A eficácia simbólica
Lévi-Strauss ([1949] 1996) chama de eficácia simbólica as curas xamânicas que, graças às palavras, ao rito, à oração, ao mantra, entre outros expedientes, mostram seu poder de cura, mesmo quando não encontram explicação na ciência: é o simbólico que se manifesta produzindo uma mudança de patamar. Para o antropólogo francês, a eficácia dos ritos está na verdade que eles encerram: a crença do feiticeiro nas suas técnicas; do doente no poder do feiticeiro; e no consenso coletivo que sustenta o lugar que é atribuído a quem detém o poder de vida e morte.
A cura xamanística, continua Lévi-Strauss ([1949] 1996, p. 230),
[...] parece ser um equivalente exato da cura psicanalítica, mas com uma inversão dos termos. Ambas visam a provocar uma experiência; e ambas chegam a isso, reconstituindo um mito de que o doente deve viver, ou reviver. Mas, em um caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados de seu passado; no outro, é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que não corresponde a um antigo estado pessoal.
Em seu artigo intitulado Voodoo Death [Morte Vudu] e publicado em 1942, o médico fisiologista americano Walter B. Cannon faz um apanhado de narrativas realizadas por antropólogos e outras pessoas que tiveram contato com povos então chamados “primitivos”, nas quais se afirma a ocorrência de morte física quando da imposição de um feitiço. Em povos das Américas Central e do Sul, África, Austrália, Nova Zelândia e Ilhas do Pacífico, tais eventos puderam ser testemunhados e documentados com significativa credibilidade. No caso do Brasil, há relatos envolvendo os índios Tupinambás narrados em Tratado descriptivo do Brasil por Soares de Souza (1587) citado por Cannon (1942).
Os casos são de tal ordem extraordinários que podem inclusive despertar a incredulidade num leitor ocasional. Conforme se percebe nas narrativas, o feitiço pode ser proferido por palavras ou simplesmente por um gesto, como no caso abaixo.
O homem que descobre que está tendo um osso apontado em sua direção por algum inimigo é, de fato, uma visão lamentável. Ele fica horrorizado, com os olhos fixos no osso traiçoeiro e com as mãos levantadas como se para afastar o meio letal, que ele imagina estar derramando em seu corpo. Suas bochechas empalidecem, seus olhos ficam vidrados e a expressão de seu rosto fica terrivelmente distorcida [...] Ele tenta gritar, mas geralmente o som engasga em sua garganta, e tudo o que se pode ver é espuma em sua boca. Seu corpo começa a tremer e os músculos torcem involuntariamente. Ele balança para trás, cai no chão, e depois de um curto período de tempo parece estar desmaiado; mas logo depois ele se contorce como se estivesse em agonia mortal e, cobrindo o rosto com as mãos, começa a gemer. Depois de um tempo, ele se recompõe e engatinha até sua cabana. A partir desse momento ele adoece, recusando-se a comer e mantendo-se afastado dos afazeres diários da tribo. A menos que a ajuda chegue na forma de um contrafeitiço administrado pelas mãos do Nangarri ou curandeiro, sua morte é apenas questão de um tempo relativamente curto. Se a vinda do curandeiro ocorrer a tempo, ele poderá ser salvo (CANNON, 1942, p. 172, tradução nossa).1
A partir da constatação de estar sob o efeito de um feitiço, inicia-se uma sequência de eventos que irá rapidamente desconstruir os sentimentos de pertencimento e de inserção no seio social. Os próprios membros da família, crédulos quanto aos efeitos do feitiço, iniciam um movimento de afastamento e até mesmo de um precoce enlutamento desse familiar. A essa altura, manter-se coerente com o simbólico do grupo é aceitar seu destino, o que a vítima do feitiço faz docilmente. Ele se recusa a comer e a beber água. Suas forças se esvaem e, em pouco tempo, ele morre.
