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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010
EM PAUTA - CARTAS
Escrever, verbo intransitivo: Sophie Calle
To write, an intransitive verb: Sophie Calle
Sandra Lorenzon Schaffa*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
A exposição de Sophie Calle, Cuide de você, construída em torno de uma carta privada, convida-nos a indagar sobre um sentido contemporâneo da intimidade. A obra da artista é reconhecida pela autora como situação de engendramento de um lugar psíquico aberto à inscrição de destinos passionais do feminino.
Palavras-chave: Intimidade, Feminino, Escrita.
ABSTRACT
Sophie’s Calle’s exposition, Take care of yourself, designed around a private letter, invites us to question contemporary intimacy. The work of the artist is recognized by the author as the construction of a psychical locality open to the inscription of feminine passionate destinies.
Keywords: Intimacy, Feminine, Writing.
“Ao menos, ele escreveu.”
As palavras são de Sophie Calle. Ela as pronuncia durante uma sessão inabitual. No consultório vemos duas cadeiras diante de uma terapeuta. Sophie está sentada em uma delas; na outra, uma carta está posta. Trata-se da carta (e-mail) de rompimento dirigido a Sophie por seu amante G.
A cena a que assistimos faz parte da obra Cuide de você: um livro, vídeos, uma exposição que desde a 52ª Bienal de Veneza, em 2007, percorre o mundo. Várias mulheres debruçaram-se sobre a carta de G. “Eu pedi para 107 mulheres – sendo uma de penas e duas de madeira (isto é, um papagaio, uma boneca bunraku e uma marionete) – escolhidas pelo seu ofício, seu talento, para interpretar a carta sob um ângulo profissional” (Calle, 2007, p. 1).
Impresso, o e-mail ganha materialidade. É papel na nossa mão. Tocam-se seus caracteres. Em Braille. Lê-se em diversas línguas. Em latim, em Morse, em código de barras, em sistema binário, estenográfico, hexadecimal... Analisa-se à exaustão, sob inúmeros ângulos: literário, filosófico, moral, antropológico, historiográfico, criminológico, jurídico, léxico-métrico, estilístico, fonético... Interpreta-se através do Talmud. Revela-se através do Tarot. Corrige-se segundo a ortografia, segundo as boas maneiras. Desenha-se. Transcreve-se em romance para a juventude, em romance sentimental. Transforma-se em poema. Em balanço de contabilidade. Faz-se roteiro. Filma-se. Dança-se. Transpõe-se em canto lírico. Em soul, em tango, em fado, em rap... Representa-se segundo a versatilidade de diversas atrizes e uma palhaça: Jeanne Moureau, Miranda Richardson, Victoria Abril, Maria Medeiros e Merian Menant, dele descobrem tonalidades cômicas ou dramáticas inauditas. Transmuta-se em Ikebana. Em alvo de tiro. Seguem-se seus ricochetes incessantes sem lhe esgotar o sentido. Fica-se diante do enigma do homem que o escreveu.
“Faz tempo que lhe quero escrever e responder ao seu último e-mail. Ao mesmo tempo, me parecia preferível lhe falar e dizer o que lhe tenho a dizer pessoalmente. Mas, pelo menos ficará escrito”1.
Mentiroso? “Stop lying, now” geme o refrão da litania pop de Keist. “Ele se acha”, lemos sobre a tela da adolescente convocada, Anna. Palavras enredadoras? “Paroles, paroles, paroles”, cantava Dalida... É o que o desenho de Soledad Bravi dá a ver. De um lado, o homem diante de seu computador, pilhas de livros espalhadas pelo chão (dicionários de citações, de máximas, de analogias...), no balão sobre sua cabeça lê-se: “enviado!”. A palavra traduz o orgulho que exibe sua expressão. Do outro lado, a mulher diante de sua tela acabrunhada.
Nessa charge não é difícil reconhecer a descrição que oferece Flaubert de Rodolphe no momento em que escreve a carta de rompimento que enviará a Emma. Rodolphe termina com estas palavras: “Continue sempre boa!” (Cuide de você?). “E havia um último adeus separado em duas palavras: A Deus!, o que julgava de um excelente gosto”, ironiza Flaubert, sublinhando o caráter factício das palavras do amante de Emma. E, no entanto, não ficamos insensíveis ao que exprime G.: “uma espécie de angústia terrível” desde que responde a Sophie. Em contraste com a carta de Rodolphe, a intranquilidade transparece na carta de G.
“Acreditei que a escritura seria um remédio, meu desassossego se dissolvendo para lhe encontrar.” Em francês, “intranquilité”, palavra empregada pelo amante de Sophie, encontrada na tradução do livro de Fernando Pessoa, é o único neologismo que se destaca do estilo elevado de uma escrita estrangeira ao gênero habitual do correio eletrônico. Se o emprego de “desassossego” poderia ser creditado às expressões literárias que estão na moda, seu sentido se diz, todavia, pelas oscilações que atingem a pluma do diabo (resposta de Marie Desplechant feita romance para juventude no âmbito da exposição), tingindo de angústia a erudição do texto. Desassossego seria então a transpiração das palavras, que deixa seu rasto de indiscernível limite entre responder e escrever.
