Ainda que o conceito de inconsciente tenha sido levantado primeiramente em 1889 por Pierre Janet, na obra Automatismo psíquico (ELLENBERGER, 1970), foi com Freud que adquiriu sua característica dinâmica e foi alçado ao papel de senhor da subjetividade humana.
Desde então, verificamos que o ato de sofrer é algo inerente à subjetividade, ou seja, depende da relação de percepção e do processamento psíquico de cada sujeito. Assim como o ser humano está inserido numa Kultur, produto do desenvolvimento ocorrido através do tempo, a expressão do sofrimento psíquico também varia.
Nesse cenário, o objetivo deste texto é promover uma ligação entre a teoria freudiana - que, no final do século XIX, deu luz ao sofrimento psíquico - e os sofrimentos da ordem psicossomática, que ganharam espaço a partir de meados do século passado, através da Escola de Chicago com as pesquisas de Franz Alexander e da Escola de Paris, na figura de Pierre Marty e M’Uzman.1
O ofício da prática psicanalista vem exigindo dos psicanalistas uma atenção, que muitas vezes vai além da atenção flutuante e da interpretação. Observamos, cada vez mais, em nossos consultórios, analisandos que apresentam um discurso vazio, que evoca nossas sensações, suscitando uma experiência que ultrapassa a utilização e apreensão da palavra em si.
Tendo como pano de fundo a fundamentação teórica, em que os conceitos freudianos de representação coisa e representação palavra são evocados, faz-se o relato de alguns fragmentos de um caso clínico2 que indicam que o sujeito portador de uma elaboração psíquica empobrecida pode ser acometido de adoecimento físico e/ou adições, desenvolvendo as chamadas patologias psicossomáticas.
Representação coisa e representação palavra: principais pontos
Em 1891, no seu texto Sobre a concepção das afasias Freud fez menção ao conceito de representação. A essa época ele argumentou que as experiências do indivíduo vivenciadas no mundo seriam captadas pelos sentidos, gerando um registro na memória. Freud acreditava que, na representação palavra, o organizador seria a sonoridade e na representação coisa, a organização se daria pela percepção visual. Dessa forma, a noção de representação e consciência estariam vinculadas.
No Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895), conforme Laplanche e Pontalis (2001), houve uma evolução na sua linha de raciocínio à medida que foi colocado que as representações poderiam ser formuladas a partir de estímulos internos ou externos, sendo possível ocorrer a associação entre a imagem verbal e a imagem mnêmica. O que ligaria essa representação à consciência seria o índice de qualidade alcançado por essa interligação. Freud tentava, assim, construir uma teoria científica através da compreensão do caminho do afeto no sistema psíquico. Esse raciocínio foi fundamental para o esclarecimento de processo primário e secundário3 abordado de forma mais detalhada no texto O inconsciente ([1915] 2010, p. 110), quando foram considerados os aspectos topológico, dinâmico e econômico do aparelho psíquico.
Ao promover esse passo, Freud sinalizou que a adequada interação do indivíduo com o meio propiciaria a qualidade das articulações psíquicas, derivadas dos múltiplos processos de associação da representação coisa e representação palavra. O desenvolvimento teórico da ocorrência dessa elaboração entre significantes pré-verbais e a representação palavra estaria presente, além do texto O inconsciente ([1915] 2010), nos seus outros artigos metapsicológicos: Os instintos e seus destinos ([1915] 2010) e A repressão ([1915] 2010).
Nesse sentido, Green (2002) e Laplanche e Postalis (2001) destacaram que, para Freud, o afeto seria não um conceito, mas uma noção, porque envolveria quantidade, variação, movimento e descarga. A noção de afeto não estaria restrita a quantum, mas envolveria sensações de prazer e desprazer.
Para Laplanche e Postalis (2001, p. 143), segundo Freud, elaboração psíquica seria:
Expressão [...] para designar, em diversos contextos, o trabalho realizado pelo aparelho psíquico com o fim de dominar as excitações que chegam até ele e cuja acumulação corre o risco de ser patogênica. Este trabalho consiste em integrar as excitações no psiquismo e em estabelecer entre elas conexões associativas.