Cannon, experimentado fisiologista, elabora hipóteses para explicar a causa médica das mortes. Ele inicia apontando que o feitiço desencadeia sentimentos de medo na vítima. Sob o domínio do medo é instaurado no organismo o conhecido mecanismo de luta ou fuga. Trata-se de um conjunto de alterações orgânicas, disparadas pelo sistema simpático-adrenal, que colocam o indivíduo em melhores condições de lutar pela sobrevivência. Os batimentos cardíacos se aceleram, a pressão sanguínea aumenta, as pupilas se dilatam e a adrenalina é despejada na corrente sanguínea promovendo a contração de vasos periféricos em benefício da oxigenação dos grandes músculos. Como a própria palavra “luta” ou “fuga” sugere, esse mecanismo se destina a curtíssimos lapsos de tempo. O que ocorre no fenômeno do enfeitiçamento é que a causa do medo, o feitiço, se mantém permanente, sustentando essa condição orgânica que deveria durar apenas alguns segundos em sua função normal. O resultado disso, em termos fisiológicos, é desastroso. A pressão arterial, que havia se elevado num primeiro momento, cai acentuadamente em razão da vasoconstrição causada pela adrenalina. Os órgãos responsáveis pela circulação começam a sofrer os efeitos dessa má circulação e entra-se num círculo vicioso, descrito por profissionais da área médica como similar ao que acontece com grandes ferimentos com perda substancial de sangue. A falta de água e alimento, em razão da recusa do enfeitiçado, só faz acelerar esse processo. “A pele ficaria fria e úmida”, e a morte vem em poucos dias (CANNON, 1942, p. 179).
Para além da eficácia simbólica, uma das primeiras impressões despertadas pelo relato acima, é a impossibilidade de se separar mente e corpo, pois o psiquismo é uma organização, cujo objetivo é proteger o ser humano contra os ataques internos (pulsionais, passionais), e externos (mudanças ambientais, perdas diversas, alterações orgânicas), que ameaçam a vida do sujeito: o psiquismo faz parte integrante do sistema imunológico (CECCARELLI, 2005). No relato de Cannon, o impacto da ameaça psíquica (medo da morte) provocada pelo fenômeno do enfeitiçamento é de tal ordem que a condição orgânica, que deveria durar apenas alguns segundos em sua função normal, é mantida permanentemente, o que desorganiza o organismo como um todo, levando-o à morte.
Trabalhar a eficácia simbólica e sua relação com o Outro nos leva a um campo privilegiado do trabalho analítico: a transferência.
A transferência
Paralelamente às hipóteses fisiológicas de Cannon para explicar o fenômeno do feitiço, podemos agora conjecturar acerca das bases psíquicas presentes no enfeitiçamento. Qual seria a fonte desse poder encarnado pela palavra? Qual é o liame a entrelaçar o sujeito que fala e aquele que se vincula a essa fala de forma tão radical?
Relações distantes, antigas, as primeiras relações objetais com os cuidadores, permeadas por uma completa dependência, deixariam resíduos passíveis de ser atualizados quando do surgimento de circunstâncias favoráveis: esse é o fenômeno da transferência.
Embora a transferência esteja presente em todas as relações ao longo da história humana, sua particularidade no trabalho analítico foi introduzida inicialmente por Freud e, em seguida, por Ferenczi. No sentido lato, o termo “transferência” não se restringe ao campo psicanalítico e significa deslocamento, transposição, transmissão, substituição de um local a outro (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967). O próprio trabalho de análise tem seu motor justamente no manejo da transferência (FREUD, [1912] 1972). O analista pode, via transferência, ocupar o lugar do supereu, instância constituída a partir das primeiras identificações, mormente as de ordem parental (FREUD, [1938] 2018).
Trata-se de um elemento central na escuta, presente na mudança psíquica, que reedita a(s) forma(s) do sujeito se conduzir em suas relações com os outros.
Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico, próprio, de conduzir-se na vida erótica - isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece, nas [pulsões] que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela. Isso produz o que se poderia descrever como um cliché estereotípico (ou diversos deles), constantemente repetido - constantemente reimpresso - no decorrer da vida da pessoa, na medida em que as circunstâncias externas e a natureza dos objetos amorosos a ela acessíveis permitam (FREUD, [1912] 1972, p. 133).
Os desejos inconscientes do paciente relativos a seu universo psíquico e reatualizados pelo processo de análise são repetidos na pessoa do analista. Via transferência, o analista passa a ocupar o lugar de projeção e/ou de introjeção dos clichês estereotípicos do analisando.
São repetições de vivências infantis atravessadas por significativa sensação de atualidade:
[...] toda uma série de vivências psíquicas anteriores é reativada, mas não como algo passado, e sim na relação atual com o médico. Há transferências que em nada se distinguem do seu modelo no conteúdo, salvo na substituição. São, portanto - prosseguindo na metáfora -, simples reimpressões, novas tiragens inalteradas (FREUD, [1905] 1996, p. 312).
Em Transferência e introjeção,Ferenczi ([1909] 1991) afirma que a propensão à transferência nos psiconeuróticos (termo utilizado por Ferenczi para as neuroses de transferência em oposição às neuroses atuais) manifesta-se em todas as esferas da vida e não apenas dentro do tratamento psicanalítico.
[...] constatamos que essa tendência para a transferência por parte dos psiconeuróticos não se manifesta apenas no âmbito de uma psicanálise, nem unicamente em relação ao médico; muito mais do que isso, a transferência apresenta-se como um mecanismo psíquico característico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida [...] suas fantasias inconscientes ligam acontecimentos e pessoas do momento a eventos psíquicos há muito esquecidos [...] (FERENCZI, [1909] 1991, p. 77-78).
Assim como ocorreria na relação com o analista, a transferência na interação com objetos atuais se daria a partir de uma associação entre estes e distantes fantasias sexuais infantis. Esses objetos externos contemporâneos passariam a fazer parte das “séries psíquicas” iniciadas na infância e nas primeiras vivências amorosas envolvendo as figuras parentais.
Parece, no fim das contas, que a criança ávida de amor, mas inquieta, receosa, persiste no adulto, e que todo o amor, ódio ou medo posteriores são apenas transferências ou, como diz Freud, reedições de movimentos afetivos que surgiram na primeira infância [...] e foram depois recalcados no inconsciente (FERENCZI, [1909] 1991, p. 93).
Ainda em Transferência e introjeção, Ferenczi descreve o modo como se dá a formação do sintoma neurótico, a partir do recalque de determinados conteúdos. Tais conteúdos, que, num primeiro momento, envolveriam prazer, passam a causar insuportável desconforto a partir do surgimento de incompatibilidades posteriores. Esses conteúdos recalcados, no entanto, não se calam completamente: eles se fazem ouvir a partir da formação de sintomas substitutivos.
A libido inicialmente associada a esses conteúdos que em algum momento se tornaram incompatíveis com o ego ficaria livre, flutuante, ainda que apenas em parte, e se associaria a objetos externos aptos a tal associação. É justamente essa libido residual, livre e insatisfeita, o móbil que permite a transferência.
Dentro do conceito de introjeção que Ferenczi trabalha nessa mesma obra, haveria a tendência dos neuróticos de trazer para sua órbita de interesse uma parte significativa do ambiente externo, como forma de alívio dessa libido flutuante. Haveria uma busca permanente por objetos de identificação, aptos à transferência.
O neurótico interessa-se por tudo, distribui seu amor e seu ódio pelo mundo inteiro. O ego do neurótico é patologicamente dilatado (FERENCZI, [1909] 2011, p. 95).
Dessa maneira, a introjeção é concebida como um processo por meio do qual os neuróticos tentam neutralizar os afetos flutuantes, transferindo-os para objetos do mundo externo, expandindo sua esfera de interesses, seu ego.
