianna (1994), que passou a ser perseguida tanto internamente no meio psicanalítico, quanto pela repressão infligida pelo regime militar (Oliveira, 2017).

Uma prova dessa perseguição foi a tentativa frustrada de Helena de se inscrever no ano 1975 como membro titular da SBP-RJ, sociedade da qual era integrante desde 1970, bem como da impossibilidade da marcação de data para a apresentação de seu trabalho. Tal solicitação foi-lhe negada por unanimidade pela direção da Sociedade, que se apoiou no conteúdo do artigo 13 do Estatuto da SBP-RJ, o qual versa sobre os requisitos exigidos para que um psicanalista se torne membro da sociedade, entre os quais estão o caráter e os padrões éticos e técnicos (Coimbra, 1995).

Uma das repercussões que as denúncias tiveram a partir daí, segundo Coimbra (1995), foi a solicitação do Conselho Diretor da SBP-RJ de que o assunto permanecesse em total sigilo. Outrossim, as insistentes tentativas de Helena Besserman em ser ouvida custaram-lhe caro, pois a colocaram em um lugar desfavorável por ter tido a coragem de denunciar um torturador, passando então a ser acusada de cometer plágios em trabalhos voltados à psicanálise, além de ter sido criticada em uma conferência pública sob reiteradas acusações de desviar os padrões éticos seguidos pela SBP-RJ.

A ética e a política da psicanálise: é realmente possível haver neutralidade?

Além de ter utilizado o termo “neutralidade” em alguns momentos de sua obra, Freud conferiu a essa nomenclatura a acepção que acabou sendo traduzida como difference ou mesmo frieza emocional. Em um de seus escritos, Freud ([1912]2017) compara a posição do analista com a de um médico cirurgião, no sentido de explanar como esse profissional deixa de lado todos os seus sentimentos direcionados ao paciente em prol da concentração de sua energia na realização da cirurgia para que a execução do procedimento ocorra da maneira mais competente possível.

A existência de uma frieza emocional por parte do analista faz com que se tenha condições de análises mais vantajosas para ambas as partes: psicanalista e paciente. Relativamente ao psicanalista, este acaba tendo para si uma proteção que perpassa por sua vida emocional, ao passo que, para o paciente, há mais auxílio que um analista poderia oferecer (Freud, [1912] 2017).

Ao tratar sobre a transferência, Freud ([1912] 2017) retoma a questão da neutralidade quando defende a necessidade de haver certa opacidade por parte do médico com relação aos seus pacientes, exemplificando a sua tese por meio do espelho, objeto pelo qual o médico não deve mostrar nada do que já não esteja sendo exposto ao seu paciente, caso contrário, esse modo de tratar não se configuraria como a “verdadeira psicanálise”, justamente por implicar uma possível influência sugestiva.

Para não correr o risco de deixar o seu trabalho como psicanalista ser invadido por essas influências sugestivas, é importante que o analista faça sua análise pessoal, pois isso garantiria que os seus aspectos negativos não iriam interferir de nenhuma forma no processo terapêutico. Todavia, autores contemporâneos, como Pechansky (2015), compreendem essa questão sob outro prisma. Para eles, fatores conscientes e inconscientes inevitavelmente acabam por atravessar a relação terapêutica em um verdadeiro processo de empatia.

Isso quer dizer que, embora o analista tenha a responsabilidade e o cuidado de fazer a sua análise pessoal, não poderá ser impedido de sentir as implicações do que lhe afeta, haja vista que, para além de ser um psicanalista, é sujeito, apresentando emoções, desejos e afetos, tal como o paciente que está diante de si. É necessário, então, reconhecer essas implicações para manejá-las de modo que não prejudiquem o processo terapêutico. Para tanto, faz-se imprescindível que o psicanalista assuma um lugar onde não se negue como sujeito nem permita que seus aspectos influenciem negativamente a relação com o paciente.

Ora, a palavra “neutralidade”, de origem latina, significa “nem um, nem outro”; contudo, não quer dizer, necessariamente, uma conduta indiferente, isto é, de frieza ou de falta de sentimentos por parte do psicanalista, mas sim que, partindo dela, tanto o médico quanto o paciente têm condições mais favoráveis na relação transferencial (Pechansky, 2015).

Portanto, o sentido de neutralidade perpassa pela postura do psicanalista, de modo que este deve dispor de um comportamento amistoso em sua conduta. Ética, tolerância, benevolência e capacidade de conseguir suportar frustrações são questões fundamentais em sua prática (Pechansky, 2015). O psicanalista precisa manter a neutralidade no que diz respeito às questões relativas a ele próprio no lugar que ocupa, até mesmo para que não abandone o controle da contratransferência.

