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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Partilha, testemunho e formas contemporâneas do excessivo*

 

Sharing, testimonial and contemporary forms of excessiveness

 

 

Paulo Endo**

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo discute os testemunhos como formas de oposição às catástrofes. Examina a produção testemunhal escrita e oral como expressões radicais da linguagem. O autor analisa a representabilidade testemunhal à margem da representação. Do mesmo modo e juntamente com diversas produções escritas e orais, destaca o trabalho psicanalítico como espaço privilegiado de produção testemunhal: o testemunho do inconsciente, do trágico e do traumático.

Palavras-chave: Catástrofe, Representação, Testemunho, Trauma, Violência.


ABSTRACT

This article discusses testimonials as a way to oppose catastrophes. It examines the written and oral testimonial productions as extreme expressions of language. The author analyzes the representability of the testimonial according to representation. Yet, in the same way, and with several written and oral productions, it highlights psychoanalytic work as a privileged space for testimonial productions: the testimonial of the unconscious, of the tragic, and the traumatic.

Keywords: Catastrophe, Representation, Testimonial, Trauma, Violence.


 

 

Como e onde guardar testemunhos? Afora a literatura que os eterniza e transmite, o que fazer com aqueles testemunhos aos pedaços, mosaicos de palavras incertas e cacos de som e significação que se produzem oralmente? Serão eles tesouros ou lixo ruidoso sem destino e sem história?

Coisas inarquiváveis, não apenas sem qualquer ordem ou ligação, mas também sem pistas, sem pegadas, instruídas pela pulsão de morte e como tais destruidoras de seus próprios traços. A seguinte observação de Jacques Derrida sobre a pulsão de morte nos auxiliará nesse ponto:

Ela trabalha, mas uma vez que trabalha sempre em silêncio, não deixa nunca nenhum arquivo que lhe seja próprio. Ela destrói seu próprio arquivo antecipadamente, como se ali estivesse, na verdade, a motivação mesma de seu movimento mais característico. Ela trabalha para destruir o arquivo: com a condição de apagar, mas também com vistas a apagar seus “próprios” traços, que já não podem, desde então, serem chamados “próprios”. Ela devora seu arquivo antes mesmo de tê-lo produzido exteriormente (2001, p. 21).

Contra isso, contra esse “mal de arquivo”, um punhado testemunhal permanece guardado, arquivado. Eles estão esparramados nos acervos de memoriais e museus edificados para lembrar perpetuamente o terrível; outros se elaboram em torno das igrejas, da religiosidade e da busca espiritual por luto, outros ainda se instilam nas letras sincopadas do hip-hop, hoje fenômeno mundial, e há aqueles que figuram secundariamente como prova jurídica nos tribunais do mundo todo. Todos estão arquivados, guardados sob a garantia de sua perpétua reprodução. Patrimônio oral que encontrou sua forma escrita, gravável e reproduzível: os arquivos.

No extremo oposto ouviremos o grito. Sua explícita insubordinação, mas também, com ele a radical evidência da impotência do subordinado. O grito não alcança ainda a forma mínima que faria dele um patrimônio da cultura e, como tal, não pode ser arquivado. O grito não pode ser escrito. Seria talvez o poema, como tão surpreendente e assustadoramente realizou o poeta Paul Celan, a última escala do grito antes de seu desaparecimento total? Precisamente naquilo que opera “por dentro da voz lírica, a consciência do não-sentido, a consciência do gesto e do grito, a consciência do sonho”, conforme já assinalara Alfredo Bosi (1979, p. 10) a propósito da poesia de Paul Celan e João Cabral de Melo Neto.

 

A linguagem insubordinada: o testemunho

Quando se pensou em apresentar o problema da violência e da linguagem em termos de excludência ou subordinação (Ricouer, 1995; Wiesel, 2000; Levi, 1990), o que pode ser mais ou menos demarcado com a afirmação: onde há violência não há linguagem e vice-versa, logo fez-se urgente a pergunta: seria a linguagem calcinada pela violência? Seria a violência capaz de rebocar a linguagem para um não-lugar, lugar onde se cala e onde se silencia, lá onde o poema tangencia o emudecimento e onde ocorreria seu desaparecimento? Ou seria esse lugar do invisível, do inaudível &– a mais completa escuridão e mudez &–, onde nada existe, e o pior, nada insiste além dos pedaços resultantes da passagem da força bruta?