Nessa perspectiva, Freud estava afirmando que a pulsão se apresentaria através de dois registros: um ocasionado pela noção de afeto, que indicaria a qualidade e as diferentes variações da quantidade dessa pulsão, e o outro, pela representação.
Assim, a elaboração psíquica contaria com o funcionamento do mecanismo de recalque, que, através de associações e deslocamentos, promoveria uma espécie de protetor psíquico para a descarga pulsional. Segundo o autor, as neuroses de transferência seriam decorrentes de aspectos topológicos, dinâmicos e econômicos que explicariam o caminho desse afeto advindo da vivência sexual infantil: no caso da histeria de conversão, a conversão seria num corpo erógeno; no caso da neurose obsessiva, haveria um deslocamento do afeto para pensamentos e ações ruminativos decorrentes de falhas nesse processo elaborativo; e no caso das fobias, haveria um deslocamento do afeto e sua consequente ligação a outros representantes.
Ao conferir essa noção de afeto, bem como conceituar o processo de elaboração psíquica, Freud indicou que a plasticidade psíquica de cada indivíduo seria advinda da interação do seu mundo interno com o mundo externo, bem como de suas relações intrapsíquicas, e o corpo do sujeito seria a interface dos ambientes.4
Seguindo essa linha, no texto Além do princípio do prazer,Freud ([1920] 2010, p. 190), escreveu:
São os órgãos dos sentidos que contêm, no essencial, dispositivos para a recepção de estímulos específicos, mas também mecanismos especiais para ainda proteger contra excessivos montantes de estímulos e deter espécies inadequadas de estímulos. É característico o fato de elaborarem quantidades muito pequenas de estímulos externos[...] Mas essa camada sensível, que se tornará o sistema Cs, também recebe estímulos vindos de dentro; a posição do sistema, que fica entre o exterior e o interior, e a diversidade das condições para que haja influência de um ou de outro lado tornam-se decisivas para a operação do sistema e de todo aparelho psíquico (Grifo nosso).
Quando Freud afirma que as diversas condições existentes seriam responsáveis pelo desenvolvimento e pela qualidade do funcionamento psíquico, podemos concluir que estava falando do período mais primitivo da primeira infância, quando o sujeito ainda estaria na fase do autoerotismo e que a mãe funcionaria como parte desse corpo. Em outras palavras, crianças que foram expostas a traumas contínuos no período préverbal e atravessadas por estímulos externos, tendem a desenvolver um sistema de representação pobre, uma vez que o processo de associações entre as representações coisa e as representações palavra não foi realizado de forma satisfatória.
Nesse caso, o mecanismo de recalque seria ineficiente ou mesmo inexistente, pois o adequado intricamento pulsional com o objeto não teria ocorrido. Consequentemente, os deslocamentos e as condensações próprios ao funcionamento do aparelho psíquico se dariam de maneira insatisfatória ou não aconteceriam e a atividade onírica do sujeito também seria deficitária.
De posse dessas considerações, diferentemente do que defendiam alguns médicos e psicanalistas, podemos pensar que certos pacientes somáticos, com os quais nos deparamos na clínica contemporânea, podem apresentar a gênese de suas patologias advindas de desequilíbrios no processo de elaboração psíquica.
Psicossomática: a escola de Chicago e a escola de Paris
Em meados do século XX, foi desenvolvido um estudo em torno do que viria a se chamar medicina psicossomática. O ponto de partida foi dado por Franz Alexander ([1950] 1989), quando realizou um estudo que relacionava a ocorrência de algumas doenças físicas com determinados tipos de personalidade. Através de critérios estatísticos, o autor tentou correlacionar que certas situações vivenciadas pelo sujeito conjugadas com características constituintes desse sujeito, levariam ao desenvolvimento de patologias psicossomáticas. Mirsky e colaboradores (1950), também nessa linha de trabalho, tentaram provar que jovens, que apresentam um determinado elemento, em quantidade diferencial da normalidade, na corrente sanguínea, desenvolveriam úlcera gástrica, caso viessem a servir como soldados.
