Em um tempo no qual se pontua o respeito às diferenças, a cidadania, a historicidade, a complexidade, a psicanálise do sensível, a realidade psíquica, a subjetividade, as tecnologias digitais, os algoritmos do ressentimento, as experiências vivenciadas nas mais diversas situações de violência, o diálogo entre profusos pontos de vista, esta edição da revista Estudos de Psicanálise n.º 61 busca contemplar tanto a diversidade, a pluralidade de abordagens teóricas presentes em autores contemporâneos da psicanálise e da psicossomática quanto evidenciar ajustes na postura clínica e uma reconfiguração do enquadre analítico.
Todo ato de escrita, toda investigação clínica, primado por Sigmund Freud em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), e a exemplo de Didier Anzieu, no Eu-Pele, inscreve-se em um contexto pessoal e situa-se em um contexto social. Em cada época, há um tipo de psicopatologia, um tipo de conhecimento, visto que a matéria está em constante movimento. No tempo de Freud e das duas primeiras gerações de seus continuadores, os psicanalistas se debruçavam sobre a escuta de neuroses caracterizadas, histéricas, obsessivas, fóbicas ou mistas. Hoje, boa parte dos que procuram psicanálise é constituída pelo que se denomina de estados-limite e/ou personalidade narcísica, psiquicamente mais fragilizados. A desvitalização desses pacientes, também encontrada na clínica das desorganizações psicossomáticas, sugerida por Rubens Volich em seu livro Psicossomática, de Hipócrates à psicanálise, transformou a posição do analista.
Além de ser uma teoria e uma prática, a psicanálise é dialética. Reporto-me à célebre assertiva do filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, no século VI a.C.: “Nunca te banharás duas vezes no mesmo rio”. No século XIX, começou a surgir e a desenvolver-se a ideia da dialética. Tanto a psicanálise quanto a dialética, como teorias, compreendem uma concepção de homem, do mundo e da vida. Os fenômenos materiais e ideais, e seus contrários, interpenetram-se constantemente, porque em sua essência têm alguma semelhança. Alguma identidade que se alcança quando se soluciona a contradição, quando se realiza a passagem dos contrários de um para o outro. A identidade é importante assim como a diferença. Esses fenômenos possuem uma gênese e um desenvolvimento que se edificam através de contradições, permitindo a passagem do ser de um estado inferior a um superior. Em muitas ocasiões, torna-se difícil distinguir os aspectos contrários das coisas. Essa dificuldade pode ocorrer devido ao desconhecimento de que o ser humano tem suas distintas realidades (externa, interna e virtual) que se conjugam por meio de seus conteúdos manifestos e/ou latentes.
Adentrando nesta edição, o leitor, então, sentirá e comprovará o processo de criação e de investigação de autores que nos presenteiam com concretos lógicos acerca de sua prática clínica e discussões dialéticas, os quais nos pegam pela mão e nos transformam, tal como salienta Manoel de Barros, em seu Livro sobre nada – “Os outros: o melhor de mim sou Eles” – e uma cortina se abre no coletivo ... panoramicamente..., fazendo-nos perceber mais uma vez que a psicanálise é significativamente a política dos desejos.
No artigo O filme Tomboy e as transexualidades – gênero e sexo, o hipercomplexo e o simples, Anchyses Jobim Lopes integra algumas ideias de Edgar Morin e enfatiza o pensamento complexo, que aceita os desafios impostos pela necessidade histórica de observar e considerar a totalidade do mundo vivido. Questões sobre gênero, transexualidade, neurociência e a categoria da complexidade fazem reverberar que a psicanálise, por não trabalhar com causas e efeitos simples, mas com constructos gerais, teóricos, abre um leque de possibilidades para realizar diálogos com diversas teorias – no caso, a neurociência – horizontalmente. As disciplinas e as teorias precisam se abrir para se comunicarem umas com as outras. Escreve Morin que a ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar. O próprio legado de Freud (1933) acerca de uma visão de mundo – Weltanschauung – corrobora esse enfoque na Conferência 35: “a psicanálise leva a uma determinada visão de mundo [...] uma construção intelectual que [nos possibilita] sentir seguros na vida, saber a que devemos aspirar e como alocar de maneira mais apropriada nossos afetos e interesses”.