Diante dessa premência assustadora, tornou-se necessário, urgente talvez, pensar literatura e resistência ou mais especificamente testemunho e resistência. A sobrevivência de coisa qualquer que, mesmo após a passagem da violência, resistiria à violência. Replicação urgente à afirmação peremptória de Adorno de que “é barbárie escrever um poema depois de Auschwitz...” (Adorno, 1994b, p. 91), ou mesmo na insistência de Primo Levi (1990) de que as autênticas testemunhas dos campos não sobreviveram para narrá-la. Ou ainda, do constrangimento que a obra de Paul Celan impôs a esse veredicto de Adorno, ao conduzir sua obra poética precisamente lá, onde os mortos foram calados de uma vez por todas. Poderiam os sobreviventes falar os mortos? Poderia o poema tornar-se mais do que monumento póstumo? Eis aí novamente questões de primeira ordem que Celan repõe no jogo: “Em termos mais amplos” &– afirma Carone sobre Celan &–, “isso pode significar que, imitando as ‘trevas’ do discurso portador da morte, seu ponto de referência inicial, o poema, discurso a caminho do emudecimento, se vê, ele mesmo, ameaçado de morte” (1979, p. 100).

Para Levi, a violência impensável, imponderável, realizara nos homens e mulheres dos campos de concentração nazistas sua obra-prima: a desintegração da linguagem; e o fez, com método, paciência e voracidade calando suas possíveis e autênticas testemunhas &– os que morreram &– para sempre. O que Robert Antelme (2001, p. 11) chamou de “lento aniquilamento” não pode revelar mais do que uma verdade ofensiva: “Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar essa ofensa, a aniquilação de um homem” (Levi, 1997, p. 24).

Se por um lado Levi está assinalando, no limite, a derrota da linguagem e a instauração de um impossível absoluto, que põe fim a qualquer categorização ou definição do que virá depois sobre as catástrofes, por outro lado, ele está sinalizando um devir, isto é, a necessidade que se impõe de revitalizar urgentemente a figura e os propósitos do narrador-desvelador de Walter Benjamin, tal como sugere Jeanne Marie Gagnebin:

Como descrever essa atividade narradora que salvaria o passado, mas saberia resistir à tentação de preencher suas faltas e sufocar seus silêncios? Qual seria essa narração salvadora que preservaria, não obstante, a irredutibilidade do passado, que saberia deixá-lo inacabado, assim como, igualmente, saberia respeitar a imprevisibilidade do presente? Uma narração cuja dinâmica profunda não deixa de lembrar esse movimento paradoxal de restauração e de abertura que descreve o conceito benjaminiano de origem (1994, p. 72).

Ele surgirá das cinzas, como o trabalho de Primo Levi demonstrou, e, mais além, na terra bruta onde ficaram os mortos, onde Celan, infatigável, arava e fertilizava seu poema. Não se trata de investir-se como porta-voz do que não existe mais, mas revelar o testemunho da morte alheia no seio da própria mortificação, o que tanto no caso de Celan como no de primo Levi se revela como o testemunho do próprio aniquilamento literalizado pelo suicídio de Paul Celan, em 1970, e de Primo Levi em 1987.

Tratar-se-ia então de admitir a mais radical das derrotas e, ao fazê-lo, reduzir a derrota e a vitória à sua nulidade. A recusa do emudecimento será aquilo que impõe à linguagem uma nova tarefa diante do desastre e da catástrofe.

Tarefa infinita, como já comentara Elie Wiesel numa entrevista televisiva a propósito do imperativo que lhe impunha escrever continuamente, para além das dezenas de livros que já escrevera sobre o que se passou e o que se passará. É possível reconhecer aqui uma nova ordenação temporal que se revela como preocupação com o futuro, compromisso em dizer que aquilo que se passou impõe o zelo e a preocupação com o que se passará.