O conceito de introjeção, em Ferenczi, guarda íntima conexão com o conceito freudiano de transferência, com a particularidade de que na ideia de introjeção está disposto, de forma mais clara, que o fenômeno em questão se dá não apenas em relação à figura do analista, mas a todo e qualquer objeto tomado pelo Ego.
Retornando ao tema do feitiço, quando um determinado conteúdo de linguagem (ainda que meramente gestual) é imposto à vítima, isso se dá como um agravo, como uma afronta. Ferenczi observa como uma fala dessa natureza, advinda do analista (ou de um outro personagem passível de transferência), irá afetar de forma intensa aquele que a recebe:
Em contrapartida, uma única palavra um pouco menos amistosa, um comentário a propósito da pontualidade ou de qualquer outra obrigação do paciente, basta para desencadear toda a raiva, o ódio, a oposição, a cólera recalcada, outrora alimentados a respeito das pessoas onipotentes que lhe impunham o respeito, pregavam a moral, ou seja, os pais, os adultos da família, os educadores (FERENCZI, [1909] 1991, p. 81).
É a criança presente no adulto que irá receber esses conteúdos de linguagem, com a mesma força que receberia de seus pais, com todas as implicações decorrentes dessa intensa interação primitiva, constituinte do sujeito, como vimos anteriormente.
O estádio do espelho: a presença do Outro na formação do sujeito
O mecanismo da transferência, nos moldes descritos por Freud e Ferenczi, nos auxilia na compreensão acerca da dinâmica, do mecanismo através do qual a palavra provoca impacto no sujeito, seja como dano, seja como cura. O conceito lacaniano do estádio do espelho irá, por outro giro, nos informar acerca da razão da intensidade desse efeito.
O estádio do espelho, como descrito por Lacan, nos dá um panorama bastante ilustrativo sobre o modo como os primeiros processos identificatórios são constituintes do sujeito. O olhar do outro molda, chancela, valida as impressões desse observador inexperiente.
Freud já havia proposto que o humano não se reduz ao biológico. Ao contrário da psiquiatria de seu tempo, essencialmente adstrita ao anatômico, ao fisiológico, Freud desenvolveu um saber em que, de um lado, não se desconsidera o biológico, e, de outro, se dá a devida voz ao psiquismo. Na Conferência I: Introdução, ele diz:
Essa é a lacuna que a psicanálise busca preencher. Ela pretende fornecer à psiquiatria o fundamento psicológico faltante; espera descobrir o terreno comum a partir do qual se possa compreender a convergência do distúrbio físico e do psíquico. Para tanto, é necessário que ela se mantenha livre de todo e qualquer pressuposto anatômico, químico ou fisiológico que lhe seja estranho, que trabalhe com conceitos auxiliares puramente psicológicos, e é por essa mesma razão que, receio, ela lhes parecerá estranha inicialmente (FREUD, [1916] 1996, p. 27).
Se, por um lado, a influência do biológico é inafastável, por outro, as coisas ali não se esgotam. Já no Projeto para uma psicologia científica,Freud ([1895] 1996) ressalta que o recém-nascido humano apresenta uma absoluta dependência frente ao outro incumbido de seus cuidados. Esse estado de absoluta vulnerabilidade coloca esse outro, essa alteridade, como condição sine qua non para a sua sobrevivência, para seu próprio surgimento psíquico. A estreita relação entre a dependência biológica e a experiência psíquica oriunda dessa dependência é a base daquilo que Freud irá chamar de desamparo2 originário, situação antropológica fundamental do humano que, ao nascer, se encontra em total dependência de um outro que lhe forneça as ações para garantir a sobrevivência. A alteridade, o Outro, é a base inicial para a construção da subjetividade.