“Faz tempo que lhe quero escrever e responder ao seu último e-mail.” Responder não é escrever: “meu hábito é escrever cartas e não responder cartas”2, escreve Mário de Andrade (Moraes, 2001, p. 324), “correspondente contumaz”, como ele próprio se definiu. Amar, verbo intransitivo, o título de seu primeiro romance, anuncia a contradição dilacerante que devora a protagonista, Fraülein, a professora de amar. Poderíamos aventurar o pensamento de uma carta nascida de uma acepção intransitiva do verbo escrever? Não responder a uma carta, escrever. Escrever, verbo intransitivo?
“Que será de mim, e que queres que eu faça? Encontro-me muito longe de tudo que havia previsto: esperava que tu me escrevesses de todos os lugares onde passásseis e que tuas cartas seriam bem longas; que tu sustentarias minha paixão pela esperança de te rever...” (Graffigny, 1747/1983, p. 78).
A evocação das cartas portuguesas pela psiquiatra Françoise Gorog no quadro de Cuide de você é instigante. Evoca os idos tempos em que missivas eram enviadas através de um dispositivo de ar comprimido, o pneumático: “Um correio eletrônico corre diferentemente que uma carta, que uma epístola. [...] é ainda o que chamamos ‘um bilhete’? ‘Amanhã te envio um bilhete ou um pneumático’, dizia-se. A língua mudou, estamos longe das Cartas da religiosa portuguesa que fizeram da palavra ‘portuguesa’ o nome próprio da carta apaixonada e terna” (Calle, 2007).
A língua mudou, os costumes também. A publicação de cartas íntimas, como as de Mariana Alcoforado, a jovem portuguesa (mesmo se três séculos depois sua autenticidade seria contestada), era uma prática corrente no século XVII; alterações permitiam preservar o anonimato e o espaço da intimidade.
O que é da intimidade nesse reino mercantil de hiperexposição dos corpos em que vivemos?
A obra de Sophie Calle inscreve-se no horizonte dessa interrogação. Na intersecção do domínio público e privado que questiona o sentido do íntimo. Cuide de você, na linha de Histórias verdadeiras, escritas por essa autora, situa-se no ponto de junção entre sua vida e sua arte, a obra composta a partir de restos de vida.
As ideias avançadas por Sylvie Le Poulichet poderiam ser evocadas aqui. Essa autora considera as criações de certos artistas como “processos de engendramento de corpos estrangeiros que recompõem as relações de tempo e espaço a fim de afastar o perigo” (1996, p. v). Forjar um corpo estrangeiro, pois. Não estamos longe da intervenção da psicanalista Marie-Magdaleine Lessana no espaço da exposição: “Ela não pode responder por uma carta, isso seria confirmar a ausência. Podemos compreender que lhe seja necessário armar artisticamente, como ela sabe fazer, essa carta de adeus. A fim de, graças à amplitude pública, alcançar um corpo que vai à esquiva” (Calle, 2007).
Não responder por uma carta. Nem lê-la com os olhos de Ambre, a participante mais jovem, nove anos e meio, que apenas exprime segundo sua leitura: “Ela está triste”. Recompor as relações de tempo e espaço a fim de afastar o perigo. Mas trata-se aí de uma organização particular. Trata-se de constituir um corpo estrangeiro a partir de outros corpos. Para além do ditado de todos os saberes convocados, ou melhor, à sua margem, forma-se esse corpo estrangeiro no terreno onde gaguejam, onde se calam. Constrói-se (seria preciso dizer melhor: tece-se em um sentido freudiano) a partir da matéria da paixão das outras.
É certo, uma espécie de repugnância em compor esse coro feminino em torno de uma carta alheia-íntima se lê nas intervenções de várias participantes. Apesar de seu assentimento, essas mulheres atestam sua singularidade ao mesmo tempo que o seu mal-estar em transitar através dessa zona de contágio em que se borram os limites de identidade. Essa resistência em se deixar amalgamar nessa massa de mulheres – a transferência é, sobretudo, um fenômeno de massa – teria impelido Christine Angot, escritora convocada, a rejeitar “esse esquadrão de mulheres” armado em torno de uma correspondência privada: “o coro que você formou em torno dessa carta é o coro da morte”, exclama ela. Mas por que não pensar antes no coro de mulheres das tragédias de Ésquilo, que soube dar um lugar para que o desejo feminino pudesse se inscrever?
“Recebi um e-mail de rompimento. Não soube respondê-lo. Era como se não me estivesse destinado. Terminava por essas palavras: cuide de você. Tomei essa recomendação ao pé da letra” (Calle, 2007).