Esta preocupação se explicita claramente quando Adorno (1994b), em Educação após Auschwitz convoca a Psicanálise para a nova empreitada histórica que, desde a segunda guerra se anuncia: como evitar que Auschwitz se repita? Relembremos então a contundência de suas proposta:

Eu gostaria de fazer uma proposta concreta: estudar os culpados de Auschwitz com todos os métodos disponíveis na ciência, particularmente através de psicanálises prolongadas, para possivelmente elucidar como uma pessoa pode chegar a ser isso. O que essas pessoas ainda podem fazer de bom, mesmo em contradição com sua estrutura de caráter, caso isso seja possível, é nunca mais fazerem o que fizeram (p. 41).

Adorno estava estupefato com o apoio do alemão comum e com o fato de que “... os torturadores dos campos de concentração... eram em grande parte jovens filhos de camponeses” (1994a, p. 37). Sua convocação à ciência fala de um hiato abissal entre os acontecimentos da segunda guerra e o conhecimento &– que se revelara drasticamente precário &– que a humanidade tinha de si mesma.

Hannah Arendt percebeu claramente esse impasse e o encareceu. Imersa nos acontecimentos da Segunda Guerra, sofreu como judia alemã as perseguições do nazismo. Saiu da Alemanha aos oito anos e, depois, partiu da França para os Estados Unidos momentos antes de ser deportada para um dos campos de concentração nazista. Ela também foi uma testemunha de seu tempo. Em suas palavras:

A situação porém tornou-se desesperadora quando se mostrou que as velhas questões metafísicas eram desprovidas de sentido; isto é, quando o homem moderno começou a despertar para o fato de ter chegado a viver em um mundo no qual sua mentalidade e sua tradição de pensamento não eram sequer capazes de formular questões adequadas e significativas e, menos ainda, dar respostas às suas perplexidades (1997, p. 35).

O evento das catástrofes tornara obsoleto o pensamento e hipócritas aqueles que eram incapazes de se deslocar desse ambiente “metafísico”, como sugere Hannah Arendt, para o território da ação. Tradição que na França foi capitaneada por Sartre, Émile Zola, Genet e outros e seguida, mais à distância, por Foucault. Quando então novos fatos, novas catástrofes atordoaram mais uma vez os intelectuais, quando se revelaram as atrocidades cometidas no arquipélago Gulag pelos comunistas russos, desmoralizando toda a esperança investida nas revoluções e na insurgência popular, a própria atividade de pensamento foi colocada em cheque.

Na crise que foi então chamada de silêncio dos intelectuais, novamente a sombra do silêncio/emudecimento e colapso da linguagem rondava o devir do dizer. E novamente o próprio sentido de humanidade que se queria restaurado pelo pensamento e pela ação se viram relegados à falácia e &– o mais assustador &– à hipocrisia.

Um golpe de morte rondava o pensamento que se encontrava agora perplexo e silenciado. Hannah Arendt então ilustrará esse momento:

Caso fosse preciso escrever a história intelectual do nosso século não sob a forma de gerações consecutivas...mas, como a biografia de uma única pessoa... veríamos a mente dessa pessoa obrigada a dar uma reviravolta não uma, mas duas vezes: primeiro ao escapar do pensamento para a ação, e a seguir quando a ação, ou antes, o ter agido, forçou-a de volta ao pensamento (1997, p. 35).

Esse retorno ao ponto de partida do pensamento foi, talvez, apenas um retorno à própria casa. Ganho que, observados o corpo cabisbaixo e os andrajos de quem retorna, se assemelha mais a um fracasso.

Todavia seria bastante fundamental que considerássemos que em meio a essa herança inglória das catástrofes que, desde então, colocara em cheque a palavra, o pensamento e a representação havia, não há dúvida, algo que flutuava vivo num lago tomado por detritos e dejetos, isso que o esforço de Primo Levi deixara entrever.

As indicações que ele deixa são pródigas em apontar os limites da palavra que não poderá mais consistir em refazer o passado, nem explicá-lo e nem mesmo compreendê- lo. A nova tarefa que se impõe ao pensamento será a de refletir sobre um passado que tendo ocorrido tal como ocorreu, ainda torna possível imaginar, considerar e projetar um futuro.