Entretanto, do ponto de vista psicanalítico, essa visão se mostrou bastante precária, na medida em que não levava em consideração o que é mais caro à psicanálise: a subjetividade de cada um.
Já na França, a chamada Escola de Paris, representada por Pierre Marty e M’Uzan, a partir da década de 1960, desenvolveu o conceito de pensamento operatório (MARTY e M’UZAN, 1994), no qual a existência, ainda que não se restringisse apenas aos pacientes psicossomáticos, estaria presente neles como modo de funcionamento psíquico.
O pensamento operatório seria uma estrutura psíquica bastante peculiar, em que a descrição das emoções e, até mesmo, dos sentimentos pelo sujeito seria prejudicada.
Nessa mesma linha, Sifneos (1973) criou o termo “alexitimia”, que consistiria na ausência de palavras capazes de descrever as emoções, refletida no discurso dos pacientes esvaziados de afeto: as representações que chegariam ao pré-consciente desse sujeito não teriam passado pelo processo de intricamento pulsional (Eros e Tânatos) e o mecanismo de recalque não teria acontecido.
No pensamento operatório, a palavra não estaria articulada com experiências vividas e, assim, no setting analítico, o paciente não conseguiria promover a associação livre, além de apresentar um relato de produção onírica empobrecida.
Joyce McDougall (2000) levou em consideração esses conceitos, estendendo o estudo da psicossomática um pouco mais além. Segundo a autora, sua experiência clínica apontava que alguns analisandos, durante as sessões, demonstraram esse tipo de discurso. Entretanto noutros, o sujeito chegava a ter consciência da força de suas emoções, mas da mesma forma, o escoamento de seu afeto seria dado pela ação, através do corpo. Para ela, o que estaria em jogo nos pacientes psicossomáticos seria o conceito de desafetação, e isso seria refletido na dificuldade de o sujeito distinguir um afeto do outro. Essa desarticulação psíquica faria com que, diante de situações causadores de estresse, como a perda de um trabalho, de um ente querido ou de um acidente, a dor psíquica se daria por um sinal não verbal, seja através do adoecimento físico, seja através de males que afetem os órgãos, seja através de adições.
Para McDougall, o objeto aditivo, apesar de poder ter uma natureza letal, funcionaria como a prótese do objeto cuidador, não introjetado, em decorrência de falha ambiental ocorrida nos primórdios da primeira infância. Nas palavras de Roussillon (2015), esse ambiente inadequado não propiciaria a passagem do bebê de um autoerotismo para um narcisismo protetor do self, e o corpo se tornaria, dessa forma o próprio objeto: um corpo de autoerotismo defensivo.
Nesse sentido, a desafetação seria fruto de uma experiência arcaica do bebê junto a uma mãe que não conseguiu desempenhar um papel de “tradutora” e de paraexcitação das sensações mais intensas “sentidas”.5 Nesse caso, ocorreria para esse infans uma privação de elaboração psíquica. A autora acrescentou ainda que sua prática clínica indicou que, se a escuta do analista não estiver atenta a esse mecanismo de funcionamento do paciente, ele poderia vir a passar anos em análise sem fornecer acesso à dinâmica que seu quadro psicossomático6 apresenta.
McDougall (2000, p. 116) sintetizou seu conceito de desafetação, articulando-o com os conceitos freudianos:
Uma dissociação entre representação palavra e a representação coisa, fazendo com que os sinais de angústia se tornem equivalentes de uma representação coisa, destacada da representação palavra que daria sentido à experiência (para a criancinha, o corpo é vivido como um objeto-coisa pertencente ao mundo externo).
