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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.58 Belo Horizonte jul./dez. 2022  Epub 14-Fev-2025

https://doi.org/10.5935/2175-3482.n58a14 

ARTIGOS

O trauma psíquico: retrato de caso clínico

Psychic trauma: clinical case portrait

Wilma Zuriel de Faria Maschke1 

Deise Matos do Amparo2 

Helena Maria Melo Dias3 

1Psicóloga. Psicanalista em formação continuada pelo Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Bacharela em Direito. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (PPGPsiCC) do Departamento de Psicologia Clínica (PCL) da Universidade de Brasília (UnB). Psicóloga e pesquisadora no grupo de Vivências e Psicopatologias na Contemporaneidade - Diagnóstico e Supervisão Clínica da Universidade de Brasília junto ao Hospital Universitário de Brasília (VIPAS). Integrante do corpo clínico da Clínica Social de Psicanálise Hélio Pellegrino. Coordenadora do Grupo de Estudo em Psicanálise Contemporânea. E-mail: zurimaschke2501@gmail.com

2Professora Adjunto II do Departamento de Psicologia Clínica - Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Doutora em Psicologia com doutorado sanduíche pela Université Jules Verne - França (2002). Pós-doutora pela Université Paris V (2009). Pós-doutora pela Université Paris XIII (2016). Pós-doutora pela Universidade Federal da Bahia (2022). E-mail: deise.amparo.matos@gmail.com

3Psicóloga. Psicanalista. Professora Adjunto IV da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Mestre (2001) e doutora (2007) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-doutora na Universidade Federal do Pará (UFPA). Líder do grupo do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (LPPF/UFPA). Líder do grupo Subjetividade, Afetividade e Cuidado em Saúde (UEPA/CNPQ). Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Pós-doutora com auxílio CAPES. Integrante do projeto de pesquisa (CNPq). Psicanalista e sócia fundadora do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA), filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). E-mail: hmelodias@uol.com.br


Resumo

O trauma não é um acontecimento em si, mas a forma como esse acontecimento interpela e é processado interna e externamente pelo sujeito em seu psiquismo. Para Ferenczi o traumatismo sexual infantil é da ordem do choque e da comoção psíquica, os seus impactos são diversos e afetam a vida dos sujeitos que por ele são atravessados. Nessa perspectiva, o retrato de caso clínico de Maria, uma mulher ribeirinha da região amazônica, possibilita pensar sobre as repercussões do abuso sexual infantil na vida adulta, bem como a forma como a clínica do traumático convoca o analista a um enquadre interno. O manejo clínico, segundo Winnicott, com o estabelecimento do setting e do holding possibilitam um ambiente suficientemente bom, para que o sujeito sinta-se seguro possibilitando a translaboração psíquica.

Palavras-chave Trauma; Abuso sexual infantil; Setting; Holding; Translab oração

Abstract

Trauma is not an event itself, but the way in which this event challenges and is processed internally and externally by the subject in his psyche. For Ferenczi childhood sexual trauma comes from the order of shock and psychic commotion, the impacts of psychic trauma are diverse and affect the lives of the subjects crossed by it. In this article, the portrait of Maria’s clinical case, an Amazonian riverside woman, makes it possible to think about the repercussions of child sexual abuse in adult life, as well as the traumatic clinic summons the analyst to an internal framework. Clinical management, according to Winnicott, the establishment of the setting and the holding provide a sufficiently good environment, thus the subject feels safe, enabling psychic transforation.

Keywords Trauma; Child sexual abuse; Setting; Holding; Translaboration

Introdução

Este artigo trata do conceito de trauma na teoria psicanalítica, abordado desde os primórdios de Freud, discutido amplamente na obra de Sándor Ferenczi e pelos teóricos contemporâneos da psicanálise, tendo em vista a compreensão da matriz ferencziana sobre o adoecimento psíquico que se dá a partir da situação traumática e/ou da situação de perigo.

As discussões sobre o trauma e os seus impactos psíquicos se dirigem para uma compreensão crítica da sociedade contemporânea, ou seja, dos fatores históricos, sociológicos e antropológicos - a exemplo da cultura machista de exploração do corpo feminino, que silencia e aniquila tais corpos, o que pode afetar de modo nocivo a maneira de ser dos sujeitos, particularmente das mulheres.