Um devir que, ao mesmo tempo em que não nega ao passado o legado de conseqüências intermináveis e inultrapassáveis (onde se inscrevem os testemunhos), ao mesmo tempo lhe cobra um novo posicionamento. Um nascimento, como quer Hannah Arendt, no ponto onde algo morreu de forma catastrófica. Essa talvez uma das tarefas mais árduas aos herdeiros de uma era de catástrofes. Cito Hannah Arendt:

o apelo ao pensamento surgiu no estranho período intermediário que, por vezes, se insere no tempo histórico, quando não somente os historiadores futuros, mas também os atores e testemunhas, os vivos mesmos, tornam-se conscientes de um intervalo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda. Na história, esses intervalos, mais de uma vez mostraram conter o momento da verdade (1997, p. 35-36).

É esse o tempo em que se inscreve a obra de Primo Levi e outras tantas testemunhas de seu tempo, e é esse o lugar que ele reivindica ao que ele escreve quando diz: “Repito, não somos nós, os sobreviventes, as autênticas testemunhas” (1990, p. 47).

 

Testemunho e força bruta

Em 1969, o prêmio Casa das Américas de Cuba instituiu uma nova categoria literária a ser premiada: os testemunhos.

Essa inclusão respondia à crescente produção testemunhal escrita e à qualidade dos textos produzidos por essa lavra. Logo, a princípio se destacava que um dos critérios fundamentais de julgamento para a premiação seria a qualidade literária do trabalho, o que colocava de lado o mero relato, transcrição ou entrevista e exigia da parte do autor um amálgama entre o vivido, a expressão desse vivido para a linguagem escrita e o aparecimento, nesse exercício, de um estilo literário notável e destacado. De chofre teremos então colocado de lado todas as produções orais do testemunho. Essas ficariam, como ficaram, relegadas a um plano de narrativa simples, documental e árida. Foram necessárias outras expressões orais para resgatar no universo daqueles que não dominam a língua escrita, propagarem, como cultura, seus próprios testemunhos diante do catastrófico e do traumático.

O testemunho quer ser verídico e produz-se entre a memória individual e a história. “O testemunho vive e elabora- se numa zona de fronteira” (Bosi, 1995). Mas, será essa fronteira um indicador de um verdadeiro problema? Isto é, se o testemunho reivindica para si um caráter histórico, como mais uma pontuação na gramática dos dizeres sobre a história de uma violência ocorrida, também, e ao mesmo tempo parece ignorar essa própria natureza, já que não existe o testemunho senão atravessado pela radical subjetividade, até onde ela pode ser transmitida.

Diferente de uma testemunha ocular-vértice fundamental do sistema jurídico, o testemunho como escrita ou como produção oral ambiciona a transmissão, a narração imperfeita, subjetiva, mas fiel e íntegra, sem qualquer laivo de hipocrisia ou falsidade. A verdade aos fatos, que se ambiciona no testemunho não está em seu caráter objetivo, mas na capacidade de dizer o catastrófico rente à própria integridade do dizer, só por isso, tornado próprio.

Dirá Bosi:

O narrador contempla corpos sofridos que às vezes emitem palavras, talvez idéias, farrapos de idéias, mas estas importam pouco em si mesmas. A solidariedade que lhe inspiram aqueles homens é existencial, para não dizer estritamente corporal. Não é a luta partidária de cada um que o afeta, mas o seu modo próprio de estar naquelas condições adversas, o seu jeito de sobreviver (1995).

Voltamos ao sentido emprestado por Derrida à pulsão de morte como uma pulsão sem vestígio, sem traço e cujo vetor é sua própria anulação, em oposição ao sentido de propriedade que o erotismo empresta a tudo que toca. Deixando um rastro que conduz a um sujeito, encontrado graças às “marcas libidinais” que deixou para trás.

Chegamos ao ponto em que a Psicanálise é convocada. O ponto em que à necessidade e ao desejo em testemunhar se inscrevem numa insistência em direção à própria dor, ao próprio sofrimento e à impossibilidade de se desfazer dessas experiências como alheias e impróprias. Reconhecer-se no próprio dizer como se, no próprio ato de fala, conjuminassem ação e discurso, corpo e linguagem e o sujeito do testemunho se expusesse ao próprio descentramento, ao próprio desconhecimento e à própria negação de uma temporalidade cronológica e crônica, própria à história, aos fatos e à objetividade. O descentramento então, como possibilidade privilegiada onde a dor se corporifica, se revelando em sua formação mais primitiva, um quase-corpo. Será deste ponto que o sujeito pode nascer no a posteriori da morte invocada pelo golpe da violência excessiva e do emudecimento, onde se banham as pulsões de destruição mudas e imperativas.