Sem uma “assistência alheia” - fremde Hilfe - (FREUD, [1950/1895] 1969, p. 422), o recém-nascido é incapaz de promover as alterações necessárias à diminuição das exigências pulsionais. A falta de recursos motores e psíquicos aumenta o valor do objeto que promove a diminuição da tensão, pois “só ele [o objeto] pode proteger desses perigos e substituir a vida intrauterina perdida” (FREUD, [1926] 2016, p. 142).
O Outro, que surge como um poder absoluto, radical, impactando de forma indelével a construção da subjetividade, é aquele(a) que garante ao recém-nascido um berço psíquico: o lugar que a criança ocupa a partir da interpretação que ela faz do desejo do Outro, ou seja, de quem lhe deu vida psíquica e a acolheu, ou não, no mundo (CECCARELLI, 2002).
Para que a “sobrevivência psíquica” (McDOUGALL, 1997) ocorra, o Outro deve oferecer suporte ao candidato potencial a sujeito, na travessia de duas “violências” incontornáveis, fundamentais e fundantes: a “violência primária” (AULAGNIER, 1979), que diz respeito à introdução do recém-nascido na linguagem atribuindo-lhe um lugar no Outro, e a “violência simbólica” (BOURDIEU, 2002), relativa à aquisição dos códigos e valores da sociedade na qual ele se encontra inserido.
Em consonância com sua releitura da obra freudiana, Lacan também vai dizer que a construção do sujeito se dá não como uma evolução biológica, mas como um processo relacional, como um precipitado de uma relação com o Outro. O estádio do espelho seria o lugar, o campo onde essa experiência se desenrola. No trabalho que traz o mesmo nome, Lacan aponta a precariedade psicomotora da criança como o elemento que irá impor sua total dependência ao Outro. Haveria uma “prematuração específica do nascimento no homem” (LACAN, [1949] 1998, p. 100).
O estádio do espelho como formador da função do eu (LACAN, [1949] 1998) tem uma dimensão de lugar, de campo e uma dimensão de experiência, uma dimensão empírica. Ao contemplar sua imagem no espelho, a criança não infere imediatamente que é ela mesma naquela visão. É a partir da troca de olhares com um Outro experimentado que se dá a chancela, a confirmação de que se trata dela mesma na imagem que mira. Esse aval da alteridade é parte inafastável dessa descoberta do Eu: “Eu sou porque o Outro diz que eu sou”. É um reconhecimento que sustenta esse conhecimento.
Essa vivência do estádio do espelho não se esgota aí. A cada nova interação que se estabeleça entre o sujeito e seu corpo, o sujeito e o outro, o sujeito e o corpo do outro, essa dinâmica estará presente. A costura da percepção se dá fora do espelho, se dá na interação com o outro. Assim, Lacan vai dizer que o Eu é produto de uma identificação com o desejo do Outro. Para além das figuras parentais, o que está do lado de fora do espelho é o espaço da linguagem, instância da qual advém o “sim”; “sim é você ali no espelho”. Numa extrapolação para além do objeto físico, do vidro espelhado, o espelho é tudo aquilo capaz de refletir, de devolver ao sujeito a sua própria imagem, distinguindo-o como indivíduo. O espelho é o grupo, o espelho é o olhar do outro.
O estádio do espelho, segundo Lacan ([1949] 1998), inaugura o processo de identificação com a imago do Outro, subsumindo o Eu às expectativas da cultura. É o momento que faz o sujeito mediar os anseios pulsionais pelo desejo do Outro. A própria maturação, no homem, passa a depender de uma “intermediação cultural, tal como se vê, no que tange ao objeto sexual, no complexo de Édipo” (LACAN, [1949] 1998, p. 102).
Essa vinculação identificatória encontra seu mecanismo perpetuado sob a dinâmica da transferência. Ao longo da vida, já não serão apenas as figuras parentais a ocupar essa função modelar. Outras personagens assumirão esse papel especular ao qual Lacan atribuiu o epíteto de o Outro. O processo a partir do qual esse Outro passa a ocupar essa posição privilegiada inicialmente ocupada pelos pais é a transferência.