Tomar essa consideração ao pé da letra é jogar uma garrafa no mar. Lançar uma carta ao mar não seria pô-la em segurança, como fez Poe no Manuscrito encontrado numa garrafa: “Pouco tempo, porém, me será deixado para meditar sobre o meu destino!” (1831/1966, p. 84). Estamos com Sophie Calle nessa urgência que impele o processo de criação.
“Botella al mar” é o título de um conto epistolar escrito por Julio Cortázar. Nesse texto, escrito como uma carta aberta, o escritor se dirige à atriz Glenda Jackson3; o conto se propõe como epílogo a outro conto, “Queremos tanto a Glenda”, cujo enredo se constitui em torno do fervor passional de um grupo de fãs da atriz, que acaba por crucificá-la. A carta, epílogo, nos permite pensar a distância que constrói o íntimo entre responder e escrever.
Querida Glenda, esta carta no le será enviada por las vías ordinarias porque nada entre nosotros puede ser enviado así, entrar en los ritos sociales de los sobres y el correo. Sera más bien como si la pusiera en una botella y la dejara caer a las aguas de la bahía de San Francisco en cuyo borde se alza la casa donde le escribo; como si la atara al cuello de una de las gaviotas que pasan como latigazos de sombra frente a mi ventana y oscurecen por un instante el teclado de la máquina. … Es así, pienso, que se operan las comunicaciones profundas, lentas botellas erran en lentos mares, tal como lentamente se abrirá camino esta carta que la busca a usted con su verdadero nombre. (Cortázar, 1980)4
Escapar ao naufrágio de uma paixão que enclausura ou crucifica. Encontrar a distância para escrever, isso faz Sophie convocando outras: a garrafa ao mar fará face ao perigo dentro de um movimento paradoxal que desencadeia uma tempestade para proteger do naufrágio uma carta. A tempestade – amor no avesso da raiva que aí se inscreve a partir das respostas das outras – é o sopro que vai preservar a carta, não tanto da raiva, mas do nada. Trata-se igualmente de preservar o que teria sido: o inacessível amor. “Aquilo que há por nunca ter sido é o inconsciente”, dizia Fabio Herrmann.
O remédio é o outro. Não é senão através do outro que uma cura é possível. “Tome conta”, chama o Outro. Então, é a obra de arte que cuida de nós, que nela penetramos atravessando essa zona de impudor em que reinam maciçamente transferências.
Reconhecer essa exposição como uma carta ultrapassando o enquadre tradicional disso que conhecíamos como a carta de amor? O estilo da carta amorosa mudou no nosso tempo, mas tão longe da introspectividade da religiosa portuguesa não encontramos na carta de Sophie a mesma necessidade de escrever, a mesma marca apaixonada?
Desse convento português no século XVII, Mariana, diante do silêncio e da frieza do destinatário do seu amor, nos faz assistir à sua deriva no interior de um monólogo que obedece a um solipsismo devastador em que o outro de seu desejo não mais se inscreve. “Escrevo mais por mim que por ti ... sinto que tu não me és mais caro que minha paixão” (Graffigny, 1747/1983, p. 90).
Pelos corredores da exposição de Sophie Calle, não vamos nós na contracorrente do esvaziamento dessa lamentação feminina se encerrando nela mesma? Esse vazio não serviria a Sophie Calle para modelar um objeto em cuja concavidade se engendra a escritura das transferências que suscita?
A carta de Sophie está escrita. Fomos nós todas que lhe emprestamos a tinta.
Referências
Calle, S. (2007). Prenez soin de vous. Paris: Actes Sud. (Catálogo de exposição). [ Links ]
Cortázar, J. (1980). Queremos tanto a Glenda. Madrid: Punto de Lectura. [ Links ]
Graffigny, F. de (1983). Lettres portugaises. lettres d’une péruviènne et autres romans d’amour par lettres (B. Bray & I. Landy-Houillon, Eds.). Paris: Flammarion. (Trabalho original publicado em 1747).
Moraes, M. A. (Org.) (2001). Correspondência Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp. [ Links ]
Poe, E. A. (1966). Poesia e prosa (O. Mendes & M. Amado, Trads.). Rio de Janeiro: Ediouro. (Trabalho original publicado em 1831). [ Links ]
Poulichet, S. de (1996). L’art du danger : de la détresse à la creation. Paris: Éditions Anthropos.
Endereço para correspondência
Sandra Lorenzon Schaffa
Rua Iquitos, 388
05444-020 – São Paulo – SP
tel: 11 3031-9215
E-mail: sandralorens@uol.com.br
Recebido: 02/04/2009
Aceito: 20/04/2009
* Psicanalista, membro efetivo da SBPSP.
1 Texto distribuído na exposição Cuide de você. SESC Pompeia, São Paulo, 2009.
2 Carta de 10 de novembro de 1926.
3 Clarín, 8 de outubro de 1981. Disponível em: <http://www.lamaquinadeltiempo.com/cortazar/glenda.htm>. Acesso em: abr. 2010.
4 Disponível também em <http://www.lamaquinadeltiempo.com/cortazar/glenda.htm>. Recupedado em 3.05.2010.