Ao mesmo tempo em que se inaugura uma zona de silêncio em que a dor é, como que ritualizada na cena transferencial, cena de todos os possíveis em que se inscreve o inédito, sobretudo no que se refere ao tempo e lugar onde o dizer renuncia ao discurso em busca de sua propriedade.

Diante disso fica indicado o lugar infame da objetividade quando se trata da urgência em reconhecer-se no que se diz, quando se trata de restituir à fala a propriedade seqüestrada no seio das ambições pelo consenso e pela última versão dos fatos. Aqui é preciso observar no que tange aos testemunhos: não há última, nem final versão dos fatos. Então daí, parte uma nova conseqüência: o imperativo que emerge das catástrofes é a necessidade que se têm de que ela possa, a partir de então, impor-se como transmissão implicada, sendo o testemunho sua via privilegiada.

Relembremos uma vez mais a constatação de Walter Benjamin:

Com a guerra evidenciou-se um processo que desde então não pode ser sustado. Não se percebeu ao final da guerra que os indivíduos voltavam emudecidos aos seus lares? Não mais ricos e sim mais pobres em experiências que pudessem comunicar? E o que dez anos mais tarde entrou na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com aquela experiência vivida oralmente. E isto não é de admirar, pois nunca se provou com mais clareza a improcedência das experiências: as estratégias pela guerra de trincheiras, as econômicas pela inflação, as morais pelos donos do poder. Uma geração que ainda usara o bonde puxado por cavalos para ir à escola, encontrou- se sob céu aberto em uma paisagem que em nada continuava como fora antes, além das nuvens e debaixo delas, num campo magnético de correntes devastadoras e explosões, o pequenino e quebradiço corpo humano (1994, p. 198).

Revelado em meio ao cataclismo o humano reduziu-se a um corpo atroz, mudo e imerso no torvelinho da iminência de sua própria devastação. Devastação realizada também inconscientemente, na duração interminável da repetição espetacularizada do sintoma histérico, como logo observou Freud. Se o inconsciente se fala através da escuta alheia, ou como quer Anzieu: “Não há auto-análise séria se ela não for falada a alguém” (1989, p. 418) temos aqui, no seio do trabalho e da ética psicanalítica o estatuto do testemunho. No mesmo sentido em que Shoshana Felman dirá: “São precisos &– ao menos [inclusão minha] &– dois para testemunhar o inconsciente” (2000, p. 27).

Este estatuto diferido da montagem inconsciente não pode ser previamente enunciado senão em pleno curso alteritário, senão no exercício da fala e da escuta que se supõem imersas num campo de associações livres e flutuantes. Porém, sabemos, muitos dos elementos livres e flutuantes suspensos no espaço analítico são natimortos e não chegam à maturidade. E é, em grande parte, ofício do psicanalista reconhecer a posteriori as partes mortas do que se faz fala em análise: pulsão de morte. Reconhecendo o que distingue a fala e o discurso na repetição que, por sua insistência, parece querer matar toda significação e sentido.

É o discurso que se lança no espaço analítico ao próprio espatifamento. Não se trata, pois da constrição da fala explicativa, mas da expressão da fala turva, que abdica da autoridade do dizer explicativo rumo à singularidade suposta no dizível, que ainda resiste à representabilidade.

Shoshana Felman sugerira então uma passagem, num sentido expansivo, para revelar o testemunho como uma aposta na perdição ao lugar equívoco da escuta. Para ela será na escrita de seus casos clínicos, que Freud dará seu próprio testemunho aberto ao que se inaugura com a fala escutada de seus pacientes na cena transferencial.

Inspirados por essa notável reflexão de Felman, retomaremos brevemente o relato do conhecido e impressionante sonho apresentado por Freud (1900/1981), no sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos, a fim de, ainda que provisoriamente, sintetizar nossas discussões até aqui.