Embora o enfoque da psicanálise seja voltado para os sujeitos individualmente, para a história singular de cada pessoa, apoiandose em sua história infantil única, e em muitos aspectos essa história possa ser também compartilhada, o trauma não é um acontecimento em si, mas o modo como esse acontecimento incide sobre o psiquismo de alguém e é processado por ele. Para Ferenczi ([1933] 1992), a comoção psíquica sobrevém sempre sem preparação, é um choque equivalente à aniquilação do sentimento de si.

Nesse sentido, o trauma ou os eventos traumáticos podem incidir de várias formas na história de vida de cada sujeito. Compreende-se o abuso sexual infantil como um traumatismo psíquico que provoca impactos diversos e afeta, mesmo a longo prazo, a vida dos sujeitos atravessados por ele. Esse aspecto abre a discussão acerca da repercussão do seu impacto na vida adulta das mulheres vítimas dessa experiência traumática.

Assim, a proposta deste estudo é abordar o conceito de trauma articulado ao retrato do caso clínico de uma mulher que sofreu abuso sexual na infância, evidenciando os impactos psíquicos referentes a essas vivências traumáticas, como uma possibilidade de dar contorno e visibilidade a uma realidade comumente retratada por mulheres ribeirinhas adultas acolhidas no contexto da clínica psicanalítica no município de Macapá (AP). Nesse contexto, frequentemente a história de vida dessas mulheres atravessadas pelo abuso sexual infantil é negligenciada socialmente como evento traumático.

O traumatismo psíquico

O conceito de trauma foi formulado por Freud ([1916-1917] 2010) para designar uma vivência que, no espaço de pouco tempo, provoca na vida psíquica um aumento de excitação tão intenso que faz fracassar sua liquidação ou sua elaboração pelos meios normais e habituais. O afluxo de excitações relativamente à tolerância do aparelho psíquico é excessivo, seja um só acontecimento muito violento (emoção forte), seja um acúmulo de excitações que, ocorridas isoladamente, seriam intoleráveis. Freud estabelece uma distinção entre a situação de perigo e a situação traumática: no primeiro caso, há um evento registrado, representado simbolicamente; no segundo, é irrepresentável.

Em Além do princípio do prazer,Freud ([1920] 2010) destaca a pulsão de morte e a compulsão à repetição como elementos que permitem um avanço na compreensão da teoria do trauma. Diferentemente do primeiro modelo, no segundo modelo do trauma proposto por ele em Inibições, sintomas e ansiedade (FREUD, [1926] 2006) prevalece o caráter econômico, não simbolizável e inacabado do acontecimento.

Segundo Ferenczi ([1933] 1992) em Reflexões sobre o trauma, o traumatismo é da ordem de um choque equivalente à aniquilação do sentimento de si e da capacidade de resistir, agir e pensar, engendrando uma comoção psíquica no sujeito, da ordem dos restos, dos destroços, equivalente a um desmoronamento psíquico, uma perda de sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada que é sem forma - “a maneira de um saco de farinha” (FERENCZI [1933] 1992, p. 109). Além disso, para Ferenczi ([1933] 1992, p. 110), a consequência imediata de cada traumatismo é a angústia, que consiste no sentimento de incapacidade para se adaptar à situação de desprazer - “(1.º) subtraindo seu si mesmo à irritação (fuga); (2.º) eliminando a irritação (aniquilamento da força exterior)”.

Ainda para Ferenczi ([1933] 1992), o traumatismo sexual passa a ser considerado como um fator patogênico, uma vez que as crianças vítimas se sentem física e moralmente sem defesa, em uma enorme confusão a partir da introjeção do sentimento de culpa do adulto, resultando em uma confusão de línguas entre o adulto e a criança.

Aqueles que perdem tão precocemente o gosto pela vida apresentam-se como seres que possuem uma capacidade insuficiente de adaptação em virtude da precocidade do trauma (FERENCZI, [1929] 1992, p. 50).