Ainda seguindo na direção do pensamento do autor brasileiro, a neutralidade é definida como uma posição comportamental e emocional assumida pelo psicanalista em sua relação com o paciente, sem que se perca a empatia, mas que, ao mesmo tempo, permita manter certa distância concernente a determinadas questões questões importantes relativas aos conteúdos trazidos pelo paciente e a sua transferência, à contratransferência e a sua própria personalidade, aos seus próprios valores, às expectativas e pressões do meio externo e, por fim, à(s) teoria(s) psicanalítica(s) (Pechansky, 2015).

Laplanche e Pontalis (2001) definem neutralidade como uma das qualidades que, além de indicar a atitude do psicanalista no tratamento, delimita sobre os aspectos em que este precisa se manter neutro, entre os quais estão os valores religiosos, morais e sociais. Em linhas gerais, tais aspectos não dirigem o tratamento em função de um ideal qualquer, o que inclui abster-se também de oferecer conselhos; não se envolver no jogo do paciente e não privilegiar, a princípio, um determinado fragmento do conteúdo trazido pelo paciente, em decorrência de preconceitos de ordem teórica.

A neutralidade também vem sendo discutida em obras de importantes estudiosos pós-freudianos e autores contemporâneos, conforme aponta Bouwman (2011) em seus estudos sobre a técnica psicanalítica. Com o intuito de elucidar acerca da ética psicanalítica, sobre a qual discorre os conceitos de hospitalidade, empatia e a saúde ou o cuidado de si do analista, enquanto elementos centrais na clínica contemporânea, Bouwman (2011) recorre a Ferenczi – uma das figuras mais importantes no pensamento a respeito da contratransferência e seu manejo na clínica contemporânea, junto com Winnicott, Bion, etc. Embora os referidos conceitos se entrecruzem na clínica, optou-se neste artigo por destacar sobre a saúde do analista, em que Bouwman (2011) propõe que o cuidado de si não se limita apenas à análise pessoal do psicanalista. É preciso ir além e compreender como algo que está articulado com aquilo que se considera um bom exercício da função como psicanalista, no que tange ao modo como o psicanalista se posiciona eticamente diante da cultura e da política atual.

Considerações finais

A posição assumida pelas sociedades psicanalíticas ipeístas durante a ditadura civil-militar no Brasil, e até mesmo nos anos que se seguiram, funcionou como uma neurose que operou por meio de um mecanismo de defesa, no qual o conteúdo recalcado segue incomodando e, ao se encontrar sem outra via possível para se manifestar, mostra-se através do sintomático.

As tentativas de inocentar Lobo das acusações direcionadas à sua atuação em um dos chamados porões da ditatura estariam, então, vinculadas a uma espécie de uso indevido do conceito de neutralidade. E naquele momento era conveniente amparar-se nele como forma de justificar a posição que o médico assumiu diante do horror, tamponando, assim, qualquer modo de responsabilização por sua conduta.

Tendo em vista que não há cisão possível entre o político e o psíquico, não se pode forçar uma pretensa separação da dimensão política na dinâmica da clínica, tampouco desprezar os efeitos que recaem sobre o psíquico quanto às medidas tomadas por cada governo e/ou regime em uma determinada época. Isso incorreria em deixar à parte da clínica a cultura que nos constitui, com todas as suas facetas (conhecimentos, saberes, normas, princípios, costumes, manifestações, histórias, etc.), como se fosse possível fazê-lo.

Além de considerar a política dentro dos consultórios e em outros espaços de trabalho, faz-se necessário não pactuar com instituições antidemocráticas que flertam com o autoritarismo, que, munidas de inúmeras forças e aparatos, tentam barrar, a qualquer custo, que a palavra circule livremente, impedindo, dessa forma, que se possa oferecer aos sujeitos a regra máxima da psicanálise, isto é, a de “falar tudo aquilo que lhe vier ao pensamento”.

Portanto, é fundamental tomar o posicionamento de não sucumbir a uma dinâmica que desconsidera as influências da cultura na clínica ao considerar que elas não existem ou que estão à parte do sujeito, valendo-se, muitas vezes, de justificativas equivocadas e fundamentos questionáveis. Com base nessa leitura do sofrimento do sujeito, que se leve em conta suas diferenças e os efeitos que as interferências da cultura lhe causam, é possível se posicionar e, consequentemente, construir caminhos alternativos capazes de proporcionar a livre circulação da palavra para que, sobreviva e se mantenha viva a psicanálise em nossa sociedade.

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Recebido: 25 de Junho de 2022; Aceito: 12 de Julho de 2022

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