Fragmentos de um caso clínico:7 da sensação de vazio à possibilidade de representação da experiência vivida
Com base nos aspectos teóricos descritos até aqui, passaremos ao relato de alguns fragmentos de um caso clínico, onde o corpo do sujeito deu voz ao seu sofrimento psíquico não passível de elaboração.
Cassus era um rapaz de 25 anos. Alto, forte, com muitas tatuagens.
Na primeira entrevista, atentando as sensações que o potencial analisando me despertava, reparei que a despeito de sua aparência física, seu olhar e seu gestual geraram em mim, a sensação de estar diante de um menino indefeso e bastante inseguro.
Procurou a análise porque se dizia viciado em drogas. Apesar disso, contou que era gerente em uma empresa e que “funcionava”, pois conseguia ir “virado” das festas para o trabalho, sem causar danos a sua produtividade.
Antes de deixar o consultório, me mostrou uma tatuagem no braço e declarou que o desenho se tratava de um barco à deriva.
Ao longo das sessões, sempre falava que foi gordo. Relatou que seu pai havia morrido abruptamente quando ele contava com 15 anos e que aos 16, usava manequim 48.8 Era, então, chamado de “baby monster”. Entretanto, contou isso como algo banal.
À época, desenvolveu bulimia, perdendo mais de 20 kg. Somente depois de muito tempo, foi descoberto pela mãe vomitando no banheiro.
Após algumas brigas, passou a ingerir, diariamente, um suco que continha “um monte de coisas batidas”, preparado pela mãe, ao amanhecer, antes dela sair para o trabalho. Essa rotina era acompanhada da declaração frequente que Cassus nunca havia dado trabalho, mas que depois de velho, estava dando muitas alterações.9
O que me chamava a atenção era que todos os relatos eram feitos sem afetação. Qualquer manifestação que eu tentasse sinalizar a ocorrência de um desamparo era refutada com a declaração que ele amava muito a mãe que havia trabalhado muito para criá-lo. Com certa frequência, dizia que não poderia imaginar que a mãe pudesse morrer, pois era tudo que ele tinha.
Quando falava isso, em seguida, ficava em silêncio.
Nessas ocasiões, eu tinha a sensação de cair no vazio e pensava na angústia de aniquilamento do bebê, no processo de dependência absoluta.
Nos primeiros meses da análise, Cassus se dizia meio gordo e que estava fazendo um esforço grande para retornar à malhação. Todavia, observava em silêncio, que não estava acima do peso: sua imagem corporal era diferente da percebida por ele.
Outro ponto importante era que em todas as sessões, relatava que não estava mais vendo a ex-namorada, a qual namorou pelo período de 5 anos e que ainda amava.
Segundo ele, seus problemas começaram, quando perdeu, de forma abrupta, o emprego de administrador numa empresa comercial.
Dizia que em decorrência desse trabalho havia experimentado uma ascensão socioeconômica mudando da casa da mãe, localizada num bairro humilde do subúrbio carioca para um apartamento na Zona Sul. Entretanto, no desempenho de sua função começou a observar práticas trabalhistas irregulares por parte da direção da empresa. As conversas, pouco amistosas, a respeito destas questões, eram frequentes e, após um ano, foi desligado da companhia.
Apesar dos meses de atritos, pelo seu relato, ficou evidente que não percebeu que o processo conflituoso que estava vivendo com o chefe, o levaria a ser demitido.
Desempregado, voltou a morar na casa da mãe, que o acolheu, sem nenhum tipo de questionamento.
Retratava a mãe como uma pessoa muito calada e que, raramente, emitia qualquer opinião. Dizia que ela não perguntava nada sobre sua vida. Segundo Cassus, ele também não sabia o que a mãe sentia.
Passou, então, a beber muito e a se sentir um nada. Mesmo amando a namorada propôs uma relação aberta, sem compromisso.
Indagado porque havia proposto isso, respondeu:
- Eu achei que ela não estava me botando um freio...Tava muito solto...- e completou,
- Eu nunca tive um freio. Depois que fui mandado embora, fiquei uns dois meses só querendo saber de tomar cerveja, saindo sozinho e aí, quando eu pedi para ter uma relação aberta, ela só falou: “É isso que você quer? Tudo bem!”