Figueiredo (2018) adverte que há duas importantes matrizes para a compreensão dos adoecimentos psíquicos: a matriz freudo -kleiniana e a matriz ferencziana. Esta última pode ser caracterizada pelos adoecimentos por passivação, centrados na agonia diante de estados psíquicos mortíferos, estabelecidos em traumas muito precoces,

[...] modalidades e intensidades de sofrimento e dor que ultrapassam as capacidades ativas do psiquismo, deixando-o inerte, provisoriamente ou definitivamente, em estado de morte ou quase morte (FIGUEIREDO, 2018, p. 28),

Assim, essa condição reduz o psiquismo a uma condição de passividade e inoperância das capacidades de sonhar, brincar, criar, simbolizar e até morrer.

Para Roman (2017), o traumatismo requer dois ingredientes: a experiência traumática e o sentimento de uma ausência de recursos, ou consiste na dupla experiência - uma situação violenta à vida psíquica e a experiência da ausência de um adulto assegurador no seu ambiente. Lá, onde alguma coisa deveria ter se passado para a criança, é o nada que se faz presente (WINNICOTT, 1994).

A violação da intimidade pelo abuso sexual incestuoso pode produzir um assassinato da identidade, aniquilar o sentimento de si, provocar a perda do caráter animado do sujeito e levar à despersonalização ou dissociação (MAZOYERet al., 2020, p. 1).

De acordo com Winnicott ([1956] 1994), os fatores ambientais e familiares influenciam diretamente no traumatismo psíquico. O autor considera fundamental o fator externo como determinante para o funcionamento psíquico. Para ele, a relação segura mãe-bebê, isto é, a relação em que a criança consegue interiorizar a mãe “boa o suficiente”, permite a emergência do self (WINNICOTT, 1975). É nesse primeiro momento que a mãe suficientemente boa (ou ambiente facilitador) se adapta ao seu bebê através da identificação primária, possibilitando o surgimento da experiência onipotente de que foi ele que criou o seio. Essa ilusão de onipotência é uma experiência fundamental, para que mais tarde haja o movimento de separação gradual (CANDI, 2010). Trata-se de uma relação de continente essencial para a sobrevivência psíquica da criança.

Além disso, o traumatismo consiste no fracasso da relação de dependência (WINNICOTT, 1994), uma vez que ele rompe a idealização do objeto primário, incapaz de realizar a sua função. Em decorrência disso, há o desabamento de toda a confiança estabelecida no ambiente supostamente previsível. O traumatismo é vivenciado como intrusões de fatos, que despertam na criança um sentimento de ódio diante da quebra do objeto idealizado. De fato, o objeto não pôde se ajustar de uma forma sensível suficiente às necessidades do Eu do sujeito, tampouco se ofereceu adequadamente como aparelho psíquico para simbolizar os elementos irrepresentáveis decorrentes das experiências traumáticas.

O abuso sexual infantil

O abuso sexual infantil é uma realidade no Brasil. Segundo dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, entre 2011 e o primeiro semestre de 2019, foram registradas mais de 200 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes (BRASIL, 2021). Apesar disso, ainda é uma realidade invisibilizada e naturalizada em muitos contextos sociais e territoriais, mas na Amazônia, particularmente nas populações ribeirinhas do Amapá, essa invisibilidade é vultosa apesar da subnotificação e da escassa literatura científica na área.

O ribeirinho é descrito como um personagem central nos processos histórico e social da região Amazônica brasileira (MURRIETA, 1998). Embora seus ecossistemas relacionais sejam ainda ignorados ou focados como fatos sociais exóticos no meio académico, peculiaridades sociais justificam a importância de estudos acerca da forma como se relacionam, propiciando apreciações macrossistêmicas para que sejam visibilizados (SILVA et ai., 2011). Além disso,

[...] a análise da violência sexual infantil em comunidades ribeirinhas é um clamor por um olhar mais humano e igualitário para aqueles que vivem à margem dos rios (CARDOSO; SANTOS, 2021, p. 15825).

Com frequência mulheres ribeirinhas vítimas de abuso sexual infantil chegam à idade adulta sem nunca antes terem falado sobre as situações de abuso sofridas na infância e/ou na adolescência, o que é o reflexo de um silenciamento dos corpos femininos, bem como da naturalização da violência e da cultura do estupro. Geralmente, na prática clínica institucional e de consultório, diante de um ambiente assegurador, escutamos inúmeras vezes a confissão das mulheres de nunca terem falado sobre “isso!”, ainda designando o silenciamento sobre a questão.