Diante da complexidade da clínica das desorganizações, Anelise Scheuer Rabuske discorre sobre sua prática clínica no artigo A dor que me habita. Para tudo chega a sua hora. Conforme Anzieu, o Eu corporal e o Eu mental despertam simultaneamente, com um ligeiro florescer do sentimento mental do Eu, mas sem nenhum sentimento de estranheza. Para Volich, é necessário compreender as oscilações da economia psicossomática e suas repercussões sobre a saúde e o adoecer, bem como os processos terapêuticos que podem se entrelaçar em uma relação dialética entre psique, soma e meio ambiente, mirando atingir um equilíbrio frequentemente ameaçado.
A violência denota uma troca e mora ao lado do prazer. As fantasias se apresentam desde tenra idade. O artigo de Arthur Teixeira Pereira “Bate-se numa criança”: a fantasia de surra como cenário discursivo do sujeito inconsciente traz contribuições para a noção de fantasia de um modo geral, além de identificar o caráter discursivo presente nas chamadas fantasias de surra e de constatar que a fantasia institui o cenário discursivo do sujeito em análise. A fantasia indica o caminho do desejo. Inúmeras perguntas em busca de respostas levarão a outras perguntas.
Podemos desfrutar da experiência de pesquisa da nossa autora convidada Raquel Furtado Conte em seu texto A violência da escuta e a escuta da violência. Na violência, ocorre um rompimento social, bem como de um estatuto simbólico que rege o sujeito traumatizado. A violência da escuta de profissionais não qualificados pode agravar ainda mais precariedades do desenvolvimento ou de experiências traumáticas vividas pelo sujeito, desencadeando um novo desamparo psíquico e inibindo a escuta qualificada da violência.
Em Construções na análise (1937), Freud salienta que o analista procede como o arqueólogo, “quando tira suas conclusões de fragmentos de lembranças, associações e manifestações ativas do analisando. Os dois têm o direito inquestionável de reconstruir pela complementação e pela integração dos restos conservados”. A investigação é ir em busca do desconhecido. O psicanalista, como pesquisador, inventa um roteiro que vai sendo alterado e segue algumas pistas dadas pelo paciente, estabelece rotas, intui, associa, abstrai através da sua escuta e atenção flutuante. Lia Pereira Nóbrega pronuncia-se sobre Tecnologias digitais e os possíveis impactos para a privacidade, a segurança e a subjetividade de crianças e adolescentes e alerta que, embora tecnologia digital não seja um problema por si só, é preciso pensar como equilibrar o mundo virtual e o real, de modo a garantir outras experiências, conversas e vínculos além dos virtuais, porque o sujeito precisa de vínculo, de afeto e de adesão para ser.
Nessa temática sobre a realidade virtual, Luiz Cavalieri Bazilio apresenta-nos o artigo Os algoritmos do ressentimento: modulação de afetos na contemporaneidade, em que analisa o papel das redes sociais na formação da subjetividade e aponta alternativas terapêuticas no trato de uma clínica ressentida. Como fica o ressentido? Maria Rita Kehl, na obra Ressentimento, analisa essa emoção: “ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”. Qual é a resultante desses algoritmos do ressentimento na relação entre analista e analisando?
O terceiro analítico na clínica com crianças: considerações sobre a co-corporeidade, artigo de Márcia Alves da Rocha e Thais Klein, desenvolve questões relativas ao lugar do corpo e da contratransferência a partir da clínica psicanalítica com crianças em articulação com a dimensão da corporeidade. Com pressupostos teóricos sobre a categoria de terceiridade em Ogden, olha-se para o processo analítico, estabelecendo uma visão dialética entre o sujeito e o objeto, enquanto são tecidas as ligações da intersubjetividade. Mas o que se transmite ou transfere de um psiquismo a outro? Ou seja, os sujeitos da análise – analista e analisando – criam-se mutuamente: não há analista sem analisando, e não há analisando sem analista.