Perguntei sobre o que sentiu e ele disse que teve uma sensação de “vácuo” e acrescentou:
- Acho que queria que ela brigasse por mim, mas tadinha, ela é muito na dela.
Então falei:
- O que você chama de colocar freio é isso, brigar por você?
Após alguns minutos de silêncio, relatou:
- Desde os seis anos, depois que meu pai foi embora, eu fico sozinho em casa. Até para a escola eu tinha um despertador. Minha mãe tentou várias vizinhas babás, mas eu odiava. Elas me tratavam mal. E continuou:
- Minha mãe10 tadinha, tinha que trabalhar! Eu sempre fui muito sozinho. Tem uma coisa boa nisso, me viro!
- Vira?
- Pô, me sustento desde os 16 anos!
Das falas de Cassus ficava claro que não conseguia elaborar seu abandono. A evitação disso era dada por um discurso totalmente concreto. Prematuramente se sustentava porque não havia sido acolhido. Ao escutá -lo, pensava no conceito da mãe morta, de Green (1988).
Ao longo da análise, foi ficando claro que a mãe de Cassus era uma pessoa depressiva, e que jamais superou a saída do marido de casa. Meu paciente contou que o pai deixou a casa após uma briga, mas que nunca soube o que realmente havia acontecido. Por algum tempo perguntava quando o pai iria chegar, mas não obtinha resposta. Depois de uns dois anos, começou a visitar o pai, que já vivia com a madrasta.
Minha impressão era que a fala sobre a mãe se referia a ele próprio, não conseguia saber, nem nomear, seus sentimentos. Ao propor à namorada uma relação aberta, desejava que ela decifrasse o que ele estava sentindo, provendo uma tradução de sua dor, algo que não havia vivenciado na sua relação com a mãe.
Mais tarde, quando conseguiu se colocar novamente no mercado de trabalho, buscou reatar o namoro, mas suas investidas foram sem sucesso.
Começou a usar mais e mais drogas. Falou que o uso, concomitante com bebida, trazia um alívio, um apagão mental. Nesse período se relacionava com várias mulheres e muitas vezes não se lembrava de nada.11
Acabou contraindo uma doença sexualmente transmissível e como tinha uma relação aberta com a ex, precisou informá-la. A partir disso, ela decidiu cortar qualquer relação com ele.
Nessa sessão, consegui fazer uma intervenção, convocando-o a pensar sobre como a intensidade do seu fazer poderia ser para dar conta da sensação de vazio. Chorando bastante, conseguiu articular que perder alguém ou o trabalho o fazia se sentir oco.
Chamei esse paciente de Cassus, justamente porque o significado em grego é ‘vazio’. Na clínica, a capacidade de descrição das emoções pelo paciente se apresentava bastante limitada.
Num outro momento, ao relembrar novamente que ficava sozinho em casa desde os seis anos, disse que começou a cozinhar aos oito, por não aguentar mais o gosto de comida fria.
Com o passar da análise, foi conseguindo fazer algumas associações entre a ocorrência dos apagões de memória com algo doloroso já experimentado, mas esse processo tinha uma cadência muito específica, um ritmo dado pela sua própria respiração.
Em uma sessão, retomando o tema da morte do pai, contou que, ao voltar do sepultamento, ficou uma semana trancado no seu quarto. Disse que só se lembrava de que a mãe deixava a comida na porta dele, não tinha recordação de seus sentimentos nem de conversas. A sensação era de vazio. Foi justamente aí que engordou muito.
Quando quis saber em que condições ocorreu a morte, explicou que nada foi esclarecido. Nessa mesma sessão, conseguiu associar que, quando o pai saiu de casa, ele também não ficou sabendo de nada.
Ao falar isso, declarou que as coisas não tinham muito sentido para ele e que talvez por isso tentava fazer algo o tempo todo.
