Psicanálise e educação são campos de conhecimento distintos, mas quando dialogam entre si, produzem grandes benefícios, podendo proporcionar encaminhamentos e formas de intervenção mais assertivas no que se refere às demandas escolares. Este artigo pretende fazer uma articulação entre psicanálise e educação através do relato de uma experiência de construção de projeto socioemocional em uma escola particular.
Segundo Outeiral (2005), a função da escola é educar, isto é, conforme o significado etimológico da palavra - “colocar para fora” o potencial do indivíduo e oferecer um ambiente propício ao desenvolvimento dessas potencialidades, ao contrário de ensinar, que é in + signo, ou seja, colocar “signos para dentro” do indivíduo. Evidentemente, a criança chega à escola levando consigo aspectos constitucionais e vivências familiares, porém o ambiente escolar será também uma peça fundamental em seu desenvolvimento. Esses três elementos - aspectos constitucionais, vínculos familiares e ambiente escolar - constituirão o tripé do processo educacional. Nesse sentido, educar também passa pela dimensão do cuidado no que se refere aos aspectos, não só de aprendizagem, mas também de cuidado com o corpo e com o psiquismo que habita ou está em vias de habitar o corpo.
Na perspectiva da ética do cuidado, a função do professor nos remete à fábula de Higino,1 também conhecida como Mito do Cuidado, que narra o papel do cuidador na estruturação do homem, aproximando-nos de uma leitura poética sobre a constituição da humanidade.
Conta-se:
Cuidado, ao atravessar um rio, viu uma massa de argila e, mergulhado em seus pensamentos, apanhou-a e começou a modelar uma figura. Enquanto deliberava sobre o que fizera, Júpiter apareceu. Cuidado pediu que ele desse uma alma à figura que modelara e facilmente conseguiu. Como Cuidado quisera dar seu próprio nome à figura que modelara, Júpiter o proibiu e ordenou que lhe fosse dado o seu. Enquanto Cuidado e Júpiter discutiam, apareceu Terra, a qual igualmente quis que seu nome fosse dado a quem ela dera o corpo. Escolheram Saturno como juiz e este equitativamente assim julgou a questão: “Tu, Júpiter, porque lhe deste a alma, tu a receberás depois de sua morte. Tu, Terra, porque lhe deste o corpo, Tu o receberás quando ela morrer. Todavia, porque foi Cuidado quem primeiramente a modelou, que ele a conserve enquanto ela viver. E, agora, uma vez que, entre vós, existe uma controvérsia sobre o seu nome, que ela se chame Homem, porque foi feita do húmus [da terra] (ROCHA; FRANÇA, 2011,p. 75).
De acordo com Rocha e França (2011), as dimensões do cuidado atravessam os indivíduos desde sempre, participando e contribuindo para a construção da subjetividade. Portanto, a marca da presença do outro, transforma o cuidado em um elemento fundamental no processo de subjetivação, conferindo-lhe uma função estruturante na vida, posto que a maneira como somos recebidos e reposicionados no mundo guarda relação direta com as formas de ser e de existir. No ambiente escolar, a figura do professor, ao promover uma presença de acolhimento e sustentação, leva a uma experiência de integração expressa pelo equilíbrio subjetivo e espontâneo. Essa função tem se tornado cada vez mais importante se considerarmos o fato de que as crianças têm ingressado cada vez mais cedo no ambiente escolar, em grande parte das vezes, com menos de um ano de vida.
Ribeiro (2014) afirma que a educação e a psicanálise percorrem um complexo caminho, entrelaçando seus saberes sobre o desenvolvimento do ser humano. Esse entrelaçar permitiu o levantamento de questões relacionadas ao funcionamento psíquico do ser humano, à relação de transferência aluno-professor, ao prazer de aprender (questão do desejo), à terapêutica da educação, à linguagem, etc. Ainda conforme a autora, a psicanálise, como corpo teórico, e a educação, como discurso social, imbricam-se em um processo de mudanças que afeta tanto uma quanto outra no que tange às suas áreas de atuação.