Freud descreve um sonho. O filho morto que se encontra no quarto rodeado de velas é velado pelo pai durante horas. Extenuado, o pai deita-se no cômodo ao lado, deixando, entretanto, a porta entreaberta. Encontrava-se no quarto um senhor que foi chamado para velar o filho morto. Ele estava ao lado do corpo murmurando preces. O pai adormece, e o homem ao lado de seu filho morto também. Durante o sono, o pai sonha que seu filho o acorda de modo enfático e repreensivo com os dizeres: “Pai, não vês que estou queimando!”.

O pai desperta, vê um clarão que se insinua através da porta do quarto. Ao chegar à beira do caixão, vê que uma das velas havia caído sobre o braço do filho morto e o havia queimado. Freud interpretara a cena como a vociferação grandiloqüente de um desejo realizado pelo sonho. O desejo de que o filho estivesse vivo.

No entanto, outro elemento está presente nesse sonho, que não deixa de ser uma composição original de um sonho traumático. O pai revê o filho queimando em febre e é incapaz de auxiliá-lo. Para o pai, foi, talvez, a febre que matou seu filho. Um pai jamais deveria dormir, já que seu sono e seu sonho representam a morte do filho. Pai desperto e vigilante, pai ambíguo, pai tirânico, pai protetor. Desperto do sonho traumático, o pai reencontra a cena do filho queimando por seu descuido (ou por sua intenção?).

Reencontramos aqui aquilo que forja o representacional sem representabilidade.

Imagens afogadas na pulsão de morte, onde é repetido o horror que não cessa de colidir com o campo representacional que o mitiga e o agrava infinitas vezes. A repetição traumática se instala em seu duradouro círculo, hetero e auto-imposto ao sujeito, como retraumatismo e exacerbação da dor, conduzindo à indiferenciação entre a experiência física e psíquica.

Tal horror acentuado até o limite do suportável, torna possível e desejável dar cabo à própria vida. Tal como o fizeram Primo Levi, Paul Celan e Walter Benjamin, para os quais a palavra foi também uma passagem, rumo à própria morte e aos próprios mortos. Nesse sentido, o percurso analítico não deixa de ser também uma travessia entre a morte e os mortos.

Junta-se então às expressões religiosas e rituais, aos acervos, à música falada e sincopada, o espaço analítico como lugar onde um testemunho de si se revela como escuta terceira, diferida e singular. Sem as exigências de qualquer prontidão que aguardaria alhures. Sem as exigências da explicação.

Resta-nos ainda pensar que o testemunho, cuja escuta se encontra ao longe, numa espécie de neutralidade radical, produz efeitos analíticos. Ali mesmo onde o testemunho inaugurou uma nova escuta sobre o traumático e uma forma inédita de dizê-lo e expressá-lo na cena pública e social onde o trauma aconteceu e foi, de algum modo, visto, escutado, vivido e testemunhado.1 Talvez sejam essas a ambição e a tarefa dos testemunhos que, perseguindo a própria dor, perfazem-na em dor própria, deteriorando as bordas do espectro largo, em que a representação e a explicação reinam soberanas.

 

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Endereço para correspondência
Paulo Cesar Endo
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Tel.:11 3862-0166
E-mail: pauloendo@uol.com.br

Recebido: 15/09/2007
Aceito: 24/09/2007

 

 

* Este artigo é uma versão bastante modificada de uma palestra proferida na Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), agosto de 2007. Agradeço os debates aí suscitados que contribuíram decisivamente para alterações importantes na presente publicação.
** Psicanalista. Professor doutor do IPUSP, autor do livro A violência no coração da cidade: Um estudo psicanalítico (Prêmio Jabuti 2006).
1 Os exemplos são muitos e diversos. Destaco aqui alguns: as caminhadas pela paz e contra a violência, organizadas pelo Fórum em Defesa da Vida do Jardim Ângela; os comitês de reconciliação e verdade da África do Sul e outros comitês que se seguiram no mundo todo; as experiências com a justiça restaurativa em Porto Alegre junto à Terceira Vara da Infância e da Adolescência; as experiências do memorial da paz em Hiroshima; e as mobilizações anuais do MST no dia 17 de abril, dia em que aconteceu o Massacre de Eldorado de Carajás.

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