Nesse momento, falei:
- Olha o que você disse: tenho que fazer algo o tempo todo.
Ele, então, respondeu:
- Quando estou fazendo, me sinto real.
- Então para ser real, só fazendo.
Fica em silêncio. Após alguns instantes disse que se sentia uma máquina, se parasse seria algo inútil, mas que precisava às vezes se desligar, pois parecia que ia explodir.
Perguntei se a bebida e as drogas eram para isso e ele respondeu que achava que sim.
A ocorrência da pandemia em março de 2020 e os consequentes efeitos econômicos na sociedade acabaram por gerar a perda de emprego por Cassus12 e ele se viu vivendo a reedição de seu desamparo.
Conforme destacado, McDougall (2000) diz que sua experiência clínica revela que pacientes que sofrem de desafetação, estão sujeitos a sucumbir a doenças psicossomáticas, quando algum episódio real de perda ocorre.
No dia em que recebeu a notícia do seu desligamento, Cassus me enviou um áudio contando o ocorrido e informando que não iria fazer a sessão (já on-line), pois, como seria o último dia na função, ficaria no escritório até mais tarde. Diante disso, ofereci a disponibilidade de um horário no dia seguinte e ele aceitou.
Entretanto, desapareceu da análise por duas semanas. Enviei mensagens, mas não havia respostas. Passado esse tempo, entrou em contato por mensagem de voz, dizendo que depositaria os valores das sessões realizadas, mas que não poderia continuar, pois desempregado, não poderia pagar. Sugeri, então, uma sessão para tratarmos do assunto e ele concordou.
A sessão foi feita sem vídeo, a pedido dele. Os momentos de silêncio foram grandes. Minha sensação era estar diante de um “buraco” que impedia o meu acesso. Sentia, através da respiração dele e da cadência de seus momentos de silêncio, seu sofrimento.
Informei a ele que podia sentir o quanto estava difícil e doloroso, e que não se tratava de interromper a análise por causa da falta de dinheiro. A análise implicava o estabelecimento de uma relação entre analisando e analista, capaz de suportar solavancos e que essa relação não era baseada numa performance dele. Ele precisava saber que aquele espaço era para ele ser e não para performar.
A essa minha colocação, ele respondeu:
- Eu perdi tudo, não tenho nada. Falar do quê? É um vazio... Não faço nada. Estou há quinze dias trancado no meu quarto.
Conforme descrito, Cassus era um sujeito onde seu fazer era posto no lugar do ser. Ao longo da sua infância, diante de uma mãe desvitalizada e de um pai ausente, não vivenciou um ambiente em que fosse possível a tradução de suas sensações de forma adequada.
Por isso, era preciso que nesse momento o analista fosse ativo,13 atento, tradutor das suas necessidades e sensações. Era preciso que eu brigasse por ele. A apatia da mãe, revivida com a namorada, quando da ocasião do término do namoro, não poderia ser experimentada novamente na relação com o analista.
Ao dizer que estaria ali o aguardando no dia seguinte (marquei uma sessão extra), enfatizei, novamente, que aquele espaço era dele. Como resposta imediata, declarou que não sabia que poderia ser assim e que, no dia seguinte, estaria on-line.
A partir dessa sessão, Cassus voltou a fazer análise por vídeo. Nunca mais faltou nem se atrasou. Considero que a perda do emprego na pandemia e sua sustentação na análise, acabaram por inaugurar na sua vida a possibilidade de um existir. Estava criando uma possibilidade de sustentação do Eu, para além do que ele havia apreendido sobre essa experiência.
Durante o período de quinze dias em que ficou longe da análise, ganhou 18 kg e raspou a cabeça. Se drogou. Foi assim que se apresentou na sessão. Sua adição e sua compulsão alimentar mostravam através de seu corpo toda a sua desorganização psíquica, toda a sua necessidade de cuidado, pois os lutos experimentados não haviam sido elaborados.
Quando indagado acerca da sua voracidade, me disse que ela surgia quando estava ansioso, triste.