Donald Winnicott (1990) nos traz a ideia de que todo o indivíduo é dotado de uma tendência inata ao amadurecimento, o que significa, à integração numa unidade. Apesar de inata, a tendência ao amadurecimento não se realiza apenas com a passagem do tempo. Para que venha a se realizar, o bebê e, mais tarde, a criança, dependem fundamentalmente da presença de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons. O amadurecimento começa em algum momento após a concepção e, quando há saúde, não cessa até a morte. Entretanto, a ênfase da teoria do amadurecimento emocional recai sobre os estágios iniciais, período em que os alicerces da personalidade e da saúde psíquica estão sendo construídos. Ainda segundo Winnicott (1990), a saúde é um estado complexo, que tem suas próprias exigências e deve ser pensado em si mesmo. Assinala, em sua teoria, a existência de dificuldades que pertencem ao próprio fato de estar vivo e de amadurecer. Desde seu início, a vida é difícil em si mesma e a tarefa de viver, de continuar vivo e amadurecer é uma batalha que permanece. Guimarães Rosa ([1956] 1986, p. 94), em Grande sertão: veredas, sabiamente disse que “viver é um rasgar-se e remendar-se”.
“A hora do eu”
O projeto teve início em janeiro de 2021, quando a equipe diretiva da AVAEC - Unidades Educacionais, escola particular sediada no município de Veranópolis (RS), me desafiou a coordenar um projeto socioemocional voltado aos dois últimos anos da educação infantil e ao primeiro ano do ensino fundamental, portanto abrangendo crianças na faixa etária dos 4 aos 7 anos. Assim, nasceu o projeto A hora do eu com o objetivo oferecer aos alunos um ambiente facilitador no desenvolvimento de aspectos socioemocionais. Para tanto, é preciso trabalhar maciçamente com os professores a fim de oferecer escuta e afinar a escuta deles em relação ao que é dito e àquilo que fica na instância do não dito. Mais do que o ímpeto de ocupar um lugar de onipotência na resolução de conflitos, é preciso aprender a escutar os conflitos e os indivíduos que compõem determinada realidade.
A metodologia do projeto passa fundamentalmente pela formação e pelo suporte, oferecidos uma vez ao mês a todos os professores titulares e auxiliares da instituição de ensino, no sentido de abordar os aspectos constitutivos do desenvolvimento humano, a partir de autores como Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott, Françoise Dolto, André Green, Maria Cristina Kupfer e outros teóricos da contemporaneidade.
Além disso, foram oferecidos com frequência quinzenal espaços de escuta aos professores e coordenadores dos níveis de ensino aos quais o projeto é direcionado, ou seja, aqueles que desenvolvem diretamente as atividades de A hora do eu com as turmas. Mediante essa atividade denominada supervisão, tem sido possível, inaugurar um espaço de escuta sob o viés psicanalítico, em que a transferência e a contratransferência na relação professor-aluno pode ser analisada, com a instrumentalização dos professores para lidar com demandas e conflitivas diversas. Além disso, com esses encontros pretende-se pensar nas atividades a serem desenvolvidas com os alunos, bem como treinar a escuta dos professores aos processos, não só do desenvolvimento infantil, mas também em relação a outros aspectos subjetivos e inconscientes que eclodem no ambiente escolar.
Como nos ensinam Outeiral e Cereser (2005) na obra O mal-estar na escola, o objetivo desses encontros com os professores é buscar significados, hipóteses para os acontecimentos daquela realidade escolar, subjetivando, assim, a experiência vivida, ou seja, a criação de estratégias de pensamento para significar uma vivência.
Articular psicanálise e educação é um desafio. O fato de a psicanálise se oferecer como um importante fundante do instrumento de escuta é o que nos possibilita, muitas vezes, contribuir para a leitura do mal-estar vivido pelo professor na sala de aula em relação ao ato educativo na atualidade (OUTEIRAL; CERESER 2005, p. 58).
Longe de pretender normatizar comportamentos, a intenção é
[...] pensar como se produz a subjetividade do sujeito a partir do ordenamento dos sistemas simbólicos transmitidos pelo social (OUTEIRAL; CERESER, 2005 Citados por SCHAFFER, 1999, p. 35).