Segundo Minayo (1994, p. 265) “um dos grandes problemas em relação à violência doméstica é que as vítimas, quase sempre, silenciam, têm medo e são amedrontadas”.1 A realidade geográfica, os modos de vida social e as peculiaridades de moradia das mulheres ribeirinhas em casas de madeiras sobre palafitas2 - moradias típicas amazônicas, em alguns casos, sem divisão de cômodos e o banheiro como anexo, agravam este contexto.

Independentemente dos contextos, para a psicanálise, a sexualidade humana é inerentemente traumática, uma vez que o seu objeto de amor nasce no ódio. Porém, segundo a compreensão do adoecimento psíquico baseada na matriz ferencziana, o traumatismo sexual infantil é um choque que resulta em confusão de linguagem em vários níveis (FERENCZI [1933] 1992).

Assim, neste estudo, o abuso sexual infantil é compreendido como um traumatismo psíquico e, como tal, traz consequências internas severas ao sujeito que por identificação introjeta o agressor que desaparece enquanto realidade exterior e torna-se intrapsíquico (FERENCZI, [1933] 1992). Em consequência do traumatismo sexual, há uma introjeção do sentimento de culpa do adulto, “[...] a personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer, não pela defesa, mas pela identificação ansiosa e pela introjeção daquele que a ameaça e a agride” (FERENCZI, [1933] 1992, p. 103).

As crianças sentem-se física e moralmente sem defesa, sua personalidade é ainda frágil demais para poder protestar, mesmo em pensamento, contra a força e a autoridade esmagadora dos adultos que as emudecem, podendo até fazê-las perder a consciência. Mas esse medo, quando atinge seu ponto culminante, obriga-as a submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas, e a identificar-se totalmente com o agressor (FERENCZI, [1933] 1992, p. 102).

Além das consequências físicas e intrapsíquicas do abuso sexual infantil, como a introjeção do agressor, é possível observar a desorganização psíquica favorecida pelo ambiente externo, uma vez que falta o ambiente suficientemente bom, além de apoio e segurança (WINNICOTT, [1971] 1975). Ou seja, devido à insuficiência de um ambiente suficientemente bom, o sujeito reage de forma a se culpar pelas intrusões sofridas na sua vida. Observa-se frequentemente (MINAYO, 1994a), principalmente no caso de mulheres ribeirinhas, o silenciamento das vítimas de abuso sexual que por medo não contam o que sofreram e guardam como segredo; em muitos casos, sentem-se culpadas pelo que lhes aconteceu. Assim, seguem caladas, vivendo e revivendo suas dores solitariamente.

Retrato de um caso clínico

A psicanálise é um trabalho na cultura e na civilização. É um trabalho no vazio, nos buracos e nos interstícios. Dessa forma, na clínica psicanalítica não há como negar a dimensão ética que está estreitamente entrelaçada às diferentes proposições da técnica. Segundo Figueiredo (2004), sempre há subjacente a todos os ‘procedimentos’ a dimensão do outro e de sua radical alteridade exigindo reconhecimento. Assim, como analistas, somos interpelados pelo totalmente diferente (FIGUEIREDO, 2007) e assim me sucedeu: enquanto analista, fui convocada a entrar na cena do primeiro abuso sexual de Maria.3

Nascida em uma comunidade ribeirinha no estado do Amapá e vítima de abuso sexual infantil, em determinado momento do seu processo de análise, Maria se viu atravessada por revivências do trauma, na ordem do corpo, que passava a ser convocado pelos sentidos do paladar e do olfato, ao ser arrebatada por um cheiro ou gosto que a remontava para o dia do primeiro abuso sexual sofrido por ela.

Ao longo da análise, Maria passa, então, a falar de uma dor e de um profundo sofrimento revivido, como se o seu “corpo fosse sempre rasgado de novo” (sic). Nesse momento em que a análise parecia estar estagnada, a impressão era de que não havia recurso simbólico para a palavra ser dita. Assim, diante da sua dificuldade de simbolização, a analisanda é convidada pela analista a fazer uso da linguagem escrita e pintada, como recurso terapêutico possível para o estabelecimento do setting (WINNICOTT, [1961] 1989), a partir da organização de um holding (WINNICOTT, [1960] 1983). Na clínica, antes de fornecer interpretações, o objetivo da análise é proporcionar um “ambiente suficientemente bom”, que se adapte à necessidade do paciente (AROUCA; AMPARO; BRASIL, 2017).