Diante da resposta indefinida, perguntei:
- Triste? Ansioso?
Respondeu que não sabia a diferença entre tristeza e ansiedade, e acrescentou:
- Começo a devorar a comida. Comendo rápido e muito, fico em suspensão. Não penso em nada.
A análise de Cassus ainda está em andamento, mas já não frequenta as festas que varavam a noite nem usa drogas. Há algum tempo, mantém uma rotina sem excessos, e agora, quando se sente no vácuo, tenta escrever. Diz que a palavra no papel faz mais sentido, não é oca. Nunca me envia seus textos, sem antes perguntar se quero lê-los, indicando a sua não familiaridade com a sensação primordial de se sentir desejado. Aos poucos, está conseguindo entrar em contato com a precariedade da sua primeira infância, refazendo de uma forma positiva essa experiência: vai conseguindo introduzir na sua vida a conjunção “e”, no lugar do “ou”. Já não é mais tudo ou nada: dá os primeiros passos em direção à incorporação do seu fazer no seu ser.
Conforme diz Winnicott, o bebê nasce com certas habilidades que possibilitam a interação com o meio, mas a essa época sua dependência ainda é absoluta. O papel da mãe suficientemente boa seria aquele de reconhecer e atender essa necessidade, promovendo, paulatinamente, sua inserção num circuito cada vez maior, à medida que suas respostas passem a ser menos reflexivas e mais voluntárias. Esse processo acaba fazendo com que o bebê se aproprie da significação de suas sensações e, posteriormente, de suas palavras.
Assim, cada experiência vai deixando um registro, numa aquisição contínua, organizada pela fala da mãe. Esse ritmo cadenciado será responsável pela sustentação da relação psique-soma do indivíduo.
Através de seu processo analítico, Cassus vai se apropriando do seu sentir, nomeando suas sensações, tentando entrar em contato com sua dor, evitando, dessa forma, que seu corpo funcione como “para-raios”. Nesse processo rítmico, sua sensação de vazio, vai ganhando sentido.
O barco no mar tatuado em seu braço. Parece não estar mais à deriva. Parece vislumbrar chegar a alguma praia.
Considerações finais
A partir dos conceitos freudianos de representação coisa e representação palavra, autores pós-freudianos foram expandindo essa metapsicologia, à medida que o sofrimento humano, respondendo a um processo de evolução da Kultur, foi se expressando de outras formas.
Na contemporaneidade, os pacientes que chegam ao setting analítico, vão além dos portadores de neuroses de transferência. O consumismo, a fugacidade da experiência temporal, a pluralidade de drogas lícitas e ilícitas acabam por criar um ambiente que se reflete no estabelecimento das relações objetais desde o primórdio da primeira infância.
Nesse sentido, o psicanalista do nosso tempo, diante da pluralidade de rótulos vindos até do próprio DSM (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) deve estar atento aos vários discursos de seus analisandos.
Freud sabia que a dinâmica entre as associações da representação palavra e da representação coisa, seria a responsável pela articulação psíquica do sujeito. Diante disso, o que se pode auferir é que, dependendo da intensidade do trauma vivido pelo individuo, quando a função materna primária é desempenhada de forma insuficiente, a dor pode se tornar insuportável e acontecer uma “desobjetivação” com o desintrincamento pulsional, com a consequente elaboração psíquica pobre. Nesse caso, a pulsão de morte estaria solta e passível de descarga no corpo, sempre que um fato da vida real, como luto, perda de emprego ou uma pandemia irrompessem na vida da pessoa.
Através dos fragmentos clínicos relatados, tentei expressar que na atualidade, muitas vezes, podemos estar diante de analisandos que apresentam essa forma psíquica de operar. Nesses casos, cabe ao analista, escutar o corpo do sujeito, corpo que tenta dar sentido à sua existência. O ofício psicanalítico atento a esse tipo de registro poderá auxiliar o sujeito nessa travessia, indo ao encontro do seu sentir e ser, possibilitando um alargamento das suas possibilidades de existência.