Ribeiro (2014) nos diz que Freud introduz a noção de educador analisado ou com informação psicanalítica que conduziria o processo educativo no caminho da realidade, trazendo a concepção de um trabalho educativo psicanaliticamente esclarecido. Nesse aspecto, Ribeiro (2014) cita Kupfer (2006, p. 119), autora que propõe à transmissão da psicanálise para além da clínica quando diz que “há uma transmissão da psicanálise ao educador, além daquela que poderia ser feita no divã”.
Com desses grupos foi possível observar que o retorno das atividades escolares em plena pandemia apresentou muitos desafios. Nasce uma nova escola, atravessada não só pelos protocolos de higiene, distanciamento, medo da contaminação, mas também pela rica e indispensável oportunidade de oferecer um ambiente suficientemente bom, como nos diria Winnicott, para sustentar e acolher as vicissitudes de um tempo marcado por tantos traumas. Nesse sentido, o ambiente escolar apresenta-se como um terreno fértil para que se criem narrativas sobre as privações, o luto e o sofrimento desse tempo ímpar da história da humanidade, tempo que tem deixado marcas em todos nós.
Nos grupos com as crianças, no momento denominado A hora do eu, coordenados pelas professoras titulares das turmas, são trabalhadas diversas questões, como “a noção de eu”, que passa por aspectos do corpo e da capacidade de nomear sensações e emoções como, raiva, saudades, amor, nojo. Especificamente nesta atividade, as crianças foram convidadas a desenhar seu próprio corpo em um papel pardo. E a partir da construção da imagem corporal de cada um, elas elegeram as cores que pudessem corresponder às diversas emoções e, então, situar as emoções nas partes do corpo projetado no papel, cada um ao seu modo.
Obviamente os desdobramentos dessa atividade foram muito diferentes em cada turma, dependendo das especificidades de cada grupo. Além disso, a fim de trabalhar aspectos emocionais, são utilizadas ferramentas lúdicas e artísticas, como a criação de histórias e a utilização da literatura infantil de qualidade, que permite a identificação das crianças com os personagens, o que abre posteriormente um campo de reflexão e a possibilidade de simbolização e construção de novos sentidos para a realidade.
Maria Rita Kehl (2006, p. 18), no prefácio da obra Fadas no divã, nos lembra que, contar histórias, não é apenas um jeito de dar prazer às crianças, mas sobretudo um modo de ampará-las em suas angústias, ajudá-las a nomear o que não pode ser dito, ampliar o espaço da fantasia e do pensamento. Kehl cita Corso (2006, p. 18), que diz que “a ficção acaba sendo uma saída para que certas verdades se imponham”. A arte, nessa perspectiva, é um recurso amplamente utilizado no projeto.
O projeto aborda amplamente o fenômeno da transferência postulado por Freud. Ribeiro (2014) afirma que o próprio Freud, em 1914, fala que o professor pode ser ouvido quando está revestido por seu aluno de uma importância especial. Isso significa que a aprendizagem está focada não somente nos conteúdos, mas também passa invariavelmente por questões inconscientes que se manifestam na transferência e na contratransferência. O fenômeno da transferência pode ser entendido como reedições de vivências psíquicas que são atualizadas na relação com o professor.
Ribeiro (2014) argumenta que a transferência é um fenômeno percebido em todas as relações humanas e pode produzir efeitos reparáveis tanto positivos quanto negativos. Saber da existência e conhecer a dinâmica desse fenômeno tem se mostrado um recurso importante na construção deste projeto, uma vez que os professores, em sua maioria, desconhecem o poder que têm em suas mãos.
A transferência é, antes de tudo, transferir sentidos e representações, e que no contexto escolar, de acordo com Santos (2009) ganha vida na relação professor-aluno, reeditando, no presente, os impulsos e fantasias marcados nos primeiros anos de vida, a partir das relações parentais e fraternais que foram determinantes para o sujeito na sua constituição. Na escola, portanto, o professor, a exemplo do analista, e independentemente de sua ação, pode despertar afetos no aluno para além daquilo que ele próprio tem noção conscientemente. O mesmo pode acontecer ao professor, por parte do aluno. Porque esse fenômeno pode se estabelecer nesses dois sentidos - numa via de mão única - transferência e contratransferência (RIBEIRO, 2014, p. 26).