Assim, a partir da própria dinâmica de construção do sujeito, o Outro passa a exercer um papel especular. Aquele que me diz quem eu sou passa a deter a verdade sobre mim. Com que grau de liberdade é possível “ser” à revelia do olhar do outro? Sartre retrata essa noção brilhantemente em sua peça Entre quatro paredes onde uma das personagens constata não sem surpresa:
Então, é isto o inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalhas, grelhas... Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: O inferno são os Outros (SARTRE, [1947] 2022, p. 139).
Conclusão
À guisa de conclusão, podemos pensar como estas contatações acerca do poder do feitiço jogam no homem contemporâneo alguma luz nas interações identificatórias. Harold Bloom (2000), renomado crítico literário e ensaísta norte-americano, afirma no próprio título de uma de suas obras que Shakespeare “inventou o humano”. Segundo Bloom, Hamlet seria o personagem a inaugurar, na tradição ocidental, o mergulho dentro de si mesmo, a busca por respostas próprias frente às circunstâncias externas, opondo, assim, uma certa barreira em relação ao olhar alheio.
Ao longo da peça teatral, percebemos Hamlet (SHAKESPEARE, [17__?]) vivendo uma explosão de consciência. É como se uma venda lhe caísse dos olhos a partir de sucessivas decepções com pessoas muito próximas, inclusive sua própria mãe. Esse banho de consciência vai se estendendo para círculos maiores como em sua constatação de quão raros são os amigos confiáveis, dos jogos de interesse que perpassam praticamente todas as relações humanas, da frivolidade das etiquetas da corte.
A nova consciência, no entanto, faz com que esse novo homem perca a sensação de pertencimento, de espírito coletivo, próprio da religiosidade do medievo. Assombrado pela aquisição de uma brutal consciência de si mesmo, Hamlet destampa essa caixa de Pandora e revela o desamparo que nos acomete a todos indistintamente. O que eu seria, quem eu seria se estivesse sozinho no mundo? A jornada do príncipe na peça parece sugerir que todos estamos.
O homem contemporâneo aparenta ter esquecido Hamlet. Esse humano da era nas redes sociais parece manter um olhar fixamente dirigido ao outro à espera de validação. O modo como o outro me vê, a interação que nele eu suscito, representam aquilo que eu sou. O ser, mais do que nunca talvez, passou a estar fora do sujeito. Ele é definido de fora para dentro.
Já não basta mais existir. É necessário que o outro confirme, via likes e comentários, a validez de minha existência (seriam as redes sociais o Outro da atualidade?). A dependência pela eterna validação externa nos sugere que o poder do feitiço nunca esteve tão presente. Cumpre postar imagens de sucesso em profusão, cenas de família, viagens, pratos sofisticados, corpos arduamente esculpidos. Tudo é válido para evitar o feitiço, o opróbio reservado aos que vivem uma vida supostamente medíocre e enfadonha.
Além dessa exibição da vida privada, digna de um “show de Truman”,3 o consumo de marcas de luxo nunca foi tão simbolicamente emblemático. Seriam as marcas amuletos modernos capazes de proteger aquele que as ostenta do olhar do outro?
A partir da asserção de Freud ([1917] 2010, p. 251) de que o homem não é senhor em sua própria casa, podemos inferir que a palavra do outro, o olhar do outro são elementos absolutamente do campo fenomenológico, algo que guarda muito mais conexões com questões inconscientes desse outro do que propriamente com o sujeito alvo desse olhar. Se o homem não é de fato senhor de suas ações, que posso eu esperar do outro?
Como corolário desse desamparo inafastável, Freud nos oferta a liberdade, filha dadivosa desse ventre sombrio. O fato de haver esse abismo insondável entre cada espírito, por um lado, nos priva de uma paz que os animais aparentam ter; por outro lado, nos revela que para o homem não há projeto feito, não há enredo previamente determinado e talvez, justamente em razão disso, nós sejamos livres.