Em determinada sessão, trouxe consigo um desenho - tão vivo e cheio de detalhes, da primeira cena de abuso sexual infantil vivenciado por ela, ainda tão pequena, com um corpo infantil. A palavra desenhada da analisanda evocou naquele instante um convite para entrar com ela naquele quarto. Da ordem da translaboração pôde passar da discursividade para uma cena analítica, em que descreveu as cores, o gosto e o cheiro “daquele dia” (sic) e, associando livremente, falou sobre aquela dor que sentia quando era interpelada no seu corpo pela memória da dor que vinha sobre ele.

Ferenczi ([1932] 1992) traz o conceito de translaboração quando compreende que a simbolização não é apenas pela via da elaboração simbólica. Mas em casos de sujeitos atravessados pelo trauma, pode incidir no silêncio e nos sentidos perceptivos, sendo necessário que o sujeito consiga para além de elaborar, translaborar as marcas deixadas pelo trauma. Dessa forma, a escolha pelo ‘retrato’ de caso clínico é tida aqui assim, porque foi dessa ordem da fotografia, da figura visual desenhada, que a cena de horror atravessou o enquadre interno da analista, não como uma delimitação, mas como imagem que fica e sai da visão do corpo para a escuta da linguagem desenhada.

A palavra estava ali no desenho. E através dele Maria falou e nomeou, possibilitando à analista pensar e construir um trabalho para que o traumático da infância não roubasse a vida adulta de Maria e, assim, situar o sujeito no acontecimento, permitindo lhe sair desse lugar do infantil.

Considerações finais

O trauma não é um acontecimento em si, mas a forma como esse acontecimento interpela e é processado interna e externamente pelo sujeito em seu psiquismo. Assim, fatores externos e internos ao sujeito podem remeter a uma vivência traumática da ordem do choque e da comoção psíquica, principalmente quando atravessadas pelo silenciamento, o que se evidencia em casos clínicos com ocorrência do abuso sexual infantil, em contexto comumente invisibilizado de comunidades ribeirinhas da Região Norte, como o caso de Maria.

Assim, abordar o tema e discuti-lo amplamente possibilitará reconhecer esse contexto tão pouco explorado para que seja possível mobilizar, sensibilizar e instrumentalizar o coletivo acerca desta questão social tão importante, uma vez que possibilita o cuidado à saúde mental mediante o cenário de traumatismo psíquico.

A clínica do traumático convoca o analista a um enquadre interno, recursos que, para além da interpretação, possibilitam um ambiente suficientemente bom. Através do holding e do manejo clínico, é possível estabelecer um setting em que o sujeito sinta-se seguro possibilitando a translaboração psíquica.

1No período de 2010 a 2012, foram registrados, no Brasil pelo Sinan, 367.435 casos de violência doméstica, sexual e/ ou outras violências. Desse universo, 66% foram contra a mulher (rural e urbana). É importante lembrar que nem todo caso de violência doméstica é denunciado. Segundo dados da Fundação Perseu Abramo, a denúncia acontece apenas nas situações em que as mulheres são ameaçadas fisicamente (31%), quando a violência deixa marcas, fraturas ou cortes (21%) ou quando se encontram sob ameaça de espancamento contra si mesmas ou contra os filhos (19%) (SOARES et al., 2017, p. 135).

2O vocábulo”palafita” embora seja conhecido internacionalmente como habitação lacustre ou que permanece sempre sobre água ou terrenos encharcados é aqui empregado em um sentido mais amplo. Queremos justificar aqui as necessidades de seu uso para as construções feitas sobre estacas que nem sempre estão sobre as águas. Essas construções podem estar à margem dos rios, em terrenos pantanosos ou mesmo sobre pilares ou estacas (GUERRA, 1954, p. 221).

3Nome fictício, para resguardar o sigilo profissional desse caso atendido pela primeira autora deste artigo.

Referências

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Recebido: 10 de Agosto de 2022; Aceito: 28 de Outubro de 2022

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