Entendemos que os grandes diferenciais deste projeto são a escuta da infância, a partir da singularidade de cada grupo e indivíduo, bem como o acolhimento dos professores, no sentido de escutá-los e oferecer as ferramentas da psicanálise que possam auxiliar em uma leitura inconsciente dos fenômenos. Quando menciono o termo “escuta”, me refiro a uma escuta ativa, amoral e preparada para acolher os sujeitos do contexto escolar, em suas demandas e eventuais sofrimentos; sustentada pela ética do cuidado, auxiliando na prevenção tanto do adoecimento psíquico quanto do empobrecimento das relações. O olhar da psicanálise nos instrumentaliza a traduzir aspectos inconscientes, passíveis de serem desvendados e proporciona intervenções mais assertivas.
Françoise Dolto, médica pediatra e pioneira no atendimento de crianças na França, em uma época em que as crianças não eram escutadas, ressaltou a capacidade delas em comunicar questões emocionais de forma singular, além se serem ativas na aprendizagem. A escola, na percepção de Dolto (1998), é um mundo expandido, que possibilita um distanciamento da família e a consequente socialização. Através dela, a criança precisa encontrar meios de se expressar, fazer-se entender pelas pessoas que não a conhecem e não conseguem antever suas necessidades. Nesse sentido, a escola cria pontes com a sociedade.
Considerações finais
O ano 2020 e seus atravessamentos pandémicos, provou de forma definitiva que a escola é não somente espaço de aprendizagem, mas também de pertencimento social e produção de saúde mental.
A psicanálise, no ambiente escolar, agrega valor no sentido de perceber e traduzir os movimentos inconscientes que por ele circulam. Possibilita um olhar singular e diferenciado na relação professor-aluno através dos conceitos de transferência e contratransferência; oferece ao professor a possibilidade de uma leitura ampliada acerca dos fenômenos do desenvolvimento humano; habilita o professor na percepção de sintomas que eventualmente possam se manifestar no contexto da aprendizagem e instrumentaliza a pensar sobre as questões inconscientes individuais que invariavelmente se atravessam nas relações.
Na ocasião do último encontro do ano de 2021 com o grupo de professores, foi solicitado a eles que expusessem/relatassem/ manifestassem suas impressões acerca dessa experiência pioneira, vivenciada ao longo de todo o ano. Todos relataram que desfrutar de um espaço de escuta, foi muito importante no que se refere à discussão dos aspectos do desenvolvimento infantil, bem como no que se refere à reflexão da transferência e contratransferência entre professor-aluno e, principalmente, no que diz respeito à análise dos seus próprios afetos e implicações. Em função dos efeitos positivos dessa experiência, no ano 2022, o projeto será ampliado para todos os níveis da educação infantil até o quarto ano do ensino fundamental.
Enfim, a escola enquanto ambiente facilitador do desenvolvimento socioemocional exige manejos respeitosos para a construção de vínculos seguros e a psicanálise, nesse aspecto, contribui para que haja uma reflexão constante acerca dos processos. É preciso escutar a infância e, conforme nos ensina Gutfreind (2022, p. 46), “a infância hoje, é múltipla, e qualquer tentativa de sistematização pode estar fadada ao fracasso”.
É importante ressaltar que o amadurecimento emocional, segundo a teoria Winnicottiana, nunca cessa:
Deve-se esperar que os adultos continuem o processo de crescer e amadurecer, uma vez que eles raramente atingem a maturidade completa. Mas uma vez que eles tenham encontrado um lugar na sociedade através do trabalho, e tenham talvez se casado ou se estabelecido em algum padrão que seja uma conciliação entre imitar os pais e desafiadoramente estabelecer uma identidade pessoal, uma vez que esses desenvolvimentos tenham lugar pode-se dizer que se iniciou a vida adulta, e que os indivíduos, um a um, estão saindo desta área coberta por esta breve conceituação do crescimento que foi descrito em termos da dependência à independência (WINNICOTT, [1954] 1990, p. 87).