Tudo tem uma história, e as narrativas são inevitáveis. Estudos epidemiológicos apontam que milhões de pessoas em todo o mundo apresentam algum tipo de transtorno mental, expressa Menezes em Princípios de epidemiologia psiquiátrica. A psicopatologia é uma linguagem, um idioma. Há que escutar e decifrar esse idioma. Os sistemas da atualidade, com os manuais DSM-5-TR e CID-11, apresentam conceitos psicopatológicos, diretrizes, critérios diagnósticos, escalas, classificações, algoritmos, entre outras categorizações. E a escuta da subjetividade humana, o sujeito onde está? Rafael Dantas Nobre Viana disserta Onde está o sujeito. A psicopatologia está presente, naturalmente, em todos nós. Ah, a escuta! A arte de escutar requer experiência, sensibilidade e habilidade, para que a alma acolha a palavra que lhe é endereçada. Para tanto, há que desenvolver um silêncio ativo. Na práxis psicanalítica, a categoria-chave a considerar integrando o campo psíquico é a concepção da constituição do sujeito. Além da sensibilidade da escuta, do olhar da semiologia sobre os transtornos mentais, é primordial sentir e perceber a natureza do que o sujeito manifesta, demanda, visto que o desejo é articulado no inconsciente. Lembra Luciano Elia, em seu livro O conceito de sujeito, que o desejo, assim como o sujeito, é real, simbólico, imaginário: “Para que o sujeito aborde seu desejo, situe-se em relação a ele, signifique-o para si e finalmente o realize, o torne real em sua existência, em sua experiência, é preciso que ele adentre o plano do amor”. A análise é uma experiência afetiva.
Freud escreveu que a “psicanálise é, em essência, uma cura pelo amor”. Renata Franco Leite, no artigo Clínica psicanalítica e psicofarmacoterapia hoje: uma reflexão sobre os desafios da clínica e do (ab)uso de psicofármacos pós-pandemia, através da análise de dados e de reflexões sobre o perfil de seus pacientes, discute o aumento do uso de medicações do tipo psicofármacos após a pandemia de covid-19. O abuso de psicofármacos provoca o risco de a vida ser medicalizada. Assim sendo, significaria transformar um problema coletivo em um problema pessoal. Há pessoas querendo ser escutadas e necessitando de acolhimento.
Em A questão da adaptação: anotações sobre dois casos clínicos da psicanálise de criança (“pequeno Hans e o caso “Dick”) à luz da teoria ferencziana, Rogério Ferreira de Souza discute analiticamente o papel que a família exerce no desenvolvimento psíquico da criança e na formação de possíveis psiconeuroses infantis. Busca construir, a partir de Ferenczi, a ideia de adaptação como um processo de compreensão do mundo da criança pelos adultos, atrelado aos ditames culturais.
Para agir, ao menos requer-se localizar-se. “Como agir sobre um terremoto ou um furacão? [...] Não existe um estado normal completo, nem saúde perfeita”, expressa Georges Canguilhem, na obra O normal e o patológico. Saulo Moraes de Assis, em seu artigo Aproximações acerca da noção de normalidade em Freud e na psicopatologia, resgata o modo como Freud emprega a noção de normalidade em seus textos iniciais e, posteriormente, em sua obra madura. O texto tem caráter explanatório, intercalando avalições e sugerindo interpretações.
Sebastião Venâncio Pereira Júnior, Wilma Zuriel de Faria Maschke e Deise Matos do Amparo escrevem Os modelos do enquadre analítico na clínica psicanalítica com adolescentes limítrofes. Em referência à adaptação, declaram que é fundamental reconhecer a importância da presença do analista como expressão da pulsão de vida, contrapondo-se às manifestações de destrutividade que se apresentam nessa clínica.
O que importa é o movimento e os questionamentos que os textos, os atos de escrita, nos causam. Não somos mais os mesmos depois da leitura. Deixamos o convite ao leitor para seguir no caminho dos saberes que nossos autores nos indicam. O saber sendo uma matéria-prima é produção e transformação, provoca a dialogicidade entre o autor e o leitor. Desejamos profícuas contribuições para você, neste processo de mergulhar nas linhas e entrelinhas desta edição. Avante!
Com ternura,